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Controvérsias entre o conceito de desenvolvimento e evolução

No documento MESTRADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2011 (páginas 89-109)

CAPÍTULO 3 – IDEOLOGIA CIENTÍFICA: UM ESTUDO DE CASO

3.2 O CONCEITO DE IDEOLOGIA CIENTÍFICA SEGUNDO G CANGUILHEM: UM ESTUDO DE CASO DO

3.2.1 Controvérsias entre o conceito de desenvolvimento e evolução

Partindo do pressuposto de que a palavra ‘desenvolvimento’ e ‘evolução’ possuem uma origem que remete à semelhança etimológica, deduz-se que, com o passar do tempo, essas palavras se separaram, conceitualmente, na segunda metade do século XIX com a teoria da evolução dos seres vivos, inaugurada por Caspar Wolf e finalizadas por Charles Darwin.

O objetivo central dessa etapa é saber como Canguilhem explica os conceitos de desenvolvimento e evolução que, etimologicamente, eram sinônimos, passaram a significar, para os embriologistas do início do século XIX, o oposto do que significavam para os naturalistas do final do século XVIII.

Para responder a esse questionamento, podemos levantar vários outros, seja do lado da biologia, seja do lado das ideologias sociais e políticas. Uma vez que a embriologia, renovada pelas descobertas da genética molecular, constitui novamente uma frente avançada de pesquisa, e considerando a expansão de "novos paradigmas" sociobiológicos na economia e na filosofia política, Canguilhem se interroga sobre as relações do "programa" e da "epigênese" nos laboratórios de pesquisa.

Considerando como objeto dessa investigação, o conceito de evolução e suas controvérsias, no final do século XVIII e início do século XIX, é do ponto de vista da biologia, inicialmente, que se compreenderá o significado instrutivo da reformulação do conceito de evolução. Portanto, trataremos aqui do aspecto biológico, uma vez que a intenção é justamente entender o processo de destituição de uma ciência e a formação de uma ideologia científica.

A teoria da geração dos seres vivos teve, primeiramente, seu objeto de estudo definido pelo problema do movimento26, ou seja, o problema do devir, da transformação dos seres, no mundo, que, segundo Aristóteles, ocorre segundo os princípios interno e externo ou pela "privação" desses dois princípios. A geração (nascimento) e a corrupção (morte) caracterizam o maior nível de mudança (transformação) possível que pode afetar um ente. Aristóteles, em História dos animais, afirma:

Em relação aos animais, alguns nascem de pais animais conforme seu tipo, enquanto outros crescem espontaneamente e não de uma linhagem semelhante; e desses exemplos de geração espontânea alguns provêm da matéria vegetal ou terra em putrefação, como é o certo número de insetos, enquanto outros são gerados espontaneamente no interior de animais, a partir de secreções de seus diversos órgãos. (ARISTÓTELES, 2006, 21-25)

Segundo Aristóteles, eram gerados espontaneamente somente alguns peixes, os testáceos (moluscos), as esponjas e determinados insetos. A maioria dos animais era gerada sexuadamente. Em sua obra A geração dos animais, o estagirita classifica os animais em ordem decrescente de perfeição. O tipo de reprodução era a referência para a classificação dos seres vivos. A quinta classe dos animais na escala aristotélica corresponde aos insetos que geram "larvas", as quais, ao se desenvolverem, transformam-se em algo semelhante a um ovo (crisálida ou pupa) e, a partir daí, surge, por metamorfose, um animal adulto (ARISTOTELES, 1979, p. 10-17).

26 A constante transformação das coisas do mundo é um problema que persiste desde a filosofia grega

pré-socrática. Aristóteles desenvolveu uma ontologia fundamentada em princípios que explicam o movimento das coisas, como o nascimento e a morte.

O século XVIII foi marcado pela filosofia mecanicista da complexidade e a harmonia da obra da criação de Deus, de maneira que, dentro desse contexto, o conceito de evolução entrasse em harmonia com a ideia mecanicista segundo a qual toda a geração (ou reprodução) é explicada de forma física e cujos elementos estão justapostos e não originariamente organizados em totalidades, como na teoria das moléculas orgânicas de Buffon.

As peças da pré-formação se encaixam, na explicação do sistema mecanicista e materialista da origem dos seres vivos, e o conceito de desenvolvimento ou evolução ainda continua como o da antiga epigênese aristotélica, o de acréscimo. Os naturalistas do século XVIII apenas conseguiam postular mecanismos de geração para explicar aquilo que observavam em um nível mais grosseiro.

Até esse momento, o conceito de evolução ainda pertencia à ideia de acréscimo, e a química e a física newtoniana se incumbiam de explicar materialmente o desenvolvimento do embrião que, já se sabia, não se encontrava pré-formado no ovo. Hoje, sabe-se que um ser vivo surge somente através da mistura dos líquidos seminais paterno e materno, sendo que tais partes gerativas são as verdadeiras unidades produtoras e cuja atividade é garantida pela ação de forças especiais de atração, as afinidades químicas. Entretanto, para tal afirmação, as ciências biológicas precisaram percorrer um caminho de retificações de conceitos e mudanças de paradigmas.

A ideia da transformação por completo da forma inicial à forma acabada dos animais estava presente já, na teoria da geração de Aristóteles, possibilitando a identificação de um primeiro indício da teoria "epigenética" da geração dos seres vivos. Porém, paralelamente à concepção aristotélica da geração dos seres vivos, estabelecia-se uma teoria "pré-formacionista" da geração de seres vivos.

Chama-se teoria pré-formacionista da geração a ideia de que, no embrião já está pré- formado um ser em miniatura, simplesmente aguardando o crescimento. Essa teoria afirma que os organismos, desde sua concepção, contêm sua forma adulta completa que se desenvolve no decorrer do tempo. Nenhuma figura ou forma necessita ser imposta por condições exteriores. Esse processo, ironicamente, é o que os naturalistas do final do século XVIII originalmente entendiam por "evolução", ou seja, desenvolvimento segundo as três dimensões do espaço.

O aforisma de William Harvey (1578-1657), intitulado De generatione animalium (1651), refutou explicitamente a tese da geração espontânea. Em 1694, Nicolas Hartsoeker (1656-1725) descobriu "animalcúlos" no esperma de humanos e outros animais. A escassa resolução dos primeiros microscópios fez parecer que a cabeça do espermatozoide era um homem completo em miniatura. A partir dessa descoberta, surgiram teorias que afirmavam que o esperma era um "homem pequeno" (homúnculo) que se colocava dentro da mulher para que crescesse até ser uma criança completamente formada. Pensava-se que, já desde Adão, estava enclaustrada toda a humanidade, que sua descendência iria sendo transmitida. Mais conhecida por "animalculismo", essa teoria afirma que o embrião se encontra no espermatozoide dos homens.

A teoria animalculista permitia explicar de forma coerente muitos dos mistérios da concepção (por exemplo, por que se necessitava de dois para reproduzir).27

O pré-formacionismo entrou em declínio por várias razões. Na virada do século XIX, filósofos, cientistas e também os poetas começaram a ver o mundo não como algo pré- formado ou estático, mas como um processo dinâmico de mudanças constantes e progressivas. Ao mesmo tempo, outras ideias vindas do Romantismo se estabeleceram, dentre elas, a crença, na unidade essencial do homem com toda a natureza. Inspirados nessas idéias, um grupo de biologistas alemães conhecidos como Naturphilosophen ("filósofos naturais") propuseram pela primeira vez um tipo de recapitulação biológica. Outro fator que contribuiu para a decadência do pré-formacionismo foram as explicações referentes às anomalias. Como explicar as deformações? Deus criaria monstros também? Como conceber erro em Deus se ele é a perfeição? A ordem da vida é questionada pela via do erro, do anormal.

Segundo Canguilhem:

desenvolvimento e evolução pertencem à espécie dos termos que, em relação a uma imagem evocada pela sua etimologia, contêm, sob o aspecto de uma simples descrição de fatos, uma tese concernente à essência da sua produção. A tese implícita concerne, aqui, à essência da geração. (CANGUILHEM, 1962, p. 2)

27 Houve também teorias que afirmavam existir no óvulo da mulher o embrião pré-formado, e o homem

somente serviria para impulsionar aquele embrião a se desenvolver, como um despertar para a vida. Essa teoria é mais conhecida como ovismo, em oposição ao animalculismo.

Tentar encontrar a essência da geração é encontrar a sua causa. Uma causa puramente material, ou uma causa "divina" (vital), ou até mesmo uma mistura de material e vital. Como citado anteriormente, sabe-se que o primeiro a sistematizar de forma consistente a teoria da geração foi Aristóteles, introduzindo a ideia de geração espontânea e o conceito de epigênese no seu sistema metafísico. É preciso classificar e agrupar para depois conhecer as suas variações. Entretanto, a diversidade das espécies seria incomensurável e, portanto, traria grandes problemas para a ciência da classificação e, consequentemente, para a ciência da geração.

Face à diversidade da vida, às vezes se torna mais fácil começar por conhecer aquilo que é diferente, anormal, monstruoso, do que por sistematizar e categorizar o que é considerado normal, abundante e semelhante em seu aspecto físico. Normalmente, o espaço limítrofe ocupado pelos conhecidos "monstros" da natureza pertence àquelas espécies vivas que se diferenciam por demais das outras, como no caso dos paramécios28. Esse é apenas um de muitos outros casos inexplicáveis de anormalidades na natureza.

O monstro é substituído por uma interrogação geral sobre o vivo, mais precisamente a ordem suposta do vivo, e convém se interessar agora pelo modo como a pergunta sobre os monstros interferiu apreciavelmente no interrogatório relativo à geração dos animais. Segundo Patrick Tort, uma grande contribuição para entender a ordem pelos monstros foi apresentada por Louis Lémery em suas obras A formação mecânica dos monstros através do excesso (1724) e Primeira memória sobre os monstros (1740), em que examinou qual seria a causa imediata dos monstros, e pela Academia de Ciências (1738), que propôs definir o monstro como:

um animal que nasce com uma conformação contrária à da ordem da natureza, quer dizer, com uma estrutura das partes muito diferente do que aquela que caracteriza as espécies de animais desse gênero: eu digo muito diferente, porque se havia só uma diferença ligeira e superficial, se o objeto não atingisse com surpresa, não daríamos o nome de monstro ao animal onde ela se encontraria. (TORT, 1998, p. 63-64).

28 Tomemos o caso dos paramécios, protozoários que trocam material genético sexuadamente, porém não

geram um novo indivíduo. Entretanto, há uma mudança no material genético dos próprios indivíduos que os transforma em indivíduos com outra configuração genética, diferente da configuração que estava antes do sexo.

A convencionalidade, ou o acidentalismo da teoria dos monstros traz problemas para quantificar as evidências monstruosas. A história dos médicos e científicos fez aparecer a questão polêmica dos dados estatísticos. Essa noção se mostra evidente quando se propõe comparar as produções da natureza, verificando quantos casos monstruosos há sob um nome dado de casos normais. Parece que essa dimensão probabilística foi introduzida de maneira explícita e estratégica por Mairan, em 1743, para uma retrospectiva da polêmica:

Em cem mil milhões de milhões, escreve ele, multiplicado por mil conjuntos de azares possíveis, não haverá apenas um para produzir uma criança com uma mão ou um pé de seis dedos pelo sistema dos acidentes. É, portanto, neste grau de possibilidade que seria necessário estabelecer a aposta. (MAIRAN apud TORT, 1998, p. 198)

O acidentalismo, interpretado de maneira polêmica, evoca novamente pelos acidentes uma fragilidade da natureza, de seu criador. Essa fragilidade gerou condições para se pensar a teoria da geração dos seres vivos junto com as descobertas desses animais, como o exemplo dos pólipos. A partir de experimentos com as espécies, levou à criação de teorias extremamente materialistas, como é o caso da de Maurpetuis, que "procurava nos desvios da natureza aprender mais sobre o mecanismo da geração" (HANKINS, 1985, p. 139).

Por outro lado, longe de se limitar a uma representação de monstros inquietantes e mórbidos, bastante frequente, nas produções daquela época, os monstros assombram, estimulam, excitam a curiosidade. Observação que pode evocar Canguilhem, quando ele escreve: "O monstruoso é o maravilhoso, no avesso, mas é o maravilhoso apesar de tudo" (CANGUILHEM, 1992, p. 173). Nesse sentido, ele ressalta a fragilidade da vida e, ao mesmo tempo, sua extraordinária capacidade para evitar os prejuízos, porque os monstros permanecem, acima de tudo, bastante raros.

Entretanto, foi com o médico alemão do século XVIII, Caspar Wolff (1734-1794), na sua obra intitulada De Ortu Monstrorum (1772), que foi abordada diretamente a questão da causa da origem dos monstros e, consequentemente, a identificação dos pontos em comum com a origem das gerações orgânicas, pois, diria Wolff, na monstruosidade sempre há "uma semelhança aos estados embrionários normais" (WOLFF apud CANGUILHEM, 1962, p. 10).

revelava observações originais sobre o desenvolvimento do frango embrionário e, sobretudo, para explicar o desenvolvimento de uma forma geral, mais do que refletir sobre a noção mesma de formatio que estava implicada à velha idéia de epigênese. (Ibid, p. 6)

Mas foi com a sua teratologia que Wolff expulsou o axioma da fixidez do desenvolvimento do feto. A teoria da geração por pré-formação considera o conceito de evolução, ou desenvolvimento, um simples acréscimo de partes distintas cujo conjunto constitui o corpo. Não há transformação por completo de elementos do embrião à fase adulta, há somente um acréscimo de "moléculas orgânicas", como diria Buffon, ou uma simples explicação mecânica da matéria. Buffon classifica os monstros em três classes: a primeira classe são os monstros causados por excesso (o exemplo de duas crianças que nascem grudadas); a segunda são os monstros provocados por defeito ou deformidade (o exemplo seria uma criança com uma cabeça completamente deformada), que são menos comuns que os por excesso; e, por último, na terceira classe, encontram-se os monstros originados de um desarranjo ou desordem (por causas internas do corpo, órgãos desordenados), que vêm a ser o exemplo mais raro de monstruosidade (BUFFON, 1749, p. 578-579).

O século XVIII foi marcado pela filosofia mecanicista da complexidade e da harmonia da obra da criação, de maneira que, dentro desse contexto acima mencionado, o conceito de evolução entrasse em harmonia com a ideia mecanicista segundo a qual toda a geração é explicada de forma física e cujos elementos estão justapostos e não originariamente organizados em totalidades, como afirmara Buffon. Entretanto, as últimas palavras escritas em seu trabalho intitulado Sur les Monstres são de grande demonstração de dúvida referente à negação de que Deus teria, então, criado monstros. Essa é uma questão que Buffon não responde, mas deixa indicado o problema de conciliar a pré-formação e a teoria dos monstros (BUFFON, 1749, p. 582).

Segundo Hankins, por volta de 1740, "duas descobertas extraordinárias em termos de geração coincidiram com a mudança, nas teorias fisiológicas, e, em resultado disso, a natureza da geração tornou-se o problema mais estimulante das ciências da vida" (1985, p. 130). A primeira foi a descoberta da partenogênese dos afídios, por Charles Bonnet, que "reforça a visão ovista de que o embrião de cada espécie existia pré-formado na mãe como uma pequena semente, limitando-se depois a crescer" (1985, p. 131). A segunda foi a descoberta da auto-regeneração da hidra de água doce por Abraham Trembley (1710-1784), o que, para La Mettrie e Diderot, significava que "as experiências com o pólipo provavam que não existia alma e que as propriedades da vida

se distribuíam por toda a matéria" (1985, p. 133). Assim, o debate sobre o pólipo agregou elementos que complicaram a discussão sobre a geração, que vinha desde meados do século XVII.

No contexto do quadro colocado acima, as peças da pré-formação se encaixam, na explicação do sistema mecanicista e materialista da origem dos seres vivos, e o conceito de desenvolvimento ou evolução ainda continua como o da antiga epigênese, o de acréscimo.

Os embriologistas do século XVIII apenas conseguiam postular mecanismos de geração para explicar aquilo que observavam em um nível mais grosseiro. Entretanto, as descobertas na regeneração e na reprodução tornavam insustentável qualquer simples teoria da pré-formação. Até esse momento, o conceito de evolução ainda pertencia à idéia de acréscimo, e a química e a física se incumbiam de explicar materialmente o desenvolvimento do embrião, que, já se sabia, não se encontrava pré-formado no ovo. O materialismo reforçava que a fertilização era um processo químico semelhante ao da formação de um cristal, porém foi Wolff quem defendeu em sua obra Theoria generationes (1759), mais precisamente em um artigo intitulado De formatione intestinarum, praemonenda da Theoria, que a epigênese "descartaria do conceito de desenvolvimento a imutabilidade, comprovando que as formas que ele suscita sucessivamente diferem profundamente entre elas" (CANGUILHEM, 1962, p. 37) e que, portanto, a partir de Wolff, a tabela do mundo vivo, fundado sobre a anatomia dos seres adultos, passará a ser secretamente questionada. Wolff recebeu muitas críticas de Haller por ter afirmado que o desenvolvimento se opera por "uma substituição de um elemento B por um elemento A".

Segundo Shirley Roe, Haller foi um estrito defensor do mecanicismo newtoniano. Para Haller, a fisiologia era a ciência do movimento nos corpos vivos, movimentos esses baseados em forças mecânicas. Portanto, a tarefa do fisiologista consistia em explicar as forças

através das quais as formas das coisas recebidas pelos sentidos são apresentadas à alma; através dos quais os músculos, governados pelas ordens da mente, têm força por sua vez; as forças através das quais o alimento é transformado em tantos tipos diferentes de sucos; e através das quais, finalmente, destes líquidos tanto nossos corpos são preservados, quanto a perda nas gerações humanas é substituída por nova descendência. (HALLER apud ROE, 2002, 96-97)

Para Wolff, o animal acabado seria, por assim dizer, a associação de vários vivos elementares e o embrião seria formado por uma vis essentialis, ou seja, uma força que se distinguia de toda força física conhecida. Segundo Canguilhem, Wolff não faz dela – a vis essentialis – uma simples causa reguladora ou final que asseguraria um termo constante à ontogênese.

No sistema da pré-formação, a observação embriológica não revelava nada inesperado ou inclassificável, a não ser a dimensão, porque se constituía sob a referência da anatomia ordinária. Entretanto, Wolff tenta inverter esse quadro de submissão da embriologia à anatomia comparada e passa então a afirmar que é a anatomia comparada que deve se submeter às leis da embriologia, ou seja, as leis da formação do embrião servirão de referência para a anatomia comparada. O que Wolff tenta fazer é uma união do conceito de epigênese e de pré-formação usando partes e descartando partes de ambas as teorias.

Essa fundamentação da anatomia pelos princípios da embriologia irá causar o problema que está inscrito, justamente, na polêmica entre as ideias sobre desenvolvimento e evolução e que Wolff não conseguiu resolver, embora tenha aberto as portas para se pensar a epigênese dentro da embriologia de uma forma livre da metafísica aristotélica. Como bom discípulo de Wolff, Jean-Frédéric Meckel, Le Jeune (1781-1833), amplia suas teorias epigenéticas e permanece um adepto moderado do pré-formacionismo. Em seu Manuel d’anatomie comparative (1821), ele classifica os animais, do menos inferior ao mais inferior, colocando o homem no topo da hierarquia das espécies e justificando, assim, que quanto mais perfeita for a divisão do trabalho entre suas partes, mais complexo será o organismo. Dessa forma, conhecer o embrião humano até a sua fase acabada e perfeita seria conhecer de alguma forma todas as espécies, das mais inferiores às mais acabadas.

A correlação evidente entre a hierarquia do simples e a do complexo, com base na teoria da unidade do plano de composição, permite compreender, segundo Canguilhem, por que Meckel, em seu Traité d’anatomie comparative (1811), afirma a existência de "certos pontos de contato entre organismos bem afastados um dos outros, pelas condições estruturais gerais" (MECKEL apud CANGUILHEM, 1962, p. 11). Como Meckel não admitia que somente o acaso fosse a causa desses pontos de contato, ele foi levado a estudar o problema dos monstros.

Uma vez que foi estabelecida uma correspondência entre os estados acabados das espécies animais e certos estados do desenvolvimento do embrião humano, um ser anormal é na humanidade e, mais geralmente, numa espécie qualquer, um ser que não possui seu desenvolvimento até o fim, até a forma acabada. (CANGUILHEM, 1962, p. 12)

Para explicar essas paradas no desenvolvimento, Meckel afirma que a evolução embrionária se interrompe em consequência de obstáculos que a "força formadora" encontra. Um monstro é um ser normal inacabado. O anormal se une, portanto, ao normal. Sob tal concepção, a teoria das paradas do desenvolvimento, da qual dependeria a maioria das explicações das anomalias, estava ligada a uma atitude pré-formacionista. A verdade é que Meckel não queria recusar por completo a epigênese e aceitar a teoria das paradas do desenvolvimento, inteiramente pré-formacionista. Tal pressuposto o fez declarar que

não resulta da pré-formação que um corpo originariamente regular não possa mais tarde ser modificado e, particularmente acabado no seu desenvolvimento, sob influência de causas acidentais agindo sobre o ato vital. (CANGUILHEM, 1962, p. 13)

Para Canguilhem, "a teoria que liga as paradas do desenvolvimento concilia-se mal com uma crença à pré-formação" (1962, p. 14). E a concepção de uma correlação entre embriologia e anatomia consiste em uma forma de conciliação entre pré-formação e teratologia. Tanto em embriologia, como em teratologia, a inspiração de Meckel é pré- formacionista. Ele reconhece que dificilmente se pode tratar a evolução como um

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