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Vozes das mulheres negras nos saraus e slams da cidade de São Paulo

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM LETRAS

ELAINE CORREIA DE OLIVEIRA

VOZES DAS MULHERES NEGRAS NOS SARAUS E SLAMS DA CIDADE DE SÃO PAULO

GUARULHOS 2020

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM LETRAS

ELAINE CORREIA DE OLIVEIRA

VOZES DAS MULHERES NEGRAS NOS SARAUS E SLAMS DA CIDADE DE SÃO PAULO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de São Paulo, Campus Guarulhos, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras, Área de Concentração Estudos Literários, Linha de Pesquisa Literatura e autonomia: entre estética e ética.

Orientadora: Profª. Dra. Francine Fernandes Weiss Ricieri

Coorientadora: Profa. Dra. Lígia Fonseca Ferreira

GUARULHOS 2020

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Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos autorais nº 9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório Institucional da UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer ressarcimento dos direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico para fins de divulgação intelectual, desde que citada a fonte.

Oliveira, Elaine Correia.

Título: Vozes das mulheres negras nos saraus e slams da cidade de São Paulo – 2020 – 103 f.

Dissertação. Mestrado em Letras – Guarulhos: Universidade Federal de São Paulo. Escola de Filosofia, Letras e Humanas.

Orientador: Francine Fernandes Weiss Ricieri. Co-orientadora: Lígia Fonseca Ferreira.

Voices of black in women is soirées in slam in the city of São Paulo

1. Sarau. 2. Slam. 3. Performance. 4. I. Francine Fernandes Weiss Ricieri. Co-orientadora: Lígia Fonseca Ferreira. II. Vozes das mulheres negras nos saraus e slams da cidade de São Paulo.

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Nome: OLIVEIRA, Elaine Correia

Título: Vozes das mulheres negras nos saraus e slams da cidade de São Paulo

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de São Paulo, Campus Guarulhos, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras, Área de Concentração Estudos Literários, Linha de Pesquisa Literatura e autonomia: entre estética e ética.

Orientadora: Profª. Dra. Francine Fernandes Weiss Ricieri

Coorientadora: Profa. Dra. Lígia Fonseca Ferreira

Aprovado em: 07/07/2020

Banca examinadora:

Profa. Dra. Francine Fernandes Weiss Ricieri (Presidente) Universidade Federal de São Paulo

_________________________________________________________________

Profa. Dra. Lígia Fonseca Ferreira Universidade Federal de São Paulo

_________________________________________________________________

Dra. Fernanda Rodrigues Miranda Universidade de São Paulo

__________________________________________________________

Prof. Dr. Álvaro Silveira Faleiros Universidade de São Paulo

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AGRADECIMENTOS

À UNIFESP/GUARULHOS.

À professora Francine por incentivar o projeto desde o início e orientar este trabalho com muita eficiência, generosidade e afeto.

Aos professores Pedro Marques Neto, Gustavo Scudeller e Lígia Fonseca Ferreira pelo acolhimento para iniciar o projeto e comentários durante todo processo.

Ao professor Henrique Marques Samyn pelas contribuições no momento da qualificação.

À professora Izilda Cristina Johanson por conceder um estágio em docência no curso de Filosofia e Interseccionalidade.

Às poetas Patrícia Meira, Daniela Rosa, Andresa Fernandes e Thata Alves que estiveram sempre dispostas em acrescentar detalhes de suas performances e poemas para este trabalho.

Ao amigo Nelson Flávio Moraes e Danilo Rodrigues pelo apoio e carinho durante o meu processo de pesquisa.

À UNEAFRO/BRASIL todos os professores e voluntários por partilharem comigo um tipo de educação emancipatória, libertadora e antirracista.

À minha mãe Maria do Carmo Correia e minha madrinha Regina Francisca Ferreira que são meus maiores exemplos de companheirismo feminino de mulher negra e nordestina.

À memória de meu Eloi Bispo que me ensinou ter força nos momentos de dificuldades.

À memória de meu irmão Ernane Correia que me incentivou a ter os primeiros acessos à cultura e arte periférica.

Ao meu companheiro Adriano José Sousa por ser um exemplo de pesquisador e me auxiliar neste trabalho, pela paciência, por ser parceiro e incentivador da minha vida acadêmica.

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“Escrever é uma maneira de sangrar” Conceição Evaristo

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Resumo

O presente trabalho dedica-se ao estudo de slams e saraus realizados na periferia da cidade de São Paulo. Em especial, serão estudadas as vozes das mulheres negras que se expressam nesses espaços. O objetivo da pesquisa é analisar as linguagens poética, oral e corporal das performances que compõem as apresentações, assim como destacar nessas manifestações sua relevância cultural, além de mostrar a importância dos saraus e slams como meios de transformação social através da cultura e da arte marginal periférica. Os métodos aplicados serão: seleção de leitura de bibliografia e análise de vídeos em plataformas públicas sobre o objeto de estudo que são as performances e as recitações poéticas.

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Abstract

The present work is dedicated to the study of poetry slams and saraus taking place in São Paulo suburbs. Specially, we will be study the voices of black women that express themselves in those places. The objective is to analyze the poetic, oral and body language of the performances that make up the presentations, as well as highlighting in these expositions their cultural relevance, in order to show the importance of saraus and poetry slams as means to social transformation through culture and marginal suburban art. The applied methods are: bibliography reading selection and video analysis in public platforms about the study subject, which are the performances and poetry recital.

Keywords: marginal suburban art, suburban poetry slam; poetry slam; culture; black woman.

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Sumário

1. INTRODUÇÃO ... 10

2. LITERATURA DE AUTORAS NEGRAS NO BRASIL, SOB A ESCRITA DE CAROLINA MARIA DE JESUS, TULA PILAR E MEL DUARTE ... 15

2.1 Uma breve análise da produção literária de mulheres negras no Brasil, os aspectos históricos, sociológicos e psicológicos ... 15

2.2 Biografia de Carolina Maria de Jesus, Tula Pilar e Mel Duarte ... 24

2.3 A mulher negra e o poder de fala ... 32

3. UM BREVE PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE OS SARAUS E SLAMS DA CIDADE DE SÃO PAULO: SARAU DAS PRETAS E SLAM DAS MINAS ... 51

3.1 A poesia da mulher negra no Sarau das Pretas ... 61

3.2 A voz da mulher negra nos slams na cidade de São Paulo, Slam das Minas ... 68

4 A VOZ DA MULHER NEGRA POESIA, CORPO E HISTÓRIA, ANÁLISE DO SARAU COLETIVO ALCOVA ... 80

4.1 Trajetória do Coletivo Alcova ... 80

4.2 Análise da performance ... 81

Considerações finais ... 97

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1. INTRODUÇÃO

Esta proposta inicialmente surgiu com a perspectiva de analisar as vozes presentes nos saraus de periferias. Ao realizar o levantamento de teses já existentes sobre o tema, verificamos que as pesquisas já realizadas, em sua maioria, são voltadas para os principais saraus da cidade de São Paulo, destacando as vozes neles presentes, porém sem a presença da mulher negra como central nesses espaços. Nesse sentido, ao acompanhar de perto diversos saraus e slams e notar o protagonismo dessa mulher nesses locais, surgiu a ideia de realizar um estudo em que essa mulher seja o tema principal da pesquisa. Contudo, não seria possível ou adequado desconsiderar minha posição como mulher negra e ativista das causas do feminismo negro, principalmente no que diz respeito a um projeto pessoal de revalorização da mulher negra que pensa e fala em contraponto de um lugar comum que ainda insiste em nos colocar como subalternas. Sendo assim, minha posição acaba por se manifestar como componente decisiva do recorte proposto para o trabalho.

Após acompanhar a rotina de alguns saraus e slams da cidade de São Paulo, selecionamos três deles, Sarau das Pretas, Sarau Coletivo Alcova e Slam das Minas, tendo em vista que a participação da mulher negra nos três eventos é predominante, como também por manterem grande circulação na cidade. Desse modo, o trabalho de análise das performances é realizado pelo acompanhamento da apresentação desses grupos ao vivo e por vídeos.

As análises são fundamentadas em três pilares. O primeiro seria a melodia que vai considerar os componentes das canções presentes na performance, considerando o uso de instrumentos ou não nas apresentações. O segundo seria o aspecto gestual, presente quando as mulheres usam o corpo como meio de expressar seus poemas, buscando entender no primeiro momento como o corpo da mulher negra é interpretado e a relação desse corpo com a sociedade. O terceiro pilar diz respeito aos estudos linguísticos, que realizaram estudos do contexto social, histórico em produções discursivas, com o objetivo de compreender as questões psicológicas e da ancestralidade presentes nas letras.

A fundamentação teórica da pesquisa está baseada nos estudos do medievalista Paul Zumthor, no que diz respeito à contextualização das performances e de todos os aspectos relacionados a ela: como a tradição oral, o poeta, a voz, a palavra, o intérprete, o espaço e a recepção presentes nas apresentações. Com base nas leituras realizadas das obras do autor, destacamos que Zumthor considera que:

[...]Tecnicamente, a performance aparece como uma ação-oral-auditiva complexa, pela qual uma mensagem poética é simultaneamente transmitida e

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11 percebida, aqui e agora. Locutor, destinatário(s), circunstâncias acham-se fisicamente confrontados, indiscutíveis. Na performance, recortam-se os dois eixos de toda comunicação social: o que reúne o locutor ao autor; e aquele sobre o qual se unem situação e tradição[...]. (ZUMTHOR, 1993, p. 222)

Para o teórico, a performance desempenha uma situação de comunicação social num jogo de apelo e aproximação capaz de produzir sentidos e manter a obra viva. Nesse caso, a contribuição de Zumthor para nossa pesquisa é fundamental para que seja possível interpretar as situações das performances analisadas, tornando os estudos mais elaborados e direcionados.

Também a contribuição da tradição oral africana é indispensável para as análises das apresentações, devido ao contato que as poetas mantêm com sua ancestralidade. Nesse sentido, teremos como base a contribuição do mestre em tradição oral, Amadou Hampaté Bâ. Sobre os estudos do autor ressaltamos:

Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade a menos que se apoie nessa herança de conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. Essa herança ainda não se perdeu e reside na memória da última geração de grandes depositários, de quem se pode dizer que é a memória viva da África. (HAMPATÉ, 2010, p.167)

Para Hampaté Bâ, a tradição oral africana está relacionada a um poder da palavra que vem através do divino. (HAMPATÉ, 2010, p. 183) Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. Logo, seria possível notar nas apresentações dos grupos selecionados uma certa relação com a tradição africana, em especial quando as mulheres invocam suas ancestrais, através de suas vestes e da forma como se expressam.

A pesquisa está centralizada na vida da mulher negra. Nesse contexto, é necessário um estudo com certa profundidade em relação à história, aos conflitos sociais e às condições psicológicas que essas mulheres desenvolvem para assim chegar a uma análise mais ampla de suas produções poéticas. Para desenvolver esses estudos, recorreremos às obras de teóricos(as) afrobrasileiros(as) para que seja possível manter certa proximidade entre as condições vivenciadas entre as poetas e as teorias analisadas. Entre esses teóricos, destacamos os pensamentos da intelectual Lélia Gonzalez sobre o mito da democracia racial e de como a mulher negra é situada nesse discurso. A autora se propõe a pensar a partir dos seguintes aspectos:

O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós, o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular. Consequentemente, o lugar de onde falaremos

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12 põe um outro, aquele é que habitualmente nós vínhamos colocando em textos anteriores. E a mudança foi se dando a partir de certas noções que, forçando sua emergência em nosso discurso, nos levaram a retornar à questão da mulher negra numa outra perspectiva. Trata-se das noções de mulata, doméstica e mãe preta. (GONZALEZ, 1984, p.224)

É sob as análises de Gonzalez que a pesquisa discorrerá, buscando compreender a mulher negra no passado escravista e como essa herança marcada por dores e lutas chegou à mulher negra contemporânea, de modo que esses fatores sejam pensados para melhores análises dos poemas dessas mulheres.

Contaremos, ainda, com a contribuição de outros teóricos que seguem na linha da psicologia, como o caso do psiquiatra e filósofo Frantz Fanon, que buscou em seus estudos entender as condições de vida do negro em diáspora, como se pode observar na seguinte passagem de seus estudos:

Antes de abrir o dossiê, queremos dizer certas coisas. A análise que empreendemos é psicológica. No entanto, permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de inferioridade após um duplo processo – incialmente econômico – seguido pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade. (FANON, 2008, p.28)

Os estudos de Fanon permitirão compreender o processo de tomada de consciência do negro(a) em diáspora, pois o despertar para uma consciência de ser negro(a) exige uma postura de muita determinação, conhecimento de sua cultura e resistência para que seja possível pensar sua história a partir de um olhar diferente da visão do colonizador. O enfrentamento demonstrado através das vozes das mulheres negras é uma das formas segundo a qual, desde o passado escravista, sua cultura é mantida viva e pode ser vista como uma forma de resistência. Esse processo permite que possam manter sua identidade, expondo nos versos suas referências ancestrais de mulheres que lutaram para manter sua tradição e protagonismo vivos e, assim, fazer com que história continue sendo contada a partir das referências negros(as).

A pesquisa terá como base teórica outros autores que também trarão importantes contribuições, como o intelectual Abdias Nascimento, a filosofa Djamila Ribeiro, o historiador Weber Lopes Góes e as professoras e críticas Cristian Sales e Regina Dalcastagnè, entre outros(as). Desse modo, será possível desenvolver um trabalho que consiga estudar com profundidade as situações de performance e escritas das poetas analisadas.

No segundo capítulo, intitulado “A literatura da mulher negra: a escrita de Carolina Maria de Jesus, Tula Pilar e Mel Duarte”, buscamos abordar questões que perpassam pela história da mulher negra no Brasil para que seja possível, em um primeiro momento, entender

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13 como a mulher afrobrasileira foi representada, muitas vezes de maneira estereotipada, nos grandes clássicos da literatura brasileira, e, desse modo, compreender a importância do poder de fala, quando essa mulher escreve sobre si mesma. Em decorrência disso, articularemos as produções das obras das escritoras Carolina Maria de Jesus, Tula Pilar e Mel Duarte para realizarmos um processo cronológico de comparações das biografias e escritas das autoras, tendo em vista que elas apresentam suas obras em tempos distintos, porém mesmo vivendo em contextos históricos diferentes, suas abordagens falam das mesmas condições ainda notadas nas situações vividas pelas mulheres negras no Brasil.

O terceiro capítulo, “Um breve panorama dos estudos sobre os saraus e slams da cidade de São Paulo, Sarau das Pretas e Slam das Minas”, tem como objetivo estudar essas manifestações artísticas que atualmente vêm ganhando grande espaço na cidade e entender o seu processo na literatura brasileira, assim o debate permitirá pensar como acontecem essas manifestações, quais relações elas estabelecem com outras manifestações artísticas do passado, suas contribuições para a cultura nesse momento e como as mulheres negras interagem e participam desses eventos. Pensando no protagonismo da mulher negra nesses espaços, direcionamos as análises especificamente para os Sarau das Pretas e Slam das Minas, para que seja possível compreender o papel dessas mulheres nos meios artísticos periféricos.

O quarto capítulo recebe o título de “A voz da mulher negra, poesia, corpo e história: análise do Sarau Coletivo Alcova”. Os estudos sobre o coletivo permitiram um aprofundamento em questões performáticas de uma apresentação que também se assemelham ao estilo analisado na pesquisa. O Coletivo Alcova terá um lugar específico na pesquisa, devido às características teatrais fortemente notadas nas apresentações, com destaque para os fatos narrados através dos poemas. Pode ser demonstrada, assim, uma certa linearidade dos temas que se iniciam com a violência, passam pela dor, para chegar a empoderamento e resistência. Esses temas se formalizam por palavras, cantos e gestos corporais interpretados pelas integrantes do grupo. Sendo assim, esse capítulo também estudará como seus corpos são interpretados pela sociedade dentro de um processo de escrita, voz e movimento.

De acordo com o estudo que foi feito até o momento, o que se pretende é a realização de análises dos poemas e performances de grupos diferenciados para que seja possível encontrar aspectos que incorporam as apresentações. Para tanto, será necessário levar em consideração o debate acerca do estilo artístico dessas manifestações de saraus e slams e demonstrar, por meio das análises das performances e dos poemas, a importância desses eventos como meio de transformação social através da cultura e da arte literária marginal periférica. Nesse sentido,

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14 espera-se ampliar as ideias em relação à diversidade de múltiplas linguagens no campo literário a fim de garantir um espaço democrático.

Desse modo, a pesquisa buscou demonstrar por meio de cada capítulo os métodos pelos quais serão realizados os estudos em relação às interpretações dos novos fenômenos artísticos de saraus e slams na cidade de São Paulo, considerando como relevantes as vozes das mulheres negras nesses espaços. Espera-se compreender as demandas de vida e experiência dessas mulheres, para que seja possível desenvolver um trabalho com certa profundidade em relação às principais temáticas entre dores e lutas expressadas na escrita dos poemas e nas performances.

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2. LITERATURA DE AUTORAS NEGRAS NO BRASIL, SOB A ESCRITA DE CAROLINA MARIA DE JESUS, TULA PILAR E MEL DUARTE

Este capítulo tem como objetivo realizar análises que ajudem a compreender alguns textos de escritoras negras brasileiras. Esses apontamentos terão como ponto de partida os estudos históricos e sociais em relação à vida dessas mulheres desde o passado escravocrata até o contexto atual, buscando pesquisar alguns textos que a expõem de maneira estereotipada, comparando sua produção quando fala de si mesma. Nesse sentido, por meio das análises estabelecidas, buscaremos entender a importância do lugar de fala da mulher negra na literatura brasileira, de modo a ampliar o olhar para as principais temáticas, anseios e indagações de suas escritas.

2.1 Uma breve análise da produção literária de mulheres negras no Brasil, os aspectos históricos, sociológicos e psicológicos

Durante muito tempo e atualmente (só que com mais questionamentos) os corpos negros femininos foram inscritos nas relações de gênero estabelecidas pela dominação do homem branco. Sob o aspecto histórico, desde a importação, os negros escravizados eram representados apenas economicamente para obtenção de lucro, fazendo com que fossem rotulados como produtos rentáveis e não como seres humanos. No caso em discussão, além de realizar tarefas no campo e da casa também as mulheres negras foram exploradas sexualmente como meros corpos sexuais a serviço dos senhores da casa grande. Abdias Nascimento ajuda refletir melhor sobre o fato em seus estudos e destaca que:

O Brasil herdou de Portugal a estrutura patriarcal de família e o preço dessa herança foi pago pela mulher negra, não só durante a escravidão. Ainda nos dias de hoje, a mulher negra, por causa da sua condição de pobreza, ausência de status social, e total desamparo, continua a vítima fácil, vulnerável a qualquer agressão sexual do branco. (NASCIMENTO, 2016, p. 73-74)

Este fato nos revela que a formação social do Brasil se constituiu seguindo um processo que se estabelece na atualidade, mantendo o branco em tese isento de qualquer procedimento racista, uma vez que ele encontra respaldo no mito da “democracia racial.” De acordo com o sociólogo Florestan Fernandes (2006, p.23): “A ideia de que existiria uma democracia racial no Brasil vem sendo fomentada há muito tempo. No fundo, ela constitui uma distorção criada no mundo colonial, como contraparte de inclusão de mestiços no núcleo das “grandes famílias.” A reflexão apresentada por Florestan permite compreendermos como se deu o processo de mestiçagem no Brasil que, longe de ser por relações amorosas visando o bem da mistura de

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16 raças, deu-se sob tortura e violência sexual dessas mulheres, com o objetivo de estabelecer o branqueamento social.

Sendo assim, é possível levantarmos algumas hipóteses que nos ajudam a entender como e porque o mito da democracia racial é aceito com conformidade no Brasil e como a mulher negra é inserida nesse contexto. A historiadora e filosofa Lélia Gonzalez, em seus questionamentos sobre as razões pelas quais esse mito tenha ganhado tanta aceitação, destaca em suas reflexões que:

Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra. Pois o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura na empregada doméstica. É por aí que a culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se exerce com fortes cargas de agressividade. É por aí, também, que se constata que os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito. A nomeação vai depender da situação em que somos vistas. (GONZALEZ, 1984 p. 228)

De acordo com Gonzalez, é preciso observarmos nosso passado escravocrata para entendermos essa dinâmica atual em relação ao corpo e à imagem da mulher negra. Nesse sentido, a pensadora retoma o conceito de mucama que segundo o dicionário da “Escravidão Negra no Brasil” de Clóvis Moura1 (MOURA, 2004, p.68) tem um significado complexo e cheio de maldades. Para González, o que se deve levar em consideração em primeiro lugar é o

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MUCAMA. Escrava doméstica, negra ou parda, escolhida, quase sempre pela senhora, para os serviços domésticos, especialmente nas casas-grandes do Nordeste. Acompanhava a cadeirinha na qual a senhora saía a passeio e podia ser a ama de leite, cozinheira copeira, confidente das filhas do senhor, alcoviteira ou objeto de uso sexual do seu dono ou de outros membros da família. Transformou-se em símbolo erótico para uma certa tendência literária. Dava crias na casa-grande sem que isso causasse espanto, mas os seus filhos, mesmo sendo do senhor ou de seus filhos e parentes, continuavam escravos. Essa sexualização da imagem da mucama é responsável por muitas lendas e fabulações, especialmente no tocante ao ciúme das suas senhoras em relação ao marido. Contam-se casos de olhos arrancados de mucamas servidos à mesa, devido a elogio feito pelo senhor, seios cortados, assassinato de mucamas ordenadas pelas senhoras, etc. O certo, porém, é que isso aconteceu apenas como exceção, pois, de acordo com os valores da época, a mulher tinha de aceitar como normal o comportamento sexual irregular do marido em relação às escravas. Um caso representativo desse ideário mítico com respeito ao ciúme das senhoras de escravos encontra-se neste relato de Silva Campos, publicado nas suas Tradições Baianas: “[...] achava-se à mesa de jantar o senhor de engenho e a sua esposa, copeirando-o uma mulatinha de olhos tentadores, recentemente adquiria por aquele. O homem sem nenhum propósito inconfessável disse então à consorte. (não seriam dois pontos?) Que rapariga de olhos bonitos! [...] No dia seguinte, à hora do almoço, não apareceu a jovem que, para sua infelicidade, nascera com um par de olhos capazes de alvoroçarem um coração de pedra, vindo outra mucama servir à mesa. Prestes a se levantarem, trouxeram de lá de dentro uma salva de prata [...] dizendo a moça ao marido. É presente para ti... O homem ergueu a toalha [...], não podendo conter um gesto de horror. É que vira no fundo da vasilha dois glóbulos oculares [...]”. Esta narrativa, se não for verdadeira, mostra os níveis de irracionalidade a que o escravismo poderia chegar, mesmo para os escravos domésticos que tinham uma situação bem mais favorável do que a grande maioria que trabalhava no leito.

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17 apagamento da palavra de origem quimbunda2 levando, portanto, a uma neutralização do sentido de origem em direção a um significado oficial. No entanto, passando para o significado da palavra dentro do contexto vivido no passado escravista, a mucama exercia a função de escravizada de um sistema reprodutivo em que estava prevista a prestação de serviços sexuais. Nesse sentido, a mulher negra no período escravocrata exerce duas funções: a de mulata (para finalidades sexuais) e a de doméstica (prestação de serviços da casa e da família). Nesse caso, Gonzalez ressalta que:

Quanto à doméstica, ela nada mais é do que a mucama permitida, a da prestação de bens e serviços, ou seja, o burro de carga que carrega sua família e a dos outros nas costas. Daí, ela ser o lado oposto da exaltação; porque está no cotidiano. E é nesse cotidiano que podemos constatar que somos vistas como domésticas. Melhor exemplo disso são os casos de discriminação de mulheres negras da classe média, cada vez mais crescentes. Não adianta serem “educadas” ou estarem “bem vestidas” (afinal, “boa aparência”, como vemos nos anúncios de emprego é uma categoria “branca”, unicamente atribuível a “brancas” ou “clarinhas”). Os porteiros dos edifícios obrigam-nos a entrar pela porta de serviço, obedecendo instruções dos síndicos brancos (os mesmos que as “comem com os olhos” no carnaval ou no oba-oba [...]só pode ser doméstica, logo, entrada (GONZALEZ, 1984 p.230).

No entanto, passando de mucama para contexto atual é justamente a negra esquecida e silenciada que agora é moradora da periferia e sobrevive nos locais mais vulneráveis da vida, quem sofre mais tragicamente os efeitos da terrível marca da história. Exatamente porque é ela que sobrevive na base da prestação de serviços, segurando a estrutura econômica familiar praticamente sozinha. Tudo isso porque seu companheiro, seus irmãos ou seus filhos são objeto de perseguição policial sistemática, tornando-se alvo e presa fácil para o sistema carcerário, quando não seguido de morte, seja diretamente pela própria mão da polícia ou pelos conflitos da criminalidade. É sob as vozes dessas mulheres que atualmente a literatura brasileira vem criando um olhar em relação a suas vidas, corpos e histórias.

Entretanto, ainda sobre as marcas desse passado em relação ao ponto de vista imagético, a mulher negra no Brasil ganha o rótulo da mulata rebolante e de sorriso malicioso, pronta para ser o símbolo da sexualidade do país e nas artes, sua representação não será diferente. Na literatura podemos encontrar, por exemplo, diversas personagens que representam a mulher negra de maneira estereotipada. Na maioria dos papeis hipersexualizada, objetificada e impossibilitada de ser protagonista de sua história. A professora e crítica literária, Cristian

2Quimbunda é o feminino de quimbundo. Significado de quimbundo: língua do grupo banto, falada em

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18 Souza Sales, em seus estudos sobre a escrita e pensamentos da mulher negra, chama atenção para o seguinte fato:

Cito como exemplo os sonetos atribuídos ao escritor Gregório de Matos dedicados à mulata Jelu; as características da personagem Vidinha, no romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Joaquim Manuel de Almeida (1953); as imagens construídas pelo narrador para as personagens afrodescendentes Eufêmia, Esméria e Lucinda, em As Vítimas-Algozes: quadros da escravidão, de Joaquim Manuel de Macedo (1869); os poemas de Castro Alves (1868) nos quais o escritor se refere ao processo de escravização dos negros africanos em nosso país; a representação da personagem Rosa, em A Escrava Isaura, romance escrito por Bernardo Guimarães (1875); a figuração das personagens Rita baiana e Bertoleza, em O Cortiço, de Aluísio Azevedo (1891); O conto intitulado “Negrinha”, de autoria de Monteiro Lobato (1918); o poema “Essa Negra Fulô”, de Jorge de Lima (1929), a imagem da mulher negra presente na poesia “Irene”, de Manuel Bandeira (1930); as personagens afrodescendentes do livro Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre (1930); os “Poemas da Negra”, de Mário de Andrade (1929) e, finalmente, as incontáveis personagens das obras do escritor baiano Jorge Amado, entre elas, destaco o romance Gabriela, cravo e canela (1958), entre outras (os). (SALES, 2012, p.95)

Ao trazer uma série de referências de obras que vão desde o Brasil colonial até as contemporâneas, Cristian revela como a literatura brasileira ainda está voltada para um tipo de escrita que associa mulher negra e imoralidade, permissividade e malícia, reforçando no imaginário dos leitores a ideia de um corpo pronto para o consumo pela dominação masculina branca, um corpo possuído por uma sexualidade voraz com características semelhantes ao passado escravista.

É nesse contexto que muitas obras são consagradas, ganham prestígio e pouca crítica em relação à exposição dos comportamentos estereotipados da mulher afrodescendente. O que é possível perceber, também, é que mesmo quando alguns escritores ou compositores tentam exaltar a figura da mulher negra, em certas situações acabam reproduzindo os mesmos preconceitos já usados no passado, só que utilizando outros recursos. A exemplo disso, temos a letra de música Xica da Silva, de Jorge Ben Jor que, apesar de ser um homem negro que ressalta em suas composições a cultura negra, quando se trata da figura da mulher negra, acaba caindo na mesma estratégia de redução de suas vidas e corpos. Vejamos como o compositor representa a mulher negra na letra:

Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai!...

Xica da, Xica da, Xica da Xica da Silva, a Negra!...(2x)

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19 Xica da Silva

A Negra! A Negra! De escrava a amante Mulher!

Mulher do fidalgo tratador João Fernandes

Ai! Ai! Ai!...

Xica da, Xica da, Xica da Xica da Silva, a Negra!...(2x)

A imperatriz do Tijuco A dona de Diamantina Morava com a sua corte Cercada de belas mucamas...

Num castelo

Na Chácara, na Palha De arquitetura Sólida e requintada Onde tinha até Um lago artifical E uma luxuosa galera Que seu amor

João Fernandes, o tratador Mandou fazer, só para ela Ai! Ai1 Ai!...

Xica da, Xica da, Xica da Xica da Silva, a Negra!...(2x)

Muito rica e invejada Temida e odiada

Pois com as suas perucas Cada uma de uma cor...

Jóias, roupas exóticas Das Índias, Lisboa e Paris A negra era obrigada A ser recebida

Como uma grande senhora Da corte

Do Reis Luís! Da corte Do Reis Luís!...

Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai!...

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20 Xica da, Xica da, Xica da

Xica da Silva, a Negra!...(2x)

Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai!...

Xica da, Xica da, Xica da Xica da Silva...(3x) (BEN JOR, 1976)

A história da Chica da Silva3 já foi reproduzida em diversos formatos artísticos, como novela, filme e letras de músicas. Como novela, Chica da Silva foi exibida pela Rede Manchete entre 17 de setembro de 1996 a 11 de agosto de 1997, em 231 capítulos, substituindo Tocaia Grande e sendo substituída por Mandacaru. Escrita por Walcyr Carrasco (sob o pseudônimo Adamo Angel), com colaboração de José Carvalho, contou com a direção de João Camargo e Jaques Lagoa, J. Alcântara, Lizâneas Azevedo e Walter Avancini, que também foi o diretor geral da trama. Como protagonista, interpretando Chica da Silva, a atriz Thaís Araújo. A novela teve grande repercussão nos âmbitos nacional e internacional.

A letra da música foi composta para fazer parte da trilha sonora do filme Xica da Silva, dirigido por Cacá Diegues. Entretanto, existe uma história curiosa para que a música fosse composta. Em uma entrevista para o programa “Conversa com o Bial”, transmitido pela TV Globo, o cineasta compartilhou diversas histórias. Uma delas envolve o episódio sobre a composição da letra “Xica da Silva” de Jorge Ben Jor:

O cineasta contou que ficou meses atrás de Jorge Ben tentando conseguir que ele compusesse a canção para o filme. Enquanto o tempo se esgotava e a obra já estava quase montada, procurou Roberto Menescal, produtor da Philips, que na época gravava com Jorge Ben, e pediu ajuda. Ele o aconselhou que escrevesse uma carta. Três dias depois do envio da correspondência, chegou à fita cassete com a canção. A letra era a carta dele, musicada. (GSHOW, 2018)

Após observamos a versão da história por Diegues em relação à música, é necessário considerarmos a história pelo ponto de vista de Jorge Ben. Em uma entrevista para o programa Roda Viva, o compositor aborda o mesmo assunto de como escreveu a letra “Xica da Silva’:

3 Francisca da Silva de Oliveira, ou apenas Chica da Silva foi uma escrava, posteriormente alforriada, que viveu no Arraial do Tijuco atual Diamantina, então pertencente ao município do Serro, Minas Gerais, durante a segunda metade do século XVIII. Manteve durante mais de quinze anos uma união consensual estável com o rico contratador dos diamantes João Fernandes de Oliveira, tendo com ele treze filhos. O fato de uma escrava alforriada ter atingido posição de destaque na sociedade local durante o apogeu da exploração de diamantes deu origem a diversos mitos.

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21 Tárik de Souza: É verdade que o Cacá Diegues [cineasta brasileiro, diretor do filme Xica da Silva, de 1976] mandou uma sinopse do Xica da Silva e você musicou a sinopse?

Jorge Ben Jor: Mandou porque, na época, ele queria uma Xica da Silva rápida e mandou [mostra com as mãos um volume imenso do roteiro, provocando risos], eu falei : "Aqui não vai dar" [muitos risos]. Aí ele falou: "Quero assim". Aí fui só ajeitando o meio-de-campo e saiu. (RODAVIVA, 1995)

A curiosa história sobre a composição ajuda-nos compreender que existe mais de um compositor da letra de música “Xica da Silva”. Nesse caso, devemos tomar certo cuidado e fazer uma análise justa, evidenciando quem seriam ambos os compositores da música.

Como composição musical, “Xica da Silva” é uma canção composta pelo cantor brasileiro Jorge Ben Jor. Lançada em 1976, ela faz parte do álbum África Brasil, que também é uma alusão e homenagem a Chica da Silva. Nesse sentido, a análise da letra ajuda a compreender a figura da mulher negra que, mesmo quando alcança determinado poder, sua representação ainda está ligada a certas reproduções estigmatizadas. Partiremos de uma análise da primeira versão cantada por Jorge no disco mencionado, África Brasil.

O primeiro aspecto a ser destacado é a melodia que pode ser sentida através de um som leve e um certo molejo que sugere uma atmosfera de sensualidade provocada no imaginário através da entonação da voz do cantor e do som reproduzido pelos instrumentos. Logo, destacamos que esse som vem acompanhado de um refrão que reforça a sensação de sensualidade da letra quando ele diz: “Xica da, Xixa da, Xica da, Xica da Silva, a negra!...” Vejamos bem, que “Xica da” é repetido três vezes inicialmente no refrão. Metaforicamente, pode ser interpretado como uma construção ambígua que sugere como aquela que dá e, em se tratando da figura de uma mulher negra, sabemos exatamente que o verbo dar está associado ao seu corpo, ou seja, a sua sexualidade. No entanto, só na quarta vez da repetição é que identificamos que ele está se referindo à personagem Chica da Silva.

Ao analisarmos os aspectos linguísticos da construção da letra, observamos que a figura de “Xica da Silva” representa um símbolo de poder. No entanto, essa simbologia pode ser questionada, pois o mérito para ela alcançar esse posto está mais uma vez relacionado às questões sexuais. Identificamos esses aspectos quando ele diz:

De escrava a amante Mulher!

Mulher do fidalgo tratador João Fernandes

Notamos que a passagem de escrava para princesa acontece por meio de uma relação com um homem que proporciona poder a ela. De escrava a amante, significa o que Lélia

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22 Gonzalez nos apontou em seus estudos, já expostos nas páginas anteriores, em relação à mucama, a mulher negra que prestava os serviços para dentro de casa. No caso da “Xica da Silva” representada por Jorge, ela alcançou um lugar de destaque, porém esse lugar só pôde ser acessado através de sua sexualidade.

Sobre as características da princesa, evidenciamos também aspectos que reforçam uma certa folclorização ao descrevê-la:

Muito rica e invejada Temida e odiada

Pois com as suas perucas Cada uma de uma cor...

Jóias, roupas exóticas Das Índias, Lisboa e Paris A negra era obrigada A ser recebida

Como uma grande senhora Da corte

Do Reis Luís!

Observamos nos versos acima que “Xica da Silva” veicula uma imagem em que se pode discernir certo exagero, em suas vestes e comportamentos. Entretanto, os objetos usados por ela reforçam a exuberância de culturas que não a representam, principalmente os artigos europeus. Nesse caso, fica explícito que a imagem que ela passa é de uma mulher fútil, que ganha destaque através de seu poder sexual e depois pela exibição e ostentação das riquezas que nada têm a ver com sua origem. Desse modo, passa de lugar de poder para ocupar um espaço folclórico.

Após essa breve análise da letra “Xica da Silva,” podemos analisar a letra “Zumbi,” outra composição de Jorge Ben Jor, para estabelecermos alguns processos de comparação entre as músicas:

Angola, Congo, Benguela Monjolo, Cabinda, Mina Quiloa, Rebolo

Aqui onde estão os homens Há um grande leilão Dizem que nele há Uma princesa à venda

Que veio junto com seus súditos Acorrentados em carros de boi Eu quero ver

Eu quero ver Eu quero ver

Angola, Congo, Benguela Monjolo, Cabinda, Mina Quiloa, Rebolo

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23 Aqui onde estão os homens

Dum lado cana de açúcar Do outro lado o cafezal Ao centro senhores sentados

Vendo a colheita do algodão tão branco Sendo colhidos por mãos negras Eu quero ver

Eu quero ver Eu quero ver

Quando Zumbi chegar O que vai acontecer Zumbi é senhor das guerras É senhor das demandas Quando Zumbi chega é Zumbi É quem manda

Eu quero ver Eu quero ver Eu quero ver (BEN JOR, 1974)

A letra “Zumbi”, também conhecida como África Brasil “Zumbi,” é composta por uma letra que alude a Zumbi dos Palmares, personagem histórico e líder do Quilombo dos Palmares, no século XVII, “Zumbi” foi lançada no álbum A Tábua de Esmeralda, de 1974. Dois anos depois, o compositor regravou a canção para o álbum África Brasil, mas com muitas modificações em relação à versão original. Para a análise da letra, usaremos a versão do álbum África Brasil.

Na letra “Zumbi”, inicialmente é possível perceber por meio da entonação da voz grave e da batida dos instrumentos, um certo tom de chamado para luta. Logo essa sensação é reforçada pelo último refrão:

Eu quero ver Eu quero ver Eu quero ver

Quando Zumbi chegar O que vai acontecer Zumbi é senhor das guerras É senhor das demandas Quando Zumbi chega é Zumbi É quem manda

Nos versos acima, identificamos como o compositor constrói a imagem de Zumbi, um homem que possui um tipo de poder quase sobrenatural comparado a um orixá, diferente da letra “Xica da Silva,” que tem seu poder relacionado à sexualidade. Zumbi mantém seu poder ligado à força do homem que luta para libertar seus irmãos, enquanto o poder de “Xica da Silva” se ajusta à ordem aristocrática e colonial: ela é ambiciosa, vaidosa e centralizadora, parece apenas se importar em exibir suas jóias, roupas e perucas.

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24 Nesse sentido, há outro ponto a ser destacado. A letra “Zumbi,” inicialmente, invoca a ancestralidade africana: “Angola, Congo, Benguela, Monjolo, Cabinda, Mina Quiloa, Rebolo”. No contexto da letra, esses territórios são citados para dizer o local de onde vêm os homens e mulheres negros que serão vendidos no leilão do tráfico de escravizados. No entanto, ao invocar esses locais, é possível perceber o cuidado que ele tem em dizer que essas pessoas têm identidade, história e origem. É o contrário do que vimos na letra “Xica da Silva,” que por meio da sua vaidade ressalta objetos ligados a uma cultura que não se assemelha à sua.

Na composição “Zumbi” Jorge até cita uma princesa que talvez possa ser Dandara, porém essa princesa não apresenta uma identidade e a sua presença ocupa apenas um verso da composição, ou seja, não há significância, pois o poder de “Zumbi” vem da sua força, ao contrário de “Xica da Silva”, que conquista o poder e posição de destaque por meio de uma união com um homem branco.

Considerados todos os apontamentos realizados em relação às letras de Jorge Ben, devemos destacar que o compositor, em todo seu trabalho, enaltece a cultura afrobrasileira com letras que remetem a personagens importantes da história dessa cultura. No entanto, o machismo e o racismo contra a mulher são tão cruéis e arraigados que nem mesmo o homem negro em certos momentos consegue combater. Sendo assim, esses estudos servem para refletirmos como as mulheres negras são expostas nas diversas manifestações artísticas, para entendermos a importância do lugar de fala dessas mulheres.

Partindo desse ponto, podemos analisar as obras de Carolina Maria de Jesus e Mel Duarte, duas escritoras negras que, apesar de viverem em contextos históricos diferentes, produzem escritas que se assemelham pelas dores, indagações e lutas. Desse modo, podemos analisar, sob outro ponto de vista, uma literatura em que a mulher negra fale de si mesma.

2.2 Biografia de Carolina Maria de Jesus, Tula Pilar e Mel Duarte

Antes de estudarmos os textos das escritoras, é relevante analisar inicialmente suas trajetórias de vidas e obras, pois suas vivências estão relacionadas à maneira como escrevem. Desse modo, também, pretende-se apontar as questões que aproximam e distanciam os estilos de suas escrituras.

Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914, na cidade de Sacramento, em Minas Gerais e faleceu em São Paulo, em 13 de fevereiro de 1977. Foi uma mulher negra que teve uma história de muitos sacrifícios e dificuldades econômicas em sua trajetória, porém obteve muitas conquistas (algumas após a morte) por meio de sua genialidade com a escrita. Devido à morte

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25 de sua mãe, saiu da cidade de Sacramento e migrou para a cidade de São Paulo, em 1937, onde começou a sofrer um processo de rupturas de ideias e vivências. Desse modo, sua obra, que possui um cunho testemunhal, também é marcada por uma literatura em movimento, pelo deslocamento espacial e cultural, pois para a autora não é possível esquecer o que abandonou.

Ao chegar a São Paulo, construiu seu próprio barraco na conhecida favela do Canindé. Iniciou-se na profissão de empregada doméstica, porém abandonou a atividade para começar o trabalho de catadora de lixo reciclável. Com sua insubordinação, buscou sempre um trabalho em que tivesse autonomia, dizia que não nasceu para ser teleguiada. Portanto, foi nesse momento de chegada à cidade que Carolina começou a escrever.

Nesse contexto, a autora buscou seu próprio sustento e de seus filhos e se dedicou à escrita nos momentos de refúgio. Desde criança teve aptidão para os estudos, sendo uma grande leitora, mesmo estudando por apenas dois anos na cidade de Sacramento. Segundo a escritora, duas coisas seriam indispensáveis para o ser humano: a terra e o livro. Logo, ela sabia que estava no comando de seu destino e que realizaria seu sonho de ser uma escritora reconhecida. Passou boa parte dessa época buscando quem pudesse publicar suas páginas e foi assim que ela encontrou o jornalista Audálio Dantas, que divulgou sua obra. Ao contrário do que se lê nas diversas biografias de Carolina, devemos considerar que foi a autora que descobriu o jornalista, visto que ela já havia iniciado sua carreira e estava determinada a publicá-las antes de encontrá-lo.

Em 1960, Carolina publicou sua primeira obra Quarto de Despejo, cujos dez mil exemplares se esgotaram em apenas uma semana. A obra de literatura de cunho testemunhal apresenta a autobiografia da autora que descreve seu dia a dia como mulher negra que cuidava de seus filhos sozinha e morava na favela do Canindé que, na época, ficava às margens do rio Tietê. Não demorou muito para que fosse reconhecido internacionalmente. Em 1962, foi publicada nos Estados Unidos, mesmo que a autora não tenha recebido boa parte dos direitos autorais. Após a publicação e o sucesso do livro, Carolina se mudou para o bairro de Santana, na zona norte de São Paulo. De acordo com a pesquisadora em estudos de autoras negras brasileiras, Fernanda R. Miranda,

[Carolina Maria de Jesus] trata-se de uma autora que visibiliza intensamente as marcas da condição nacional racista dentro do sistema literário brasileiro. Quando surgiu, entre o fim da década de 1950 e o começo dos anos 1960, imediatamente tornou-se um fenômeno midiático, em primeiro lugar, porque escrevia, em segundo, porque escrevia sobre si em primeira pessoa, narrando as mazelas de um cotidiano urbano desconhecido pela própria metrópole à altura – a favela. (MIRANDA, 2019, p.16. Grifos meus)

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26 Carolina, por meios dos relatos de sua narrativa, dá visibilidade à favela do Canindé. Entretanto, a invisibilidade das situações vividas pelas pessoas é importante para que a favela não gere nenhum tipo incômodo entre as autoridades da época, pois São Paulo nesse momento era a grande promessa de modernidade e renovação do país. É a partir da publicação de O quarto de despejo: diário de uma favelada que ganha alcance internacional. O livro foi traduzido em quarenta países, sendo que na Alemanha ganhará um destaque mais social. Carolina participa da produção de um documentário com narrativas contando as experiências das pessoas da favela do Canindé, tornando a favela alvo das críticas internacionais. Mesmo já não morando no local e a favela sendo demolida, o documentário Despertar de um sonho foi gravado num local de características próximas ao Canindé, com o objetivo denunciar as condições vividas pelas pessoas que viviam ali.

A autora teve uma vida conturbada, atravessando diversas dificuldades. Não se casou, criou os seus três filhos sozinha, obteve reconhecimento e destaque nacional e internacional, mesmo assim, faleceu em fevereiro de 1977 em uma casa simples no bairro de Parelheiros no extremo da zona sul da cidade de São Paulo. Em vida publicou: Quarto de Despejo (1960); Casa de Alvenaria (1961); Pedaços de fome (1963); Provérbios (1963). Após a sua morte ainda são encontradas e publicadas suas escrituras. São encontrados e publicados seus escritos póstumas são: Diário de Bitita (1977); Um Brasil para Brasileiros (1982); Meu Estranho Diário (1996); Antologia Pessoal (1996); Onde Estaes Felicidade (2014); Meu sonho é escrever – Contos inéditos e outros escritos (2018).

Carolina é vista como uma importante intérprete do Brasil, que soube retratar, através de suas obras, de maneira inovadora e artística, os principais problemas enfrentados por uma grande parte da camada pobre brasileira, como a fome, a diáspora africana e a solidão da mulher negra. A autora pleiteava seu espaço produzindo sua arte. Ela não pensava só na ascensão social, pois seu objetivo era ser polivalente na arte. Dizia que não queria ser vista como uma mulher que viveu às margens do rio ou uma escritora que veio do lixo, mas gostaria de ter sua imagem associada à sua criação, a sua literatura, que foi o seu grande legado, pois a autora sabia que ser mulher, negra, pobre e favelada não era por sua culpa e reconhecia bem os responsáveis por viver nessas condições e ter essas marcas em sua vida.

Sou uma Carolina

Sou uma Carolina Trabalhei desde menina

Na infância lavei, passei, engraxei… Filhos dos outros embalei

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27 Sou negra escritora que virou notícias nos jornais

Foi do Quarto de Despejo aos programas de TV

Sou uma Carolina Escrevo desde menina

Meus textos foram rasgados, amassados, pisoteados Foram tantos beliscões

Pelas bandas lá de Minas Eu sou de Minas Gerais

Fugi da casa da patroa Vassoura não quero ver mais A caneta é meu troféu Borda as palavras no papel É tudo o que quero dizer

Sou uma Carolina Feminino e poesia

A negra escritora que foi do Quarto de Despejo aos programas na TV

Hoje uso salto alto

Vestido decotado, meio curto e com babados Estou na sala de estar

No meu sofá aveludado

Porque…

Sou uma Carolina Feminino e poesia Pobreza não quero mais A caneta é meu troféu Borda as palavras no papel É tudo o que quero dizer… Carolina…

(FAUSTINO & FEITAS. Org. 2019, p.30)

Vídeo com a performance na plataforma pública em:

https://www.youtube.com/watch?v=zx- RChHFOoI&list=PLUQE6hwqdzzPOAOd-N4LM63jWJDv3rtna&index=4&t=27s

Era assim que a poeta Tula Pilar Ferreira gostava de se apresentar. Não é por acaso que os poetas se inspiram em seus antepassados e seguem o legado deixado por eles. Foi assim que Tula Pilar trilhou seu caminho como artista. Assim, como Carolina Maria de Jesus, Tula Pilar foi detentora de diversas habilidades artísticas. Tula cantava, dançava, escrevia e declamava. O que mais ela poderia ter feito se a morte não a tivesse levado tão jovem? Na verdade, mulheres como Carolina e Tula Pilar não morrem nunca, elas renascem quando cada um (a) de nós somos tocados (as) por suas palavras.

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28 Muitas coisas em comum existem entre ambas as autoras, talvez o único fato que as distingue seja a distância no tempo. Tula Pilar, mulher negra de um sorriso largo e afetuoso, nasceu em Minas Gerais, em uma cidadezinha de Belo Horizonte. Sua mãe Antônia, era cozinheira e diarista e passava muito tempo fora de casa, por causa de sua rotina com o trabalho. Nesses momentos de ausência da mãe Antônia, Tula e suas quatro irmãs (depois nasceram mais três) eram acolhidas pela tia Tonica que ela chamava de segunda mãe. Tula descreve esse momento com certos toques de tristeza por presenciar e viver a fome, mas é nesse episódio de sua vida que aprende alternativas de sobrevivência. Podemos evidenciar essa passagem no texto “Frango Verde: Alimentando-me de lixo.” A história, resumidamente, revela que um certo dia, entre seus 7 e 8 anos de idade, sua tia Tonica encontrou um frango no lixo e estava verde e com cheiro desagradável. No mesmo dia, ela e suas irmãs foram brincar e diziam: “Ela está doida de dar isso pra gente” ... (FAUSTINO & FEITAS. Org. 2019, p.58). Com o decorrer da tarde desse mesmo dia, um cheiro bom começou a exalar e as crianças ficaram surpreendia por descobrir que o cheiro vinha do frango verde. Tula conta que ficaram espantados e perguntaram a tia como ela conseguiu fazer com que o frango ficasse saboroso. Ela respondeu, dizendo: “Lavou bem com limão e vinagre, com bastante água quente, depois temperou com cebola, alho e sal e cozinhou na panela de pressão, matando os micróbios e, por isso, ficou gostoso daquele jeito”. (FAUSTINO & FEITAS. Org. 2019, p.59).

Sendo assim, Tula tirou desse episódio uma rara lição para sua vida, que levou também para suas experiências de mulher, negra, escritora e mãe:

Se azedar o arroz – não tínhamos geladeira -, a gente faz bolinho de arroz frito. Se coalhar o leite, fazemos bolo de fubá com canela. Se não tiver dinheiro para pagar o ônibus, juntamos latinha, plástico, garrafa pet e levamos no ferro velho para vender. Também os ensinei, através da contação de histórias e das brincadeiras populares a não perceberem a miséria e a fome próximas de nós e que há muitas alternativas para sobreviver na grande São Paulo. (FAUSTINO & FEITAS. Org. 2019, p.60- 61)

Tula chegou em São Paulo por volta dos seus 18/20 anos de idade para trabalhar como empregada doméstica, serviço que já desempenhava desde sua infância. Começou com emprego fixo aos 14 anos de idade, porém executava tarefas domésticas nas casas das patroas de sua mãe quando aprendeu a desempenhar algumas funções de limpeza doméstica. Em suas palavras, ela expõe o fato de começar tão cedo: “Hoje eu sei que era uma exploração, porque eu era uma criança, só que eu limpava muito bem, arrumava muito bem, eu sempre gostei de limpar a casa, até hoje tenho essa mania.” (FAUSTINO & FEITAS. Org. 2019, p.129). Assim Tula viu a frase estampada em um jornal: “Vá para São Paulo como empregada doméstica, ganhe tanto fazendo tal coisa, tal coisa, tal coisa” (FAUSTINO & FEITAS. Org. 2019, p.129). Não

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29 pensou duas vezes, cansada de ser colocada para fora das casas das “madames” por não querer obedecer a certos caprichos e lutar por dignidade e direitos trabalhistas, mesmo ouvindo algumas advertências, resolveu se mudar para a grande metrópole.

Ao chegar em São Paulo, não tinha nada certo, mas logo se arranjou. Tula se virou como pode nos anos 30, cresceu e teve duas filhas e um filho. Assim como sua mãe os filhos eram de pais diferentes e se mantiveram como mães solos. Para criar seus filhos passou por muitas dificuldades quando não pode mais trabalhar em casa de família se virou como vendedora de plano de saúde, chegando a catar lixos recicláveis para comprar fraldas e alimentos para os filhos. Nesse tempo, ela nunca parou de escrever, dizia que escrevia desde criança, mas as patroas rasgavam os papeis escritos, dizendo que ela estava ali para trabalhar. Tula sempre foi muito despojada e sorridente. Gostava de se relacionar e conhecer pessoas. Um traço muito forte de sua escrita são suas experiências sexuais. No começo, não mostrava a ninguém, até chegar ao Sarau do Binho, onde Binho, o organizador, começou a desenvolver alguns saraus com o tema da sexualidade. Assim ela começou a se apresentar:

O encontro

Sai de casa já atrasada. Desesperada, Atravessei a cidade...

Com o coração cheio de felicidade. Também, repleto de curiosidade. Como será reencontrá-lo?

Quarenta minutos de ônibus, trinta de metrô, Quando me aproximo ele me vê no retrovisor... É o nosso segundo encontro amoroso.

Com música da Diana Krall, na nostalgia, recordei James Brown.

Beijos, abraços, amassos... Excitada, o arranho como louca. Sua boca quente no bico do meu peito. Fico quase sem respirar direito.

Um banho de beijos aumentando meus desejos... Com suspiros de prazer, achamos

que iríamos enlouquecer!

Não houve transa, apesar de eu querer... Apenas masturbação, orgasmos e muito prazer! Com ele quero mais encontros, deitar, ficar, amar Esse homem forte e excitante

De pele negra e olhar penetrante Um peito forte, robusto e peludo; Um sorriso de marfim. Fico malhada só dele olhar por mim.

Volto pra casa tarde da noite, Gargalhando sozinha, hiper contente Passo a semana excitada, carente. Esperando o encontro novamente!

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30 Assim no poema como na vida, a poeta gostava de exibir uma sensualidade que era possível ver em seu sorriso e no movimento do seu corpo. A escritora relata que, desde a infância, gostava de ler e escrever. Considerava que a casa das patroas possuía o que ela chamava de “mina de ouro”, que eram os armários cheios de livros. Sendo muito esperta, quando podia pegava livros escondidos para ler. Ela teve contato com a língua inglesa, lendo diversos clássicos de literatura inglesa. Sendo assim, possuía um certo domínio na escrita com a língua estrangeira, chegando até a produzir alguns poemas em inglês. Conta também que apanhou da mãe ao pegar um livro erótico e mandou a tia jogar o livro fora. Tula, apesar do tempo ainda se lembrava do título de “Amante dócil”. As patroas brigavam com ela por ler na hora do trabalho, ela dizia que não iria ler mais, porém quando as “madames” iam passear ela começava a leitura:

[...] Ah, mas quando ela ia pro Shopping, saía, e eu escondia os livros no quarto, porque meu quarto era no fundo do quintal então, eu tinha muito livro escondido debaixo do colchão. Tinha revista Playboy que eu gostava de ler a Playboy, ver as mulheres peladas (risos), minha mãe me batia, mas eu adorava, eu achava incrível as mulheres peladas. Eu tinha uns contos eróticos também que eu adorava aquilo gente, nossa, acho que é por isso que eu gosto tanto de erotismo, eu lia todos os contos das revistas [...] (FAUSTINO & FEITAS. Org. 2019, p.135)

Apesar de tanta ousadia para ler e escrever, a poeta nessa época estudou até a 4ª série em uma escola pública e depois com o dinheiro da faxina pagou os estudos até a 6ª série em Minas. Com a chegada em São Paulo e as diversas dificuldades que enfrentou, foi somente depois de um tempo que conseguiu continuar os estudos no EJA (Educação de Jovens e Adultos) e assim concluiu o ensino básico. O movimento de literatura periférica teve uma grande contribuição na vida de Tula Pilar. Foi no Sarau do Binho, que fica no extremo da zona Sul da cidade de São Paulo, importante referência de expressão cultural e promove o encontro de vários poetas onde se apresentou por muito tempo e se abriu para o mundo. Desse modo, a poeta enxergava a presença da mulher negra nos espaços de cultura como fundamental, pois para ela é necessário que essas mulheres sejam estimuladas nesses espaços: “Precisamos avançar, ousar mais e estar nos grandes eventos de artes, nos grandes saraus etilizados, nos grandes centros culturais...” (FAUSTINO & FEITAS. Org. 2019, p.126).

Tula faleceu numa tarde de quinta-feira em 11 de abril 2019, aos 40 anos de idade. A poeta deixou sua marca como uma das pioneiras nos movimentos culturais da periferia. Poeta mãe de Samantha, Pedro e Dandara, foi coordenadora do “Raizarte” – coletivo de música, dança e poesia, trabalho pelo qual ela tinha grande apreço, por ter a presença de seus filhos dividindo o coletivo. Vendedora da revista “Ocas”, participou do projeto “Trecho 2.8”, na criação de

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31 pesquisa e fotografia. Realizou as obras: Palavras Inacadêmicas (independente), 2004; e Sensualidade de fino trato (Sarau do Binho), 2017. Desde sua morte, a poeta vem recebendo várias homenagens:

Canto semente para Tula Pilar

Grossos traços e fino trato Firme tato acalanto

Um canto semeando espaço

E virando espetáculo que houvesse plano

Milagrosa senhora do tempo Mil correrias a cada passo Lento

Gingando, molhado, coreografado Vento suave que chega sem rastro

Ocupa e alarga, Elegante e ousada

Ela, de carcaça dura em pele d´água Mulher aquarela

Nua, ALAGA E colore

De afeto e memória e sexo e história e dor e amor Colore

Deixa gravado pra ninguém duvidar E depois, dourada, segue sua caminhada A adorada Rainha Pilar.

(FAUSTINO & FEITAS. Org. 2019, p.182)

Seguindo a cronologia, chegamos a poeta Mel Duarte, que é a mais jovem de nossa análise, porém já está formando seu grande legado. O professor da USP, Ricardo Alexino Ferreira, caracterizou a escrita de Carolina como "direta, nua e crua, mas, ao mesmo tempo, suave.” (BARCELLOS, 2015, p. 22) As palavras do professor remetem à obra Negra Crua Nua, da escritora Mel Duarte. Entretanto, diferentemente do que Alexino aponta a propósito da obra de Carolina, em Mel Duarte haveria um tom suave, dotado, contudo, de um estilo de escrita com momentos de características combativas.

A poeta Mel Duarte nasceu em 1989, tendo o seu primeiro encontro com a literatura aos 8 anos de idade. Atualmente, seu nome é muito citado nos movimentos populares da literatura periférica. Participou da Flip em 2016, onde recitou um poema sobre a questão dos abusos contra as mulheres, que viralizou na internet e no universo literário. Ela tem dois livros publicados: um informalmente, Fragmentos Dispersos e Negra nua crua, publicado pela editora Ijamaa, organizada por mulheres, tendo também publicado em diversas antologias. Mel é formada em comunicação social. Além de ser poeta, participa de alguns movimentos de saraus

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32 pela cidade. Lidera o Slam das Minas de SP, criado em outubro 2016, que tem como temática a questão da mulher e, também, é organizadora do “Poetas Ambulantes”, um projeto que reúne poetas que declamam poemas nos transportes públicos da cidade de São Paulo. Em uma roda de conversa na biblioteca Cora Carolina, em 14 de julho de 2017, a poeta revelou que, apesar de estar nos espaços de comunicação mais destacados socialmente, seu trabalho é na periferia, por isso desenvolve projetos em Fundações Casas e em outros espaços que concentram pessoas em situação de vulnerabilidade.

2.3 A mulher negra e o poder de fala

Considerando os fatos e sem perder o conjunto de sentidos mencionados sobre o corpo e a representação da mulher negra, atualmente as escritoras refletem criticamente sobre essas representações pejorativas da imagem do corpo negro feminino pela tradição cultural brasileira. Nesse sentido, podemos considerar Carolina Maria de Jesus uma das precursoras, ao colocar a imagem da mulher negra fora dos estereótipos, dando novos sentidos e significações à história dessas mulheres.

Carolina, em sua coletânea de obras, destaca seu papel como mulher protagonista de sua história que, apesar das dificuldades, encontra na escrita uma forma de autoafirmar seu posicionamento. Na obra Quarto de Despejo, em certas passagens, destaca essa importância: Nosso país tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco morre um dia.

... Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido.(JESUS 2013, p.39)

A obra Quarto de Despejo – diário de uma favelada sem dúvidas foi a obra mais rentável financeiramente e midiaticamente de Carolina. Segundo Fernanda Miranda:

Carolina Maria de Jesus entrou no mundo das letras de forma avassaladora. Quarto de despejo – diário de uma favelada (1960), seu livro de estreia é uma obra paradigmática para a história do Brasil. Os dados que o tornam um dos nossos maiores best-sellers nacionais são bastante conhecidos: nos três primeiros dias após o lançamento foram vendidos dez mil exemplares. A primeira tiragem, que inicialmente seria 3.000 livros, passou a 30.000, esgotada em três meses somente em São Paulo. (MIRANDA, 2019, p.159, 160)

Também teve o mérito de ter sido a primeira obra de uma autora negra brasileira que foi mais traduzida até hoje:

As traduções começam a circular menos de um ano depois da publicação, em edição produzidas na Dinamarca, Holanda e Argentina (1961); França, Alemanha (Ocidental e Oriental), Suécia, Itália, Checoslováquia, Romênia,

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33 Inglaterra, Estados Unidos e Japão (1962); Polônia (1963); Hungria (1964); Cuba (1965) e entre 1962 e 1963, na então União Soviética. (MIRANDA, 2019, p.160).

Carolina Maria de Jesus ganhou grande visibilidade por ser uma autora que expôs a condição nacional racista e desigual por meio da linguagem literária. Desse modo, ganhou vasto espaço midiático por ser uma autora negra de destaque que escreve, relatando sobre si em primeira pessoa, porém com uma visão coletiva sobre as condições precárias de sobrevivência em uma cidade que até hoje se coloca como modelo de modernidade:

A autora alçou sua voz no discurso literário em um contexto histórico permeado pelo apelo ao progresso, ao desenvolvimento e à modernização. Um cenário no qual, conforme pontuou Lélia Gonzalez (1981), a mulher negra lutava para romper a condição socialmente imposta de privação do letramento, visto que, enquanto grupo demográfico, estava posada do acesso ao mundo escrito. (MIRANDA, 2019, p.161)

Sobre o trecho acima, a citação de Lélia Gonzales evidencia que:

O censo de 1950 foi o último a nos oferecer dados objetivos, indicadores básicos relativos à educação e aos setores de atividades da mulher negra. O que então se constatava era o seguinte: nível de educação muito baixo (escolaridade atingindo, no máximo, o segundo ano primário ou primeiro grau), sendo o analfabetismo o fator dominante. (GONZALES, 2018, p.43)

De acordo com Gonzales, de fato Carolina Maria de Jesus rompe com as estatísticas, sendo mulher negra que estudou apenas dois anos do ensino básico e tornou-se uma escritora com visibilidade internacional. A autora ganha esse destaque justamente por contrariar o quadro nacional. No entanto, foi o que sustentou por muito tempo sua marginalização no sistema literário, pois, mesmo tendo destaque, sua obra na maioria dos casos é estudada nas áreas com mais estatuto teóricos das ciências humanas e pouco estudada nas artes, principalmente na literatura.

Ainda sobre a importância da leitura e a escrita para vida de Carolina, percebemos como a autora consegue romper as constantes de grande número de analfabetismo entre a população negra no Brasil. Sendo assim, ressaltamos o momento de sua infância em que ela descreve, na obra Diário de Bitita, os momentos em que passou por terríveis preconceitos e dificuldades na escola onde estudou por dois anos e aprendeu a ler as primeiras palavras:

- Oh, mamãe! Eu já sei ler! Como é bom saber ler!

Vasculhei as gavetas procurando qualquer coisa para ler. A nossa casa não tinha livros. Era uma casa pobre. O livro enriquece o espírito. Uma vizinha emprestou-me um livro, o romance Escrava Isaura. Eu, que já estava farta de ouvir falar na nefasta escravidão, decidi que deveria ler tudo que mencionasse o que foi a escravidão. Compreendi tão bem o romance que chorei com dó da escrava. Analisei o livro. Compreendi que naquela época os escravizadores

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