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Pioneirismo e Inovação na Obra Audiovisual de Samuel Beckett 1

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Academic year: 2021

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Pioneirismo e Inovação na Obra Audiovisual de Samuel Beckett

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BORGES, Gabriela (Doutorado)2 Universidade Federal de Juiz de Fora/MG

Resumo: Este artigo aborda a produção audiovisual dos textos televisuais e teatrais do dramaturgo

irlandês Samuel Beckett, que foi também um pioneiro da televisão, apresentando dois momentos particularmente ricos na produção das emissoras públicas BBC (British Broadcsting Corporation) e a RTÉ (Radio Telefis Éireann).

Nos anos 1960 Beckett encontrou na BBC um contexto de produção bastante favorável, que lhe permitiu, nas suas próprias palavras, propor as suas “ideias malucas para a televisão”. Neste mesmo período Beckett negou ao Diretor de Dramaturgia da RTÉ a escrita de qualquer tele-peça, afirmando que, mesmo que viesse a criar alguma coisa, a emissora não estaria preparada para transmiti-la. Quarenta anos depois, a RTÉ produz, em parceria com o Channel 4, o projeto Beckett on Film, que consta da transcriação das peças de teatro do autor para o meio audiovisual.

Sendo assim, temos o intuito de discutir as condições de produção destes dois momentos, refletir sobre os contornos do desenvolvimento do gênero dramático na televisão enquanto um gênero autónomo do teatro e da literatura, bem como discutir as idiossincrasias das transcriações teatrais para o meio audiovisual, que absorvem e reforçam a própria poética audiovisual beckettiana.

Palavras-chave: Dramaturgia televisiva; Samuel Beckett; Beckett on Film; BBC; RTÈ.

O gênero dramático na televisão3

Na BBC, as primeiras tele-peças começaram a ser produzidas em 1936, tendo como substrato textos literários, teatrais, do rádio e da narrativa clássica oriunda do

1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Audiovisual e Visual, integrante do 9º Encontro Nacional de História da Mídia, 2013.

2 Mestre e Doutora pelo PPGCOS-PUC-SP e tem pós-doutorado pela Universidade do Algarve, Portugal. Atualmente leciona no PPGCOM da Universidade Federal de Juiz de Fora. Co-organizou Discursos e Práticas de Qualidade na Televisão, TV: formas audiovisuais de ficção e documentário Vol. I e II e publicou A poética televisual de Samuel Beckett, entre outros artigos em livros e revistas científicas brasileiras e estrangeiras. Email: gabriela.borges@ufjf.edu.br.

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O desenvolvimento do gênero dramático na televisão apresentou características similares em emissoras como a BBC, a RTÉ, a RTP e a TV Tupi, mesmo que em épocas diferentes. A BBC começa a produzir as primeiras tele-peças em 1936, tendo sua Idade de Ouro nos anos 1960; a RTÉ começa a produzir nos anos 1960; a RTP nos anos 1950, com sua Época de Ouro nos anos 1960 e a TV Tupi também nos anos 1950. Neste momento, estamos a iniciar uma pesquisa comparativa sobre estes casos de estudo.

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cinema. Caughie (1998: 29) afirma que, nos seus primórdios, a televisão estava preocupada apenas com o aprendizado da dinâmica das transmissões ao vivo e Gardner e Wyver (apud JACOBS, 1998: 39) enfatizam que se usavam somente os padrões e estilos do repertório do rádio e do teatro. Porém, a BBC sempre apresentou uma preocupação com o desenvolvimento de uma forma de expressão dramática diferente das outras artes.

Jacobs (1998: 41,50) afirma que as tele-peças não apresentavam um estilo teatral de apresentação, pois procuravam mostrar os elementos mais importantes da peça como texto em si e não como expressão teatral. Mesmo transmitindo peças de teatro ao vivo na década de 1930, a BBC já mostrava os primeiros sinais do que seria a construção de uma estética própria. Esta se caracterizava por uma dupla mediação, isto é, o tratamento dado por várias câmeras num estúdio a uma performance teatral adaptada para ser transmitida ao vivo pela televisão.

A influência da linguagem cinematográfica, principalmente da narrativa clássica, pode ser vista principalmente nos enquadramentos, nos movimentos de câmera e na edição. Nos primórdios da história do cinema, Grifitth percebeu que as características emocionais de uma representação podiam ser realçadas por meio do uso do close-up, que adquiriu um sentido dramático ao permitir que o telespectador se aproximasse dos pensamentos e sentimentos do personagem com uma intimidade nunca antes vista no teatro. O close-up se tornou a marca registrada da televisão, ao ponto dela ser conhecida como o veículo das cabeças falantes. Adams (1998: 154) afirma que o close-up é o plano mais importante da estética televisual porque dá a medida de todos os outros planos em termos de representação, permitindo fragmentar o corpo de um personagem, ressaltar o seu olhar e a sua personalidade e enfatizar certos detalhes significativos da narrativa.

A utilização de diferentes recursos, tais como o uso das cenas filmadas em películas como establishing shots nas tele-peças ao vivo; o uso de quatro câmeras em posições diferentes, inclusive com mudança de posição durante a transmissão; a presença de vários cenários; a mudança de câmera dentro de uma mesma cena e a indicação de enquadramentos como o close-up e o plano médio permitem o desenvolvimento estilístico de uma nova forma de expressão potencialmente diferente em vários aspectos. Entre eles, destaca-se a predominância da significação do som na

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televisão, que é usado para garantir a atenção do telespectador. Ellis (1992: 129-31) afirma que a imagem televisual tende a ser simples e sem muitos detalhes, enquanto o som fica responsável por evidenciar os detalhes. Com isso, a variedade e o interesse são gerados pela rápida mudança das imagens e não pela riqueza de detalhes de uma só imagem. A simplicidade das imagens da televisão é compensada pela técnica de edição rápida. Além disso, o uso de várias câmeras e a possibilidade de alterná-las produzem um estilo intrinsecamente televisual: a fragmentação de uma ação em vários planos cuja continuidade é mantida pela performance de diversas câmeras.

Portanto, a linguagem televisual absorveu e adaptou técnicas de outros meios, principalmente do teatro e do cinema, que proporcionaram a criação de uma outra forma de expressão com características próprias, baseada no uso do close-up e dos recursos de edição. Isso se tornou mais evidente a partir da década de 1950, quando os programas começaram a ser escritos especialmente para o meio.

Na Grã-Bretanha, o gênero dramático televisivo passou a se desvincular do teatro e da literatura com a entrada da primeira emissora comercial no mercado audiovisual, a ITV (Independent Television). Em 1956, a ITV começou a exibir conteúdos inéditos na série Armchair Theatre, produzida pelo canadense Sidney Newman, que contratou autores como Harold Pinter e Alan Plater para escrever roteiros originais. As peças de televisão eram encenadas nos estúdios da ABC em Manchester e transmitidas ao vivo depois do programa líder em audiência Sunday Night at the London

Paladium. Newman trouxe um novo olhar para a dramaturgia televisiva britânica, pois

apostou na produção de peças que eram ao mesmo tempo populares e culturais.

A BBC logo percebeu o potencial mostrado por Sidney Newman e o contratou como Diretor Geral de Dramaturgia, pois este tinha uma visão mercadológica que era muito diferente da visão paternalista da BBC. Segundo Shubik (2000:22-3), Newman já tinha percebido que a audiência tinha pré-disposição para assistir aos programas que já conhecia, por isso é que os seriados tinham muito mais sucesso do que as narrativas de um só episódio, em que o espectador não sabia o que esperar.

O Departamento de Dramaturgia da BBC teve um papel muito importante no desenvolvimento do gênero dramático na Grã-Bretanha e foi responsável pela chamada Idade de Ouro da televisão britânica (1965-1975). O Departamento de Dramaturgia estava dividido em três setores: Plays, responsável pelas produções de narrativas de um

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capítulo, a maioria delas escritas especialmente para a televisão; Serials, para os episódios com continuidade semanal e Series, para produções com os mesmos personagens. O setor Plays estava dividido em dois grupos: Festival, que era dedicado às peças clássicas de autores como Jean Cocteau, James Joyce, Samuel Beckett, Eugéne Ionesco, entre outros; e First Night, que divulgava os novos escritores e era exibida no domingo à noite para concorrer com as tele-peças do Armchair Theatre. Durante este período foram produzidas tele-peças para os seguintes programas: Na BBC1, The

Wednesday Play (1964-70), que foi substituído por Play for Today (1970-72) quando o

programa passou para as quintas-feiras, e na BBC2 Story Parade (1963-64) e Theatre

625 (1964-1968).

Um dos fatores que influenciou a Idade de Ouro foi a organização de um modelo de produção que valorizava a criatividade dos escritores. Aliás, devemos ressaltar que os produtores tinham muitas dificuldades de encontrar bons roteiros para fechar uma grade com periodicidade semanal.4 Por mais controverso que possa parecer, a BBC começou a comprar roteiros televisuais de autores com experiência no meio literário e teatral para desenvolver um novo drama televisual que, por sua vez, almejava se desvincular da literatura e do teatro. Deste modo a BBC conseguia agregar qualidade aos seus programas, pois convidava dramaturgos, atores e atrizes de renome, com experiência comprovada em outros campos artísticos, para dar credibilidade às suas produções.

A produção de roteiros originais e o advento da tecnologia de gravação da câmera de vídeo marcam a mudança da estética televisual, que perde a sua efemeridade e o seu senso de imediatez ao se desvincular das transmissões ao vivo de adaptações literárias e teatrais e começa a se definir com um senso de identidade própria ao empregar a criatividade no uso da tecnologia audiovisual.

Em 1964, Troy Kennedy Martin escreveu o manifesto Nats go home: first

statement of a new drama for television, em que critica o uso de uma estética naturalista

na televisão britânica e reivindica a criação de um novo gênero dramático, que foi posteriormente denominado Não-Naturalismo. O Naturalismo era herança do teatro e da literatura e tornou-se o gênero televisual por excelência. Baseado em diálogos e no tempo natural, as peças naturalistas podiam ser gravadas muito facilmente, pois as

4 Eram produzidas trinta e duas peças por temporada. O programa The Wednesday Plays exibiu 176 peças

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ferramentas disponíveis pela tecnologia televisual, como a câmera e os recursos de edição, somente enfatizavam o desenvolvimento da narrativa.

O novo gênero dramático proposto por Martin (1964: 25) tinha como intuito desobrigar a câmera da gravação de diálogos; desvincular a estrutura narrativa do tempo natural e explorar a objetividade da câmera. Martin defendia uma televisão de autor e uma nova forma dramática que usasse a edição para reorganizar o tempo por meio da elipse, da condensação e da justaposição; e a objetividade como um recurso para situar o espectador a uma certa distância do evento, evitando assim a sua identificação total com a imagem, como ocorria nos filmes hollywoodianos. Caughie (2000: 96) afirma que “Martin estava propondo um drama televisual criado por diretores que transformavam som, iluminação, edição e design em imagens e movimento e não por escritores que escreviam para atores falarem”.

Portanto, podemos afirmar que apesar de a BBC adaptar textos literários e teatrais e empregar dramaturgos e escritores para escreverem roteiros televisivos, tanto a imprensa quanto a própria direção do Departamento de Dramaturgia estavam debatendo sobre as possibilidades técnicas e estéticas na produção de novos programas dramáticos na televisão.

As Produções Beckettianas

O contexto institucional da emissora britânica entre a década de 1960 e 1980 permitiu a produção de programas inovadores e experimentais. A abertura da BBC2, a partir das recomendações do Relatório Pilkington, com o objetivo de veicular programas mais experimentais e financiar produções originais, assim como o advento do sistema de gravação da câmera de vídeo facilitaram o trabalho de Samuel Beckett com a BBC.

A sua primeira tele-peça Eh Joe, a piece for television foi enviada em 1966 para a avaliação de Michael Bakewell5, Diretor de Peças do Departamento de Dramaturgia da BBC. Bakewell afirma que o roteiro apareceu inesperadamente na redação e ele ficou muito interessado em produzi-lo, mas a emissora britânica foi lenta em marcar as datas para a gravação e a transmissão da tele-peça (KNOWLSON, 1997: 535). Sua estréia foi

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em 4 de julho de 1968 às 22:10 horas na BBC2. De acordo com o Relatório da BBC Audience Research6, Eh Joe teve uma audiência de apenas 3%. Os telespectadores acharam a peça monótona, tediosa, sem apelo visual devido à sua atmosfera sombria. Eles atestaram ainda que os pensamentos de Joe, personificados na voz da personagem Voice, não prenderam a atenção (ZILLIACUS, 1976: 198). Após a supervisão da produção da sua primeira tele-peça, Beckett teve a possibilidade de supervisionar todas as outras peças que escreveu para a BBC.

Em abril de 1976 várias comemorações estavam sendo organizadas em Londres para a comemoração dos 70 anos de Beckett. A BBC participou com a re-transmissão das peças de rádio e a estréia de Rough for Radio II. Em termos televisuais, tinha sido adaptada a peça Not I7, e Tristam Powell, editor da série Second House, queria outra peça para acompanhá-la, que não fosse Eh Joe, pois esta estava gravada em preto e branco, nem uma performance-solo. A BBC consultou Beckett para saber se Donald McWhinnie poderia escolher uma de suas peças de rádio ou teatro para ser adaptada. Beckett não deu a sua permissão dentro dos prazos previstos e propôs a criação de uma nova tele-peça para ser dirigida por McWhinnie. Com isso, a exibição de Not I foi prorrogada e a BBC não participou das comemorações do seu septuagenário, mas Beckett escreveu a sua segunda tele-peça intitulada Ghost trio, baseada no Trio para Piano N°5, de Beethoven. Em janeiro de 1976, Beckett escreveu de Tanger, em Marrocos, para o seu amigo Con Leventhal dizendo que tinha escrito uma peça para a televisão: “Todos os velhos fantasmas. Para sempreGodot e Eh Joe. Resta somente dar-lhes vida” (KNOWLSON, 1997: 621)8

.

Para acompanhar Not I e Ghost trio seria adaptada a peça Play, em exibição no

Royal Court Theatre em Londres, mas Beckett não gostou dos resultados da adaptação

feita pela BBC e começou a escrever uma segunda tele-peça, que se transformou em

...but the clouds..., produzida em 1976 pela mesma equipe, com a supervisão de

Beckett. As três tele-peças estrearam no programa The Lively Arts, sob o título Shades, exibido no dia 17 de abril de 1977 na BBC2 (KNOWLSON, 1997: 634).

6 Este relatório está disponível no BBC Written Archive em Caversham.

7 Em 1973, Beckett já havia concordado com a adaptação, mas ela não pôde ser feita porque o Royal Court Theatre tinha a exclusividade do contrato e pretendia reencenar a peça juntamente com Happy Days.

8 “All the old ghosts. Godot and Eh Joe over infinity. Only remains to bring it to life.” (tradução da

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A recepção de Shades foi bastante controversa. O jornalista Michael Billington (apud FLETCHER, 1978: 210) do jornal The Guardian elogiou a “beleza das imagens” e chamou Ghost trio de “uma pintura hipnotizante para a televisão”, perguntando-se porque é que o naturalismo ainda era o principal gênero televisual. Por outro lado, o diretor de televisão Dennis Potter, que estava preocupado em desvincular a televisão das convenções do naturalismo proveniente do teatro, criticou-as violentamente em um artigo para o jornal The Sunday Times. Potter (1977:38) afirmou que as tele-peças de Beckett constituíam a mais pura essência da arte ocidental, pois não tinham nenhuma relevância. Ele questionou se este tipo de arte se apresentava como resposta ao desespero e ao remorso da nossa era, ou se, por outro lado, a sua futilidade é que permitiu o desenvolvimento de ideologias corruptas como o nazismo.

As tele-peças de Beckett, por serem tão originais e se distinguirem do que estava sendo feito na televisão, irrompendo fronteiras que ainda estavam sendo demarcadas, tinham o poder de gerar reações tão adversas como as que foram acima mencionadas. No entanto, é facto que Samuel Beckett tornou-se um dos pioneiros da televisão, criando uma poética televisual muito peculiar, que explora as ferramentas audiovisuais no sentido de criar um imaginário minimalista, abstrato e fantasmagórico. As suas tele-peças se diferenciam de todas as outras experiências estéticas que estavam sendo produzidas na televisão europeia naquele momento, proporcionando o deslocamento do olhar dos telespectadores e trazendo novas experiências para a audiência. Com bocas-personagens e cabeças falantes que se movem na tela, a aproximação de Beckett à televisão é tão radical e inovadora que ele não apenas quebra as regras do Naturalismo, como também de qualquer outro gênero dramático modernista.

Na televisão, Beckett teve a possibilidade de apresentar o seu olhar estético como autor e aperfeiçoá-lo como diretor, ao ter contato com a prática de gravação nos estúdios, muitas vezes reescrevendo os roteiros para expressar as idéias que tinha visualizado. Além disso, ele foi capaz de propor um diálogo com a tecnologia televisual a fim de explorar a sua capacidade de comunicação. Este diálogo deu-se no uso das ferramentas televisuais, como a câmera e os recursos de áudio e edição, que permitiram o desdobramento das relações intersemióticas que permeiam toda a obra beckettiana e que se delineam no tratamento de temas como a repetição, a memória, a fragmentação, a percepção e a abstração, e também da criação dos personagens televisuais, teatrais e

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cinematográficos, criando assim um universo abstrato e fantasmagórico.

O Projeto Beckett on film

O projeto Beckett on Film, que começou a ser realizado em 1999 e teve estreia em 2001, consta da transcriação audiovisual e posterior exibição no cinema e na televisão das dezenove peças de teatro do dramaturgo irlandês Samuel Beckett.

As dezenove peças de teatro do autor foram originalmente produzidas pelo Gate Theatre Dublin e apresentadas, juntamente com as peças de rádio, no Beckett Festival realizado em 1991. Devido ao grande sucesso de público nos palcos de Londres, Nova York e Melbourne, Michael Colgan, diretor artístico do Gate Theatre, e Alan Moloney, da produtora Blue Angel Films, propuseram a realização deste projeto para a RTÈ, televisão pública irlandesa, que co-produziu os filmes em parceria com o Channel 4 e o Bord Scannán na hÉireann/The Irish Film Board.

O Beckett Estate, detentor dos direitos autorais da obra beckettiana, impôs várias condições para a filmagem das peças, destacando-se, entre elas, o critério de escolha dos diretores, que deveriam ter experiência como escritores, e o cumprimento de todas as instruções ou rubricas do autor para a performance das peças. Colgan9 conta que foi escrita uma “bíblia” para os diretores, cujas instruções eram categóricas: cortes no texto e definições de gênero não eram permitidos e, por exemplo, onde estava escrita a palavra “praia” devia haver uma praia, pois adaptações ou cenas inspiradas em outros autores ou mesmo em outros textos de Beckett não seriam aceitas. O desafio dos diretores estava na passagem do texto teatral inalterado para a tela, usando somente os recursos do meio audiovisual: os movimentos de câmera, de edição, a sonorização, a iluminação e os enquadramentos. Por outro lado, foi dada total liberdade para a escolha do elenco, pois os produtores esperavam que os diretores contratassem atores e atrizes de renome para dar credibilidade ao projeto.

Como estas peças foram escritas tanto em inglês quanto em francês ao longo de 31 anos de trabalho, é possível perceber a criação de uma poética cujo universo temático abrange o que Beckett considerava ser os dois atributos do câncer do tempo, o hábito e a memória, principalmente relacionados com a existência humana e a

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inevitabilidade da morte. Num constante processo de minimalização e abstração, os cenários apresentam poucos objetos e não representam um espaço definido de ação no sentido realista ou naturalista do termo. As narrativas das peças não estão baseadas na unidade da ação aristotélica, com começo, meio e fim e são circulares. Os diálogos não correspondem às ações e os personagens, aos poucos, vão sendo imobilizados. A idéia do drama como representação mimética da realidade é questionada quando a imitação de uma ação torna-se o próprio tema das peças.

Sem dúvida que Beckett subverteu as regras daquilo que era considerado o drama teatral, principalmente nos anos 1950. Porém, a questão é se os filmes conseguem transpor as particularidades da linguagem teatral e expressar as suas principais idéias na linguagem audiovisual. Sem dúvida que a criatividade dos diretores na elaboração das transcriações foi o ponto mais importante do sucesso do projeto Beckett on Film, pois algumas peças se adequam muito bem às especificidades da linguagem audiovisual, principalmente se consideramos o uso da câmera e dos recursos de edição.

Os filmes foram captados em película e disponibilizados em DVD. Na televisão RTÈ10, foram exibidos em blocos, pois a maioria deles é de curta-metragem, juntamente com as entrevistas dos diretores e atores. Todo este material encontra-se também no DVD, além do documentário Check the Gate: Putting Beckett on Film. Os filmes tiveram uma ótima acolhida por parte da crítica e do público ao serem exibidos em festivais de cinema ao redor do mundo11, mas quando foram exibidos na televisão os índices de audiência foram tão baixos que o Channel 412 não chegou a exibir todos eles,

o que é um contrassenso num canal como este. Ainda assim, o projeto ganhou o prêmio Best TV Drama do South Bank Award Ceremony, em 2002.

A sua realização levanta uma discussão muito interessante em relação tanto à criação artística quanto à crítica da obra de Beckett, pois o autor era contrário à adaptação de suas peças para outros meios, chegando inclusive a impedir que algumas produções fossem realizadas. Beckett acreditava que o meio era um dos elementos que dialogava com a performance e a transcriação não iria permitir este diálogo.

10 Foi exibido numa temporada em Março-Abril de 2001 na RTÈ.

11 Os filmes estrearam no Festival Beckett on film no Irish Film Centre em Abril de 2001.

12 O Channel 4 exibiu apenas Catastrophe, Rockaby, Play, Waiting for Godot, Not I e Breath em meados

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No entanto, é importante considerar que no período entre 1967 e 1986, Beckett se torna o encenador de seus próprios trabalhos, e mesmo antes, trabalhando muito próximo dos encenadores, tais como Alan Schneider e Walter Asmus, o autor começa a reescrever as suas peças, principalmente as rubricas de cena, para que melhor se adequassem à representação, tendo em conta o estilo dos atores e a língua em que estavam sendo encenadas. Sendo assim, como bem afirma Gontarski (2008: 278), Beckett acaba por reescrever o seu próprio cânone.

O processo criativo do autor passou a ser composto pela escrita, tradução e encenação, sendo que pretendia, com a encenação, estabelecer um padrão de fidelidade ao texto teatral que depois pudesse ser seguido por outros encenadores. Portanto, o processo de encenar passa a ser visto como um ato de revisão textual, ou mais do que isto, um ato de (re)criação, pois Beckett aprende que a escrita teatral não pode estar dissociada da representação. Com isso, podemos argumentar que o texto definitivo nunca existiu e que as diversas publicações em diferentes línguas nunca chegaram a publicar o texto definitivo, simplesmente porque este era (re)criado na performance seguinte.

Neste sentido, o trabalho de Beckett abre a possibilidade de ser recriado também por futuros encenadores, que irão se aproximar com um olhar diferente. Sendo assim, acreditamos que a reescritura dos textos a partir da encenação, conforme Gontarski ressalta nos estudos dos cadernos de anotações do autor, nos permite estabelecer uma relação com a proposta do projeto Beckett on Film.

Gontarski (2008: 278) sugere que os textos que foram revisados durante a encenação aproximam-se mais de estarem “terminados” do que aqueles originalmente publicados, no sentido colocado por Blanchot: “uma obra está terminada não quando é completada, mas quando aquele que trabalha nela por dentro pode também, da mesma forma [que o autor] terminá-la de fora.” Como ressalta Gontarski (id.),

se as peças revisadas e corrigidas estão “acabadas” é porque Beckett as abordou de fora, como um outro, como um leitor e encenador. Como bom leitor, Beckett viu mais nos seus textos a cada leitura e dirigi-los ofereceu a ele a oportunidade de relê-los intensamente.

Esta reflexão nos permite sugerir que as peças de teatro de Beckett, ao serem transcriadas para o meio audiovisual, televisão e cinema, permitiram aos realizadores

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trabalhá-las por dentro a fim de terminá-las de fora. Neste sentido, o projeto Beckett on

Film, apesar das restrições do Beckett Estate quanto às alterações do texto e das

rubricas, permitiu que os realizadores (re)criassem/(re)lessem a obra e apresentassem outras soluções estéticas que podem, de certa forma, enriquecer a experiência estética. Sem dúvida que estas restrições influenciaram a criação fílmica, pois todos os diretores tiveram de cumpri-las. No entanto, por outro lado, lançaram um desafio bastante interessante em termos da construção dramatúrgica e da criação da própria

mise-en-scène no meio audiovisual.

Considerações finais

Sendo assim, a realização do projeto Beckett on Film levanta uma discussão muito instigante em relação à criação artística e à crítica da obra do autor. Sabe-se que Beckett não autorizava as adaptações da sua obra mas, curiosamente, o meio audiovisual permitiu o apuramento estético da abstração das imagens criadas pelo autor. No caso deste projeto, podemos sugerir que, se por um lado as peças perderam a imediaticidade da performance ao vivo, que é intrínseca à linguagem teatral, por outro lado elas se tornaram mais acessíveis e popularizaram o trabalho de Beckett e, mais do que isso, deixaram as suas idéias “impressas” permanentemente em formato audiovisual.

Neste sentido, devemos ressaltar a riqueza dos filmes do projeto Beckett on Film pois, apesar das restrições, as transcriações das peças funcionam enquanto produtos audiovisuais, apresentam o apelo da linguagem audiovisual e não são, de modo algum, teatro filmado. Os filmes dialogam com a poética televisual beckettiana e ressignificam a obra poética do autor.

Sendo assim, estes produtos audiovisuais se tornaram uma referência sobre a obra beckettiana, permitindo que esta continue a ser estudada e que as novas gerações venham a conhecer trabalhos tão idiossincráticos e relevantes para a história da dramaturgia ocidental.

Para finalizar é importante ressaltar que este trabalho é parte integrante do projeto “Didaskália: da voz autoral de Beckett à liberdade de criação”, que tem o intuito de analisar as dezenove peças de teatro adaptadas para televisão e cinema pelo projeto

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Beckett on Film, conforme pode ser observado nos resultados parcias que já foram

disponibilizados em diversas publicações (Borges 2010a, 2010b, 2011, 2012).

Referências

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