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Terceira posição: A história da ciência como laboratório da epistemologia

No documento MESTRADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2011 (páginas 50-56)

CAPÍTULO 2 – RELAÇÕES E CONTROVÉRSIAS ENTRE EPISTEMOLOGIA E

2.1 U MA ABORDAGEM HISTÓRICA DA RELAÇÃO ENTRE EPISTEMOLOGIA E HISTORIOGRAFIA CIENTÍFICA

2.1.3 Terceira posição: A história da ciência como laboratório da epistemologia

2.1.3 Terceira posição: A história da ciência como laboratório da

epistemologia.

A terceira posição exposta por Canguilhem amplia as ideias da segunda posição. Aqui, a história da ciência é a sua memória, mas não é só a memória, é também o laboratório da epistemologia14. Aquilo que, na posição anterior, aparecia como um movimento de crítica é incorporado e tornado como elemento positivo por Eduard Jan Dijksterhuis, historiador da ciência holandês.

Dijksterhuis pensa que a história da ciência não é apenas a memória, pois sua história é da mecanização do mundo. Nessa história, o holandês não estabelece uma relação com a epistemologia, porque a história é anterior à epistemologia. Para a história da ciência ser o laboratório da epistemologia, o laboratório precisa estar dado, precisa estar montado. De certa maneira, a história da ciência de Dijksterhuis tem vínculos com a epistemologia, mas é anterior à epistemologia, e a história da ciência dá matéria de reflexão para epistemologia.

Dijksterhuis toma algo que possa ser percebido desde a antiguidade até o século VXIII e faz uma história de como há o avanço da mecanização do mundo. Não há uma história da formação da disciplina, da institucionalização e, portanto, não há nenhum elemento de diferenciação. Dijksterhuis não faz uma história da racionalidade, ele nem tematiza a questão da racionalidade. Dessa forma, Canguilhem o critica, afirmando que "[...] a história pura reduz a ciência que estuda, ao campo de investigação que lhe é destinado pelos cientistas da época, e ao gênero de olhar que eles fazem incidir sobre esse campo" (CANGUILHEM, 1977, p. 13). Portanto, do negativo à epistemologia passa ao positivo. A epistemologia depende da história, por isso, a história é o laboratório da epistemologia, e a ela, portanto, há recorrência na reconstituição histórica.

14 “Dijksterhuis, autor de Die Mechaniesierung des Weltbildes, pensa que a história da ciência não é

Continuando e aprofundando a terceira posição, Canguilhem expõe seu olhar crítico com um exemplo dos botânicos do século XVIII. A fisiologia vegetal procurava modelos, na fisiologia animal da época e, por esse fato, houve uma divisão entre fisiólogos-químicos e fisiólogos-físicos, os quais utilizavam métodos de análise química e análises físicas, respectivamente. Canguilhem afirma que seria, no mínimo, temerário "[...] compor uma história em que a continuidade de um projeto iria dissimular a descontinuidade radical desses objetos e a novidade radical das disciplinas denominadas bioquímica e biofísica" (CANGUILHEM, 1977, p. 14).

Nesse ponto, Canguilhem chama a atenção às resistências encontradas para a admissão da teoria celular. Não que todos os biólogos não tenham aceitado a teoria celular, mas, para o biólogo aceitar uma nova teoria, ele tem que se desfazer das primeiras concepções de células e protoplasma para abordar, no nível molecular, os estudos do metabolismo. Canguilhem introduz, nesse ponto, a importância da ruptura e afirma que é um idealismo querer fazer uma linha contínua da história da ciência sem rupturas. Existem rupturas, as disciplinas mudam e, portanto, novas especialidades são geradas. A questão não é colocada sob o aspecto da ruptura histórica ou da ruptura social, trata-se da ruptura epistemológica, no sentido bachelardiano, porque atinge os objetos, os métodos e as disciplinas científicas.

Como as rupturas existem, o historiador é obrigado a tematizar epistemologicamente algumas coisas. Não é possível que se faça uma história pura. Portanto, o desenvolvimento da ciência atual faz com que esse "laboratório" tenha que ser modificado constantemente. A história da ciência entendida como laboratório da epistemologia que tenha o atual como referente tem que ser refeita constantemente. A dinâmica da ciência atual contextualiza a pergunta feita por Canguilhem anteriormente, tematizada longamente no seu texto, ao afirmar: "[...] eis porque o passado de uma ciência atual não se confunde com essa mesma ciência no seu passado" (CANGUILHEM, 1977, p. 15). O autor chega à conclusão de que não é possível fazer história da ciência sem epistemologia. A botânica, hoje, por exemplo, não é a botânica do passado. Poderíamos dizer que elas são até radicalmente diferentes e o que ocorre, muitas vezes, é uma ilusão da continuidade que a inércia linguística proporciona.

2.1.3.1 Preparando o leitor para a quarta posição: história da ciência como reconstituição ou elaboração?

Esse é um problema colocado por Canguilhem: embora se considere a transformação veloz da ciência contemporânea, deve haver, necessariamente, alguma estabilidade. Se existe modificação e não se estabiliza nada, então não se tem nada. Nos processos de transformação da ciência, também existe recorrência, pois sem recorrência não existe a regularidade. Em suma, existe sempre uma tensão entre transformação e permanência. A questão é saber, então, o que se transforma e o que permanece. Aquilo que vai permanecer é justamente aquilo que se pode universalizar. Alguma coisa tem que permanecer para que possa ser caracterizada como conhecimento científico.

É recorrente em Canguilhem a preocupação em saber como se transforma o conhecimento científico e o que, nessa transformação, será retido. Com efeito, a epistemologia nada teria com a história da ciência se nada fosse retido; ela carece de certa universalidade, pois vai assentar suas universalizações e generalizações naquilo que, nos processos de transformação, é reposto, que se mantém. Assim, quando o epistemólogo vai à história da ciência, sua preocupação está voltada para ver como a ciência se desenvolveu na história. O epistemólogo tem um olhar diferente, uma perspectiva diferente; ele não faz reconstituições, e sim elaborações. "Do fato que uma elaboração não ser uma restituição se pode concluir que é legítima a pretensão da epistemologia de retribuir mais do que recebeu" (CANGUILHEM, 1977, p. 13). O fato de a elaboração não ser uma restituição – história ingênua, história como memória ou história como laboratório da epistemologia – é uma interpretação possível realizada por Canguilhem. Essa interpretação envolve a ideia de juízo. Então, o que são as restituições? As restituições são aquilo que vai permanecendo, e aquilo que permanece é o que se pode universalizar. Porque aquilo que muda está sempre mudando e vai mudar amanhã também. Esses aspectos de mudança, esses aspectos dinâmicos, não há como tematizá-los epistemologicamente. Esse é um problema antigo que remonta à conhecida discussão entre Heráclito e Parmênides. Parmênides nega as teses do devir de Heráclito, questionando: se tudo muda, como posso conhecer verdadeiramente as coisas?

Mas qual seria, então, a relação entre elaboração e epistemologia? Seria o exercício do juízo?

A crítica que a terceira posição, vista na seção anterior, tece sobre a epistemologia consiste, na hipótese de que a epistemologia não poderia contribuir para história da ciência, porque ela (a epistemologia) se nutria da história da ciência. Portanto, a epistemologia poderia devolver para a ciência, para sua história, somente aquilo que ela havia tomado.

Entretanto, Canguilhem afirma o oposto, dizendo que a epistemologia faz uma elaboração e não apenas uma restituição e que, por isso, ela pode dar mais do que recebeu. A epistemologia tem a história como seu laboratório, o que lhe dá o objeto sobre o qual pensar. Mas quando a epistemologia se debruça sobre o objeto histórico, ela não está pensando sobre a história, está pensando sobre a ciência e seu desenvolvimento. É uma nuance que Canguilhem faz e que é bastante interessante, visto que ele capta uma maneira diferente do epistemólogo fazer história da ciência, pois o epistemólogo possui uma perspectiva vocacional.

Quando um epistemólogo lê um tratado sobre história da ciência, ele não está preocupado com a historiografia, mas sim com o desenvolvimento histórico da ciência, e é sobre isso que ele vai refletir. A intenção do epistemólogo é olhar exatamente o que se pode encontrar de permanência, na história da ciência, nas restituições históricas, lugar em que se opera o pensamento epistemológico.

Em suma, Canguilhem expressa sua pretensão na fórmula: "[...] deslocando o pólo de interesse, substituir a história da ciência pela ciência segundo a sua história" (CANGUILHEM, 1977, p. 13). Tal pretensão aponta a direção escolhida pelo autor. Substituir a história da ciência significa dizer substituir a história da ciência que já sabe o ponto do qual está partindo. Esse ponto é o da ciência constituída, então, esse ponto de partida ilumina e determina o que é história, ou melhor, o que pertence à história da ciência. Existe, na história da ciência, certo quadro conceitual definido no ponto de partida. Essa substituição é realizada justamente na ideia de que existe um ponto inicial que determina o que pertence ou não à história. Ou seja, substituir uma história que, de antemão, tem o objeto acabado para iluminar o passado, por uma história que não possui o objeto acabado. Nessa história, consideram-se as variações, os desvios, os erros etc.

Esse é um tema extremamente importante, pois, se não há epistemologia, não há como fazer diferenciação. Não se consegue caracterizar a atividade científica como sendo diferente das outras atividades culturais.

Em contrapartida, existem aqueles que afirmam que a ciência é uma atividade social, porém diferente. Para o sociólogo da ciência, Robert Merton, há uma diferença entre a atividade científica e outras atividades sociais, que envolveria: "[...] constituir uma sociologia da ciência, elemento capital de todo um dispositivo que aspire à constituição de uma profissão científica, animada por uma intenção de autojustificação (self- vindication) da sociologia sobre a base do consenso cognitivo, verificado empiricamente" (BOURDIEU, 2003, p. 31). Para Bourdieu, Merton submeteu a um "tratamento crítico, tanto epistemológico como sociológico, aos autores e às obras do passado e à sua própria relação com os autores do presente e do passado" (Ibid, p. 32). A pergunta agora é: "a ciência do passado é o passado da ciência atual?" Consideremos a ciência do passado a história feita sem o auxílio epistemológico. A questão fundamental seria: a história da ciência sem o auxílio da epistemologia reconstrói realmente o passado dessa ciência atual? Será que toda vez que se reconstitui o passado da ciência, reconstitui-se também o passado da ciência atual? Se o historiador afastar a epistemologia, como saberá o que pertence ao passado da ciência atual, se ele não sabe o que é a ciência atual? Ao afastar a epistemologia, há que se esquecer da ciência atual. Só se pode responder positivamente à questão, de certa maneira, do ponto de vista epistemológico. Mas essa condição gera um problema: como as teorias científicas não se estabilizam, elas têm rupturas, então é preciso sempre reescrever o passado da ciência atual. Há um passado da ciência atual, mas ele tem que ser reescrito constantemente, visto que a ciência atual muda e, então, muda o passado da ciência atual. Esse é um problema que o historiador puro não tem. Como ele não reconstitui o passado da ciência atual, tem o passado puro e simplesmente, como uma reconstituição pura do passado; não tem que ser reescrito à luz de nada, ele não precisa reescrever constantemente a sua história.

Uma história reconstitutiva não tem esse problema, uma vez que fatos são fatos, valem por si. De certa forma, a história da ciência poderia ser completada à luz de Ranke, porque, se existem mais fatos, consegue-se ir completando essa reconstituição até chegar à história total dos fatos, mostrar mais relações. Contudo, ainda não seria investigar o passado da ciência atual. O passado de uma ciência atual existe, a história necessariamente tem que ser feita de uma perspectiva epistemológica. Mudou a ciência atual, há que ser reconstituído o passado dela. Essa condição de possibilidade que é imposta à história pela epistemologia implica a dinâmica da historicidade, que torna a história uma disciplina em constante modificação, tal como todas as outras.

Vejamos um exemplo com os historiadores da biologia, que durante muito tempo não deram atenção ao conceito de extinção, e que a partir de um determinado momento, passou a ser um conceito-chave. Por que o conceito de extinção não tinha nenhuma importância e de repente passou a ter, pergunta-se Canguilhem?

As espécies eram consideradas criadas por Deus segundo a história natural do final do século XVIII, todas as espécies eram fixas de uma vez e, naquele molde, não evoluiriam. A partir do momento em que surgiram as primeiras ideias transformistas, na primeira metade do século XIX, a ideia de extinção passou a ser importante.

Muitos dos evolucionistas, até mesmo Charles Darwin, em seu texto A origem das espécies, consideraram "[...] a luta pela existência entre os seres organizados em todo mundo [...] É a doutrina de Malthus aplicada a todo o reino animal e a todo o reino vegetal. [...] este ser é também objeto de uma seleção natural" (DARWIN, 1885, p. 17). Fica evidente, na sua obra, a importância dada ao economista Thomas Robert Malthus, que tematiza a extinção, seja pelo problema do crescimento populacional, seja pela afirmação da existência da extinção em grande escala, no planeta, prevalecendo a ideia de que "o vivo é uma pequena porção sobre um mundo de extinção" (MALTHUS, 1996, p. 36). A partir de então, os historiadores começaram a tematizar a extinção. Começaram a analisar até por quais motivos determinados autores não tratavam da extinção.

Há, aqui, uma questão fundamental da história da ciência: a continuidade histórica. Se se admite, de alguma maneira, que com a ciência se vai ao passado para entender os desenvolvimentos que levaram os conceitos até sua elaboração atual, então, necessariamente, admite-se uma continuidade. Há uma continuidade lógica e cronológica aqui, um continuísmo.

Ao admitir rupturas epistemológicas conceituais profundas, não se pode admitir continuidade e, portanto, a ciência atual não tem passado. Se ela é revolucionária, então ela não tem passado. Entretanto, no caso da posição historicista reconstitutiva (cujas três posições pertencem ao mesmo modelo reconstitutivo15), há o esforço de se dirigir ao

15 Programa de historiografia dos séculos XVIII e XIX; História como memória; História como

entendimento do passado e, desse modo, de alguma maneira há uma continuidade nessa perspectiva.

Canguilhem comenta sobre o modelo reconstitutivo de historiografia da ciência e acredita que "[...] a totalidade do passado está representada como uma espécie de plano contínuo dado, a partir do qual se pode deslocar, segundo o interesse do momento, o ponto de partida do progresso cujo termo é precisamente o objeto atual desse interesse" (CANGUILHEM, 1977, p. 14). Volta-se para o passado, no intuito de que esse passado se encerrará no interesse atual. Existe o termo atual, e o historiador cria o contínuo com base no seu interesse.

Pode-se perceber que Canguilhem expõe o seu olhar para essa história da ciência reconstitutiva e conclui que "[...] poder-se-ia pensar que o que a história da ciência tem o direito de esperar da epistemologia é uma deontologia da libertação de deslocação regressiva, sobre o plano imaginário da ciência atual" (CANGUILHEM, 1977, p. 14). Para a terceira posição (história da ciência como laboratório da epistemologia), a epistemologia tem esse papel, o de produzir somente uma deontologia da libertação, no sentido de que permite esse livre percorrer na continuidade histórica.

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