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O PROJETO EPISTEMOLÓGICO DE GEORGES CANGUILHEM

No documento MESTRADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2011 (páginas 81-84)

CAPÍTULO 2 – RELAÇÕES E CONTROVÉRSIAS ENTRE EPISTEMOLOGIA E

2.2 O PROJETO EPISTEMOLÓGICO DE GEORGES CANGUILHEM

Canguilhem retoma uma discussão já iniciada pelo seu mestre, que é a frequente posição tradicional que ocupam os historiadores das ciências ao considerar o objeto da história das ciências como um objeto da ciência. Essa visão de historiador constitui um modelo cuja história das ciências tem a função de "microscópio mental"23 na prática da historiografia científica. Ou seja, é uma problemática, exposta através da discussão

22 No original em francês “Em attendant des échantillons” (CANGUILHEM, 1977, p. 29).

23 Canguilhem “definiu o papel da história das ciências como o de ‘microscópio mental’, tendo por efeito

revelador de introduzir atraso e desistência na exposição habitual do saber científico, pela menção das dificuldades encontradas e na propagação deste conhecimento” (CANGUILHEM, 1970, p. 12).

diretamente sobre a pergunta: em que exatamente a história das ciências é história?, conforme exposto na conferência que Canguilhem participou, na cidade de Montreal, em 1966.

Nessa pergunta estão tácitas outras questões que remetem à história das ciências, sendo que uma delas é a definição do critério de classificação usado para selecionar o que está inscrita dentro da "categoria" 24 história das ciências. Segundo Canguilhem, uma prática

comum dos historiadores inscritos no modelo empirista, é considerar que o objeto da história da ciência "deve ser importado e transplantado da ciência para a história" (CANGUILHEM, 1970, p.16).

Compreender a constituição dos conhecimentos científicos, na história, não significa aplicar o critério de cientificidade usado tradicionalmente pelos filósofos da ciência positivista e, então, separar o que é ciência do que não é ciência atemporalmente. A história da ciência, para Canguilhem, junto com a epistemologia, teria a função de compreender a ciência como um processo histórico, na medida em que as constituições de conceitos científicos pertencem ao tempo da história geral do homem. Considerar o objeto da história das ciências como um objeto natural da ciência, seria para Canguilhem:

o mesmo que considerar conceitos, discursos e gestos especulativos ou experimentais, como podendo ser deslocados e colocados de volta no mesmo lugar, no espaço intelectual onde a reversibilidade das relações foram obtidas por descuido do aspecto histórico do objeto do qual ele é tratado (1970, p.21).

Admitir o mesmo critério usado para definir o que é ciência, para definir o que é história da ciência, "trata-se, na verdade, de um problema epistemológico respeitante ao modo permanente da constituição dos conhecimentos científicos na história" (CANGUILHEM, 1977, p. 32).

Com efeito, essa confusão de objetos encontra-se presente, nas discussões de Bachelard, quando ele opõe a história caduca e a história sancionada à história dos fatos de experimentação ou de conceitualização científica, apreciados, no seu relato aos valores científicos recentes, ou seja, da atualidade da ciência.

24 No início do texto L´objet de l´histoire des sciences, Canguilhem adverte que: “Considérée sous

l’aspect qu’elle offre dans le Recueil des Actes d’um Congrès, l’histoire des science peut passer pour une rubrique plutôt que pour une discipline ou um concept. Une rubrique s’enfle ou se distend presque indéfiniment puisqu’elle n’est qu’une étiquette, au lieu qu’um concept, parce qu’il enferme une norme opéatoire ou judicatoire, ne peut varier dans son extension sans rectificacion de as compréhension.” (CANGUILHEM, 1970, p. 9)

Segundo Canguilhem, sem a epistemologia seria impossível discernir os dois tipos de histórias, denominadas caduca e sancionada. Entretanto, esse discernimento seria possível somente por aquele que portasse suficiente capital científico capaz de julgar a atualidade de tal ou tal conhecimento, dentro do campo científico. Nesse sentido:

praticar uma ciência é para o epistemólogo o mesmo que imitar a prática do cientista, por meio de uma familiarização estudiosa com os textos originais, no qual o produtor se explicou sobre a sua conduta. (CANGUILHEM, 1977, p. 17)

Fazer epistemologia é, de certa maneira, o mesmo que fazer ciência. Tem uma certa semelhança com fazer ciência, é preciso entrar, na teoria da ciência, para fazer epistemologia.

Canguilhem reconhece que é natural o interesse do cientista pela ciência, na sua história, porém, "o interesse do epistemólogo é um interesse de vocação" (CANGUILHEM, 1977, p. 18). Vocação essa que é gerada pelo caráter inovador do espírito científico contemporâneo, em que, segundo Bachelard, "a ciência suscita um mundo, não mais por um impulso mágico, imanente à realidade, mas antes por um impulso racional, imanente ao espírito" (BACHELARD, 1990, p.19).

A vocação científica do epistemólogo representa um comprometimento com a constante atualização dos conceitos, tantos os novos, que são criados ou virão a ser, como os que deixaram e deixarão de ter validade científica por motivos constantes de retificações. A dinâmica do processo de constituição das ciências obriga os cientistas e os historiadores das ciências a se renovarem, constantemente, no sistema conceitual, no qual estão inscritos. Ao ter consciência do problema, o historiador teria que questionar de que história é feita a história das ciências, na intenção de "fazer compreender em que medida noções ou atitudes ou métodos ultrapassados foram, na sua época, ultrapassados" (CANGUILHEM, 1970, p. 14), pois a história das ciências não é um progresso das ciências invertido. A história das ciências é feito do esforço em pesquisar e compreender o que foi a criação de um conceito no momento em que ele foi criado; é tão importante como expor os motivos da sua destruição posterior.

Segundo Canguilhem, o conceito tem um papel importante, na história das ciências, pois um conceito é uma denominação e uma definição, é um nome dotado de um sentido capaz de interpretar as observações e as experiências. Portanto, é através do conceito que o discurso expressa a racionalidade que o caracteriza.

A importância reconhecida do conceito como expressão da norma de verdade do discurso científico "trata uma ciência em sua história não como uma articulação dos fatos de verdade, mas como uma purificação elaborada de normas de verificação" (CANGUILHEM, 1977, p. 44).

Assim, a história epistemológica que tematiza as interrelações conceituais não se limita ao interior de uma ciência, ela deve relacionar os conceitos com as práticas sociais e políticas.

No documento MESTRADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2011 (páginas 81-84)