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Templários da Avenida Paulista : a formação do self secular no Opus Dei

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - IFCH

ASHER GROCHOWALSKI BRUM PEREIRA

TEMPLÁRIOS DA AVENIDA PAULISTA

A formação do self secular no Opus Dei

Campinas 2017

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ASHER GROCHOWALSKI BRUM PEREIRA

TEMPLÁRIOS DA AVENIDA PAULISTA

A formação do self secular no Opus Dei

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e

Ciências Humanas da Universidade

Estadual de Campinas como parte dos

requisitos exigidos para a obtenção do

título de Doutor em Ciências Sociais.

Orientador: PROF. DR. RONALDO RÔMULO MACHADO DE ALMEIDA

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE

À VERSÃO FINAL DA TESE

DEFENDIDA PELO ALUNO ASHER

GROCHOWALSKI BRUM PEREIRA

E ORIENTADA PELO PROF. DR.

RONALDO RÔMULO MACHADO

DE ALMEIDA

Campinas 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - IFCH

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 14/12/2017, considerou o candidato Asher Grochowalski Brum Pereira aprovado.

Este exemplar corresponde à redação final da Tese defendida e aprovada pela comissão julgadora.

Prof. Dr. Ronaldo Rômulo Machado de Almeida (Orientador) Prof. Dr. Leandro Karnal

Profa. Dra. Paula Montero

Prof. Dr. Marcelo Ayres Camurça Lima Prof. Dr. Douglas Ferreira Barros

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Ronaldo de Almeida pelos quase 5 anos de orientação e amizade. Agradeço pelo incentivo com o trabalho, por ter me recebido em seu grupo de pesquisa, por ter lido e comentado meus textos, por ter tido paciência com meus devaneios, por ter aguentado minha ansiedade, por ter me dado toda a liberdade para fazer o trabalho e pelas provocações, sempre positivas. Obrigado pela oportunidade de trabalhar com você e por me ajudar a ser um pesquisador melhor.

Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) cujo apoio foi fundamental para a realização da pesquisa que resultou neste trabalho (processo no. 2012/10264-2). O apoio da FAPESP possibilitou minha participação em diversos eventos nacionais e internacionais, assim como a dedicação exclusiva à pesquisa. Também tornou possível a realização do estágio no exterior (processo BEPE no. 2014/06482-0).

Agradeço com muito carinho a todas as pessoas do Opus Dei que conheci durante minha pesquisa de campo. Sem a ajuda e compreensão dessas pessoas, essa pesquisa não teria sido possível. Agradeço especialmente ao Rafa Ruiz, ao Pedro Matta, ao padre José Puyet, ao padre Caio, ao padre Luís Paulo, ao Seiji, ao João Malheiro, ao Lucas, ao Barelli, ao Luciano, ao Flávio, ao Max, ao Zé, ao Arthur, ao Pedro Baldin, ao Di Franco, ao Félix, ao Pablo, ao Ivo, ao Hugo e a todas as outras pessoas que conheci nos centros pelos quais passei. Também agradeço ao pessoal do Opus Dei em Berkeley, especialmente ao Kevin, ao Fr. Leo, ao Mike, ao Mark, ao Carl, ao Ed, ao Tom, ao Bryan, ao Allen, ao Leo, ao Frank e a todas as outras pessoas com quem convivi no Garber House. Também agradeço ao Bobby Bickford, de Nova York, ao Guy e ao Christian, de Chicago, e ao Pedro Rui, de Lisboa. Agradeço àqueles que se dispuseram a falar sobre suas críticas ao Opus Dei, em especial, ao Brolezzi, à Betty, à Luciana e à Andrea.

Agradeço ao Charles Hirschkind e à Saba Mahmood, professores da UC Berkeley, que me receberam afetuosamente durante o período sanduíche na Califórnia. Obrigado pela orientação, estímulo e amizade. Também agradeço ao Jonathan Sheehan, professor do Departamento de História da UCB, por sua simpatia ao ter me recebido em seu curso. Também deixo meu obrigado ao Alex Dubilet, à Jehrylin Sambrooke, ao Jean-Michel e a todos os outros membros do grupo de pesquisa.

Agradeço a todos os professores que estiveram presentes em minha formação. Deixo meu obrigado à Paula Montero, que esteve presente desde os primeiros anos do doutorado, quando fiz seu curso na USP, e que me recebeu em seu grupo de pesquisa no

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CEBRAP. Agradeço também ao Edin Abumanssur que, junto com a Paula, esteve em minha banca de qualificação. Os comentários da Paula e do Edin foram fundamentais para os rumos que a pesquisa tomou. Agradeço aos professores Marcelo Camurça, Douglas Barros, Leandro Karnal, Paula Montero, Edin Abumanssur, Hugo Soares e Anaxsuell Fernando pela simpatia e disposição em participar da minha defesa. Fico honrado por essas pessoas terem participado da minha formação.

Agradeço ao Carlos pela amizade e por ter suportado todas as minhas reclamações. Agradeço imensamente pela ajuda quando tive problemas nos Estados Unidos e pelo incentivo em sempre continuar, sobretudo quando eu desanimava. Agradeço também à Marluza pelo carinho e presença constante. Agradeço à Fátima por toda ajuda e carinho. Deixo meu obrigado ao Dr. Wesley pela amizade, pelas conversas e pela ajuda em questões bíblicas. Se fosse pontuar aqui todos os motivos pelos quais agradeço a essas pessoas, esse texto se tornaria interminável.

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- Lembra-se das palavras do seu juramento?

- Sim – não eram palavras de que um homem se esquecesse facilmente. Uma vez proferidas, nunca poderiam ser desditas. Mudava-lhes a vida para sempre.

- Volte a repeti-las comigo, Jon Snow. - Se é isso o que quer [...].

- A noite chega, e agora começa a minha vigia. Não terminará até a minha morte. Não tomarei esposa, não possuirei terras, não gerarei filhos. Não usarei coroas e não conquistarei glórias. Viverei e morrerei no meu posto. Sou a espada na escuridão. Sou o vigilante nas muralhas. Sou o fogo que arde contra o frio, a luz que traz consigo a alvorada, a trombeta que acorda os que dormem, o escudo que defende os reinos dos homens. Dou a minha vida e a minha honra à Patrulha da Noite, por esta noite e por todas as noites que estão por vir.

George R. R. Martin, As crônicas de gelo e fogo: A fúria dos Reis, Livro dois

O self é apenas um limiar, uma porta, um devir entre duas multiplicidades (tradução nossa).

Gilles Deleuze e Félix Guattari, A Thousand Plateaus: Capitalism and

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RESUMO:

Olharemos para as tecnologias do self e para as práticas do governo do self desempenhadas pelos membros do Opus Dei de uma residência da cidade de São Paulo. Nosso objetivo é compreender o lugar dos sujeitos produzidos por essas práticas no cenário católico brasileiro. Partiremos da hipótese de que essas tecnologias orientam práticas monásticas (oração, confissão, mortificação, etc.) em jovens estudantes universitários e profissionais, ao mesmo tempo que produzem práticas para o governo do self com a finalidade de adequar esses mesmos jovens à vida secular (argumentação, linguagem jurídica e acadêmica, produção de si como “leigo”, etc.). Portanto, o self que emerge dessas práticas produz uma tensão entre o ideal contemporâneo do self da autonomia e da individualidade e a negação de si pelas práticas monásticas. Se, por um lado, as tecnologias do self do Opus Dei cultivam a negação de si, por outro, sua finalidade é a produção de atitudes para o “mundo secular”. Olhar para as tecnologias do self e para as práticas do governo do self nos informa como os sujeitos produzidos por essas práticas atuam em diferentes espaços do cenário brasileiro: imprensa, universidades, empresas, etc. Com efeito, procuraremos mostrar empiricamente por meio de uma etnografia multisituada (a partir da pesquisa etnográfica que realizei entre os anos de 2011 e 2016 em diferentes lugares das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e nas mídias) como as tecnologias do self e as práticas do governo do self são capazes de produzir sujeitos religiosos com projetos de ação no “mundo secular”.

PALAVRAS-CHAVE: Opus Dei; “mundo secular”; tecnologias do self; governo do self;

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ABSTRACT:

We will analyze technologies of the self and self-government practices performed by Opus Dei members of a residence in São Paulo city in order to understand agency of subjects produced by these practices in Brazilian Catholic scene. Our hypothesis is these technologies guide monastic practices (prayer, confession, mortification, etc.) in young university students and professionals, while, at the same time, produce self-government practices to adapt these same young people to secular life (argumentation, legal and academic language, produces themselves as “layman”, etc.). Therefore, the self which emerges from these practices produces a tension between contemporary ideal of the self of autonomy and individuality and monastic practices of self-denial. If, on the one hand, Opus Dei’s technologies of the self cultivate self-denial, on the other, its purpose is to produce attitudes towards “secular world”. Analyzing technologies of the self and self-government practices informs us how subjects produced by these practices act in different spaces of Brazilian scenario: press, universities, companies, etc. Thereby, we will show empirically through a multi-sited ethnography (I conduced an ethnographic research between 2011 and 2016 in different places of São Paulo, Rio de Janeiro and media) how technologies of the self and self-government practices are capable of producing religious subjects with projects of action in “secular world”.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 14  

O problema: as tecnologias do self e o governo do self ... 20  

Metodologia: ... 28  

O CCT e sua arquitetura: ... 31  

Inserção no campo: ... 34  

Os rapazes de São Rafael: ... 36  

Estrutura do trabalho: ... 39  

PARTE I: O PROJETO EXPANSIONISTA DE JOSEMARIA ESCRIVÁ E O OPUS DEI NO BRASIL ... 41  

I - O OPUS DEI E O PROJETO DE SANTIFICAÇÃO DO “MUNDO SECULAR” ... 42  

Josemaria Escrivá e o Opus Dei: ... 43  

O Opus Dei na Igreja: ... 48  

O Opus Dei e a ética protestante: ... 50  

A formação do self: “discrição” e práticas monásticas ... 55  

II - O OPUS DEI NO BRASIL ... 65  

O contexto universitário católico: ... 65  

Chegada e expansão do Opus Dei no Brasil: ... 71  

O Opus Dei e o Centro Dom Vital: ... 77  

PARTE II: TECNOLOGIAS DO SELF ... 83  

III - EXAME DE CONSCIÊNCIA, CONFISSÃO E DIREÇÃO ESPIRITUAL COMO TECNOLOGIAS DE ANULAÇÃO DO SELF ... 84  

IV - MORTIFICAÇÃO CORPORAL E SOFRIMENTO COMO TECNOLOGIAS DE ANULAÇÃO DO SELF ... 92  

A mortificação corporal como preceito da vida cristã: ... 93  

A missa e a Via Sacra para ao cultivo do sofrimento: ... 93  

Marcos e a reflexividade em torno da mortificação: ... 101  

V - SEXUALIDADE: A “GUARDA DA VISTA” COMO TECNOLOGIA DE NEGAÇÃO DO SELF ... 106  

A palestra de Marcos no convívio: ... 107  

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VI - A ORAÇÃO COMO TECNOLOGIA DO SELF ... 117  

A oração meditada no Opus Dei: ... 119  

Marcos e a oração no presépio: ... 120  

Escrivá e Gilberto: ... 122  

VII - A PRODUÇÃO DO SELF ARGUMENTATIVO: ANDRÉ E O “FIDELITAS” . 127   A história sem fim: ... 130  

Atitudes argumentativas: ... 135  

VIII - O CONVÍVIO DE PROFISSIONAIS E A FORMAÇÃO DO SELF PARA O TRABALHO ... 137  

Mentoria: ... 141  

Mentoria – 2ª. Parte: ... 143  

PARTE III: O GOVERNO DO SELF NO “MUNDO SECULAR” ... 145  

IX – A PRODUÇÃO DO SELF COMO “LEIGO” ... 146  

Padre Tobias e as meditações: a produção do self como sacerdote: ... 151  

Dom Rafael na JMJ: ... 158  

Marcos e os círculos de São Rafael: a produção do self como “leigo”: ... 164  

Di Franco no Instituto Millenium: ... 177  

Ives Gandra no Programa do Jô: ... 188  

XI - O GOVERNO DO SELF E A LINGUAGEM ACADÊMICA ... 195  

Pablo e a medicina humanística: ... 195  

Fabrício na USP: ... 201  

XII – LÍDERES PASTORAIS NA JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE E O GONVERNO DO SELF ... 207  

A meditação do padre Tobias na JMJ ... 209  

A tertúlia com o Arcebispo de Lima ... 210  

A tertúlia com o Prelado do Opus Dei ... 211  

Marcos e a visita aos pobres ... 214  

Gustavo e a aula de atualidades ... 216  

William e o debate na escola ... 217  

CONCLUSÃO ... 219  

GLOSSÁRIO ... 224  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 227  

FONTES: ... 232  

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Primeira entrevista com Félix (2012) – História do Opus Dei no Brasil ... 235  

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INTRODUÇÃO

Partindo da formulação de Michel Foucault (1988), tomaremos como objetos de investigação as tecnologias do self e o governo do self desempenhados pelos atores do Opus Dei (que significa “Obra de Deus”, em latim) em uma residência situada na cidade de São Paulo. Interessa-nos compreender os sujeitos produzidos por meio dessas práticas no cenário católico brasileiro. Partiremos da hipótese de que essas tecnologias têm o intuito de produzir uma forma específica de governo do self nesse cenário por meio da produção de sujeitos que desempenham práticas monásticas e seculares. Essas tecnologias produzem o self monástico clássico em jovens, universitários e profissionais, no contexto moderno e secular em que, segundo Nikolas Rose (1996), impera o regime do self da autonomia e da liberdade. Ao mesmo tempo em que essas tecnologias apontam para a negação de si por meio das práticas monásticas, relacionam-se com o governo do self para o cultivo de habilidades e atitudes para a vida secular, tais como a argumentação, a fala pública, etc. Conforme observaremos, o self produzido fundamenta-se na tensão entre a negação de si e a autonomia.

Entendemos o “secular”1 em sua acepção nativa. Para os atores do Opus Dei, o “secular” é o espaço que deve ser “santificado” pelos cristãos por meio do “trabalho”, da “atividade profissional”. Desse modo, olharemos para as tecnologias do self, as quais produzem atitudes voltadas para o “mundo secular”. Nos contextos que observaremos, o secular surge, não apenas como elemento narrativo, mas, sobretudo, como orientador de práticas do governo do self para a atuação no mundo. Nossos contextos históricos e etnográficos nos permitem perguntar: como as pessoas observadas nesses contextos são formadas para a “santificação do mundo secular”? Uma vez expostas aos processos formativos do Opus Dei, como atuam visando “santificar” os diferentes cenários profissionais do “mundo secular”? Como as ações desses atores atribuem significado à própria categoria de “secular”?

Autores como José Casanova (2007; 2011) e Talal Asad (1993; 2003) têm olhado para o secular como uma categoria epistêmica moderna e para o secularismo como doutrina política. Nosso intuito não é seguir essa discussão e descontruir o discurso moderno do secularismo, mas analisar como o secular se configura nas práticas dos atores em interação. Nosso esforço empírico aproxima-se de Oskar Verkaaik e Rachel Spronk (2011, p. 84, tradução nossa) quando dizem que “poucos antropólogos têm questionado como discursos seculares tornam-se parte e parcela de “mundos vividos” por meio de pessoas que se envolvem com eles

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de maneira consensual ou crítica”. A proposta dos autores é que tomemos o secularismo como prática cultural, o que não significa a superação da dimensão discursiva, mas abordar o problema sob outra perspectiva. Esse é nosso esforço ao analisar a concepção de “secular” que orienta as atitudes dos atores do Opus Dei.

Buscamos compreender como o self produzido pelas tecnologias desempenhadas no Opus Dei está associado a uma compreensão nativa de secular diferente daquela postulada pela doutrina do secularismo. Segundo Paula Montero, (2009, p. 12), o secularismo produzido no contexto brasileiro trata-se de um “programa político instituído pelo regime republicano para laicizar o Estado e excluir os critérios religiosos da definição de cidadania”. Ao contrário desse entendimento, o Opus Dei age por considerar vital sua ação no espaço secular (no Estado, na política, na universidade, etc.). Não se trata apenas de saber como os agentes compreendem e praticam o secular, mas, sobretudo, como desempenham tecnologias para governar a si mesmos orientadas para a agência no “mundo secular”. Interessa-nos saber como os atores do Opus Dei experimentam a dicotomia entre “religioso” e “secular” nas suas vidas cotidianas.

Olhar para o Opus Dei por meio das tecnologias do self é interessante para dar inteligibilidade à atuação desses atores na cena pública brasileira. Surgem sujeitos que buscam a excelência profissional (não para a autopromoção, mas para a glória de Deus), a discrição para manter a “secularidade”, a negação de si e que gozam de independência quase que absoluta em relação à hierarquia da Igreja (pois não se submetem aos bispos diocesanos, mas ao prelado do Opus Dei e ao Papa) ao mesmo tempo em que dedicam obediência absoluta aos seus líderes. É ampla a gama de controvérsias e polêmicas envolvendo a forma de ativismo dos membros do Opus Dei ao redor do mundo, mas existem poucas análises que demonstrem como esses sujeitos são formados para tal.

Segundo John Allen (2006, p. 4), “nesta época de novos “produtos” eclesiásticos [o Concílio Vaticano II (1962-1965)], o Opus Dei oferece uma nova alternativa clássica”. Allen (2006) refere-se a práticas da Igreja desempenhadas pelos leigos do Opus Dei que antes eram realizadas principalmente por monges: os votos de pobreza, obediência e castidade, a mortificação corporal e o apostolado. Isso é desempenhado de forma discreta em meio à vida “secular”, cotidiana. Para María Olivia Mönckeberg (2004, p. 11), as discussões acerca do Opus Dei vão além do seu poder econômico ou político. Além de uma “convicção capaz de “mover montanhas e construir impérios”, a autora destaca “um disciplinado espírito de oração e trabalho que se faz presente em suas vidas, se expande aos que os rodeiam e se projetam em suas muitas atividades”. Desse modo, ao longo do século XX, o Opus Dei despertou a atenção das pessoas

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por conta das práticas católicas desempenhadas de forma ortodoxa, da aura misteriosa e da discrição sustentada por seus membros em sua atuação na vida pública.

Por meio da revisão bibliográfica sobre o Opus Dei no Brasil (SILVA, 2009; OLIVEIRA, 2008) percebi que eram escassos os trabalhos sobre a formação de pessoas no Opus Dei no contexto brasileiro e como essa formação apontava para o cultivo de atitudes para fora das residências do grupo. Isso me pareceu interessante, pois, apesar de o Opus Dei ter uma forma específica de formação de pessoas no interior do catolicismo, isso ainda não havia sido estudado em detalhes em nossa literatura. Desse modo, decidi procurar um centro do Opus Dei na cidade de São Paulo (lugar onde percebi que o grupo era mais consolidado e atuante) e iniciei minha pesquisa de campo.

Cheguei ao tema das tecnologias do self e do governo do self no Opus Dei a partir da reflexão sobre uma experiência pessoal de minha adolescência, sobre a qual escrevi um artigo pouco antes de começar o doutorado. Por meio da concepção de “ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada (2005), procurei analisar os afetos, disposições e atitudes que se produziram em mim ao longo dos sete anos que pertenci à Ordem DeMolay, um grupo para rapazes de 12 a 21 anos patrocinado pela Maçonaria. Naquele texto, tentei descrever como esses afetos, disposições e atitudes foram sendo produzidos aos poucos. Desse modo, percebi que um grupo fechado como a Ordem DeMolay, com poucos membros, rapazes selecionados por indicação de amigos, procurava produzir determinadas práticas em seus membros que os diferenciassem das pessoas “de fora”. Ao mesmo tempo, cada membro era estimulado a cultivar certas atitudes para atuar no mundo “profano”, ou seja, o mundo para além das circunscrições do Capítulo DeMolay. Por se tratar de um grupo autodenominado como “discreto”, os membros evitavam identificar-se como “demolays” em seus ambientes escolares ou de trabalho, contudo, procuravam cultivar as “virtudes” no meio do mundo “profano”, que eram como guias de comportamento dos membros. Portanto, olhei para dois cenários nos quais se deu minha formação: o interior do Capítulo e o mundo “profano”.

Olhar para minha experiência anos depois, por meio das lentes da Antropologia, levou-me a ampliar minha questão inicial. Se, naquele trabalho, havia analisado como fui “afetado” pela Ordem DeMolay de modo a incorporar certos afetos, disposições e atitudes, em um segundo momento, interessou-me ampliar essa questão para outros grupos “discretos” ou fechados. Meu intuito era olhar para as experiências de outras pessoas que, assim como eu, haviam sido “afetadas” por sua experiência nesses grupos e como isso produziu atitudes para fora das circunscrições do grupo. Desse modo, cheguei ao Opus Dei. Aos poucos, a questão do

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“ser afetado” desapareceu e deu lugar às tecnologias do self e ao governo do self. Vejamos um caso etnográfico para ilustrar nosso argumento.

A igreja Saint Mary of the Angels é a única paróquia do mundo administrada por sacerdotes do Opus Dei. Anexa ao imponente prédio de duas torres está uma discreta casa onde moram os sacerdotes e alguns membros leigos da prelazia. Quando conduzi uma pesquisa de campo em Chicago, Gordon, o supernumerário (cf. glossário) que foi meu informante, convidou-me para assistir uma missa na Saint Mary of the Angels. Era um fim de tarde de terça-feira. Atravessamos a enorme nave principal, escura e silenciosa, e descemos para a capela onde as missas eram celebradas nos dias de semana por haver menos pessoas. A capela era bem menor que a nave principal. Havia apenas duas fileiras de bancos de madeira e um altar à frente com o Sacrário. O altar era adornado com uma toalha branca em cujas pontas, as quais pendiam pelos lados da superfície de mármore, jazia o símbolo do Opus Dei, um círculo perfeito sobreposto por uma cruz. Esse símbolo também se via em ouro na parte da frente do altar. Atrás do altar estava uma pintura de São Josemaria Escrivá, o fundador do Opus Dei, usando vestes litúrgicas e ajoelhado diante de Nossa Senhora. Ao fundo, via-se a cidade de Chicago. Naquele dia, a missa foi celebrada pelo padre Thomas, que eu conhecera algumas horas antes na residência do Opus Dei ao lado da igreja. A homilia do padre Thomas foi seca e contundente. Vejamos um trecho sugestivo:

O mundo pede por cristãos. Não cristãos de final de semana, que só vêm à missa no domingo para não ir para o inferno. Mas cristãos de verdade, aqueles cristãos que lutam para crescer em disciplina e em normas de piedade. Cristo precisa daqueles cristãos que crescem em caridade pela disciplina da oração, que crescem em piedade pela prática da penitência, que crescem em humildade pela frequência à confissão, que crescem em amor pelo encontro diário com Cristo na eucaristia... essa é a luta do cristão. Sua luta diária. Só assim poderemos olhar para o mundo com os olhos de Cristo e mudar a tonalidade com que vemos as realidades seculares. Mas não sejamos egoístas. Cristo não quer que fiquemos trancados nos nossos quartos guardando a mensagem maravilhosa que ele nos trouxe apenas para nós mesmos. Só é cristão verdadeiro aquele que leva o que aprendeu para o trabalho, para a escola, para a universidade. Aquele que age como Cristo agiu e santifica o mundo.

Padre Thomas condensou o aspecto do Opus Dei que nos interessa: as formas de governar a si mesmo com o intuito de cultivar atitudes para o “mundo secular”. Dito de outro modo, interessa-nos como o Opus Dei produz sujeitos voltados ao “mundo secular” por meio de práticas religiosas como a oração, a mortificação, a confissão, etc. A ideia de um self que faz

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um movimento de dentro (indivíduo) para fora (mundo) também fica claro no site oficial do Opus Dei:

Todos os batizados são chamados a seguir Jesus Cristo, e a viver e dar a conhecer o Evangelho. A finalidade do Opus Dei é contribuir para essa missão evangelizadora da Igreja, promovendo, entre fiéis cristãos de todas as condições, uma vida plenamente coerente com a fé nas circunstâncias correntes da existência humana e especialmente por meio da santificação do trabalho2.

Vejamos a forma de atuação no “mundo secular” que Escrivá prescreve para os cristãos “leigos”. Segundo Peter Berglar (1987, p. 160), para Escrivá, os cristãos não poderiam se manter neutros em relação aos diversos conflitos que compunham o “mundo secular”:

Para el católico, y especialmente para el sacerdote, rigen criterios claros: nunca puede aceptar algo que a contra los mandamientos del Señor y contra la doctrina de la Iglesia, como, por ejemplo, qualquier tipo de socialismo marxista, por muy humano que se presente. [...]. Como realista que era, el fundador del Opus Dei sabía que siempre ha habido conflitos políticos, sociales e ideológicos, ya que formam parte de la natureza del mundo secular; el cristiano no puede desentenderse de ellos y florar en el ayre sin tomar partido, declarándose “neutral”.

Berglar (1987, p. 160) explica como, de acordo com Escrivá, deveria ser a forma de atuação dos cristãos no “mundo secular”:

Pero lo que algunas personas difícilmente entendían – y parece que siguen sin entender – era su convicción de que el peso de la lucha para defender a la fe católica tiene de descansar, en primer lugar, sobre la imitación de Cristo que cada cristiano realiza en su vida cotidiana, una imitación que abarca todos los aspectos de la vida. Las “organizaciones” y los “instrumentos” pueden resultar una ayuda, pero también un peligro, en cuanto que el seguimiento personal y responsable de Cristo se puede diluir, sin mala voluntad y a menudo inconscientemente, en el activismo colectivo. Actuando en grupo, se atrofia fácilmente la disponibilidad personal y la capacidad de un encontro con Dios “de tú a tú”.

No ponto 9 de Questões atuais do cristianismo, Escrivá resume o que foi dito por Berglar: “a específica participação do leigo na missão da Igreja consiste, precisamente, em santificar ab intra — de maneira imediata e direta as realidades seculares, a ordem temporal, o mundo”.3

2 Disponível em: <http://opusdei.org.br/pt-br/article/espirito/> - Acessado em 01 de julho de 2017.

3 Disponível em: <http://www.escrivaworks.org.br/book/questoes_atuais-ponto-9.htm> - Acessado em 01 de

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Na mesma linha de Escrivá, o Cardeal guineense e membro do Opus Dei, Robert Sarah, escreveu, em 2013:

O Secularismo visa excluir o papel da religião na vida pública e, em consequência, configurar uma cultura sem Deus. Parece afirmar a autonomia e poder do homem mas, paradoxalmente, acaba por obscurecer até a verdade mais fundamental sobre a dignidade humana e as instituições naturais, tais como o casamento e a família. Nesse contexto, a Nova Evangelização implica em um apelo a cada pessoa e à sociedade como um todo a redescobrir o papel purificador da fé em relação à razão humana e o seu efeito elevado sobre ela (tradução nossa).4

Vemos que as concepções de “secular” e “religioso” sobrepõem-se no Opus Dei, compondo a própria forma de ser de seus membros. Allen (2006, p. 94) explica a relação entre “religioso” e “secular” por meio da ideia de “contemplação no meio do mundo”:

O conceito de contemplação no meio do mundo […] é mais profundo do que rezar no carro em lugar de fazê-lo numa capela. A idéia é que a integralidade da vida de alguém é uma prece, não existindo compartimentos estanques da existência rotulados de “religiosos” e “seculares”. O culto e o louvor a Deus não demandam, nesses termos, a realização de algo especificamente “religioso”, embora os membros do Opus Dei […] sigam um ambicioso programa diário de observância religiosa. Esses são meios para a consecução de um fim: revestir tudo o que se faz — inclusive as tarefas mais triviais de um dia ocupado —, de uma dimensão contemplativa.

Como explicita a citação de Escrivá acima, esses atores entendem o secular como um espaço de conflitos e disputas fora da Igreja que deve ser santificado pela ação direta dos cristãos leigos individual e discretamente.

Várias categorias orbitam em torno do “secular” no Opus Dei: “mundo”, “mundo secular”, “realidade secular”, “vida corrente”, “vida cotidiana”, “meio do mundo”, etc. Todas essas categorias referem-se a uma mesma realidade discursiva. Ao se referir à forma de atuação no “mundo secular”, a categoria mais proeminente é a “santificação do trabalho” (ou apenas “trabalho”).

Todo o treinamento que os líderes do Opus Dei oferecem aos seus membros e frequentadores está voltado à “santificação do trabalho ordinário” no meio do “mundo secular”. Mas a “santificação do trabalho” não se limita a ensinamentos genéricos abstratos. Cada membro ou frequentador tem a oportunidade de construir e desenvolver um “plano de vida” conjuntamente com seu diretor espiritual. Nas conversas semanais com seus diretores, esses

4 Disponível em:

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indivíduos aprendem a santificar seus campos profissionais além de receberem auxílio para mapear os “vícios” e “quedas” que possam influenciar suas atividades santificadoras.

Com efeito, o que os líderes do Opus Dei estimulam nos membros e frequentadores de suas residências é uma atitude nova em relação ao trabalho. Essa atitude não se limita ao exercício profissional em si, mas remete ao escopo mais amplo do autoconhecimento e do governo do self. A oração, o exame de consciência, a frequência aos sacramentos, a prática da mortificação e a regulação da sexualidade são elementos centrais para que se possa alcançar a própria santificação e a santificação do “mundo secular” por meio do “trabalho”.

Os atores do Opus Dei classificam o mundo da Igreja como “religioso” e tudo que está fora dele como “secular”, sendo seu objetivo “santificar” esse espaço. Desse modo, ao definir esses dois espaços distintos, constroem uma fronteira entre dois universos para determinar o seu local de ação. Porém, outros atores sociais entendem que a atuação dos membros do Opus Dei no espaço que denominam “secular” é uma ameaça ao próprio secular, pois estabeleceria uma presença religiosa onde, em suas perspectivas, não deveria haver religião. Portanto, essa forma de religiosidade que produz uma noção de “secular” e um objetivo em relação a ela leva à produção de conflitos com outros atores sociais.

Temos no Opus Dei um grupo que sobrepõe práticas monásticas e protestantes. Ao observar os monges da ordem de João Cassiano e os Puritanos para estabelecer uma comparação entre essas duas formas de subjetivação do self (self-subjection), Willian Paden (1988, p. 73) afirma que “o monge renuncia a qualquer possibilidade do self em prol da alma”, ao passo que, para os Puritanos, o inimigo se torna o próprio self, “porque o Puritano não renunciou ao seu self mundano totalmente, tal como o monge”. O Opus Dei aproxima-se mais do segundo caso do que do primeiro. Josemaria Escrivá postulou que o caminho para Deus e para a santidade não se dava por meio da fuga da atividade cotidiana, mas pela luta ativa no meio do mundo e pelo rigor da conduta cristã. Pensando a partir de Paden (1988), os membros do Opus Dei não renunciam totalmente ao próprio self mundano. Contudo, as práticas de autoexame, o dever de relatar os pensamentos mais íntimos ao diretor espiritual, a renúncia ao corpo e à sexualidade, a obediência absoluta aos líderes e o voto de pobreza aproximam o Opus Dei da tentativa de renúncia ao self praticada pelos monges. Portanto, situa-se em algum lugar entre as práticas protestantes e monásticas.

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Em Inventing Ourselves, Nikolas Rose (1996) discute o regime contemporâneo do self. Segundo o autor (1996, p. 1, tradução nossa), vários termos gravitam em torno da ideia contemporânea de self: “autonomia, identidade, individualidade, liberdade, escolha, realização”. Para Rose (1996, p. 1, tradução nossa), “essa ética do self livre e autônomo parece traçar algo fundamental nas formas que homens e mulheres modernos compreendem, experimentam e avaliam a si mesmos, suas ações e suas próprias vidas”. Rose (1996, p. 3, tradução nossa) levanta a hipótese de que o regime contemporâneo do self revela uma “normatividade comum” que envolve “ideais referentes às nossas existências como indivíduos habitados por um sentido psicológico que anima e explica nossas condutas e ambições para a autocompreensão, a autoestima e a autorrealização na vida cotidiana”. Conforme dito por Rose (1996, p. 3, tradução nossa), essas “normas do cotidiano” inventam o “self da escolha, da autonomia e da liberdade”, ideias que gravitam em torno do self contemporâneo.

Segundo Rose (1996, p. 3-4, tradução nossa):

O self: coerente, limitado, individualizado, intencional, lócus do pensamento, ação e crença, a origem de suas próprias ações, beneficiário de uma biografia única. Como tais selfs, nós possuímos uma identidade que constitui nossa mais intensa, mais profunda realidade, a qual era repositório de nossa herança familiar e de nossas experiências particulares e individuais que animam nossos pensamentos, atitudes, crenças e valores. Como selfs, nós éramos caracterizados por uma profunda interioridade: conduta, crença, valor e fala significava ser interrogado e fazer-se explicável em termos de entendimento de um espaço interior que os atribuiu forma, dentro do qual eles estavam, literalmente, incorporados em nosso interior como seres corpóreos. Esse universo interno do self, essa psicologia profunda, repousa no núcleo daquelas formas de conduzir nossos selfs que são consideradas normais e que estabelecem a norma para se pensar e julgar o anormal - seja no campo do gênero e da sexualidade, quanto no dos vícios, ilegalidade e insanidade […]. Rose (1996) argumenta que as disciplinas “psi” (“as psicociências e as disciplinas psicologia, psiquiatria e seus cognatos (ROSE, 1996, p. 2, tradução nossa)) produziram o ideal de um self que precisa ser reencontrado na vida moderna, um self centrado e coerente que é o responsável pela agência. Para o autor, esse self trata-se de um projeto que seria melhor visto como um ideal ou uma norma.

Para Rose (1996, p. 4, tradução nossa), o regime do self contemporâneo é um “fenômeno relativamente recente, um resultado desses diferentes projetos que têm procurado conhecer e governar pessoas como se fossem selfs de tipos específicos”. Por outro lado, Rose (1996, p. 4-5) questiona o ideal contemporâneo do self como centrado, autoconsciente e centro da agência humana ao afirmar que existem práticas diversas que desconstroem essa imagem.

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Para o autor, novas configurações de raça, gênero e classe têm colocado em questão a suposta unidade e coerência do self.

Baseando-se na discussão sobre o governo do self de Foucault, Rose (1996, p. 11, tradução nossa) observa que “a história do psi [...] está intrinsecamente ligado à história do governo”. Explica Rose (1996, p. 12, tradução nossa):

[...] Eu uso o termo governo no sentido mais amplo atribuído por Foucault - governo aqui é a forma de conceitualizar todos aqueles programas mais ou menos racionalizados, estratégias e táticas para “a conduta da conduta”, para agir sobre as ações de outros como forma de atingir determinados fins […]. Nesse sentido, alguém poderia falar sobre o governo de um navio, de uma família, de uma prisão, de uma fábrica, de uma colônia, de uma nação, assim como sobre o governo do self.

A perspectiva do governo dirige nossa atenção para aqueles programas multitudinais, propostas e políticas que visam moldar a conduta dos indivíduos - não apenas controle, subjugo, disciplina, normalização ou reforma, mas também que fazem deles inteligentes, sábios, felizes, virtuosos, saudáveis, produtivos, dóceis, empreendedores, realizados, autoestimados, empoderados, etc.

Para Rose (1996, p. 169, tradução nossa), o regime contemporâneo do self atribuiu à individualidade um lugar central nunca visto antes graças a uma série de “práticas regulatórias” que “procuram governar os indivíduos” para essa direção, desse modo, a ideia de identidade e os conceitos que gravitam em torno dela teriam ganhado lugar central em nas práticas humanas. Para Rose (1996, p. 169, tradução nossa):

Na vida política, no trabalho, na vida conjugal e doméstica, no consumo, no mercado e propaganda, na televisão e no cinema, no complexo legal e na prática policial, e nos aparatos da medicina e da saúde, os seres humanos são orientados, representados e controlados como se fossem selfs de um tipo particular: impregnados com uma subjetividade individualizada, motivados por ansiedades e aspirações referentes à auto realização, comprometidas a encontrar suas verdadeiras identidades e maximizar suas expressões autênticas em seus estilos de vida.

Desse modo, Rose (1996, p. 172, tradução nossa) propõe que os sujeitos sejam vistos como “assemblages”5:

Sujeitos, argumentarei, podem ser melhor vistos como “assemblages”, as quais transformam ou metamorfoseiam suas propriedades conforme expandem suas conexões, que não “são” nada mais do que transformações nas conexões nas quais estão associados [...].

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Para Rose (1996, p. 174), seguindo Deleuze e Guattari (2005) e Foucault (1987), a subjetificação pode ser vista como “assemblage”. Nessa perspectiva, o sujeito é produzido pelas posições que ocupa nos regimes de discurso que perpassam sua vida. Desse modo, segundo Rose (1996, p. 176), o self é exposto de acordo com a forma com que os indivíduos selecionam diferentes formas narrativas. Rose (1996) busca inspiração para sua concepção de “assemblage” em Foucault (1987). Ao analisar o discurso médico, Foucault (1987, p. 61-62) diz:

[...] as diversas modalidades de enunciação, em lugar de remeterem à função unificante de um sujeito, manifestam sua dispersão: [...] nos diversos status, nos diversos lugares, nas diversas posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na descontinuidade dos planos de onde fala. Se esses planos estão ligados por um sistema de relações, este não é estabelecido pela atividade sintética de uma consciência idêntica a si, muda e anterior a qualquer palavra, mas pela especificidade de uma prática discursiva. Renunciamos, pois, a ver no discurso um fenômeno de expressão [...]; nele buscaremos antes um campo de regularidade para diversas posições de subjetividade. O discurso assim concebido, não é a manifestação majestosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: é ao contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo. É um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares distintos. [...] É preciso reconhecer, agora, que não é nem pelo recurso a um sujeito transcendental nem pelo recurso a uma subjetividade psicológica que se deve definir o regime de suas enunciações.

Nessa passagem, Foucault (1987, p. 61-62) deixa claro que o regime das enunciações não é definido por um “sujeito transcendental” ou por uma “subjetividade psicológica”, mas, pelo contrário, que o sujeito é definido por seus lugares de fala e posições dentro de regimes de enunciação. Vemos que o sujeito não é unificado, mas disperso pelos “planos de onde fala”, que são descontínuos.

Rose (1996, p. 178, tradução nossa) afirma ainda que a linguagem está relacionada, não com o que ela significa, mas com o que ela faz:

Quais componentes de pensamento ela conecta, quais ligações ela rejeita, o que ela permite às pessoas imaginar, diagramar, alucinar sobre a existência, colocar em relação: sexos com seus gestos, formas de caminhar, de vestir, de sonhar, de desejar; famílias com suas mães, pais, bebês, suas necessidades e desapontamentos; máquinas de cura com seus médicos e pacientes, órgãos e patologias; máquinas psiquiátricas com suas arquiteturas de reformatório, sua rede de diagnósticos, seus mecanismos de intervenção e suas noções de cura.

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Rose (1996, p. 173, tradução nossa) argumenta que, por serem “plurais”, os sujeitos desenvolvem “racionalidades práticas” de acordo com os diferentes tempos e espaços que experimentam:

Essas racionalidades práticas são regimes de pensamento, por meio dos quais as pessoas atribuem significado a aspectos de si mesmas e de suas experiências, e regimes de práticas, através dos quais humanos podem “eticalizar” e “agencializar” a si mesmos de formas particulares – como pais, professores, homens, mulheres, amantes, patrões – por meio da sua associação com vários dispositivos, técnicas, pessoas e objetos.

A concepção de “tecnologias do self” (technologies of the self) de Foucault (1988) é afinada com a concepção do self de Rose (1996). Como deixa claro em uma entrevista em 1984 (MARTIN, 1988), não interessava mais a ele pensar sobre os processos de disciplinarização em instituições fechadas ou sobre o nascimento da clínica, mas sobre os meios pelos quais emerge uma nova tecnologia de poder: como governar os sujeitos para que sejam autônomos e construam sua própria subjetividade por meio do governo do self. Temos o conceito de tecnologias do self.

As tecnologias do self estão relacionadas a outro aspecto da governamentalidade ao qual Foucault se dedicou no final de sua vida: o governo de si por si mesmo. Contudo, essa forma de governo não estava separada das demais tecnologias observadas por ele. Segundo Foucault (1988, p. 18, tradução nossa), as tecnologias do self são um entre quatro grandes tipos de tecnologias: “[...] tecnologias de produção; [...] tecnologias de sistemas de signos; [...] tecnologias de poder; [...] tecnologias do self [...]”. As tecnologias do self são aquelas que

[...] permitem aos indivíduos efetuar por seus próprios meios ou com a ajuda de outros um certo número de operações em seus próprios corpos e almas, pensamentos, conduta e forma de ser, assim como transformar a si mesmos de modo a alcançar um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade (FOUCAULT, 1998, p. 18, tradução nossa). Para Foucault (1988, p. 18, tradução nossa),

Cada um [desses quatro tipos de tecnologias] implicam em certos modos de treinamento e modificação dos indivíduos, não apenas no sentido óbvio de adquirir certas habilidades, mas também no sentido de adquirir certas

atitudes.

Ao pensar sobre as tecnologias do self, o olhar de Foucault (1988, p. 19, tradução nossa) se desloca para a interação entre indivíduos:

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Talvez eu tenha insistido demais na tecnologia de dominação e poder. Estou mais interessado na interação entre um indivíduo e outros e nas tecnologias de domínio individual, na história de como um indivíduo age sobre si mesmo, na tecnologia do self.

Paul Rabinow (1997, p. 225, tradução nossa) sintetiza a ideia de tecnologia do self ao dizer que é um “modo de ação que o indivíduo exerce sobre si mesmo por meio das tecnologias do self”. Segundo Edgardo de Castro (2004, p. 412), sobre “tecnologia” em Foucault,

As práticas se definem pela regularidade e pela racionalidade que acompanham os modos de fazer. Essa regularidade e essa racionalidade, por sua vez, têm um caráter reflexo, são objetos de reflexão e análise. Os termos “técnica” e “tecnologia” agregam à ideia de prática os conceitos de estratégia e tática. Com efeito, estudar as práticas como técnicas ou tecnologia consiste em situá-las em um campo que se define pela relação entre meios (táticas) e fins (estratégias).

Castro (2004, p. 413) explica que “a tecnologia de si implica a reflexão sobre os modos de vida, sobre a eleição da existência, sobre a maneira de regular a conduta, de fixar para si mesmo os fins e os meios”.

O que nos interessa é abordar práticas que possam ser enquadradas no conceito foucaultiano de tecnologias do self a fim de observar como seu desempenho serve para produzir atitudes, mais do que habilidades (embora seu desempenho também envolva o desenvolvimento de certas habilidades) e o governo do self.

Em nosso estudo, há um aspecto do poder que está imbricado com as tecnologias do self e o governo do self: o pastorado. Se nossa hipótese está correta e as tecnologias do self do Opus Dei estão, em parte, relacionadas com a produção de selfs monásticos clássicos, então poderemos compreende-las pode meio dessa forma de poder cristão que se desenvolveu até o século XVI e que, segundo Foucault (2008, 243), foi um “prelúdio” do que ele chamou de “governamentalidade”, forma de poder que se desenvolveu a partir daquele século. Tal como sugeriu Foucault (2008, p. 256),

[...] O pastorado é um tipo de poder bem específico que se dá por objeto a conduta dos homens [...], por instrumento os métodos que permitem conduzi-los e por alvo a maneira como eles se conduzem, como eles se comportam [...].

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O pastorado está relacionado com a salvação, pois tem como objetivo essencial, fundamental, conduzir os indivíduos ou, em todo caso, permitir que os indivíduos avancem e progridam no caminho da salvação. [...] Portanto, ele guia os indivíduos e a comunidade pela vereda da salvação. Em segundo lugar, o pastorado está relacionado com a lei, já que, precisamente para que os indivíduos e as comunidades possam alcançar sua salvação, deve zelar por que eles se submetam efetivamente ao que é ordem, mandamento, vontade de Deus. Em terceiro ligar, o pastorado está relacionado com a verdade, já que no cristianismo, como em todas as religiões de escritura, só se pode alcançar a salvação e submeter-se à lei com a condição de aceitar, de crer, de professar certa verdade. O pastor guia para a salvação, prescreve a Lei, ensina a verdade.

Esses elementos são evidentes no caso dos líderes pastorais do Opus Dei. A função do pastor é guiar a ovelha para a salvação instruindo pelo próprio exemplo. Josemaria Escrivá costumava declarar-se como um pecador, cheio de misérias e fraquezas, e, por isso, ensinava pelo exemplo. Mais do que isso, dizia que não deviam tê-lo como modelo, mas tomar como modelo o próprio Cristo. Nesse caso, podemos ver exemplos de fraqueza e humildade configurando-se em exemplo de conduta.

De acordo com o conceito de Foucalut (2008), o líder pastoral tem legitimidade para governar porque expõe suas fraquezas e misérias – expõe sua alma às ovelhas, ao invés de colocar-se em posição superior a elas. Desse modo, os governados não obedecem ao pastor por conta de ordens arbitrárias, mas por um sentimento de devoção à sua pessoa e ao que ela representa. Mais do que isso, procuram imitá-lo. Os líderes pastorais do Opus Dei são figuras centrais em um sistema de relações e, por isso, é um caminho elementar evocá-los para dar legitimidade e justificar práticas. O que está, ora implícito, ora explícito, é que esses líderes representam o próprio Deus e o Opus Dei – sua obra.

O aporte teórico de Foucault (1988) a respeito das tecnologias do self e do governo do self será fundamental para compreendermos a produção de pessoas no Opus Dei, assim como é importante a relação dessas pessoas com seus líderes pastorais. Temos uma situação singular: se, por um lado, o indivíduo deve anular sua subjetividade e seu self, entregando seus pensamentos mais íntimos ao seu diretor espiritual leigo e ao seu sacerdote confessor, escrutinizando e revelando sua intimidade para seus mestres, como os monges analisados por Paden (1988), por outro, há uma preocupação cada vez maior com a construção de um self para o trabalho e para a vida pública a fim de que o sujeito se realize verdadeiramente como católico. A tensão entre essas duas tendências é fundamental para compreender os sujeitos do Opus Dei. Se, por um lado, esses sujeitos esforçam-se para anular o próprio self mundano, construído com base no individualismo e na autorrealização, por outro, buscam a realização profissional e o “trabalho bem feito”, não por si mesmos, mas para ampliar seu escopo apostólico. Portanto,

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constituem-se como sujeitos santificadores que estabelecem conexões e agência de acordo com os diversos cenários e regimes discursivos pelos quais transitam.

O Opus Dei surge como um desses muitos tipos de subjetividades modernas observados por Rose que tencionam o ideal contemporâneo do self ao enunciar a negação do self e da individualidade como condição da existência e postular a produção do sujeito santo e santificador no “mundo secular”. O self baseado na individualidade precisa ser constantemente negado para que o self da santificação possa emergir. Para buscar o ideal de santidade projetado por Escrivá, a concepção de um sujeito individual, autônomo, livre, que busca a autorrealização deveria ser completamente aniquilada. A individualidade desaparece pela exposição completa da alma aos diretores espirituais; a autonomia e a liberdade cedem à obediência total à hierarquia; a autorrealização é superada pela realização do projeto de Deus para o mundo, o qual está além e acima da vontade e do gosto do indivíduo. O indivíduo bem-sucedido profissionalmente não se realiza para si mesmo, mas para a glória de Deus. Desse modo, o “mundo secular” surge como o espaço da realização dessa forma de self: o sujeito autonegado, sem individualidade, sem desejo, que busca a excelência profissional para a glória de Deus.

Ao mesmo tempo em que têm a negação da autonomia, da liberdade e da autorrealização como ideal, as pessoas do Opus Dei buscam a coerência do self. Conforme orienta Escrivá e os líderes do Opus Dei, os católicos leigos deveriam agir de forma coerente com a fé católica em todas as esferas de suas vidas: no trabalho, na universidade, nos espaços de lazer, nos jantares profissionais, etc. Segundo Escrivá, no ponto 46 de Sulco: “tenhamos a coragem de viver pública e constantemente de acordo com a nossa santa fé”.6

As pessoas do Opus Dei procuram produzir um self centrado e coerente com o catolicismo, que atribui conotação religiosa a todas as esferas da sua vida, sobretudo ao trabalho, aproximando-se do protestantismo. Vale lembrar dos termos usados por Weber (2004, p. 156) para descrever a ascese intramundana protestante e que também valem para o Opus Dei: “a valorização religiosa do trabalho profissional mundano, sem descanso, continuado, sistemático, como o meio ascético supremo”. Desse modo, a riqueza como fruto do trabalho deixa de ser condenável, pelo contrário, torna-se emblema do trabalho bem feito que deve servir de exemplo.

O fato de os atores do Opus Dei procurarem atuar em todos os contextos de forma a manter-se coerentes com o catolicismo e com o Opus Dei não quer dizer que acessem linguagens religiosas o tempo todo e independentemente do contexto. Esses atores

6 Disponível em: <http://www.escrivaworks.org.br/book/sulco-ponto-46.htm> - Acessado em 10 de janeiro de

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desenvolvem competências linguísticas próprias dos contextos de que falam para sustentar posições afinadas com o Opus Dei sem, com isso, falar de forma religiosa.

O título que escolhi para esse trabalho, “Templários da Avenida Paulista”, procura ilustrar a atitude cultivada pelos membros do Opus Dei por meio das tecnologias do self e do governo do self. Esse termo foi usado por um numerário leigo, Pablo, ao explicar-me o que era um numerário (cf. glossário). Pablo era médico e professor. Nascera em Barcelona, na Espanha, e chegara ao Brasil em 1975. Disse-me:

Pouco tempo depois de eu chegar ao Brasil, um amigo me convidou para dar aula em uma universidade, em Santo Amaro. Mas eu não tinha tempo. Tinha que cuidar das atividades de formação do [Centro Cultural Toledo], do Opus Dei. Tinha que administrar a coisa toda. Então, meu colega quis saber o porquê de eu não poder ir dar aula lá e lhe expliquei que meu propósito era com o Opus Dei e que estava disposto a abrir mão de meus desejos de realização pessoal por isso. Quando terminei, ele disse: “vocês, do Opus Dei, são uma espécie de monges executivos. Vocês fazem votos de castidade, pobreza e obediência, assim como os monges, mas também são executivos, advogados, médicos… Vocês são templários da Avenida Paulista!”

Metodologia:

Uma vez que nosso intuito é acompanhar os atores por diversos espaços de ação e regimes de discurso que vão além da circunscrição local da residência do Opus Dei, propomos uma “etnografia multisituada” (multi-sited ethnography) (MARCUS, 1995). Com efeito, pretendemos seguir os atores por vários lugares (universidades, cursos, palestras, empresas, ruas, mídia, etc.) para analisar como as tecnologias do self e o governo do self são desempenhados nesses diversos locais de ação. Ao mesmo tempo, a etnografia multisituada nos permite observar as relações de conflito estabelecidas entre os atores do Opus Dei e os outros agentes que atuam nesses locais. Nas palavras de Marcus (1995, p. 97, tradução nossa): “estratégias de, literalmente, seguir conexões, associações e supostas relações estão no centro do projeto da pesquisa etnográfica multisituada”. Desse modo, nos propomos a “seguir” nossos atores por locais diversos de ação, mas sem abrir mão da etnografia localizada na residência do Opus Dei da qual nossa pesquisa partiu.

O conceito de “accountability” de Harold Garfinkel (1967) é essencial para compreender a ação e a construção das narrativas de si que observaremos. Conforme vimos em Rose (1996), a narrativa de si permite que um determinado aspecto do self venha à tona. Nos relatos dos atores sobre a centralidade da “santificação do trabalho” em suas vidas, por exemplo,

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veremos que expressam uma inteligibilidade em relação aos processos e regras existentes no Opus Dei e que tecem reflexões de como isso afeta positivamente suas vidas e formas de ser, ou mesmo negativamente, no caso dos que saíram da prelazia e a acusaram de abusos.

Acreditamos que além da existência das tecnologias do self, há também uma reflexão por parte de quem as desempenha sobre a forma específica de governamentalidade do Opus Dei. Com efeito, podemos pensar em como ações rotineiras, tais como a mortificação corporal, tornam-se objeto de reflexão de quem as pratica. Para ter acesso a essas reflexões, precisaremos olhar para as narrativas construídas pelos atores em suas vidas cotidianas. Entenderemos essas narrativas como reflexões e racionalizações que os atores produzem acerca das próprias práticas, o que Garfinkel (1967) chama de accountability.

A accountability é a verbalização do processo reflexivo que os atores lançam sobre as regras, situações e circunstâncias que vivenciam e, desse modo, constroem a realidade. Segundo Alain Coulon (1995, p. 45), “dizer que o mundo é accountable significa que ele é algo disponível, isto é, descritível, inteligível, relatável, analisável”. Para o autor, isso se expressa “nas ações práticas dos atores”. Como exemplifica o caso Agnes (GARFINKEL, 1967), um determinado tipo de personalidade emerge no processo de accountability, nesse caso, a sexual. Essa concepção afina-se com a ideia de Rose (1996) de que determinados aspectos, ou “dobras”, do self vêm à tona de acordo com o regime discursivo de que fala e sua posição nesse regime. É por meio da accountability que temos acesso à atuação dos sujeitos (como nas atividades de formação do Opus Dei, por exemplo), assim como seu papel no processo reflexivo em que os atores se encontram e por meio dos quais produzem narrativas (a accountability). O governo do self não está apenas ligado à mortificação, negação da sexualidade e obediência absoluta, mas também à presença ativa em diversos cenários, tais como cursos de formação, oficinas, atividades espirituais, reuniões empresariais e palestras nas universidades em que o membro é estimulado a escolher e a se construir como católico dentro de certos parâmetros.

Os dados descritos e analisados nesse trabalho são produto da etnografia que conduzi durante cinco anos (de 2011 a 2016) no Centro Cultural Toledo (CCT), uma residência do Opus Dei para homens na cidade de São Paulo. Ao longo da pesquisa, também pude observar os outros centros do Opus Dei em São Paulo, assim como em outras cidades, tais como no Rio de Janeiro, Lisboa, Nova York, Chicago, Berkeley e Palo Alto (as duas últimas na Califórnia). Ao investigar a história do Opus Dei no Brasil, conduzi entrevistas semiestruturadas com alguns dos primeiros membros enviados da Espanha para São Paulo, uma vez que não há nenhuma publicação sobre esse tema e os documentos oficiais só podem ser acessados pelo governo do

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Opus Dei em São Paulo. Também conduzi entrevistas semiestruturadas para capturar narrativas de histórias de vida com alguns dos personagens que aparecem aqui. As pessoas e lugares tiveram seus nomes alterados para preservar suas identidades, a não ser aquelas que aparecem em vídeos de domínio público.

Embora algumas narrativas de histórias de vida estejam gravadas em áudio e algumas situações em vídeo, reconstruí a maioria das falas, palestras e situações a partir de minhas anotações de campo. Isso confere um caráter ficcional a esse trabalho, tal como Geertz (2008, p. 11) entende a ideia de ficção na Antropologia:

[...] Os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda ou terceira mão. (Por definição, somente um “nativo” faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura.) [...] Trata-se, portanto, de ficções: ficções no sentido de que são “algo construído”, “algo modelado” – o sentido original de fictio – não que sejam falsas, não factuais ou apenas experimentos do pensamento.

Também usei essa forma narrativa no sentido empregado por Taniele Rui (2012, p. 49): para manter o aspecto ético do trabalho, preservando as identidades das pessoas pesquisadas. Assim como Rui (2012, p, 49), em alguns momentos desse trabalho, optei por “dar visibilidade ao que me instiga” ao invés de olhar para a “biografia particularizada”. Desse modo, surgiram Marcos e padre Tobias, personagens de trajetória ficcional que aglutinam diversas trajetórias e personagens que acompanhei e que nos possibilitam enfatizar certos aspectos do governo do self e das tecnologias do self. Portanto, situações experimentadas por diversos personagens compõem as trajetórias de Marcos e padre Tobias. Marcos concentra trajetórias de alguns numerários, enquanto padre Tobias abrange as trajetórias de alguns sacerdotes do Opus Dei. Por outro lado, com relação àqueles personagens que concederam entrevistas a respeito de suas trajetórias (são eles Félix, André, Pablo e Di Franco), reproduzimos suas narrativas tal como foram proferidas e nos limitamos às situações que protagonizaram, embora, como mencionei, essas situações também adquiram um caráter ficcional na medida em que as reconstruí a partir de minhas memórias e anotações de campo.

Uma vez que meu intuito era observar as tecnologias do self e as práticas do governo do self que formavam os atores do Opus Dei, o CCT afigurou-se como o lugar mais indicado em meu pré-campo. Quando comecei a frequentar o CCT, em 2011, os diretores desse centro se mostraram como os mais qualificados e abertos a tratar sobre o assunto. O diretor espiritual do centro era o padre Tobias, um espanhol que chegara ao Brasil em 1975. Além de suas meditações serem mais consistentes e coesas do que a dos padres dos outros centros universitários do Opus Dei por conta de sua experiência, padre Tobias também fazia parte da

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Delegação, o governo do Opus Dei para os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, cidades onde o Opus Dei é mais forte e atuante. Padre Tobias convivera muito tempo com Josemaria Escrivá e respondia com facilidade qualquer coisa que eu perguntasse. Alguns anos depois, padre Tobias foi substituído por um padre mais jovem, ainda em treinamento. O diretor do centro era André, que também era espanhol. Chegara a São Paulo junto com padre Tobias, em 1975. André era professor de História de uma universidade de São Paulo, o que facilitava a conversa sobre o trabalho que eu desenvolvia. Além disso, não pareceu demonstrar desconfiança quando expliquei sobre a pesquisa, diferente dos diretores mais jovens que conheci em outros centros.

Com o passar do tempo, percebi que o CCT seria o lugar mais adequado à pesquisa de campo uma vez que meu intuito era estudar a formação de sujeitos católicos e sua relação com o “secular”. Em primeiro lugar, a figura de “centro cultural” é uma especificidade do contexto brasileiro, uma forma própria de projetar um espaço em que se desempenhassem práticas “seculares” e “religiosas”. O projeto de um lugar que mesclasse intensa atividade intelectual e acadêmica, entendida por seus membros como “secular”, com práticas católicas foi se desenvolvendo na medida em que o Opus Dei ia adaptando-se à cidade de São Paulo e à vida universitária. Esse projeto ganhou uma característica própria no CCT sob a direção de André, cujas especialidades eram História e Literatura. Sob a administração de André, a ideia do “centro cultural” associou-se a discussões literárias que ele sistematizou em uma atividade chamada “Fidelitas”. Segundo ele, sua ideia, ao discutir literatura com universitários, era despertar sentimentos e emoções por meio das imagens literárias. O “Fidelitas” ganhou projeção internacional no Opus Dei, de tal sorte que apareceu na revista Crônicas, publicação interna da prelazia.

O CCT e sua arquitetura:

Assim que minhas visitas ao CCT se tornaram frequentes, percebi que a arquitetura do edifício era projetada para produzir uma dicotomia entre espaços “seculares” e “religiosos”. Os espaços “religiosos” eram o oratório e a sala do sacerdote. No oratório, aconteciam as missas, as meditações, as cerimônias litúrgicas, a Via Sacra e o exame de consciência, todos conduzidos pelo padre Tobias e tendo os “leigos” como público. Na sala do sacerdote, acontecia a direção espiritual e a confissão. Nos espaços “seculares”, ocorriam as tertúlias, palestras, debates, filmes, círculos, aulas e outas atividades eventuais. Os numerários leigos coordenavam essas atividades. Esses espaços eram a sala de estar, as salas de conversa e o auditório. Essa

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divisão expressava-se na própria arquitetura da casa. Salas de estar, salas de conversa, escritórios, quartos e salas de estudo coexistiam com o oratório. Marcos, um administrador de empresa de 24 anos, um de meus principais informantes, disse-me que o oratório era o “coração pulsante do centro, de onde vinha sua vida”. Para quem passasse o dia no centro, intercalavam-se atividades acadêmicas e de estudo com atividades “religiosas” no oratório.

O CCT ficava em uma rua estreita perpendicular a uma avenida movimentada de um bairro nobre de São Paulo. Na altura onde ficava o centro, a rua era residencial e pouco movimentada, não ostentava grandeza ou refinamento nas fachadas dos edifícios, tampouco nos carros estacionados ao longo da rua estreita. Na altura em que estava o CCT, circulavam apenas alguns moradores de prédios vizinhos. A rua era agradável, bem arborizada em ambas as calçadas e mal se ouvia o som dos carros que trafegavam pela avenida. Era ali, bem ao lado da escadaria em L que ligava a avenida à rua, onde estava o CCT.

O CCT era uma construção simples, sem nenhum tipo de ostentação, a qual passaria despercebida por qualquer transeunte. Muitos dos vizinhos sequer imaginavam que aquilo se tratasse de um centro do Opus Dei. Ao lado direito do centro havia um prédio alto de apartamentos com cerca de quinze andares. Ao lado desse prédio estava a escadaria em L que dava acesso à avenida. À esquerda do centro, havia outro prédio quase que da mesma altura daquele primeiro. O Centro Cultural Toledo, uma modesta construção de três andares, ficava espremido entre esses dois edifícios. Logo à frente, jazia outro prédio de uns quinze andares e, ao lado deste, havia outro edifício em construção. Naquela rua havia mais alguns edifícios mais ou menos daquela altura, mas não eram tantos que pudessem provocar uma poluição visual.

O formato arquitetônico do centro era quadrado. Para quem olhava de fora, dava a impressão de se tratar de um grande cubo verde musgo. Na frente das janelas do primeiro andar, havia uma espécie de grade branca feita de tijolos que se estendia horizontalmente de uma ponta à outra da fachada. A porta de entrada era branca e ladeada por uma janela da mesma cor. Logo à frente, havia um jardinzinho e um muro baixo que dava para a calçada da rua. Havia duas entradas de garagem, uma em cada lado do edifício. A da esquerda para as numerárias auxiliares e a da direita para os frequentadores e numerários. Essa divisão era necessária para que homens e mulheres não se encontrassem.

A pequena porta branca dava acesso ao hall de entrada, um saguão espaçoso com o piso de mármore branco. O ambiente era decorado com uma estatueta de latão de Dom Quixote sobre um aparador de madeira escura e uma pequena estante de livros. Pinturas abstratas decoravam as paredes brancas. O ambiente era iluminado por um abajur de haste comprida e

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