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Feminicídio: a influência da violência de gênero no dolo do agente

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Academic year: 2021

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FACULDADE DE DIREITO

MAYARA SIXEL BARRETO

FEMINICÍDIO:

a influência da violência de gênero no dolo do agente

Niterói

2018

(2)

FEMINICÍDIO:

a influência da violência de gênero no dolo do agente

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do grau Bacharel em Direito.

ORIENTADOR:

Prof. Dr. Rodrigo De Souza Costa

Niterói

2018

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RESUMO

O presente artigo pretende apresentar uma análise sobre o dolo do agente na prática do crime de Feminicídio. Dessa forma, inserindo uma perspectiva sobre o contexto no qual o agente pertence, sendo o da sociedade patriarcal e em especial, a questão da violência de gênero. A pesquisa tem natureza teórico-bibliográfica, que instruiu a análise da legislação e doutrina, que informam os conceitos.

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ABSTRACT

The present article intends to present an analysis on the deceitfulness of the agent in the practice of the crime of Feminicide. Thus, inserting a perspective on the context in which the agent belongs, being that of patriarchal society and in particular, the issue of gender violence. The research has a theoretical nature-literature, which instructed the analysis of legislation and doctrine, which inform the concepts.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 7

2 FEMINICÍDIO 8

2.1 O que é feminicídio? 8

2.2 Marcos internacionais e a evolução histórica dos direitos das mulheres 10

2.3 Tipificação do Feminicídio na América Latina 14

2.4 O feminicídio no Brasil 15

3 SOCIEDADE E VIOLÊNCIA DE GÊNERO 20

3.1 Sociedade patriarcal e o machismo 20

3.2 Violência de gênero e violência contra as mulheres 24

3.3 Movimento Feminista e os avanços no Brasil 26

4 TEORIA DO CRIME E O DOLO 28

4.1 Evolução história da teoria do crime 28

4.2 Tipicidade 32

4.3 O dolo do agente 35

5 CONCLUSÃO 40

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1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por finalidade apresentar o obstáculo que se possui em relação à questão do dolo do agente quando da prática do crime de feminicídio.

Dessa forma, a próxima seção abordará a divergência acerca do termo mais adequado Feminicídio ou Femicídio, e para tanto irá se analisar a construção histórica do termo, assinalando os marcos normativos dos direitos humanos voltado às mulheres e a posterior tipificação nos países da América Latina.

Ao mesmo tempo, irá debater acerca da normatização do Feminicídio, através da elaboração e aprovação da Lei 13.104/15, no Brasil. Avaliando no que concerne a melhor perspectiva para tal qualificadora, seja de aspecto objetivo ou subjetivo.

Após, na seção 3, será apresentada as questões atinentes a formação da sociedade moderna, com bases no patriarcalismo e o machismo enraizado. Bem como debaterá acerca da violência de gênero enquanto mecanismo da manutenção do poder patriarcal, inserido na sociedade de maneira que os agentes possuem reflexos de maneira inconsciente.

A seção 4 trará o exame da perspectiva histórica da teoria do crime, com posterior análise do elemento dolo, dentro do finalismo e da construção do tipo penal Feminicídio.

Dessa maneira, trazendo para discussão o dolo do agente, conquanto as motivações de gênero que o levaram a cometer o crime.

Por fim, a última seção é destinada a crítica sobre o dolo do agente na prática do Feminicídio, e o entendimento de que a lei perpassa o aspecto do direito penal e encontra fins na proteção dos direitos humanos, devendo ser compreendida de maneira distinta, assim como da sua total necessidade.

Em síntese sumária, o artigo tem a pretensão de analisar, precipuamente, o dolo do agente que comete feminicídio em razões de gênero. Para além, busca compreender a formação social brasileira que perpetua as relações de poder e de violência de gênero e que, por conseguinte promove o reflexo inconsciente nas ações humanas.

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2 FEMINICÍDIO

2.1 O que é Feminicídio?

O termo surgiu a partir da tradução da palavra femicide, da língua inglesa e foi empregado pela primeira vez em 1976, pela escritora e feminista Diana Russel no 1º Tribunal Internacional de Crimes contra as Mulheres ocorrido na Bélgica, inicialmente conceituado como “a hate killing of females perpetrated by males” (RUSSEL, 2011). Todavia, em sua exposição, a autora salientou que os crimes de violência de gênero perpassam os séculos, assinalando que "From the burning of witches in the past, to the more recent widespread

custom of female infanticide in many societies, to the killing of women for so-called honor, we realize that femicide has been going on a long time."(RUSSEL, 2011), sendo na realidade

a primeira vez em que se dissociava o homicídio em razão de gênero do homicídio comum. Nesse sentido, Diana Russel afirma que criou o termo “femicide”, pois acreditava que nomear e dissociar o homicídio em razão do gênero dos demais se fazia necessário ao movimento feminista para organizar o combate a violência letal contra mulheres. (RUSSEL, 2011)

Com o aumento dos estudos e pesquisas sobre o femicídio, Diana Russel modificou seu entendimento do termo, trazendo um novo significado que se perpetua até os dias atuais, onde femicídio passa "the killing of females by males because they are female” (RUSSEL, 2011), consolidado em seu livro Femicide: The Politics of Woman Killing, lançado em 1992. Vale dizer que a autora usou o termo “female”, que em português pode ser entendido como fêmea, pois buscou abarcar todas as etapas do crescimento da mulher, desde seu nascimento até sua morte.

Entretanto, quando a autora mexicana Marcela Lagarde traduziu o termo para o espanhol, optou pela utilização de Feminicídio, justamente porque o termo Femicidio já havia significado próprio em castelhano como homicídio de mulheres (LAGARDE,2004) , o qual se espalhou pela América Latina, prova disso foi a opção de nosso legislador pátrio em utilizar o termo Feminicídio na legislação brasileira.

Inicialmente, o termo Feminicídio representava a tradução literal do termo femicide de Diana Russel, porém em 2005, Lagarde decidiu incluir o fator da impunidade dos crimes

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na conceituação do Feminicídio. Insta ressaltar que a modificação do conceito, se adequava a realidade vivida por Lagarde, inserida no contexto fático do México, onde se tinha um maior descaso do Estado:

Por eso, para diferenciar los términos, preferí la voz feminicidio para denominar así el conjunto de delitos de lesa humanidad que contienen los crímenes, los secuestros y las desapariciones de niñas y mujeres en un cuadro de colapso institucional. Se trata de una fractura del Estado de derecho que favorece la impunidad. El feminicidio es un crimen de Estado (LAGARDE, 2004, p.8-9)

Contudo, Diana Russel se mostrou uma crítica dessa diferenciação, e defende a utilização do termo femicide ou feminicídio como primeiro conceituado, por entender que a) a utilização do conceito incluindo a impunidade, iria influir que sempre que houvesse a punição do autor do crime, não haveria mais feminicídio; b) embora seja comum em muitos países a impunidade nos casos de feminicídio, isto não se aplica a todos, o que implicaria num conceito que não poderia ser globalizado; c) o termo feminicídio poderia ser vinculado ao termo opressivo de feminilidade, para os falantes da língua inglesa e d) a adoção de dois termos gerou conflitos dentro do movimento feminista latino americano, enquanto deveriam se unir para combater o homicídio de mulheres. (RUSSEL, 2011).

De toda forma, o debate do feminicídio traz em seu cerne a questão acerca das raízes patriarcais da sociedade ocidental, como determinante para a situação de subordinação e desigualdade que se encontram as mulheres dentro da estrutura social que é perpetuada. Este é o entendimento firmado pela própria Lagarde:

Uno de los aspectos relevantes de la violencia de género es su dimensión de mecanismo político, cuyo fin es mantener a las mujeres en desventaja y desigualdad en el mundo y en las relaciones con los hombres, permite excluir a las mujeres del acceso a bienes, recursos y oportunidades; contribuye a desvalorizar, denigrar y amedrentar a las mujeres, y reproduce el dominio patriarcal. La violencia de género contra las mujeres y entre los hombres recrea la supremacía de género de los hombres sobre las mujeres y les da poderes extraordinarios en la sociedad.” (LAGARDE, 2004. p. 4-5)

No Brasil podemos destacar o trabalho realizado por Adriana Ramos de Mello, que reafirma que os casos de violência contra a mulher ocorrem em sua maioria, dentro do âmbito doméstico, inversamente ao que ocorre ao homem que teme pela violência no espaço público (MELLO, 2013). Assim, como assinalou Diana Russel, Mello atribui grande parte dos avanços dos direitos das mulheres ao crescente movimento feminista, delegando a este o protagonismo na implementação das Delegacias Especializadas e no implemento da Lei 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha (MELLO, 2013).

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Anteriormente à promulgação da lei 13.104/15, Mello já assinalava a necessidade de erradicação do termo delito passional para os casos onde ocorresse feminicídio, tendo em vista que tal termo só corrobora as práticas machistas e misóginas da sociedade patriarcal, e que a mera tipificação do feminicídio não levará a abolir tal prática do dia a dia da sociedade brasileira, mas somente através de mudanças sociais estruturais (MELLO, 2013).

Vale dizer que em relação ao uso do termo feminicídio ou femicídio, Adriana Mello entende que o mais adequado seja femicídio, embora o legislador tenha utilizado o termo feminicídio quando da edição da lei e, por tal motivo, opta por usar este para fins de facilitar o entendimento dos leitores.

2.2 Marcos Internacionais e evolução histórica dos direitos das mulheres

Ademais, na evolução de proteção aos direitos humanos, em especial aos direitos das mulheres, há alguns marcos normativos internacionais, iniciando com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, denominada de Pacto de San Jose da Costa Rica, de 1969, que serviu como princípio basilar para a tramitação do Caso Campo Algodonero, que será tratado mais adiante, insta ressaltar que só foi incorporado ao ordenamento brasileiro em 1992, através do decreto 672.

O Pacto San Jose da Costa Rica foi proposto com o objetivo de consolidar os direitos humanos universais no continente americano, todavia não trata de maneira direta do tema dos direitos das mulheres, mas sim de maneira generalizada como dispostos em seu artigo 1º (CADH, 1969):

Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

O primeiro tratado de direito internacional a tratar dos direitos das mulheres de maneira mais ampla foi a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, conhecida como CEDAW ou Convenção da Mulher de 1979, sendo tomada como parâmetro mínimo para a atuação do Estado na defesa dos direitos das mulheres.

Possui duas vertentes para a obtenção do seu resultado, por um lado objetiva a promoção dos direitos das mulheres na luta pela igualdade de gênero e de outra busca a

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erradicação e repressão de quaisquer discriminações contra a mulher dos Estados-parte. Logo em seu primeiro artigo, a CEDAW define o que vem a ser a discriminação contra a mulher, e suas formas:

Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra a mulher” significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher independentemente de seu estado civil com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos: político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo

No decorrer do texto, a CEDAW apresenta diversas medidas a serem adotadas pelos Estados signatários com o objetivo de se efetivar a igualdade de gênero e erradicar a discriminação contra a mulher, como a garantia constitucional de igualdade entre homens e mulheres, garantir que a educação familiar compreenda uma visão adequada da maternidade enquanto função social e a responsabilidade comum a homens e mulheres na criação dos filhos, supressão do trafico de mulheres, direito de voto às mulheres, dentre outros.

Importante lembrar que o Brasil é signatário da CEDAW, com a assinatura em 1981, incorporando-a em seu ordenamento pátrio em 1984, através do decreto 89.460/84, todavia com ressalvas no que tange a parte do casamento civil e os direitos dos cônjuges, o que espelha a situação da sociedade à época. Em relação ao protocolo facultativo, que diz respeito ao Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, criado no intuito de receber as denúncias de desrespeito ao CEDAW por parte dos Estados Membros, só foi incorporado em 2002, através do decreto 4.316.

Seguindo a ordem cronológica, em 1993, foi instituído a Declaração de Direitos Humanos de Viena, que visa reforçar a promoção e proteção aos direitos humanos, e que incorporou os direitos das mulheres como parte do sistema de direitos humanos globais, reiterando a necessidade de erradicação das formas de discriminação de gênero, conforme assinala em seu artigo 18:

Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integral e indivisível dos direitos humanos universais. A plena participação das mulheres, em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural nos níveis nacional, regional e internacional e a erradicação de todas as formas de discriminação, com base no sexo, são objetivos prioritários da comunidade internacional. A violência e todas as formas de abuso e exploração sexual, incluindo o preconceito cultural e o tráfico internacional de pessoas, são incompatíveis com a dignidade e valor da pessoa humana e devem ser eliminadas. Pode-se conseguir isso por meio de medidas legislativas, ações nacionais e cooperação internacional nas áreas do desenvolvimento econômico e social, da educação, da maternidade segura e assistência à saúde e apoio social. Os direitos humanos das mulheres devem ser parte integrante das atividades das Nações Unidas

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na área dos direitos humanos, que devem incluir a promoção de todos os instrumentos de direitos humanos relacionados à mulher. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos insta todos os Governos, instituições governamentais e não – governamentais a intensificarem seus esforços em prol da proteção e promoção dos direitos humanos da mulher e da menina.

Já em 1994 foi confeccionada a 1ª Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção Belém do Pará, onde foi determinado que a violência contra a mulher é “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.

Entretanto foi após a repercussão do caso conhecido como Campo Algodonero, ocorrido na Cidade de Juarez no México, e julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que o conceito de feminicídio ganhou maior expressão internacional, prioritariamente nos países da América Latina e Caribe.

O caso foi apresentado junto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2002, após a morte de três jovens na Cidade de Juarez no México, que tiveram seus corpos encontrados junto a uma plantação de algodão. Vale dizer que a investigação feita internamente ocorreu sem que se respeitassem os direitos inerentes às vítimas e seus familiares, razão pela qual se levou a apresentação da petição destinada a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Somente em 2007 o caso foi levado pela Comissão para apreciação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, com os pedidos de condenação do Estado Mexicano por violação dos direitos garantidos nos artigos 04 (direito à vida), 05 (Direito à integridade pessoal), 08 (Garantias judiciais), 19 (Direito da criança) e 25 (Proteção judicial) da Convenção, também conhecida como Pacto San José da Costa Rica, bem como das obrigações dos artigos 1.1 (Obrigação de respeitar os direitos) e 2 (Dever de adotar disposições de direito interno) da mesma e para além disso, o artigo 07 da Convenção de Belém do Pará, que trata de medidas a serem tomadas pelos Estados para erradicar a violência contra a mulher.

O termo Feminicídio se tornou latente visto que na sentença, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reforçou o aspecto estrutural da violência de gênero, compreendendo a responsabilidade do Estado, justamente no sentido dado por Diana Russel.

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Era de conhecimento do Estado Mexicano que havia casos similares na região, dessa forma apresentava-se um contexto onde de maneira equivocada o Estado se absteve de seus deveres legais para a proteção das mulheres, conforme reforçado pela Corte Interamericana houve “a falta de contemplação das agressões a mulheres como parte de um fenômeno generalizado de violência de gênero.” (CIDH, 2009)

Contudo, quando da apresentação do caso diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão não utilizou o termo feminicídio para qualificar o fenômeno ocorrido na Cidade de Juarez, levando-se em consideração a não-existência do tipo no sistema interno mexicano e nem no sistema interamericano.

Todavia, mediante as circunstâncias apresentadas no decorrer do processo, bem como as manifestações dos peritos indicados que entoaram de maneira unânime que o ocorrido se tratava de feminicídio, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou a utilização do termo “homicídio de mulher por razões de gênero”, também conhecido como feminicídio” (CIDH, 2009) para tratar dos crimes ocorridos na Cidade de Juarez.

Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou na parte dispositiva da sentença, de maneira a ressaltar a importância da questão do gênero, que:

a investigação deverá incluir uma perspectiva de gênero; empreender linhas de investigação específicas em relação à violência sexual, para o que devem ser incluídas as linhas de investigação sobre os padrões respectivos na região; deve ser realizada em conformidade com os protocolos e manuais que cumpram as diretrizes desta Sentença; deve ser fornecida informação regularmente aos familiares das vítimas sobre os avanços na investigação e dar-lhes pleno acesso aos autos, e deve ser realizada por funcionários altamente capacitados em casos similares e em atenção a vítimas de discriminação e violência por razão de gênero. (grifo nosso)

Sendo assim, houve o fortalecimento da figura do Feminicídio, e a partir de seu reconhecimento como fenômeno decorrente da própria estrutura social e seus parâmetros de inferioridade e subordinação feminina, como também assinala Copello:

Se trata de ressignificar a morte violenta de muitas mulheres desde uma perspectiva de gênero para manifestar que não são fatos isolados atribuídos a fatores puramente individuais, mas sim que correspondem a causas estruturais, a submissão na qual a sociedade patriarcal coloca as mulheres como coletivo subordinado (tradução

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2.3 Tipificação do Feminicídio na América Latina

Dentro do contexto da América Latina e Caribe, tem-se que a partir dos anos 1990 houve um aumento das legislações internas tratando do tema de violência contra a mulher, em decorrência da assinatura da Convenção do Belém do Pará.

Porém, o primeiro país latino americano a tipificar o feminicídio foi a Costa Rica, somente em 2007, após o aumento dos casos de mortes de mulheres nos países da Região. Entre 2010 e 2015 o número de países da América Latina e Caribe que tipificaram o femicídio ou feminicídio em suas leis penais subiu de quatro para 16.

Entretanto a tipificação do feminicídio não se deu de forma homogênea, nem mesmo em sua denominação tendo em vista que alguns denominaram como femicídio e outros como feminicídio, bem quanto aos seus limites de ação, de acordo com Copello:

Se bem que é possível a partir de um objetivo comum de dar visibilidade a forma mais drástica de violência de gênero através da criação de um delito específico, o certo é que pouco mais tem em comum as diferentes leis que se tem apresentado nos últimos anos na América Latina. (tradução nossa)

Isso porque cada país adequou a legislação aos seus parâmetros de necessidade. Se por um lado houve países que enrijeceram suas penas para todo e qualquer tipo de feminicídio, levando em consideração o alto número de homicídios brutais de mulheres em seus territórios, enquanto outros tipificaram a figura somente no âmbito interno, vinculado à questão da violência doméstica.

Contudo essa distinção entre as leis internas de cada país culmina em uma maior dificuldade de obtenção com clareza do conceito de feminicídio, para que esse possa ser tratado não apenas como fenômeno sociológico e passe a ser entendido como fenômeno criminal, e por assim ser pautado como delito com limites claros para sua imposição.

No mais em razão dessa diferenciação apresentada, divide-se o feminicídio em algumas categorias de análise diversas, quais sejam (ONU MULHERES, SPM, 2016) a) Feminicídio íntimo: Morte de uma mulher cometida por um homem com quem a vítima tinha, ou tenha tido uma relação ou vinculo íntimo; b) Feminicídio não-intimo: morte de uma mulher cometida por um homem desconhecido, com quem a vítima não tinha nenhuma relação; c) Feminicídio infantil: morte de uma menina menor de 14 anos, cometida por um homem no âmbito de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder; d) Feminicídio familiar: morte de uma mulher no âmbito de uma relação de parentesco entre vítima e

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agressor; e) Feminicídio por conexão: morte de uma mulher acidentalmente por estar no mesmo local onde um homem tenta matar outra mulher; f) Feminicídio sexual sistêmico: morte de mulheres que são previamente sequestradas, torturadas e/ou estupradas; g) Feminicídio por prostituição ou ocupações estigmatizadas: morte de uma mulher que exerce prostituição e/ou outra ocupação cometida por um ou vários homens. Esta modalidade evidencia a estigmatização social; h) Feminicídio por tráfico de pessoas: morte de mulheres produzida em situação de tráfico de pessoas; i) Feminicídio por contrabando de pessoas: morte de mulheres produzida em situação de contrabando de imigrantes; j) Feminicídio transfóbico: morte de uma mulher transgênero ou transexual, com recorte de incidência pela condição de trans; k) Feminicídio lesbofóbico: morte de uma mulher lésbica em razão de sua orientação sexual; l) Feminicídio racista: morte de uma mulher por ódio ou rejeição a sua origem étnica e m) Feminicídio por mutilação genital feminina: morte de uma menina ou mulher resultante da prática de mutilação genital.

Para fins de observação, nota-se que a diferenciação de 13 subespécies de feminicídio busca contemplar todos os recortes sociais e realidades onde se pode constatar a presença do Feminicídio, nesse sentido também é o entendimento de Diana Russel, quando da implementação do termo feminicide:

Murders of females for so-called "honor;" rape murders; murders of women and girls by their husbands, boyfriends, and dates, for having an affair, or being rebellious, or any number of other excuses; wife-killing by immolation because of too little dowry; deaths as a result of genital mutilations; female sex slaves, trafficked females, and prostituted females, murdered by their "owners", traffickers, "johns" and pimps, and females killed by misogynist strangers, acquaintances, and serial killers. [...] There is a continuum of femicides ranging from one-on-one sexist murders, e.g., a man strangling his wife because she plans to leave him; to one or more males killing a group of women for, say, refusing to wear the correct attire in public; to the other end of the continuum, for example, mass femicides such as when preference for male children results in the killing, or death from neglect, of millions of female babies and girls, as in India and China. (RUSSEL, 2011)

2.4 O feminicídio no Brasil

Dito isso, e entendendo como se apresenta o conceito de Feminicídio dentro da realidade latino americana, que abarca também o Brasil é possível se ater ao tema dentro do contexto brasileiro, buscando compreender como se obteve a sanção da Lei 13.104/15 que alterou o disposto no art.121 do Código Penal Brasileiro com o objetivo de incorporar o Feminicídio.

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Feminicídio

VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:

§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

I - violência doméstica e familiar;

II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Aumento de pena

§ 7o A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:

I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;

II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;

III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima.” (NR)

Logo, no sistema penal brasileiro o feminicídio não é um tipo penal próprio ou possui lei especial, sendo uma qualificadora do homicídio, quando o comportamento do agente se situar dentro das hipóteses previstas no §2º-A.

Nessa lógica, cabe observar que as condutas sobre as quais incide o feminicídio possuem características objetivas e subjetivas, tendo em vista que por um lado se tem o feminicídio intimo, previsto no inciso I, com caráter mais objetivo e de outro plano tem se a expressão “menosprezo ou discriminação à condição de mulher” que implica em uma análise altamente subjetiva da conduta do agente a fim de se atingir ao que se pretende com tal expressão.

Mas isso não implica na discussão acerca da qualificadora ser objetiva e subjetiva nos termos do direito penal, é válido lembrar que as qualificadoras objetivas se relacionam a execução do crime e de maneira geral se comunicam aos coautores e participes desde que esses tenham conhecimento, e também podem ser cumuladas com o privilégio do §1º, enquanto que o mesmo não ocorre nas qualificadoras subjetiva, que se relacionam aos motivos e a pessoa do agente.

Logo, existe na doutrina a divergência aspecto da qualificadora, há quem defenda, como Francisco Dirceu Barros que ambas as qualificadoras se vinculam a motivação delitiva do agente e, portanto, por si só, estão caracterizadas por serem de aspecto subjetivo, já que não se relacionam a forma de execução do crime, sendo este também o entendimento de Márcio André Lopes Cavalcante:

A qualificadora do feminicídio é de natureza subjetiva, ou seja, está relacionada com a esfera interna do agente (“razões de condição de sexo feminino”). Ademais,

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não se trata de qualificadora objetiva porque nada tem a ver com o meio ou modo de execução. (CAVALCANTE, 2015)

Nesse sentido é o posicionamento de Alice Bianchini, posto que a qualificadora indique a motivação do agente, sendo claro que é de natureza subjetiva, pois “a violência de gênero não é uma forma de execução do crime; é, sim, sua razão, seu motivo.” (BIANCHINI, 2016).

Em outro ponto, há os que defendem ser uma qualificadora eminentemente objetiva, como Amom Albernaz Pires que define:

[...] a nova qualificadora do feminicídio tem natureza objetiva, pois descreve um tipo de violência específico contra a mulher (em razão da condição de sexo feminino) e demandará dos jurados mera avaliação objetiva da presença de uma das hipóteses legais de violência doméstica e familiar (art. 121, § 2º-A, I, do CP, c/c art. 5º, I, II e III, da Lei 11.340/06) ou ainda a presença de menosprezo ou discriminação à condição de mulher (art. 121, § 2º-A, II, do CP). [...] Entendimento diverso (ou seja, entender que o acolhimento do privilégio é incompatível com a qualificadora do feminicídio, ao fundamento de que esta teria natureza subjetiva) conduziria ao disparate de se estar diante de um caso típico de violência de gênero (ou, noutras palavras, caso típico de feminicídio) e de o quesito do feminicídio sequer chegar a ser votado pelos jurados uma vez acatado o privilégio, em total afronta ao escopo da Lei nº 13.104/2015. (ALBERNAZ PIRES,2016)

Ainda se têm aqueles que entendem que a circunstância do inciso I (violência doméstica e familiar) é objetiva, enquanto o inciso II (menosprezo ou discriminação) é subjetiva, conforme salientado por Cesar Dario Mariano:

Portanto, a qualificadora em comento (inc. VI) tanto pode ter natureza objetiva (§ 2º-A, I) quanto subjetiva (§ 2º-A, II), já que o feminicídio pode estar presente quando o delito envolver violência doméstica e familiar (modo de execução do delito), ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher (motivo do delito).

Corroboram este entendimento Everton Luiz Zanella, Márcio Augusto Friggi de Carvalho, Marcio Francisco Escudeiro Leite e Vírgílio Antônio Ferraz do Amaral:

A primeira ilação obtida da análise do conceito jurídico de violência doméstica e familiar é que, nessa vertente, a qualificadora tem natureza objetiva. Com efeito, embora a disposição remeta à noção de motivação (“em razão da condição de sexo feminino”), as definições incorporadas pela Lei Maria da Penha sinalizam contexto de violência de gênero, ou seja, quadro fático-objetivo não atrelado, aprioristicamente, aos motivos determinantes da execução do ilícito [...]No entanto, o argumento só terá validade lógica se a compreensão do inciso telado, ao contrário da indicação do inciso I, sinalizar tratar-se o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher de motivo imediato do crime, independentemente do cenário fático-objetivo no qual o evento macabro se desenvolveu. Efetivamente, o contexto objetivo de violência de gênero é aquele reportado pelo art. 5º da Lei Maria da Penha e que caracteriza o feminicídio executado nas condições do § 2º-A, inciso I. Em qualquer outro contexto, haverá feminicídio se o móvel do delito foi

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simplesmente o menosprezo ou à discriminação a que se refere o inciso II. Adotada essa premissa, infere-se que a qualificadora atinente ao feminicídio, identificada a hipótese do § 2º-A, inciso II, tem natureza subjetiva e, portanto, nesse caso, incompatível com o privilégio. De outra banda, a torpeza é inerente à própria conduta movida pelas razões em debate e, de outro lado, repele a ideia de futilidade. O feminicídio, nesse âmbito de discussão, poderia se conjugar com as qualificadoras objetivas de meio e de modo de execução (CP, art. 121, § 2º, incisos III e IV), mas não com aquelas indicativas de outros motivos diretos do delito (CP, art. 121, § 2º, incisos I, II e V).

Todavia, os enunciados 23 e 24 do COPEVID - Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – ratificam a concepção da qualificadora como objetivo, nos seguintes termos:

Enunciado nº23(005/2015): A qualificadora do feminicídio, na hipótese do art. 121, §2º-A, inciso I, do Código Penal, é objetiva, nos termos do art. 5º da Lei n. 11.340/2006 (violência doméstica, familiar ou decorrente das relações de afeto), que prescinde de qualquer elemento volitivo específico. (Aprovado na II Reunião Ordinária do GNDH em 07/08/2015 e pelo Colegiado do CNPG em 22/09/2015). Enunciado nº 24 (006/2015): A qualificadora do feminicídio, na hipótese do art. 121, §2º-A, inciso II, do Código Penal, possui natureza objetiva, em razão da situação de desigualdade histórico cultural de poder, construída e naturalizada como padrão de menosprezo ou discriminação à mulher. (Aprovado na II Reunião Ordinária do GNDH em 07/08/2015 e pelo Colegiado do CNPG em 22/09/2015).

Conforme já descrito no presente trabalho, não se tem dados precisos acerca da efetividade da norma penal criada, dado a dificuldade em sintetizar o que seria a consciência da conduta tomada em razão do gênero. Dessa forma, nos últimos anos o que se vê é um esforço do poder público em apurar novas metodologias para os casos de provável feminicídio, para que integrem o sistema e auxiliem na busca de dados estatísticos e informações para o combate à violência de gênero, tirando-a da invisibilidade.

Nesse sentido, em 2015 foi publicado o Mapa da Violência (ONU Mulheres, SPM, 2015) com foco específico na violência de gênero, insta dizer que já havia ocorrido esse estudo em 2012, entretanto não havia dados para além dos apresentados pelo Ministério da Saúde, relacionados à atendimentos à vitimas de violência doméstica, portanto o levantamento realizado em 2015 apresentou uma maior coleta de dados estatísticos, posto que ocorrido após a Lei 13.104/2015 que incorporou a figura do feminicídio no ordenamento jurídico pátrio.

O levantamento mostrou que o Brasil era, em 2013, o 5º país com maior número de feminicídio, numa amostragem de 4,8 homicídios a cada 100 mil mulheres(ONU Mulheres, SPM, 2015) ou seja, com uma taxa altamente perigosa que só reforça a necessidade de se

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discutir a questão do gênero dentro da sociedade, visando o combate a violência e, portanto, ao feminicídio.

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3 SOCIEDADE E VIOLÊNCIA DE GÊNERO

3.1 Sociedade patriarcal e machismo

Conforme já assinalado, o debate acerca do feminicídio perpassa a questão meramente formal do Direito Penal, primeiramente por ser o direito uma ciência social e, portanto, trazer em seu bojo a necessidade de relacionar-se com as mudanças e contextos sociais em que está inserido. Dentro dessa ótica a tipificação do delito de feminicídio, foi fruto da luta das mulheres, dentro de seus movimentos, para que se alcançasse uma norma que visa a proteger seu direito e auxilia na modificação estrutural da sociedade.

Nesse sentido, é mister salientar que a questão de desigualdade de gênero é basilar dentro do contexto da sociedade brasileira, ainda que não seja exclusivo desta. Historicamente, as mulheres são apresentadas e colocadas em um papel de inferioridade em relação ao homem, tratadas como submissas e relegadas a mera coadjuvante da vida em sociedade.

Maria Irene Ramalho (apud LAKY, Tania, 2016) localiza a Grécia antiga como o referencial para a mudança do entendimento do papel da mulher:

[...] emergência de hierarquia na Grécia antiga e a consolidação do que ainda é entendido hoje como o ordenamento adequado da sociedade humana: o homem no topo, em seguida, a fêmea, então a criança, o escravo, em seguida o bárbaro, e, finalmente, o animal.

Sendo assim, Ramalho compreende que até aquele momento, o sexo não exercia um papel fundamental para divisão e hierarquia social, entretanto a partir do século IV AC a organização social tenha se pautado em estratificação e subordinação.

Logo, as mulheres, à época, sequer eram vistas como cidadãs, sendo equiparadas aos escravos, já na Idade Média, como observado por Russel (2011), eram denominadas e perseguidas como bruxas e queimadas em fogueiras, junto da Revolução Industrial foram incorporadas ao mercado de trabalho, entretanto com baixas remunerações e longas jornadas, no comparativo aos trabalhadores de sexo masculino – o que ainda é visto, em pleno século XXI -, e com direitos, atualmente usuais e comuns, como o direito ao voto, sendo conquistados após décadas de embates e discussões. As mulheres, numa perspectiva histórica, enfrentam e convivem com a desigualdade e a violência, seja ela física ou psicológica.

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Todavia, tais manifestações indicam o enraizamento de valores e de representações sociais entre os homens que conduzem a comportamentos discriminatórios e de dominação sobre as mulheres (LAKY, 2016), ou seja, são representações da sociedade patriarcal e machista na qual são inseridos.

Nesse sentido, resta claro que a desigualdade, longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais (SAFFIOTI, 2004). Atualmente, o que se tem observado é uma maior preocupação no combate à desigualdade de gênero no sentido institucional, todavia segundo os dados do Relatório sobre a Desigualdade de Gêneros no Mundo de 2017, publicado pelo Fórum Econômico Mundial, o Brasil possui alarmantes índices de disparidades entre os gêneros, estando na 90ª posição entre os 144 países que compõe os estudos, sendo o 3º pior dentro os países da América Latina e Caribe e tendo uma queda em seu posicionamento.

O Relatório leva em consideração aspectos como educação, saúde, economia e empoderamento político. Vale dizer, que em relação a educação, o Brasil alcançou a igualdade de gêneros, todavia há ainda um longo caminho a percorrer no que tange a representação política e diferenças salariais. Segundo consta no referido relatório, é previsto que leve um século para que se acabem as desigualdades em nível global, logo não há dúvidas de que é necessário continuar no combate a desigualdade de gênero, embora sejam encontrados diversos obstáculos em virtude da formação social do Estado Brasileiro.

A sociedade brasileira é em sua essência patriarcal, isto é a noção que coloca o pai como hierarquicamente superior dentro de um núcleo familiar e por conseguinte dentro do contexto social. Tem-se a figura do homem num grau hierárquico acima da figura feminina, que se torna submissa, principalmente com o fortalecimento da ideia de propriedade privada. Para Simone de Beauvoir (apud MARINHO, 2018) ocorreu um processo de coisificação, onde a mulher deixa de ser indivíduo e se torna também propriedade do pai e posteriormente do marido.

O sistema patriarcal busca meios de se justificar, visando a garantir sua continuidade e a manutenção da desigualdade de gênero. Os meios encontrados, muita das vezes foram através da ciência e da religião, que fomentaram discursos que solidificam a noção do que é o homem e a mulher. Exemplificando, a Bíblia traz em seu bojo a imagem de Maria, como idealização da mulher, pura, virgem e dedicada ao lar e família, imaculada e religiosa.

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Baseado na estrutura hierárquica de poder estabelecida entre homem e mulher, se construiu e ainda se constrói a sociedade, do mesmo modo como as relações patriarcais, suas hierarquias, sua estrutura do poder contaminam toda a sociedade civil, mas impregna também o Estado (SAFFIOTI, 2004) e que por tal não poderia transparecer comportamentos que não aqueles da lógica machista. O machismo resta tão enraizado e impregnado nas relações sociais, que naturaliza tais práticas trata como exagero por parte das mulheres, o que implica, na realidade, em mais um ato de machismo.

Se faz necessário que se desnaturalize a submissão de um sexo a outro, mostrando sua constituição como um fenômeno social (GAGLIANONE, 2017), e é este caminho que se vem buscando a fim de extirpar a desigualdade de gênero e consequentemente a violência que advém dessa relação.

Há décadas com amadurecimento e fortalecimento do movimento feminista, vem se buscado combater o machismo e a misoginia através da desnaturalização de comportamentos, discursos, que reflitam essa ideologia. Cabe aqui, realizar a diferenciação entre os termos, para que seja facilitada a análise das condutas observadas no contexto social brasileiro.

Misógino, adj. S.m. que(m) tem aversão às mulheres, segundo definição do dicionário

Houaiss, logo, misoginia é o ódio às mulheres, perpetuado pelos comportamentos da sociedade patriarcal, podendo ser expressadas de diversas formas.

O machismo, por sua vez, pode ser compreendido como uma das manifestações da misoginia, e é o conceito que se baseia na supervalorização das características físicas e culturais masculinas em detrimento daquelas associadas ao sexo feminino, sendo uma imposição de uma hierarquia entre homens e mulheres.

Ninguém gosta – ou não deveria – de ser intitulado como machista, justamente porque dessa forma é aberto à sociedade, um caráter que embora sempre presente, é de inequívoca vergonha. É notório que em casos onde há denúncia de assédio, ou de práticas machistas, prontamente se tem a desvalorização dos argumentos femininos e a tentativa de acobertamento através da relativização das condutas.

Não é necessário que se vá muito além, bastando observar o ocorrido durante a Copa do Mundo 2018, na Rússia. Um grupo de brasileiros caçoou e filmou uma mulher russa, pedindo-a para que falasse palavras de cunho sexual em português, sem que a mesma tivesse conhecimento pleno da língua portuguesa, e tampouco do significado das palavras que estava proferindo.

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Em meio ao mundo digital e globalizado, rapidamente o vídeo se espalhou através das mídias sociais, trazendo reações diversas, por um lado, houve a denúncia da prática machista, a exposição dos nomes dos envolvidos, enquanto de outro aqueles que somente entendiam como uma brincadeira, sem maiores problemas.

Embora, tenha ocorrido denúncia protocolizada na Rússia, e manifestações de diversas mulheres e movimentos feministas, o que se viu foi a inequívoca demonstração da construção machista da sociedade, com a fala do Ministro do Turismo Brasileiro minimizando a situação e declarações dos envolvidos, afirmando que ocorreu uma “tempestade em copo d’agua” e com desculpas – meramente formais-, expondo a naturalização em que é vista esse tipo de comportamento.

No mesmo mês, foi vista em rede nacional, uma verdadeira demonstração de machismo e misoginia, através da entrevista da pré-candidata à presidência da República Manuela D’Avila (PCdoB). Ademais as críticas a formação da bancada de entrevistadores, restou clara a distinção do tratamento dado a candidata em comparação aos pré-candidatos homens que já haviam sido entrevistados, sendo a prática é tão usual, que em determinado momento o entrevistador se pergunta “É machista elogiar sua beleza quando estamos discutindo política?”. Resta o questionamento se o mesmo seria falado se fosse um homem candidato, ainda que bonito e provavelmente a resposta seria negativa.

Não bastasse isso, pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostrou que 58,5% dos entrevistados concordaram totalmente ou parcialmente com a frase "Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros", sendo isto uma clara culpabilização da vítima, reflexo da cultura machista na qual é inserida a sociedade brasileira.

Logo, não há dúvidas de que a cultura machista se apresenta de maneira intrínseca à formação sociocultural brasileira, e não há dificuldades para exemplificar e demonstrar a suas expressões no cotidiano, apesar de, por diversas vezes ocorrer a tentativa de acobertamento dessas práticas, subjulgando as falas femininas.

Contudo, o machismo esconde a problematização do ódio à mulher, sendo apenas o ponto mais visível da questão, objetificando o corpo feminino, mas não necessariamente trazendo em si o caráter odioso. Combater o machismo é o inicio de um embate contra a misoginia e o ódio, que ao final, leva a agressões e mortes de mulheres.

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3.2 Violência de gênero e violência contra mulheres

Em virtude de todo o exposto, é inegável que há violência de gênero no Brasil, em decorrência do contexto sociocultural em que está inserido. Para além, há uma explicita violência contra mulheres no País, tendo sido necessário a criação de mecanismos não só para a sua exposição, bem como seu combate.

Nesse sentido, cabe delinear que violência não precisa ser somente a física, podendo ser simbólica, sendo dessa forma expressão de poder. Ainda assim, o que se observa é que “existe uma forte banalização da violência de forma que há uma tolerância e até um certo incentivo da sociedade para que os homens possam exercer sua virilidade baseada na força/dominação com fulcro na organização social de gênero. Dessa forma, é ‘normal e natural que os homens maltratem suas mulheres, assim como que pais e mães maltratem seus filhos, ratificando, deste modo, a pedagogia da violência’” (SAFFIOTI, 2004).

De maneira exemplificativa, foram cunhadas algumas palavras da língua inglesa que explicitam atos de violência simbólica contra as mulheres, são a. manterrupting quando um homem interrompe constantemente uma mulher, impedindo-a de finalizar uma frase ou um pensamento; b. mansplaining que ocorre quando o homem explica algo que é obvio a mulher, como se a mesma fosse incapaz de entender; c. bropriating quando um homem se apropria de uma ideia expressa por uma mulher, levando o crédito e d. gaslighting que ocorre a tentativa de fazer a mulher duvidar de seu senso crítico, percepção, raciocínio e memórias, taxando-a de louca.

Entretanto, no presente artigo vamos nos ater à questão da violência física, visto que o combate à mesma foi o pilar para a normatização do Feminicídio. A visibilização dada pela tipificação vem auxiliando o acesso à justiça pelas mulheres, tendo em vista que possibilitou um enrijecimento das formas de punição, ao mesmo tempo que trouxe mais clareza ao tema.

Embora frequentemente seja utilizado o termo violência de gênero para designar as constantes agressões ocorridas contras às mulheres, inclusive com sua inclusão na legislação específica do tema, o uso da expressão violência de gênero abrange outras situações que não a das mulheres, isso porque se relaciona padrões sobre lugares e papéis sociais que cada gênero deve desenvolver. É possível determinar situações onde ocorre violência de gênero ao realizar o exercício de “observar uma dada situação social e inverter papéis: se houver estranhamento pelo não cumprimento de uma expectativa do que aconteceria com aquela

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pessoa naquela situação, significa que há ali lugares sociais pré-determinados culturalmente” (ZAPATER, 2016)

Já a expressão violência contra as mulheres tem como objetivo pormenorizar e especificar a situação de violência em que as mulheres se encontram, portanto se adequando aos casos sofridos por força da construção machista da sociedade, todavia conforme salientado, nas legislações, bem como em diversos estudos sobre o tema se consolidou o uso do termo violência de gênero para tratar do tema.

Segundo Tania Laky de Sousa (2016), a violência contra as mulheres trata-se do resultado de uma estratégia de dominação exercida pelo homem para manter a sua posição de poder. Nessa perspectiva, entende-se que a violência contra as mulheres evidencia o propósito de corrigir a transgressão (alguma conduta fora do papel atribuído) e garantir a continuidade de uma ordem tradicional de valores imposta por razões de gênero, sendo assim, a violência nada mais é que um mecanismo de perpetuação do sistema patriarcal e machista.

Anteriormente, a violência contra as mulheres foi tratada como violência intrafamiliar, isto é, aquela ocorrida no seio da família, perpetrada por familiares ou amigos próximos. Com isso, ganhou destaque a necessidade de que os homens fossem atendidos nos centros de referência e apoio às mulheres, reforçando a ideia de que a violência seria um problema de saúde mental, e não de relações de poder e controle (FARIA, 2017), o que vai de encontro com o já assinalado, que é a violência contra as mulheres deriva das relações de hierarquia existentes na sociedade.

Logo, demanda-se o combate as causas da violência, ou seja, a mudança das relações sociais construídas dentro do sistema, com a busca pela igualdade de gênero e o fim da violência machista e sexista. Na América Latina e Caribe, o combate à violência contra as mulheres, foi o tema em que mais se desenvolveu políticas públicas, demonstrando o esforço que vem sendo realizado.

Esse esforço tem claras motivações e, como observado, o Brasil é um país com altos índices de violência contra a mulher. De acordo com o Mapa da Violência 2015, no ano de 2014, 405 mulheres em média por dia demandaram atendimento em uma unidade de saúde, por alguma violência sofrida, em 2013, 13 mulheres morreram por dia vítimas de feminicídio. Cerca de 30% foram mortas por parceiro ou ex.

O Instituto Maria da Penha, através do “Relógios da Violência” atesta que a. cada 2 segundos, uma mulher é vítima de violência física ou verbal no Brasil; b. a cada 6.3 segundos

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tem-se uma ameaça de agressão física; c. a cada 2 minutos uma mulher é alvo de arma de fogo, essas são somente algumas das expectativas presentes no referido projeto. Os dados só possuem o condão de ratificar o argumento do necessário combate a violência contra as mulheres.

3.3 Movimento feminista e os avanços no Brasil

Nesse sentido, o movimento feminista apresenta grandes contribuições no sentido de combater e findar a violência contra as mulheres. O processo brasileiro de conscientização e institucionalização da luta contra a violência doméstica acompanhou o ritmo das conquistas internacionais e mundiais do movimento feminista. (BERNARDES, 2016)

Isto é, a luta contra a violência doméstica, logo contra a violência contra as mulheres, avançou em conjunto com os mecanismos e convenções construídos de maneira transnacional, com a articulação de redes de mulheres. Ainda que tal movimento tenha se subdividido em razão das singularidades regionais, a necessária formação de redes de apoio, troca e debates auxiliou no fortalecimento do movimento feminista e no combate à violência contra as mulheres.

Um dos pontos de maior importância para o movimento feminista brasileiro, em termos atuais, foi a criação do Conselho Nacional da Condição da Mulher (CNDM) em 1984, com o objetivo de promover políticas públicas de eliminação da discriminação contra a mulher, bem como assegurar a participação política, econômica e cultural do país. Embora criado na década de 80, o CNDM ganhou maior reconhecimento a partir da criação da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, com status de ministério, ao qual o CNDM foi vinculado e passou a desempenhar seu papel com maior contundência.

Nesse sentido, a significativa vitória do movimento feminista no combate a violência de gênero no Brasil foi a criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), que pode ser considerada a primeira experiência de implementação de uma política pública de combate à violência contra as mulheres no Brasil (SPM, 2010). E que, inegavelmente, é fruto das incessantes denúncias acerca do descaso do Estado para com a vida das mulheres, reconhecendo que a violência contra a mulher transcende a esfera privada, sendo um problema de Estado.

Dessa forma, as DEAM’s têm contribuído, ainda, para dar visibilidade ao problema da violência contra as mulheres e para o reconhecimento, pela sociedade, da natureza criminosa

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da violência baseada em diferenças de gênero (SPM,2010). Salienta-se que com o incremento da lei 11.340/06 – a chamada, lei Maria da Penha – fortificou-se o trabalho das Delegacias Especializadas, concomitantemente ao fortalecimento do combate a violência doméstica.

Todavia, conforme pontua Lourdes Maria Bandeira (2014):

[...] os assassinatos de mulheres continuam sendo praticados e têm aumentado, embora não sejam mais explicados oficialmente como crimes de honra. Paradoxalmente, não houve mudanças significativas em relação às razões que continuam a justificar formalmente a persistência da violência de gênero, ainda, centrando-se principalmente na argumentação de que a mulher não está cumprindo bem seus papéis de mãe, dona de casa e esposa por estar voltada ao trabalho, ao estudo ou envolvida com as redes sociais, entre outras.

Ou seja, em que pese todos os esforços depreendidos ao longo das décadas pelo combate a violência contra a mulher, o que se observava não era a diminuição da ocorrência, mas sim o aumento, dentro desse contexto e compreendido as lutas internacionais também nesse sentido, foi necessário o enrijecimento das penas dadas ao homicídio perpetrada em razão da condição de gênero, o Feminicídio.

Logo, como já salientado anteriormente, a implantação da Lei 13.104/15 vem no sentido de fortalecimento do combate à violência contra a mulher, mas também importando no combate às estruturais sociais hierarquizadas da sociedade brasileira, e compreendendo os desafios que são trazidos em virtude da formação sociocultural dos agentes da sociedade, que tem em si incorporados, de maneira inconsciente, conceitos e pré-dispostos a um conjunto de atitudes que refletem o meio ao qual são inseridos.

Entretanto, a normatização do Femincídio, traz a discussão do debate da violência do gênero e, para além, a questão do machismo enraizado e estrutural da sociedade brasileira. Posto que, enquanto impregnando na formação sociocultural dos homens e mulheres, os atinge de maneira inconsciente.

Dessa forma, se faz necessário compreender em que ponto a consciência do agente na prática do Feminicídio tem caráter determinante para a ocorrência e culpabilização do mesmo. Para que essa compreensão e entendimento se deem de maneira plena, é pressuposto o estudo da teoria do crime, sua evolução histórica até a realidade em que se insere atualmente, focada no dolo, que é justamente quando o agente tem vontade e consciência dos atos que está praticando, e do crime que lhe pode ser imputado.

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4 TEORIA DO CRIME E O DOLO

4.1 Evolução Histórica da teoria do crime

Como assinalado, para que se entenda o aspecto da consciência e voluntariedade, o dolo do agente, é preciso realizar o estudo da teoria do crime ou teoria geral do delito, isto é compreender como historicamente se construiu a figura do crime, no conceito finalista/analítico do delito que é o encontrado dentro do nosso ordenamento.

Assim, inicialmente cabe dizer que a teoria do crime é o estudo dos elementos que compõe o tipo penal, para que partindo desse pressuposto teórico seja possível a análise do comportamento humano na realidade fática.

Ao longo do tempo, diversas foram as teorias criadas a fim de conceituar o que seria o crime, baseado na ideia de que esse envolve necessariamente a exteriorização de uma conduta humana voluntária.

Vale dizer que embora haja uma consolidação de uma teoria finalista do crime, dentro do aspecto analítico, ainda essa está em constante evolução, tendo em vista que o Direito, enquanto ciência social encontra-se em desenvolvimento concomitante aos cenários das mudanças na sociedade.

Na segunda metade do século XIX, tem-se a insurgência do positivismo científico, que buscou a resolução de todos os questionamentos dentro do próprio âmbito do direito já que não vislumbrava qualquer interação com as demais ciências sociais.

Neste sentido tem-se o que se chama de conceito clássico do delito, com os principais representantes – Von Liszt e Beling – que seria “um movimento corporal (ação), produzindo uma modificação no mundo exterior (resultado) [...] fundamentava-se num conceito de ação eminentemente naturalístico, que vinculava a conduta ao resultado mediante o nexo de causalidade.” (BITENCOURT, 2014). No modelo clássico, havia uma clara distinção entre os aspectos objetivos e subjetivos, os quais ocupavam respectivamente as faces da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.

Nessa perspectiva, cabe pontuar que a tipicidade era encarada apenas por fatores meramente objetivos, sendo a proibição da conduta causadora do resultado, a antijuridicidade era a simples contradição formal e a culpabilidade, como a exteriorização da vontade, cabendo à esta o aspecto subjetivo do delito.

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Vale dizer, que a estrutura clássica, acompanhava o pensamento dominante da época, concentrado na figura do positivismo jurídico, que pretendia adornar o Direito com uma maior cientificidade, afastando dos juízos de valor e moral. Em certa medida, a finalidade era garantir segurança jurídica em virtude da total subordinação ao direito positivo, bem como prezando pelo formalismo, e o princípio da legalidade, tendo em vista a aplicação da norma sem a valoração atribuída pelo interprete.

Basicamente, se analisava a exteriorização do comportamento, através dos aspectos objetivos, tipicidade e antijuridicidade, para logo após analisar a vontade, a qual está ligada ao aspecto subjetivo da conduta e, no conceito clássico, à culpabilidade.

Todavia, o modelo clássico, positivista, deixou de responder aos anseios do direito penal, e, portanto, da própria sociedade, restando a necessidade criação de uma nova teoria geral do delito, dessa forma no início do século XX, sobreveio a filosofia neokantista, trazendo consigo a sua própria estrutura de delito.

Insta ressaltar, que o modelo neokantista não abandonou os princípios basilares da teoria clássica do delito, isso porque embora buscasse um juízo de valores aplicado ao Direito Penal, ainda prezava pela ideia da cientificidade do direito.

Houve uma substituição da coerência formal de um pensamento fechado em si, com os limites dentro do próprio direito para um conceito de crime voltado para os fins pretendidos para o Direito Penal e pelas perspectivas valorativas que o embasam (BITENCOURT, 2014).

Sendo assim, houve uma transformação dos elementos constitutivos do crime, a tipicidade passou a envolver também aspectos subjetivos, para além dos elementos normativos e objetivos que já a caracterizavam, a conduta por sua vez, aderiu para si uma necessidade de voluntariedade, diferente da vontade, que ainda integrava a culpabilidade, mas já não estava só, posto que se passou a compreender o conceito de reprovabilidade, e, por fim, a antijuridicidade que passou a ter um aspecto material, já que exigia-se a danosidade para que fosse computado o delito.

Nesse sentido, enfatiza-se que esse período igualmente é denominado fase teleológica do delito, em virtude da aderência dos juízos valorativos aplicados as categorias definidoras do delito.

Não há dúvidas de que o neokantismo superou o modelo positivista, de maneira a demonstrar a necessidade de aplicação dos valores, logo que esses estão inseridos em toda e

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qualquer realidade, constatando que o Direito não contém um objetivo em si mesmo que não aquele que reflete os valores da sociedade em que se encontra inserido.

O professor Cezar Roberto Bitencourt (2014) assim ilustra a intervenção do neokantismo no conceito do delito:

Enfim, o neokantismo patrocinou a reformulação do velho conceito de ação, atribuindo nova função ao tipo penal, além da transformação material da antijuridicidade e a redefinição da culpabilidade, sem alterar, no entanto, o conceito de crime, como a ação típica, antijurídica e culpável. Enquanto teoria do direito, como destaca Andrei Zenkner Schmidt, o neokantismo teve o mérito de constatar a necessidade de harmonizar a convivência entre ser e dever ser do Direito; e enquanto teoria do Direito pena, por sua vez, teve a grande virtude de superar a ideia de crime como um fenômeno físico causador de um resultado naturalístico: o crime é identificado axiologicamente por categorias jurídicas.

O passo posterior veio com o finalismo de Welzel, que ainda utilizando as três faces do delito, as modificou a partir do entendimento que a conduta abrange aspectos objetivos e subjetivos concomitantemente, não podendo separa-los no momento da análise do delito, e que a conduta só pode ser realizada consciente do fim a ser almejado.

Dessa forma, a tipicidade, onde se localiza a conduta, passou a apresentar dois vieses: o tipo objetivo e o tipo subjetivo, retirando a análise da vontade do campo da culpabilidade, que ficou somente com a reprovabilidade. Isso porque a conduta é entendida como um comportamento humano destinado à uma finalidade, havendo a intenção, o querer, caracterizador da vontade do agente.

Nessa toada, podemos dizer que o tipo objetivo seria identificado como a subsunção entre a conduta descrita na norma incriminadora e o comportamento realizado no universo fático, enquanto o tipo subjetivo se concretiza na análise no animus do agente, na existência de dolo e/ou culpa, com a finalidade daquele comportamento realizado.

Cabe dizer, que o Código Penal Brasileiro é filiado à essa corrente da teoria geral do delito, como se pode comprovar da análise rápida do erro do tipo, onde o erro sobre o dolo do agente afeta a tipicidade e não a culpabilidade, e tendo em vista que o mesmo foi instituído em 1940 e a teoria finalista foi elaborada em meados da década de 1930, comprovando mais uma vez a relação de inerência entre o Direito e os fatos históricos e sociais que o circundam.

Todavia, reforçando essa ideia, têm-se as teorias pós-finalistas, também conhecidas como modelos funcionalistas, que são caracterizadas pela normatização dos conceitos, bem como com as finalidades políticos-criminais, vale dizer que não se alterou o entendimento

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analítico do crime como ação típica, ilícita ou antijurídica e culpável, mas se flexibilizou a partir da aplicação das finalidades políticos-criminais trazidas pelos modelos pós-finalistas.

Dentro desse campo, têm-se duas vertentes representadas pelo funcionalismo teleológico de Roxin que se preocupa com os fins do Direito Penal, priorizando valores e princípios garantistas e com essa compreensão entende que os princípios que regem a política criminal não apresentam em si as soluções aos problemas reais, mas que a partir de sua aplicação aos casos in concretum chegará a conclusões específicas e adequadas as realidades.

Por outro lado, há a teoria do funcionalismo sistêmico de Jakobs, que se preocupa com a finalidade da pena, ou seja, com as consequências do Direito Penal, levando-se em consideração o sistema no qual o Direito Penal é inserido como preponderante ao próprio.

Há ainda a construção tomada pelo jurista argentino Eugenio Zaffaroni, que trata dentro do aspecto do finalismo, a teoria da tipicidade conglobante, quando da análise do tipo penal.

Dentro da ideia da tipicidade conglobante, entende-se que o tipo penal não pode ficar restrito a tipicidade formal da norma, tendo que ser compreendido e estudado de maneira mais ampla, englobando a conflitividade da conduta, ou seja, se a conduta produziu um conflito e uma lesividade no mundo fático.

Se da análise concreta do caso, notar-se que embora a conduta seja típica do ponto de vista formal, não produziu o conflito pretendido pela norma penal, a mesma não pode ser relevante ao direito penal, não sendo suficiente para que ocorra a atuação do Estado no sentido de coibir a ação.

É importante frisar, que Zaffaroni traz esse debate, dentro do entendimento que o direito penal exerce uma função política dentro do contexto social, e que, nesse ponto, para que ocorra a necessidade de aplicação do Direito Penal na vida do cidadão, é preciso existir a conflitividade da conduta.

Não existe a conflitividade da conduta quando faltar lesão ou perigo concreto relevante para o bem jurídico tutelado ou quando houver o consentimento ou aceitação da lesão ou da violação do dever de cuidado do sujeito passivo.

No mais, a tipicidade conglobante pretende entender o Direito como uma ciência una e, dessa forma, não poderia haver contradições entre as normas dos diversos ramos do

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Direito. Logo, não poderia o Direito Penal proibir uma conduta, comumente aceita ou determinada pelo direito Civil.

Por fim, deve se ter em mente que o Direito, enquanto ciência social, acompanha as mudanças ocorridas na sociedade e que, portanto, está em constante modificação e evolução.

4.2 Tipicidade

O crime para existir deve se basear numa conduta humana, sendo este o primeiro princípio a ser respeitado nullum crime sine conducta. Entretanto, o que vem a caracterizar a conduta, para que possa ser entendida como ação humana passível de ser tipificada?

A conduta pode ser entendida como comportamento humano voluntário que produz efeitos ou alterações dentro de certo contexto social, uma alteração do mundo exterior. Frisa-se aqui, que o comportamento é uma ação corpórea, e voluntária, Frisa-sendo então consciente.

Portanto, a consciência no ato de praticar determinado delito é mister para que ocorra sua possível culpabilização e punição. Nesse sentido, o agente para ser culpabilizado deve ter consciência de todos os aspectos do crime, e de todas as características agravantes que o circundam.

A conduta humana só passa a ter importância ao Direito Penal quando a mesma se amolda a um comportamento descrito em uma das normas penais existentes, ou seja, quando há a subsunção a um tipo penal, dessa maneira passa a se ter a possibilidade de existência da tipicidade, e, portanto do próprio crime.

Os tipos penais são enunciados que descrevem comportamentos penalmente relevantes, de maneira abstrata posto que visam a aplicação geral da norma a todas as pessoas que vivem na sociedade.

Majoritariamente, o núcleo do tipo penal é um verbo que indica qual comportamento que aquele deseja coibir ou ainda que se deva fazer. Dessa forma, podemos dizer que os tipos penais se limitam a dar uma descrição objetiva do comportamento proibido (BITENCOURT, 2014).

Vale dizer que a tipicidade é consequência natural do princípio da reserva legal,

nullum crimen nulla poena sine praevia lege, que está expressamente previsto no Código

Penal Brasileiro e para além, tendo característica de garantia constitucional, por sua previsão no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal.

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