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“Outras dores além do parto": um estudo de caso com mulheres vítimas da violência obstétrica

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“OUTRAS DORES ALÉM DO PARTO": UM ESTUDO DE CASO COM MULHERES VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA.*

Melissa Lins de Abreu Lange

“A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la.” (GALEANO,[?]).

Resumo: A violência obstétrica é uma realidade grave no país. Segundo a pesquisa

feita pelo Instituto Perseu Abramo, uma a cada quatro mulheres é vítima desta violência. A discussão acerca desta violência visa reconhecer os direitos de mulheres que decidem por um parto natural e humanizado dentro do sistema hospitalar, mulheres que reivindicam o direito e o respeito à sua escolha pessoal. Desta forma, a ideia geral deste artigo é promover o debate acerca da temática exposta. Para este fim, foi traçado o seguinte objetivo geral de pesquisa: compreender a percepção de mulheres que passaram pelo processo de parto normal/cesariana sobre violência obstétrica. Para se alcançar este objetivo, foram traçados três objetivos específicos: Identificar as características da violência obstétrica na percepção de mulheres que foram vítimas desta violência; identificar os fenômenos psicológicos manifestados em mulheres que vivenciaram a Violência Obstétrica; caracterizar a percepção de mulheres que sofreram a violência obstétrica sobre os efeitos do evento em sua saúde física e na do filho. Quanto à metodologia utilizada, a pesquisa definiu-se como exploratória, delineada como estudo de casos, utilizando-se de um questionário semi-estruturado como instrumento para coleta de dados. Participaram da pesquisa cinco mulheres, que passaram pelo processo de parto normal dentro de instituições hospitalares. Para a análise dos dados foi utilizada a técnica de análise de conteúdo, a qual permitiu a construção de três eixos de análise. Por meio desta pesquisa foi possível confirmar a existência de tal violência, e a dificuldade de se fazer valer os direitos que as mulheres têm diante de seu parto, como o direito a acompanhante, previsto em lei desde o ano de 2005. Fica evidente também na presente pesquisa o uso exacerbado da medicalização e de procedimentos técnicos sem embasamento científico, além das práticas discriminatórias e desrespeitosas às quais permeiam esta rotina. A banalização do sofrimento e a relação assimétrica entre médico-paciente também colaboram para a existência desta violência. Como resultado de tal violência na vida destas mulheres, foi percebido o surgimento de marcas físicas, como as cicatrizes no corpo e marcas psicológicas,como traumas e medos que influenciaram diretamente seus projetos de vida. Por fim conclui-se que embora haja campanhas acerca da humanização do parto, há a dificuldade de implantação das novas evidências científicas na assistência obstétrica vigente. Deste modo é necessário fomentar a promoção de debates e pesquisas acerca do tema para que se possa fazer valer os direitos destas mulheres.

Artigo apresentado como trabalho de conclusão de curso de graduação da Universidade do Sul de Santa

Catarina, como requisito parcial para obtenção do título de Psicólogo. Orientador: Prof. Vanderlei Brasil, Palhoça, 2015.

Acadêmica do curso de Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina. Endereço eletrônico:

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Palavras-chave: Violência obstétrica, parto, parto humanizado. 1 INTRODUÇÃO

A partir do final do século XX, segundo Diniz e Chacham (2006, p. 80) tem ocorrido uma discussão acerca do parto humanizado preconizando a mulher como a protagonista do parto. A ideia defendida é a de que este seria o modo mais saudável de parir tanto para a mulher quanto para o bebê. Este debate está fundamentado na Medicina Baseada em Evidências (MBE)1 que recomenda intervenções mínimas e

extremamente necessárias dado os aspectos negativos que muitas das atuais intervenções trazem para a mulher e o recém nascido.

A violência obstétrica, também reconhecida como violência institucional em maternidades, tem sua definição dada pelas leis venezuelana e argentina, onde encontra-se tipificada e reconhecida como crime cometido contra as mulheres, devendo ser prevenido, punido e erradicado. De acordo com esta definição:

A violência obstétrica caracteriza-se pela apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais da saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, causando a perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres. (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, DPESP, 2013)2.

Segundo a pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo, “o Brasil lidera o ranking de cesáreas na America Latina, segundo a Unicef, com mais de 50% de nascimentos através da cirurgia. A mesma pesquisa ainda cita que em 2010, 81,83% das crianças que nasceram via convênios médicos, vieram ao mundo por cesarianas. Há ainda, segundo os dados da pesquisa, hospitais particulares que apresentaram a taxa de 93,18% de cesarianas, segundo o Sistema de Informação de Nascidos Vivos (SINASC). A pesquisa também evidencia que para a OMS o índice preconizado de cesáreas é de 15%, configurando uma situação de epidemia os números apresentados no país" (BRASIL, 2011).

1 MBE- Movimento que se traduz pela prática da medicina em que a experiência clínica é integrada com a

capacidade de analisar criticamente e aplicar de forma racional a informação científica de forma a melhorar a qualidade da assistência médica. (LOPES, 2000, pg. 285).

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A obstetriz (parteira) Ana Cristina Duarte, que comenta a referida pesquisa acrescenta:

Quanto mais complicado for o parto, mais lucro o hospital terá. Anestesia, cirurgia, drogas, antibióticos, compressas, equipamento, equipe de enfermagem. Se rolar uma UTI neonatal por dois dias, já vai mais uma boa grana, quase a de um parto. E esses equipamentos todos da UTI estão pagos, precisam ser usados para gerar lucro.” (DUARTE, 2011)3.

O médico obstetra Jorge Kuhn, também comenta tal pesquisa, relatando que “ao procurar os gestores de grandes hospitais para implantar técnicas de redução de cesarianas, foi recebido com declarações como ‘por mim você pode cortar a mulher em quatro desde que me entregue um bebê bom’”(KUHN, 2011)4.

Constata-se a partir destes dados que a violência obstétrica é uma realidade grave no país. A pesquisa do Instituto Perseu Abramo ainda revela que uma a cada quatro mulheres (25%) declarou já ter sofrido violência no parto. Ana Cristina Duarte (2011) afirma que:

O número é bem maior do que 25% porque muitas mulheres não entendem que foram vítimas de violência. Quando a mulher está com 8 cm de dilatação, o médico faz uma cesariana para poder ir embora, alegando que o bebê está em sofrimento fetal. A mulher não faz ideia de que sofreu um processo de lesão física grave. Se cada mulher souber exatamente o que é violência obstétrica, e se tiver noção real do que acontece com ela, esse número no Brasil vai chegar a facilmente perto dos 70% (DUARTE, 2011,)5. Pulhez (2013, p. 534) menciona uma controvérsia referente ao tema quando questiona a respeito de mulheres que enxergam nos procedimentos rotineiros da obstetrícia adotados nos hospitais a real humanização da saúde-materno-infantil, pois não ser anestesiada ou ser levada a realizar um parto normal, quando o que se quer é uma cesariana, também pode ser encarado como um ato violento. Percebe-se então que a violência obstétrica se caracteriza muito mais pelo desrespeito ao desejo manifesto da parturiente do que pelo tipo de parto realizado. Entretanto, a reflexão que se busca fazer no presente trabalho diz respeito aos

3 DUARTE, Ana Cristina. Disponível em:

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4513&secao=396

4 KUHN, Jorge. Disponível em:

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4513&secao=396

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DUARTE, Ana Cristina. Disponível em:

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fundamentos científicos em que tais práticas estão embasadas, considerando a proposta da MBE.

A médica Hilca Espírito Santo (2015), fala acerca de um destes procedimentos: a episiotomia6. Esta alega que “a episiotomia é uma indicação

obstétrica feita há mais de um século”, no entanto, o debate sobre o tema traz em si evidências que contestam tantas intervenções. Como afirma Diniz (2015)7: “desde a

década de 80 existem evidências científicas sólidas indicando que a episiotomia traz à mulher mais danos do que benefícios”.

É importante ressaltar que as condições psicológicas que envolvem tanto a gestação, como o parto e o pós-parto são processos conhecidos e estudados pela ciência. Esta pesquisa, no entanto, busca levantar dados que sejam relevantes para reconhecer os fenômenos psicológicos que se desenvolvem em mulheres que sofreram Violência Obstétrica. Deste modo, a doula e educadora perinatal Adèle Velarini (2013) relata:

Existem reações em algumas mulheres que sofreram violências [violência obstétrica] muito sérias como uma episiotomia sem anestesia por exemplo. Elas às vezes desenvolvem comportamentos similares a vítimas de estupro mesmo, de ter muita dificuldade de aceitar o seu corpo, não ter nem mais coragem de se olhar, não deixar o marido chegar perto. A vida sexual fica comprometida durante muito tempo. (“A dor Além do parto”, 2013. 5’35”).

É também neste ambiente permeado por práticas invasivas, que há pouco tempo começam ser questionadas, que nascem muitos bebês. Reichert (2015), aponta que o nascimento é o primeiro registro do bebê e este fato irá marcar sua estrutura de um modo muito forte, para o resto da vida. Estes dados reforçam a ideia de que é necessário oferecer maior qualidade às gestantes e às crianças no inicio da vida como uma questão de saúde pública.

Deste modo, a discussão no contexto da violência obstétrica visa reconhecer os direitos de mulheres que decidem por um parto natural e humanizado dentro do sistema hospitalar, mulheres que reivindicam o direito e o respeito à sua escolha pessoal.

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Episiotomia- Procedimento cirúrgico feito no períneo da mulher no momento do parto. (BENTO e SANTOS, 2006).

7

Disponível em: http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/ser-mae/nao-me-corta-mulheres-imploram-mas-mesmo-assim-sao-mutiladas-durante-parto-normal/

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Mediante o exposto e considerando as questões encontradas na literatura, esta pesquisa teve como pergunta norteadora: Qual a percepção de mulheres que passaram pelo processo de parto normal ou cesariana acerca da violência obstétrica? Para contemplar essa questão, propõe-se como objetivo de geral compreender a percepção de mulheres que passaram pelo processo de parto normal ou cesariana sobre violência obstétrica. Como objetivos específicos, propõe-se: identificar as características da violência obstétrica na percepção de mulheres que foram vítimas desta violência; identificar os fenômenos psicológicos manifestados em mulheres que vivenciaram a violência obstétrica e caracterizar a percepção de mulheres que sofreram a violência obstétrica sobre os efeitos do evento em sua saúde física e na do filho.

Para fundamentar teoricamente o presente estudo, buscou-se publicações e artigos científicos, acessíveis somente em português, sem recorte de datas, com o intuito de fomentar a pesquisa pautada na realidade brasileira. A busca foi realizada na base de dados BIREME8. Foram encontrados 11 artigos com o

descritor “violência institucional/ maternidade”, dos quais 01 artigo aborda a violência obstétrica. Com o descritor “violência obstétrica”, descartando-se os duplicados, foram encontrados 14 artigos, destes, apenas 03 abordam a temática a ser pesquisada. Na busca com o descritor “medicalização do parto” foram encontrados, também descartando-se os duplicados, 19 artigos e destes 04 foram selecionados como subsídios para fundamentação desta pesquisa.

Dentre os artigos selecionados, o artigo “Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde” (Aguiar; D’Oliveira; Schraiber, 2013), aponta o reconhecimento dos profissionais de saúde a respeito das práticas discriminatórias e desrespeitosas no cotidiano da assistência a mulheres gestantes, parturientes e puérperas, fornecendo também reflexões acerca da banalização da violência institucional em maternidades.

Nagahama e Santiago (2005), no artigo “A institucionalização médica do parto no Brasil”, abordam o conceito de institucionalização da atenção à saúde, em especial, a saúde da mulher e, especificamente, na assistência institucional do parto. Indicam que o processo de hospitalização do parto foi fundamental para apropriação

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BIREME – Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde - Biblioteca virtual em saúde. (www.bireme.br)

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do saber e construção do conhecimento médico, no entanto, teve como consequência a medicalização do corpo feminino.

O artigo “A humanização e a assistência de enfermagem no parto normal” (Moura et al, 2007), contribui com a reflexão acerca do modelo biomédico vigente, refletindo na permanência ou aumento do número de procedimentos invasivos e intervencionistas durante o trabalho de parto e parto.

Aguiar (2010), também contribui com sua tese de doutorado: “Violência Institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero”, na qual debate acerca da “crise de confiança” entre médico e paciente, permeados por uma relação assimétrica em que o poder médico é valorizado, reforçando o sistema de sujeição das parturientes nos serviços de saúde.

Em síntese, pode-se dizer que pouco material foi encontrado acerca do fenômeno da violência obstétrica. Como se trata de uma discussão recente sobre o tema, recorreu-se a conteúdos publicados em redes sociais, documentários e sites da internet que promovem o parto humanizado e denunciam a violência obstétrica, além dos materiais elaborados pelo Ministério da Saúde: Parto, Aborto e Puerpério (BRASIL, 2001), Humanização do Parto no Brasil (BRASIL, 2002) e o dossiê Parirás com Dor (BRASIL, 2012), pesquisa que demonstra a gravidade desta violência.

Foi também utilizado como aporte para pesquisa o material resultante de um congresso online Nascer Melhor no Brasil9 em que profissionais trazem

informações e evidências científicas acerca dos benefícios do parto humanizado, tanto para mãe quanto para o recém-nascido.

A presente pesquisa, portanto, tem o intuito de dar “voz” e visibilidade a uma violência considerada invisível e visa contribuir na produção de conhecimento científico com o propósito de fornecer subsídios ao debate na área e sobre o parto humanizado, além de auxiliar na construção de saberes para a Psicologia, de modo que esta possa, entre algumas das possibilidades, intervir junto a mulheres que sofreram violência obstétrica, considerando todo o conjunto de fenômenos psicológicos envolvidos no processo de gestação, parto e puerpério, bem como,

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Congresso Nascer Melhor realizado em 2015 organizado por Otavio Fattori. (congresso gravado) – disponível em www.nascermelhor.com.br

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promover o empoderamento feminino para um papel ativo no processo de gerar e parir.

2 MÉTODO

Foi estipulado como critério de inclusão dos sujeitos na pesquisa a condição de serem mulheres que passaram pelo evento do parto normal ou cesariana, em um período entre 3 e 15 anos desde o evento do parto, para resguardar as entrevistadas frente às possíveis elaborações psicológicas e recuperação física diante do evento vivido. No entanto, duas mulheres, as quais tiveram um parto recente, entre 1 e 2 anos, procuraram a pesquisadora a partir de divulgação acerca da pesquisa publicada em uma rede social e se colocaram, voluntariamente à disposição para a entrevista, alegando que a partir de suas falas poderiam ajudar outras mulheres a não passarem por tais violências. Diante disso, a pesquisa foi realizada com cinco mulheres sendo que outras 3 mulheres foram contatadas por indicação de 1 doula10 e uma enfermeira obstétrica que fazem parte

dos contatos profissionais da pesquisadora. É importante salientar que as pessoas entrevistadas não têm qualquer vínculo pessoal com a pesquisadora.

Deste modo, a pesquisadora elaborou um texto que foi enviado via e-mail para as mulheres indicadas informando sobre o objetivo da pesquisa e convidando-as para a efetiva participação. Após convidando-as participantes aceitarem, os encontros foram agendados em ambientes que proporcionassem confiança, garantindo o sigilo por compreender se tratar de um tema que envolve questões emocionais e que poderiam vir a causar desconforto.

No dia da entrevista, foi entregue e explicado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o Termo de Consentimento para Fotografias, Vídeos e Gravações, solicitando que as entrevistadas, após compreenderem e concordarem com a participação na pesquisa, o assinassem. Em cada ocasião foi explicado sobre aspectos éticos da pesquisa como o sigilo, a preservação das identidades das

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Profissionais que acompanham mulheres em trabalho de parto, parto e pós parto, ajudando no alívio da dor dando suporte físico e emocional aplicando técnicas naturais para alívio da dor.

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entrevistadas, a guarda das informações e autorização para gravação de voz, assim como o direito de desistir da pesquisa em qualquer momento da mesma.

As entrevistas ocorreram individualmente e tiveram a duração de aproximadamente 1 hora cada, sendo reservada na agenda da pesquisadora 1 hora adicional em cada entrevista para eventuais necessidades de acolhimento ao sofrimento do sujeito de pesquisa. Os dados foram registrados por meio de gravação de voz.

Após a realização das entrevistas, as mesmas foram transcritas literalmente para que não se perdesse nenhuma informação e detalhes subjetivos percebidos no decorrer da mesma. Posteriormente, os dados coletados foram avaliados por meio de análise de conteúdo que, conforme Marconi e Lakatos (1990), é o meio pelo qual se possibilita descrever de modo sistemático o conteúdo que foi comunicado no decorrer do processo de sistematização das informações colhidas. As entrevistas foram organizadas em 3 eixos de análise, elaborados de acordo com os objetivos específicos. Também foram construídas categorias a posteriori, baseadas na análise das respostas das entrevistadas, buscando articular os dados obtidos com o referencial teórico abordado na pesquisa.

3 ANÁLISE DOS RESULTADOS

Este capítulo visa analisar os conteúdos obtidos nas entrevistas feitas com mulheres que se percebem vítimas da violência obstétrica. A análise não leva em consideração o fato de a violência ter ocorrido no primeiro parto ou segundo parto, mas considera as características e a quantidade da violência sofrida.

A seguir há uma tabela com o perfil das entrevistadas para melhor compreensão do perfil de cada mulher.

PERFIL DAS ENTREVISTADAS

Parturiente Idade Escolaridade Ocupação profissional N

o

filhos Tipo de Parto Idade dos filhos

S1 34 Fundamental

Completo Comerciante 1 Normal 11 anos

(9)

Superior

completo (2) 11 anos

S3 25 Ensino

Superior completo

Naturóloga 1 Normal 3 anos

S4 35 Ensino

Superior completo

Educadora

Física 2 Normal (2) 5 anos/ 1 ano

S5 28 Fundamental

Completo Autônoma 2 Normal (2) 6 anos/ 5 anos

Tabela 1- Elaboração da pesquisadora

As cinco entrevistadas têm sua experiência de parto normal em todos os seus partos, sendo que o processo de parto se deu em hospitais/maternidades de Santa Catarina (4) e São Paulo (1).

Como dito anteriormente, esta análise está dividida em 3 eixos e busca responder aos objetivos específicos da pesquisa. O primeiro eixo é denominado “violência obstétrica” e visa identificar as características da violência obstétrica na percepção de mulheres que foram vítimas desta violência. Dentro deste eixo constam 3 categorias: procedimentos técnicos desnecessários/inadequados, limites da dor e atendimento ao pós parto. A primeira categoria (procedimentos técnicos desnecessários/inadequados), está dividida em 7 subcategorias: impedimento de acompanhante, conduta inadequada, manobra de Kristeller, episiotomia/laceração, indicação de cesárea (eletiva/desnecessária), intervenções com finalidades didáticas; comentários/falas desqualificantes.

Na sequência, há o segundo eixo denominado “fenômenos psicológicos” e visa identificar os fenômenos psicológicos manifestados em mulheres que vivenciaram a violência obstétrica. Neste eixo constam 4 categorias: estresse/trauma, medo, constrangimento, desvalorização.

Por fim, há o terceiro eixo, denominado “consequências físicas da violência obstétrica”, o qual busca caracterizar a percepção de mulheres que sofreram a violência obstétrica sobre os efeitos do evento em sua saúde física e na do filho. Neste eixo há 2 categorias: saúde física da parturiente e saúde física do recém-nascido.

De modo geral, foi possível perceber que a violência mais recorrente e que aparece em todos os casos é o procedimento de episiotomia que, segundo Diniz e Chacham (2006), desde a década de 80 já existem dados demonstrando que tal

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procedimento só deve ser utilizado se houver evidência de sofrimento fetal ou materno, pois há risco de complicações e desconforto na cicatrização do local.

Em 4 casos, as mulheres descrevem os procedimentos médicos como episiotomia, manobra de Kristeller e uso de fórceps, entendendo-os como naturais naquele momento, mesmo sentindo dores e constrangimento durante o processo de trabalho de parto, parto e pós parto. Como aponta S2: “[..] o primeiro parto eu imaginava que era assim, né, bem nas mãos deles (estar bem cuidada) [..]”. As mulheres também demonstraram, durante a entrevista, que com as informações e debates acerca da violência obstétrica reconhecem-se hoje como vítimas dessa circunstância. Percebem que não foram só as marcas físicas que ficaram registradas em seu corpo, mas também reconhecem cicatrizes emocionais/psicológicas registradas em suas lembranças do momento. Como diz S3:

[..] eu estudei, participei de grupos de gestantes, fiz meu pré natal certinho, pratiquei yoga para gestantes, [..] era pra ser um momento lindo em nossas vidas [..] quando o dia chegou ficamos muito felizes e por mais que eu iria para um hospital público, eu estava bem, pois o XYZ era uma referência em parto humanizado [..] eu levei muitos pontos (episiotomia) que levaram meses pra cicatrizar, mas a pior cicatriz é bem mais profunda, foi no coração, na alma, nas lembranças.(S3)

Essas marcas levaram S1 e S2 a decidirem não ter mais filhos, embora desejassem isso antes e fizesse parte de seus planos familiares. O medo é presente quando se trata da possibilidade de percorrer o mesmo processo. As duas mulheres, S1 e S2, quando questionadas se mesmo com as informações atuais e a possibilidade de viver uma outra história seria possível repensar o desejo, têm como resposta emocionada, um não.

Em comum também nas falas e relatos das 5 entrevistadas aparece o desejo de contar sua história e falar sobre o tema delicado, como algo que traz alívio. Relatam o desejo de serem escutadas e poderem colaborar com a pesquisa no sentido de sentirem-se mobilizadas e alertar outras mulheres sobre a violência que vem sendo denunciada na assistência obstétrica. "Pode-se comparar esse desejo com a lógica das terapias psicológicas em que o paciente é colocado a falar sobre seu sofrimento para buscar a cura criando-se, assim, uma necessidade de vocalização das violações" (PULHEZ, 2013 p.531).

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3.1 VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Há um olhar que sabe discernir o certo do errado e o errado do certo. Há um olhar que enxerga quando a obediência significa desrespeito e a desobediência representa respeito. Há um olhar que reconhece os curtos caminhos longos e os longos caminhos curtos. Há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade. Esse olhar é o da alma. (BONDER, 1998 p. [?])

3.1.1 Procedimentos técnicos desnecessários/inadequados

No conceito de parto humanizado11, há uma cartilha em que se preza pela

qualidade do tempo e do atendimento à gestante, indicando que estes fatores interferem diretamente na saúde da gestante e do bebê que está para nascer. Este conceito de nascimento em respeito ao tempo do bebê e do discurso do empoderamento da mulher como protagonista do parto entra em conflito com a assistência hospitalar vigente. Diniz e Chacham (2006), atentam para esta assistência chamando-a de abordagem de linha de montagem, em que existem hospitais/maternidades nos quais faltam leitos, o que serve como justificativa à utilização de intervenções sem evidência científica. Uma fala importante no texto de Diniz e Chacham (2006 p.83) é a de um médico residente em que diz: “Deixar a mulher em trabalho de parto durante muito tempo num leito é uma perda de espaço e limita o número de casos que podem ser atendidos. Por isso induzem todos os partos.”

Neste sentido, a moral e a ética humana estão implicadas no atendimento. Ou se é fiel à política de atendimento e à burocracia hospitalar ou se é fiel ao conceito de humanização do atendimento. Entretanto, pode se perguntar se há espaço para tal fidelidade em meio à cobrança acerca das metas e normas hospitalares. O que fundamenta então o sujeito que burla as normas e preza pela qualidade no atendimento de seus pacientes? Temos então uma questão moral que está em pauta nesta decisão. Se por um lado há uma pressão pelas metas da

11 Parto humanizado – é um conceito em que visa o bem estar da mãe e do bebê e é a mulher que decide como

deseja ter o filho. É um processo que inclui toda a adequação da estrutura física até uma mudança de postura dos profissionais. (BRASIL, 2001)

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organização hospitalar, por outro lado há o posicionamento do médico diante do imperativo de sua consciência em fazer um bom atendimento.

Quanto à subcategoria impedimento do acompanhante, S1 e S2 passaram pelo processo de parto antes do advento da lei que prevê a presença obrigatória do acompanhante em todos os momentos do trabalho de parto, parto e pós-parto. Na fala de S2, percebe-se a norma vigente: “Eu pedi né (acompanhante), mas elas disseram não.” E respectivamente a mesma norma é vista na fala de S1:

[..] eu pedi companhia, meu marido X. também insistiu mas elas responderam que era norma do hospital que não queriam que ficasse nenhum acompanhante [...] ah! eu entrei 1h da manhã, fui ganhar no outro dia as 11h05. (S1)

A obrigatoriedade da lei só reforça a ideia de que é imprescindível para a saúde psicofisiológica da parturiente a necessidade da companhia de alguém de sua confiança. S5 conta:

Minha mãe estava do lado de fora do hospital juntamente com meu marido (ex-marido hoje), que tentava entrar para acompanhar o parto. Ele levou uma lei que dizia que eu poderia ter acompanhante, mas eles não deixavam ele entrar. (S5)

O abandono, a falta de escuta e as respostas ríspidas, ao pedido por companhia, são sentidos como aspectos principais deste sofrimento neste momento de fragilidade da parturiente. Este abandono pode ser retratado na fala de S1:

[...] eu me senti muito abandonada assim, sem atenção, até acho que se elas não quisessem, assim, a família, acho que o próprio hospital teria que ter as pessoas que tá lá pra ajudar, e não tinha assim, nenhuma delas me deu assistência, carinho. (S1)

Abaixo, na fala de S5, pode-se ver novamente o abandono e a presença da norma, com a diferença de que na época de seu parto já havia a lei que garantia a presença de acompanhante. Nas palavras dela:

Por volta de meia noite e trinta me colocaram em um banheiro com uma cadeira e um chuveiro e falaram pra eu ficar lá, estava com dores de contração (sozinha) [..] eu fiquei totalmente sem comunicação externa. Uma hora me levaram para uma sala de parto, com duas enfermeiras, nesse momento a dor já aumentava e eu pedia, por favor, para deixarem minha

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mãe entrar, sem sucesso, falavam que não podiam. Que era regra do hospital. (S5)

Foi no ano de 2005 que entrou em vigor uma lei12 que determina a presença de acompanhante desde o momento do trabalho de parto, parto e pós-parto, entendendo que a presença de alguém que seja de confiança da mulher traz conforto e segurança neste momento de fragilidade em que se encontra a parturiente. O depoimento acima de S5, ainda demonstra a dificuldade de se fazer valer a lei, mesmo depois da obrigatoriedade desta dentro das instituições. O que se pode questionar, segundo Aguiar (2010), é se, além da precariedade dos atendimentos, as instituições têm uma infraestrutura eficiente para receber e acomodar este acompanhante, sendo que na maioria dos hospitais os leitos são compartilhados. Além deste fator, faz-se também necessário avaliar se há intenção de fato em mudar esse quadro, que tira a mulher de uma posição de submissão e a torna um sujeito de direitos. Deixar com que a mulher torne-se a protagonista do parto, como sugere o conceito de parto humanizado, tem como consequência direta: tirar alguém que ocupa este lugar de destaque da cena, no caso, o médico, relegando-o a um papel secundário. Se há na medicina um status que valida o médico como centro do saber, como seria delegar a outro esse papel, sem que este se sinta ofendido ou diminuído? Qual o real valor desta moeda de troca? Eis aí um trabalho relevante ao efetivo cumprimento do parto humanizado.

Em relação a subcategoria conduta inadequada, de acordo com BRASIL (2001), a atenção adequada à mulher no momento do trabalho de parto representa um passo indispensável para garantir que ela possa exercer a maternidade com segurança e bem estar.

Neste sentido, há uma lógica clara, de que o inverso desta afirmação seria contraproducente e o resultado tão claro quanto à lógica apresentada, como fica evidente na fala de S1: [..] “e daí tiraram meu braço de lugar, por causa de fazer força né, eu acho que elas tentaram me ajudar mas acabaram atrapalhando né, na verdade.[...] deslocaram meu ombro”. E também na fala de S2: “Aí assim, o médico chegou e a coisa mais forte, assim, é o hálito dele de cachaça, assim.[...] depois que

12 Lei do acompanhante – Lei N. 11.108, de 2005: garante que uma pessoa escolhida da parturiente a acompanhe

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o bebê nasceu ele passou assim por mim e bah! (referindo-se ao cheiro da bebida).” Ainda como exemplo, a fala de S3:

Elas mostraram com um espelho, que o T. estava quase saindo, eu já enxergava a cabeçinha dele, o cabelinho. [..]. Mas a médica mandou empurrar. Eu empurrei, com raiva dela, e assim saiu à cabeçinha! Aí ela mandou me deitar pra trás, eu fiz isso, e sem esperar a próxima contração, ela simplesmente puxou, arrancou meu filho, com a ajuda das duas mulheres do lado dela. Foi horrível. A pior coisa que já vivi na minha vida, uma sensação sem igual. (S3)

Para Schraiber (2008, apud Aguiar; d’Oliveira; Schraiber, 2013), a perda da ética, que significa um interesse de cuidado para com o outro, como sujeito inteiro e não somente como corpo biomédico, conduz ao fracasso técnico e prático, podendo engendrar a violência (transformando o sujeito em objeto), em função da dependência e legitimidade do saber e práticas envolvidos. Sabe-se que a autoridade médica está diretamente implicada acerca das decisões técnicas, entretanto, como afirma Pontes et.al (2014), a equipe que assiste a mulher deve ser capaz de acolher não só a mulher, mas sua família, de forma a respeitar o significado deste momento, e permitindo que a mulher exerça sua autonomia materna, facilitando a constituição do vínculo entre equipe e gestante e garantindo a prática de ações que valorizem a humanização da atenção no parto institucionalizado.

Em relação a subcategoria manobra de Kristeller, que consiste segundo o BRASIL (2001), realizar uma pressão no fundo do útero durante o período expulsivo com a intenção de acelerar o nascimento, ela é ainda, para BRASIL (2001), consagrada e defendida por muitos obstetras, provocando desconforto na mulher e também podendo ser perigosa para o útero, o períneo e o feto. Pode-se perceber os efeitos desta manobra nas falas de S1: “A minha barriga né, daí elas apertavam a minha barriga com o cotovelo, tinha bolas na minha barriga. (se referindo aos hematomas deixados depois do parto)”. Enquanto em S2, percebe-se uma fala que pode representar mulheres que desconhecem as práticas adotadas durante o manejo dos partos: “[..] na hora da expulsão que ele pediu pra fazer a .. tem um nome né? Pra subir assim em cima da barriga, mas também elas tavam fazendo o que ele pediu, mas eu também não imaginava que isso existia né.”.

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Conforme aponta Reis (2005, apud Brasil, 2012), a manobra de Kristeller é ineficaz, acrescentando que esta é reconhecidamente danosa à saúde e causando à parturiente o desconforto da dor provocada e também o trauma que se seguirá indefinidamente. Na declaração da OMS (1996), também aparece o pedido de cautela sobre a prática alegando que:

A pressão no fundo do útero no período expulsivo é classificada como “prática em relação à qual não existem evidências suficientes para apoiar uma recomendação clara e que devem ser utilizadas com cautela até que mais pesquisas esclareçam a questão” (OMS, 1996, apud BRASIL, 2001).

De acordo com a subcategoria episiotomia, que é também considerada uma prática rotineira dentro dos procedimentos adotados durante o parto, Bento e Santos (2006), apontam que a episiotomia de rotina tem sido considerada por vários autores como uma forma de mutilação genital, e mesmo como violência de gênero cometida pelas instituições e profissionais. Seguem depoimentos de S1, S2, S3 e S5 acerca deste procedimento realizado em seus respectivos partos: S1:

“[...] o meu é bem grande (corte) [...] eu tive muitos pontos porque eu tenho marcas ainda. Ainda dá pra sentir aquela ondulação, aqueles pontos assim da cicatrização, aqueles pontos mal feitos, então isso eu sinto sim. (referindo-se ao incômodo)”. (S1).

É importante ressaltar que faz 11 anos que S1 fez o parto. Na fala de S2, vê-se a imprudência associada à má prática: segundo esta: “foram muitos pontos. Foi torto. Um lado pra cá e outro lado pra lá. Ele cortou dos dois lados e tipo, ele tava bêbado né. Tava numa festa, não me lembro. O parto foi umas 4 da manhã [...]”. E ainda conforme S3: “Aí eu perguntei se iam ser muitos pontos, e ela respondeu (bem ríspida): não tem nem como saber! Então, essas foram as únicas

palavras que trocamos! Me senti humilhada, um trapo.” e ainda na fala de S5, a repetição da técnica, associada ao descaso da sensibilidade da parturiente. S5: “Fizeram a episio. 7 pontos. Tudo sem anestesia. Eu não falava nada. Só queria que acabasse logo”.

Bento e Santos (2006) também apontam que no Brasil, praticamente todas as parturientes são submetidas à episiotomia mesmo sabendo-se que hoje este é um procedimento que deve ser utilizado em, no máximo, 10% dos partos e deste modo os autores concluem que então todo o restante de episiotomias são

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realizadas sem qualquer indicação clínica e sustentação científica, a não ser que ainda como citam, os mesmo autores, as opiniões pessoais, sejam consideradas indicações. Interessante observar nas afirmações de Diniz e Chacham (2006) que ressaltam que os médicos não fazem a episiotomia de rotina por serem indiferentes ao sofrimento feminino ou por ignorarem as evidências científicas e sim que é uma questão cultural. Além disso, para Bento e Santos (2006), a prática da episiotomia está ligada a uma questão de gênero, associada ao “ponto do marido”, “técnica” utilizada para dar um “ponto a mais” no períneo com ensejo de fazer a entrada da vagina ainda menor depois do parto, implicando em uma questão segundo os autores “virginal”, supondo-se, segundo os mesmos que isto seja aprazível a homem.

De acordo com a subcategoria indicação de cesárea eletiva/ desnecessária tem-se a fala de S5:

A minha médica obstetra na época, ela tinha me indicado cesariana porque meu bebê era muito grande [...] ela falou: seu marido é muito grande e você é muito pequena e então você vai fazer uma cesariana, e então ela escreveu isso na minha carteirinha. Eu estava indo pro sexto mês. E ela disse que mais adiante ela iria marcar a data (da cesárea). (S5)

Levando em consideração os apontamentos de Victora et.al (2011, apud BRASIL, 2012), quando esta diz que embora haja evidências de que as cesarianas estejam associadas com o aumento de número de mortes maternas, não há sinais de que o aumento destas cirurgias esteja sendo reduzido. Há também os apontamentos de Duarte [?]13, quando esta afirma que bebê grande não é indicação

de cesariana. A mesma autora também afirma que o ultrassom não é uma tecnologia apropriada para cálculo de peso, pois o erro em relação à estimativa de tal pode chegar a 20% o que corresponde quase 1kg de diferença. Ainda resta a dúvida: Como saber o peso real do bebê aos 5 meses de gestação? É possível ter como parâmetro o genótipo e fenótipo dos pais?

Em relação à subcategoria Intervenções com finalidades didáticas, conforme aponta BRASIL (2001), a formação dos profissionais está voltada a compreender o parto, a gestação e o puerpério como um processo

13

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predominantemente biológico onde o patológico é mais valorizado. Ainda segundo BRASIL (2012):

Submeter uma mulher a procedimentos desnecessários, dolorosos, com exposição a mais riscos e complicações, com a única e exclusiva finalidade de antecipar o exercício da prática desse procedimento em detrimento do aprendizado do respeito à integridade física das pacientes, bem como seu direito inviolável à intimidade é considerado, no contexto dos direitos reprodutivos, violência obstétrica de caráter institucional físico e, não raro, sexual. (BRASIL, 2012).

Percebemos a manifestação desta violência na fala de S3:

Na sala de parto levei um susto, havia muitas pessoas, todas colocando jalecos às pressas, empurrando aqueles carrinhos cheios de instrumentos, parecia uma cena de urgência, como se eu tivesse chegado numa urgência, morrendo. Ninguém veio falar conosco, ninguém se apresentou. Pediram pra eu subir num local onde seria o nascimento do meu filho. Havia uma barra de metal pra eu agachar e me segurar. (S3)

Na fala de S3, fica evidenciada a impessoalidade no tratamento da parturiente bem como a falta de esclarecimentos prestados sobre o processo. Tal fato, além de poder se configurar como uma situação ansiogênica desqualifica a mulher como uma das protagonistas do evento do parto.

De acordo com a subcategoria comentários/ falas desqualificantes tem-se duas falas de S2 e em seguida uma fala correspondente à experiência de S3.

Aí veio à enfermeira dizendo: vira pro lado e fica quieta. Gritando! Eu disse: não vou virar porque não é o lado certo, falei. E ela disse: há é assim! Eu vou chamar o médico e vou falar tudo pro médico. Eu disse: claro! Eu quero o médico agora!! Ainda assim demorou. Ela não chamou o médico. (S2)

Ainda na fala de S2: “Aí a enfermeira assim: essa daí já é quarto filho. Ela já esta larga!” (referindo-se a outra gestante que ocupava a mesma sala). Já na fala de S3: “A enfermeira disse assim: quanto mais ela gritar mais vai esperar. Elas são escandalosas. Fica tranquila, ela vai esperar igual.” (referindo-se à gestante que chegou com dores depois de S3).

Nestes relatos percebe-se a banalização do sofrimento da mulher parturiente e também a falta de treinamento adequado dos profissionais para lidarem com a dor e sofrimento do outro. Além disto, no caso de S2, entra em voga, como aponta Aguiar (2010), a visão paternalista em que o médico é a autoridade vigente e

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responsável pela ordem do hospital. No segundo relato de S2 também aparece a visão estereotipada da sexualidade feminina, em que o parto vaginal pode vir a deixar, como ressalta Diniz e Chacham (2006), os músculos vaginais flácidos, comprometendo os atrativos sexuais da mulher. E no caso de S3, pode-se reconhecer o abuso do poder dentro da instituição em que o enfermeiro pode escolher conforme seus critérios pessoais quem deverá ser atendido, evidenciando a banalização do sofrimento da parturiente.

3.1.2 Limites da dor

Em relação a esta categoria, pode-se questionar até onde as parturientes podem suportar a dor dos processos que envolvem o parto. Pode-se supor que a assistência obstétrica no decorrer da história tenha se tornado unilateral, no momento em que a mulher deixa de ser ouvida em suas necessidades e o uso da tecnologia se sobrepõe à relação médico-paciente. O mesmo pode ocorrer no conceito de parto humanizado se a relação médico-paciente for novamente negligenciada. Pois, no uso de uma cartilha que preza o mínimo de intervenções, quem dita as normas para a utilização deste mínimo? Qual o limite da dor para cada paciente, para que se possa intervir de modo adequado? Se por hipótese, as mulheres não puderem ainda ser ouvidas em seus apelos, dores e limites, a relação não passaria novamente a se tornar unilateral?

A ocorrência desta hipótese pode ser evidenciada nas falas de S4:

Eu dizia pra ele: por favor faz o corte, faz o corte, por que eu não vou aguentar, e ele dizia: não, já ta aqui a cabeça dele eu to vendo. E eu dizia: Eu sei, mas não vai sair, faz o corte que não vai sair, vai rasgar tudo. Eu to com medo. E eu senti medo de rasgar tudo mesmo né. (S4)

E ainda na fala de S4:

Quando ele passava, eu pegava a cabeça dele e dizia: por favor, corta, faz o corte, faz o corte pequeno, faz o corte do jeito que tu quiser. E ele dizia, não eu não vou cortar, eu não vou cortar. Daí a gente ficou um tempinho assim. E pra mim isso pareceu uma eternidade. (S4)

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Como aponta BRASIL (2001), reconhecer a individualidade é humanizar o atendimento além de permitir ao profissional criar com cada parturiente um vínculo e perceber suas necessidades e a capacidade de lidar com o processo de nascimento. No entanto, ainda cabe ao médico reconhecer e saber quando e como utilizar os procedimentos técnicos disponíveis para cada caso. Ainda assim, é necessário que o que podemos chamar de “escuta humanizada” não se torne uma escuta viciada, no sentido de que a escuta respeite os interesses e necessidades específicos da parturiente. Se uma nova cartilha for construída dentro dos preceitos do parto humanizado, tal critério, qual seja, o de respeito à singularidade do caso é que deve ser o norteador das práticas.

Não há que se duvidar do abuso do uso das tecnologias, mas também não seria a dor, o apelo, um mediador (medir-a-dor), um alerta para negociação e um uso adequado da tecnologia disponível? No caso de S4, seu filho nasceu com a clavícula quebrada e a pediatra que fez o diagnóstico associou o “acidente”à saída do canal de parto. Segundo S4, nas palavras da pediatra, seria um evento muito raro de acontecer.

3.1.3 Atendimento ao pós-parto

Em relação à fala de S1:

eu tive sorte de ter pego uma enfermeira muito boa, depois que Y. nasceu. [..] as vezes ela andava com ele para eu poder descansar um pouquinho. Ela disse: eu não posso fazer isso, ela assim pra mim né, eu só vou fazer porque eu tô com pena de ti, porque tu precisa descansar.(S1)

Na fala de S1 pode-se perceber uma das características eminentes da violência obstétrica que é a invisibilidade. Neste caso, ela aparece, como cita Aguiar (2010), na forma de uma banalização do sofrimento, em que a violência é tão naturalizada que o bom atendimento é visto como algo excepcional. Neste caso, a presença do acompanhante foi negada mesmo depois do parto e a parturiente encontrava-se com o ombro deslocado e impossibilitada de cuidar sozinha do bebê, sendo que o suporte dado a parturiente foi visto pela mesma como um ato de bondade.

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Depois veio uma enfermeira [...] fez um carinho na minha cabeça, parecia que ia chorar, e disse: teu parto ia ser perfeito, você não ia ter laceração se elas (médica e enfermeira) não tivessem puxado o bebê, se ela esperasse mais uma contração, teu filho ia sair e não ia ter laceração! Eu não sabia nem o que dizer, não saiu nem uma palavra da minha boca! E logo a enfermeira saiu! (S3)

Neste caso o que fica evidente é a relação entre a postura da autoridade médica que mesmo equivocada não foi questionada e uma das enfermeiras mesmo tendo conhecimento acerca do processo se vê imobilizada em sua ação. Deste modo, mais uma vez a violência torna-se calada e invisível.

3.2 FENÔMENOS PSICOLÓGICOS

“É preciso olhos para ver e ouvidos para ouvir” (MATEUS 13.9).

3.2.1 Estresse/ trauma

Em relação a esta categoria tem-se a fala de S1: “Eu tava ali tão “fora” (no momento do parto), eu acho, que na verdade eu senti tanta coisa, ‘que eu nem tava ali’, foi muito, muito ruim e depois de 3 meses daí apareceram outras coisas [..]” S1 ainda acrescenta: “Meu Deus! Fico nervosa, como se tivesse passando tudo de novo, que nem contando pra você aqui, vou ficando tensa”. Esta memória, de 11 anos atrás, ainda tem o efeito de despertar em S1 emoções que a mobilizam até hoje. Em suas falas pode-se perceber o nível de estresse e esgotamento emocional que a parturiente pode chegar ao passar por tantos procedimentos violentos.

Para Schaefer et. al (2012), a exposição a eventos traumáticos vulnerabiliza o indivíduo ao desenvolvimento de diversas psicopatologias. Esta condição pode ser verificado na fala de S1:

Daí me deu convulsão, daí o médico falou que deve ter sido do estresse todo que eu passei na hora do parto [...] daí eu fiquei um ano recuperando, tentando recuperar porque daí não podia ficar sozinha, não podia trocar fralda, porque eu trocando a fralda do Y. me deu convulsão, sorte que eu não tava com ele no colo.(S1)

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A reflexão que se pode fazer se dá no sentido de imaginar que se a própria violência obstétrica é considerada invisível, como reconhecer as marcas psicológicas decorrentes desta violência? Segundo a pesquisa feita pelo Instituto Perseu Abramo, uma a cada quatro mulheres (25%) declarou já ter sofrido violência no parto. Qual seria o real número se as marcas emocionais deixadas após o parto também fossem contabilizadas?

3.2.2 Medo

O medo apareceu na fala de S1 quando esta se posiciona em relação ao desejo de ter mais filhos. De acordo com a mesma: “Eu não penso em ter outro filho. Eu tenho medo por causa dessa história, eu tive vontade, mas hoje não tenho mais por conta do medo, desse trauma.”

Para Dalgalarrondo (2006, p.109),

O medo é um estado de progressiva insegurança e angústia, de impotência e invalidez crescentes, ante a impressão iminente de que sucederá algo que queríamos evitar e que progressivamente nos consideramos menos capazes de fazer.

Em S2 o medo de engravidar novamente perdurou por quase 1 ano, e este medo estava diretamente relacionado ao evento de seu parto. Como S2 também sofreu violência em seu segundo parto, desistiu de ter mais filhos. De acordo com S2: “[..] eu queria ter mais um filho, mas no fundo eu não tenho vontade porque justamente, por causa da violência, medo daquela dor, enfim, eu queria mais um.” Em ambos os casos a violência afetou diretamente no desejo de ter mais filhos.

As emoções, os sentimentos, embora sejam subjetivos e imensuráveis, podem se equiparar nos casos de S1 e S2. Para as duas, o registro da violência alterou diretamente seus projetos de vida.

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A revolta sentida por uma situação de injustiça e a incapacidade de se opor a essa situação criou em algumas destas mulheres o sentimento de indignação. O estado de vulnerabilidade em que se encontravam reforçou a dificuldade de se posicionar diante da equipe de assistência e é deste modo que se estabelece uma relação assimétrica entre profissionais e parturientes.

Nota-se este fato na fala de S3: “eu senti e ainda sinto, muita raiva da médica!”. Ainda para S3:

Parece que tenho ‘algo engasgado’, um grito de raiva preso em mim. E quando vejo amigas gestantes, que não lêem, não buscam informações, eu fico muito triste. Eu choro quando vejo o desfecho que já previa que ia acontecer. (S3)

Este sentimento de indignação também é relatado por S4:

Aí eu vejo muito esse discurso né, de não cortar, [...] há uma crítica enorme sobre essa coisa do corte que é desnecessário, que é uma violência. E pra mim, no meu caso, a violência foi o desrespeito da minha vontade naquele momento. Eu me senti lesada, por não ter sido escutada. (S4)

No caso de S3 pode-se supor que há uma questão para ela que fica em aberto, algo que não foi bem elaborado em sua história de parto. Algo que pode “contaminar” suas lembranças acerca de seu parto por toda sua vida. Neste sentido, pode-se pensar no papel fundamental que tem o trabalho da psicologia. A psicoterapia poderia auxiliar S3 a rever sua história e recontá-la sob um outro viés, sem negar a realidade da violência da qual foi vítima, pois possibilita o uso de ferramentas que promovem a reflexão, visando a saúde emocional de S3 e de seu filho. S3 ainda acrescenta: “tenho a impressão que meu sentimento de raiva afetou e afeta meu filho até hoje. Sinto como se ele sentisse que foi arrancado, que não o respeitam.” Diante disto, os autores Verny e Weintraub (2014, p.109) podem validar a fala de S3 ao apontar que:

Os fatores pré e perinatais (depois do nascimento), vão criar uma pré-disposição, uma espécie de sensibilidade psíquica semelhante a uma sensibilidade alérgica numa pessoa que, dependendo de acontecimentos posteriores, podem diminuir e nunca se manifestar como problema, mas também podem se exacerbar e afetar adversamente a personalidade.

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Deste modo se vê a importância de se prezar a qualidade do atendimento ao parto, a mulher, e, sobretudo a qualidade em relação ao atendimento e recebimento do recém-nascido.

Na fala de S4, nota-se o quanto uma “escuta” sensibilizada, em consonância com o sujeito que sente a dor, pode ser fundamental para a saúde psíquica do sujeito. Neste caso, S4, embora tenha escolhido e tido um parto humanizado, sente-se violentada pelo fato de não ter sido ouvida. Fato este que também marcou sua história de parto, fazendo-a reviver o sentimento de indignação cada vez que lembra deste fato.

3.2.4 Constrangimento

Nota-se no atendimento padronizado, que o sujeito não é pensado em relação à sua individualidade. Uma situação relatada por S3 exemplifica este modelo de atendimento: “Apareceram duas enfermeiras. Pediram pra eu usar uma camisola. Me senti extremamente constrangida, pois a camisola era aberta, mal cobria meus seios, muito menos o resto do meu corpo.”

Além de todos os sentimentos naturais, advindos com as dores características do parto, as mulheres ainda precisam lidar com as adversidades causadas pela falta de singularidade dos atendimentos. S3 ainda precisou caminhar pelo hospital até a sala de parto, com esta vestimenta. Além da dor física, precisou lidar com toda a vergonha sentida pela exposição de seu corpo enquanto caminhava. Embora se saiba da necessidade da padronização de vários procedimentos no âmbito hospitalar, por necessidades técnicas na maioria das vezes, a situação vivenciada por S3 indica a falta de um atendimento que escute e respeite as necessidades singulares da parturiente, pois mesmo se respeitando as normas hospitalares talvez se pudesse encontrar uma alternativa que evitasse o constrangimento pelo sentimento de exposição vivida na ocasião.

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A desvalorização foi um outro sentimento vivido por uma das mulheres entrevistadas, S1 relata: “na verdade eu não sei nem usar a palavra porque, não sei nem dizer, horrível né, não dão valor, não dão carinho, não agem como ser humano, tratam a gente como objeto talvez, como se fosse mais um.”

Estes eventos vivenciados durante o processo de trabalho de parto e parto são responsáveis por gerar uma série de emoções, muitas vezes nunca experimentadas por algumas mulheres. De acordo com Gutman (2013, p.95), “as mulheres não sofrem por causa das contrações. Sofrem quando ficam sozinhas, humilhadas, maltratadas, ameaçadas ou atemorizadas.” Cabe aqui fazer a seguinte reflexão: podem as emoções como a solidão, o medo, a indignação e o constrangimento, somadas as adversidades do ambiente, influenciar no processo de parto destas mulheres? Tornando-o difícil e influenciando de modo a gerar complicações no decorrer do processo, que de modo natural, respeitado em sua natureza fisiológica ocorreria sem adversidades?

3.3 CONSEQUÊNCIAS FÍSICAS DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar. (BRECHT, [s.d.] [p.?]).

3.3.1 Saúde física da parturiente

Em relação a esta categoria, percebe-se nas falas das entrevistadas que o evento do parto fica difícil de ser esquecido, pois a marca física suscita a memória dolorosa da violência. Como indica a fala de S1:

A amamentação foi bem difícil, eu não conseguia amamentar, eu não conseguia segurar ele pra amamentar, por causa do ombro, a minha barriga não podia tocar, porque tinha três, quatro bolas (hematomas), eu não conseguia apoiar ele em mim, então foi bem complicado assim, bem difícil. Até hoje tem coisas que eu não posso fazer por causa do ombro né. (S1)

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Na fala de S2 tem-se a mesma impressão (em relação à cicatriz deixada pela episiotomia): “fora que ele não fez assim (reto) e foi meio torto e quase que foi até a outra parte (ânus). Então, quando vou ao banheiro assim tenho que ser bem cuidadosa porque machuca. Rala sabe. Até hoje. (suspiro).”

Embora o parto possa ser considerado um marco por si só na vida de uma mulher, por causar mudanças hormonais e corporais, há ainda um caminho de busca de equilíbrio entre os desejos próprios da mulher e as necessidades de um bebê. As consequências de uma violência podem deixar marcas psicológicas, as vezes mais dolorosas do que as físicas, por outro lado, as cicatrizes no corpo, podem mexer com a autoestima, a sexualidade e a autoimagem da mulher durante muito tempo em sua vida. As marcas físicas remetem ao ocorrido. Logo, se as emoções podem gerar reações corporais, o contrário também pode ocorrer.

3.3.2 Saúde física do recém-nascido

A violência com os recém-nascidos é entendida como a aplicação de procedimentos desnecessários e questionáveis quanto à sua atuação benéfica. A MBE atesta que muitas intervenções são dispensáveis e, em sua maioria, não trazem nenhum benefício para o recém-nascido.

Fernandes (2012) destaca a administração de colírio (nitrato de prata) aplicado nos primeiros minutos de vida, procedimento este que foi introduzido em 1881, para o controle de uma espécie de conjuntivite bastante grave, que é contraída no momento do nascimento no parto normal, a partir do contato com secreções genitais maternas contaminadas com a bactéria clamídia, que era comum naquela época. Ainda para Fernandes, (2012), o procedimento então passou a ser utilizado em todos os hospitais e continua sendo assim até hoje.

A mesma autora faz dois questionamentos acerca deste tema: Por qual motivo, bebês que nascem por cesárea, sem chances de adquirir a doença continuam a receber o colírio? Além disso, não seria mais benéfico para a criança avaliar antecipadamente a contaminação por clamídia da mãe, de modo a aplicar o colírio apenas nos casos necessários?

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Na fala de S3, o uso deste procedimento deixa evidente o efeito deixado por ele: “Meu filho teve uma reação alérgica do colírio que colocaram nos olhinhos dele logo após o parto”.

Quanto às consequências causadas pelo uso do fórceps, temos o depoimento de S2 acerca do filho que teve um diagnóstico de deficiência intelectual:

[..] é que eu fiquei preocupada e tal (referindo-se aos hematomas deixados na cabeça da criança no momento do parto) e depois eu fui saber que já aconteceram vários acidentes com ele em relação às crianças, porque ele usava muito o fórceps, bêbado e tal. [..] tanto que depois no Z. (filho), os neurologistas cogitaram que poderia ser do próprio parto assim, enfim. (S2)

Abaixo, percebe-se na fala de S4 a escuta viciada dos profissionais, no sentido de tratar os apelos da mãe ou “mãezinha”, como às vezes os profissionais se referem às mulheres, nos pedidos de ajuda, como um exagero por parte da mãe:

Aí ele chorou a noite toda, chorou de manhã, chorou à tarde, chorava pra trocar a fralda, chorava para trocar de roupa, chorava pra mamar. Aí eu vi que tinha alguma coisa errada. Cada vez que eu pegava pelos ombrinhos eu sentia um som. Aí chamava as enfermeiras e elas falavam: não, isso não é nada, isso é normal. Bebês choram assim mesmo, você tá exagerando mãezinha [..]. Ele passou por três pediatras. Elas examinaram ele inteiro e diziam que ele tava bem. Aí veio uma outra médica, mais experiente. [...] Aí ela botou a mão no ombrinho dele e falou: é gente, a gente tem que escutar mais essas mães né, porque ele tá com a clavícula fraturada. [..] hoje ele tá com quase 2 anos e está fazendo fisioterapia porque ficou com um encurtamento no pescoço. Pelo que falei com a pediatra, ela associou bem (a quebra da clavícula) à saída final do parto. (S4)

No caso de S5, nota-se como a falta de informação e comunicação entre a equipe e a mãe que utiliza os serviços do hospital podem ser prejudiciais e trazerem sérias consequências. Segundo S5, o:

Pediatra que atendeu o K. no hospital não havia nos dito que ele tinha ficado sem respirar e que precisou ser ressuscitado, somente dizia que tinha nascido cansadinho [...] Muitas informações ficaram faltando e isso prejudicou o desenvolvimento cognitivo de K.

Reichert (2015) fala que ao se nascer fica como que impresso a mensagem de paz ou violência em que o bebê é recebido, enquanto que, para Luzes (2015), a “vida imita” a gestação e o nascimento, afirmando que todo este

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processo tem peso no decorrer da vida do sujeito, e poderia vir a afetar de modo inconsciente seus comportamentos.

Verny e Weintraub (2014) corroboram essa afirmação apontando que o bebê reage mal a luzes ofuscantes, bips elétricos e a atmosfera fria e impessoal associada tão frequentemente ao parto médico.

Neste caso, de acordo com os autores supracitados, se no recém-nascido há uma grande sensibilidade a estes estímulos, trazendo reações adversas, como avaliar o quão prejudicial pode ser o uso de tantos outros procedimentos que, como vistos na presente pesquisa, podem trazer mais riscos e consequências graves do que benefícios?

Deste modo cabe avaliar que as decorrências da violência obstétrica são bastante graves assim como a própria manifestação e tolerância desta violência. A banalização do sofrimento, o uso imprudente de tecnologias, as relações assimétricas entre equipe obstétrica e pacientes, são ações que devem ser revisadas para que esta violência seja banida, em detrimento da saúde e bem estar da parturiente e seu filho.

Para finalizar esta análise, pode-se usar o conceito de normose, que segundo Crema et.al (2011, p.15), “é o conjunto de hábitos considerados normais e que, na realidade, são patogênicos e nos levam a infelicidade e à doença,”. Tal conceito pode ser aplicado claramente na manifestação da violência obstétrica, de modo que a mesma, torna-se difícil de ser reconhecida pela naturalização dos procedimentos considerados normais pelas próprias vítimas e pelos profissionais que as assistem. Deste modo, resta uma pergunta final na pesquisa: seria a normose o verdadeiro problema a ser curado?

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar. (GALEANO, [s.d.] [p.?])

Esta pesquisa foi iniciada com o propósito de responder a seguinte pergunta: qual a percepção das mulheres que passaram pelo processo de parto

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normal ou cesariana acerca da violência obstétrica? Para este fim, estipulou-se 3 objetivos específicos. Quanto ao primeiro objetivo: identificar as características da violência obstétrica na percepção de mulheres que foram vítimas desta violência, pôde-se perceber que a noção de vítima desta circunstância coube às cinco mulheres entrevistadas. Deste modo, as cinco mulheres estavam cientes de terem sofrido violência obstétrica em seus partos, podendo reconhecer as características desta violência no momento atual.

Nos casos de S1 e S2, as discussões recentes por intermédio das redes sociais, possibilitaram que as mesmas se apropriassem do tema, identificando-se como sujeitos que tiveram seus direitos desrespeitados de modo que mesmo sentindo-se violentadas e negligenciadas, naturalizaram algumas práticas violentas, como a manobra de Kristeller, o tratamento hostil e a episiotomia, entendendo que faziam parte dos procedimentos inerentes ao tratamento dado às mulheres na hora do parto.

Em relação aos casos de S3 e S5, nas quais a maternidade é mais recente, percebe-se, que as normas hospitalares e a relação assimétrica entre médico-paciente foi predominante.

O caso de S4 é uma exceção quando se trata das características da violência como esta é estabelecida, de acordo com o Dossiê Parirás com Dor (BRASIL 2012). S4 escolheu o parto humanizado e recebeu o atendimento conforme sua escolha, e como este preconiza o mínimo de intervenções, o profissional que a atendeu foi fiel à cartilha médica que prevê esta conduta. No entanto, para S4, a violência perpassa por um outro viés, a do entendimento de que a dor é subjetiva, e que conhecendo seus limites para lidar com esta, percebeu-se impossibilitada de convencer o médico a lhe fazer a episiotomia. Como afirma Bento e Santos (2006), a episiotomia deve ser utilizada em apenas 10% dos casos. Mas como julgar os casos em que esta é necessária? Caberia então ao médico, o responsável técnico pelo procedimento, decidir juntamente com a paciente, esclarecendo os prós e contras deste uso. No entanto, pelo que se constatou na entrevista foi o que faltou na relação entre S4 e seu médico, ou seja, o esclarecimento sobre o uso ou não uso da técnica.

Em relação ao segundo objetivo da pesquisa, identificar os fenômenos psicológicos manifestados em mulheres que vivenciaram a violência obstétrica, foram constatados diversos fenômenos psicológicos decorrentes da violência

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obstétrica vivenciada pelas entrevistadas, sentimentos diversos como: culpa, desvalorização, medo e estresse. Sentimentos esses que marcaram a vida e a rotina dessas mulheres, alterando em S1 e S2 diretamente seus projetos de vida.

No que diz respeito ao terceiro objetivo, caracterizar a percepção de mulheres que sofreram a violência obstétrica sobre os efeitos do evento em sua saúde física e na do filho, as cinco mulheres demonstraram perceber uma relação direta entre a violência vivida e as consequências desta em relação à sua saúde e a dos filhos, como um resultado da banalização dos atendimentos e no uso rotineiro dos procedimentos que foram questionados na presente pesquisa.

Pode-se supor que todos os fatores intervenientes que caracterizam a violência obstétrica sejam resultados da medicalização social, em que o parto torna-se uma vertente desta medicalização, torna-sendo o corpo feminino tratado como um objeto, um meio para se chegar ao produto, que é o bebê. Logo, as técnicas e o excesso de medicalização seriam os facilitadores para a obtenção deste produto.

Além disso, foi percebido na pesquisa que os meios de comunicação virtuais, como blogs e redes sociais tem auxiliado na obtenção de informação acerca da violência obstétrica, proporcionando reflexões, identificação entre as vítimas e tomadas de consciência sobre o evento vivido.

Importante ainda ressaltar que no grupo de mulheres entrevistadas, três delas tem formação superior, das quais seria esperado um maior poder de escolha, de decisão sobre o corpo e cuidado na seleção da equipe. Contudo, uma vez que isto não tenha ocorrido, percebe-se que embora as mesmas tivessem informações acerca da violência antes de seus partos, sua “voz”, seus direitos foram perdidos em meio à autoridade institucional e às normas da assistência obstétrica vigente. Assim conclui-se que a violência obstétrica não fica restrita às camadas mais pobres da população.

Embora perceba-se que o Ministério da Saúde tenha se empenhado em fazer campanhas acerca da humanização do parto, constata-se que o maior problema da violência obstétrica é sua invisibilidade, deste modo se faz imperativo a promoção de debates e pesquisas acerca do tema, com o intuito de fomentar as discussões e fazer valer os direitos das mulheres que passam pelo processo de gestação e parto. Compreende-se que a chegada de um filho é um novo começo na história de muitas mulheres, homens e respectivas famílias. Deste modo, como

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conceber que o começo de uma história, que é permeada em sua maioria de desejos e expectativas, seja maculada pela violência?

Nota-se também que não foram encontrados estudos sobre a intervenção do psicólogo no contexto da violência obstétrica, embora os fenômenos psicológicos resultantes desta violência sejam de conhecimento da Psicologia. É necessário pois, que seja verificado as possibilidades de ação deste profissional diante de tal evento, seja em grupos de prevenção e informação, seja em grupos de mulheres que tenham sofrido violência obstétrica, vendo nestes, a possibilidade de serem ouvidas e compartilharem suas dores e angústias relativas a este processo. Neste sentido, é importante que os profissionais utilizem de intervenções pautadas no sigilo e na ética, assim como a sensibilidade e prudência para abordar questões que envolvem a intimidade e a sexualidade das mulheres violentadas.

Importante ressaltar que esta pesquisa não visa julgar o trabalho de profissionais que compõem a equipe hospitalar de assistência ao parto. A intenção nesta pesquisa é a de debater e problematizar o modo vigente em que as intervenções técnicas estão sendo utilizadas durante o trabalho de parto e como estes procedimentos intervêm na percepção de mulheres que passaram por eles. Entende-se também que não são todos os profissionais que adotam a postura evidenciada na pesquisa e que muitos esbarram na burocratização e na ordem institucional.

Em termos de continuidade de estudo, ainda há que se investigar a violência obstétrica pela perspectiva da questão de gênero em que o corpo feminino, a sexualidade e a patologização de um processo fisiológico inerente à mulher foi, e continua sendo, moldado por um sistema patriarcal que coloca a mulher numa posição de submissão e inferioridade.

Finalmente, espera-se que este trabalho possa fazer contribuições para a discussão acerca da violência obstétrica e que as intervenções sejam moldadas para o suporte, o acolhimento e o empoderamento da mulher diante de suas escolhas e como sujeito de direitos.

Referências

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