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Palavras-chave O Senhor dos Anéis; jornada do heroi; mito do duplo.

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Academic year: 2021

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A JORNADA MÍTICA DO DUPLO EM O SENHOR DOS ANÉIS DE J. R. R. TOLKIEN

Aluna: Monica Fernanda da Silva Stefanelli – monica.f.s.stefanelli@gmail.com Orientadora: Prof. Dra. Lilian Cristina Corrêa – liliancorrea@mackenzie.br

RESUMO

O presente artigo analisa as jornadas e o mito do duplo em Gandalf e Saruman, personagens da obra O Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien. Para tanto, tomaremos como base a teoria da jornada do heroi de Joseph Campbell e também autores que tratam do mito do duplo na literatura, como Otto Rank e Clément Rosset. Conclui-se que as personagens analisadas iniciam uma jornada com um único objetivo, entretanto o duplo é criado a partir da ambição de Saruman, criando duas jornadas entrelaçadas, que são resolvidas após um conflito entre Saruman e Gandalf, no qual Gandalf sai como vencedor. Gandalf então retorna a Valinor na etapa final da jornada do heroi.

Palavras-chave

O Senhor dos Anéis; jornada do heroi; mito do duplo.

O Senhor dos Anéis

A narrativa começa com a partida de Bilbo, um hobbit, para Valfenda. Bilbo deixa um anel mágico de herança para seu sobrinho, Frodo. O anel é, na realidade, o Um Anel, forjado por Sauron, o Senhor do Escuro, para dominar toda a Terra-Média. Frodo vai para Valfenda, a terra élfica do Lord Elrond, e lá é formada a Sociedade do Anel, composta por nove representantes das raças livres da Terra-Média. Quatro hobbits (Frodo, Sam, Merry e Pippin), um mago (Gandalf), um elfo (Legolas), um anão (Gimli) e dois homens (Aragorn e Boromir). Juntos eles devem ir até Mordor e destruir o Anel na Montanha da Perdição.

Após a partida, a Sociedade entra nos salões de Moria – a cidade subterrânea dos anões. Lá, acabam despertando um balrog, uma criatura das Trevas. Gandalf protege a Sociedade, mandando-os seguir enquanto ele lutaria contra a criatura, porém Gandalf e o balrog caem em um abismo. Ao final do primeiro volume, a Sociedade se separa. Boromir é morto em uma batalha, Frodo e Sam vão para Mordor sozinhos, Merry e Pippin são levados para Isengard como prisioneiros, Legolas, Aragorn e Gimli tentam resgatar Merry e Pippin. O segundo volume mostra a narrativa da Sociedade fragmentada e tem-se a volta de Gandalf, o Branco, que retorna para concluir sua missão: ajudar as raças da Terra-Média a destruir Sauron. No

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último volume, tem-se a conclusão da narrativa com a destruição do Anel e a derrota de Sauron, a volta do rei ao trono de Gondor e o início da Quarta Era, com o domínio dos homens.

História das personagens

É dentro da raça dos Maiar, descritos por Tolkien como “[...] ‘espíritos’, porém capazes de auto-encarnação, e podiam assumir formas ‘humanoides’ [...]” (TOLKIEN, 2009. p. 434), que surgem os Istari: emissários dos Valar na Terra-Média, descritos como homens idosos que se vestiam com grandes mantos, botas altas, chapéus pontudos, com longas barbas e carregando longos cajados.

Saruman, o Branco, viajou para o Leste, no entanto fixou-se em Isengard, na Torre de Orthanc. De lá, criou armas e uma raça híbrida de elfos e orcs, os uruk-hai, que lutaram contra os homens da Terra-Média. Após inúmeras batalhas, teve seu cajado tomado por Gandalf, que assumiu o antigo lugar de Saruman no Conselho Branco1. Humilhado, Saruman assume o nome de Charcote e vai para o Condado – território dos hobbits –, mas é morto por seu servo. Seu corpo deteriorou-se rapidamente e dele subiu uma névoa cinzenta – seu espírito Maia – que se dissolveu em nada.

Gandalf, o Cinzento, possuía vários nomes, porém, foi seu nome mais conhecido. Foi considerado o mais sábio dos Maiar e foi com sua sabedoria que os Povos Livres da Terra-Média conseguiram derrotar Sauron. Cerca de 60 anos após a expedição de Bilbo, narrada em O hobbit (1937), Gandalf agora conduz Frodo e a Sociedade do Anel até a Montanha da Perdição onde eles destruiriam o Um Anel. Gandalf sucumbe em um conflito contra um balrog de Moria na ponte Khazad-dûm. Porém, retorna como Gandalf, o Branco para terminar sua tarefa na Terra-Média. Gandalf, o Branco, contribuiu em muitas batalhas na Guerra do Anel. Com isso, sua tarefa foi realizada e a Terceira Era da Terra-Média teve seu fim, quando Gandalf partiu para Valinor, as Terras Imortais.

Para efeitos da análise, os capítulos estudados são: O conselho de Elrond e A ponte de Khazad-dûm do primeiro volume, A sociedade do Anel, e O cavaleiro branco e A voz de Saruman, do segundo volume, As duas torres (2001).

1 O Conselho Branco era formado por reis e rainhas élficos e pelos cinco magos para discutir e decidir estratégias

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O conselho de Elrond

Este capítulo mostra como e porque a Sociedade do Anel foi formada. Em Valfenda, Elrond convoca um representante de cada uma das raças livres da Terra-Média (homens, elfos, anões e hobbits), formando o chamado Conselho de Elrond, e lá é evidenciado muito do passado da luta contra Sauron e a história do Anel.

Em certo ponto do Conselho, um elfo, questiona a ausência de Saruman no Conselho, o que leva Gandalf a contar os acontecimentos que vira na última reunião do Conselho Branco. Gandalf levanta a dúvida sobre as verdadeiras intenções de Saruman. O excerto abaixo aponta o desprezo de Saruman pela cor branca, momento em que Gandalf percebe as muitas cores na vestimenta de Saruman.

– Olhei então e vi que as roupas que vestia, que tinham parecido brancas, não eram dessa cor, mas de todas as cores, e se ele se mexia, mudavam de tonalidade e brilhavam, de modo que os olhos ficavam confusos.

– “Eu gostava mais do branco”, disse eu.

– “Branco!”, zombou ele. “Serve para começar. O pano branco pode ser tingido. Pode-se escrever sobre a página em branco; a luz branca pode ser decomposta.

– “E nesse caso deixa de ser branca”, disse eu. “E aquele que quebra uma coisa para descobrir o que ela é deixou o caminho da sabedoria.” (TOLKIEN, 2001, p. 274)

De acordo com Rudolf Arnheim, em Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora (2002), a cor é a mais eficiente forma de discriminação. Para a teoria psicológica de Jung, brevemente descrita no verbete “duplo” no Dicionário de mitos literários (2005), o duplo trata “[...] das duas faces complementares do mesmo ser [...]” (BRUNEL, 2005, p. 263). Estas faces complementares dialogam com as muitas cores de Saruman, fazendo com que ele deixasse de ser facilmente identificável para transformar-se em um prisma que reflete inúmeras cores, mostrando sua essência composta por inúmeras facetas. Saruman não é uma cor, não é um ser uno, há, nele, portanto, uma dualidade.

No conselho fica decidido que os hobbits, Frodo, Sam, Merry e Pippin, o elfo Legolas, o anão Gimli, os homens Aragorn e Boromir devem partir juntamente com Gandalf para Mordor para destruir o Um Anel. Estava formada a Sociedade do Anel.

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A ponte de Khazad-dûm

Neste capítulo, a Sociedade do Anel já se encontra em sua jornada para destruir o Um Anel de Sauron. No início do capítulo, a Comitiva está na tumba de Balin2 examinando os registros deixado por ele quando orcs aparecem para atacá-los. Gandalf pede para que o restante da Sociedade fuja e depois os encontra, e, juntos, fogem até uma ponte perto da saída de Moria. É então que descobrem que estão sendo perseguidos por uma criatura extremamente antiga, um balrog3. Gandalf duela contra o balrog, golpeando a ponte que se quebrou aos pés da criatura, que brande o chicote e faz com que Gandalf caia junto com ele para dentro do abismo.

Em O Heroi de mil faces (2007), Joseph Campbell coloca como primeira tarefa do heroi a de “[...] retirar-se da cena mundana dos efeitos secundários e iniciar uma jornada [...]” (CAMPBELL, 2007, p. 27). Tanto Gandalf como Saruman iniciam esta jornada da mesma forma e com o mesmo objetivo, pois são mandados à Terra-Média com o intuito de destruir Sauron, como dito em O Silmarillion (2009)

Exatamente quando as primeiras sombras foram percebidas na Floresta das Trevas, surgiram no oeste da Terra-Média os istari, que os homens chamavam de Magos. [...] haviam chegado pelo Mar. Daí em diante, porém, dizia-se entre os elfos que eles eram mensageiros enviados pelos Senhores do Oeste para contestar o poder de Sauron, se ele voltasse a se erguer [...] (TOLKIEN, 2009, pp. 381, 382)

Este excerto traz o que Campbell classifica como o “chamado para a aventura”, em que, como dito acima, o heroi é retirado da sociedade, do estado anterior em que se encontrava, e é transferido para uma região desconhecida, podendo “[...] ser levado ou enviado para longe por algum agente benigno [...]” (CAMPBELL, 2007, p. 66).

No capítulo intitulado A ponte de Khazad-dûm, Gandalf estaria no chamado ventre da baleia, em que, segundo Campbell, “O heroi, em lugar de conquistar ou aplacar a força do limiar, é jogado no desconhecido, dando a impressão de que morreu.” (2007, p. 91), uma vez que, após sua queda no abismo, os participantes da comitiva creem que Gandalf sucumbiu junto com seu inimigo.

2 Balin foi um dos anões que fez a expedição descrita em O Hobbit (2003). Foi também um dos anões que foi

para a cidade subterrânea de Moria para tentar reconquistá-la, já que a cidade pertencia aos anões e foi tomada por orcs no início da Terceira Era.

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Balrogs são espíritos Maiar que foram corrompidos por Morgoth, um dos Ainur. São formados por chamas e sombras. Ressalta-se que os balrogs são Maiar assim como Saruman e Gandalf.

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O cavaleiro branco

O cavaleiro branco é um dos capítulos de O Senhor dos Anéis: as duas torres (2001). No final do primeiro volume, A Sociedade do Anel (2001), a Sociedade é rompida. Os hobbits Frodo e Sam partem para Mordor sozinhos na tentativa de destruir o Um Anel. Outros dois hobbits que faziam parte da Sociedade são sequestrados por uruk-hais, uma raça híbrida de orcs e elfos, criada por Saruman. Boromir é morto quando tenta impedir o sequestro dos hobbits. Aragorn, Legolas, e Gimli partem ao resgate dos hobbits sequestrados e acabam entrando na floresta de Fangorn. Lá, eles veem um vulto que acreditam ser Saruman.

O capítulo O cavaleiro branco inicia-se com uma conversa entre Aragorn, Legolas e Gimli a respeito do vulto que viram na noite anterior. Decidem continuar procurando os hobbits quando encontram um velho “[...] coberto de farrapos cinzentos [...] movimentando-se devagar. [...] parecia um velho mendigo, caminhando fatigado, apoiando-se num cajado rude.” (TOLKIEN, 2001, p. 89).

O velho caminha até os três e eles perguntam seu nome. O velho esquiva-se dizendo que eles já haviam ouvido seu nome antes. O ancião senta-se em uma pedra e Aragorn, Gimli e Legolas percebem que por baixo dos farrapos cinzentos, o velho estava vestido de branco. Gimli identifica-o como Saruman e tenta golpeá-lo com seu machado, entretanto, Legolas o identifica como Mithrandir, o nome pelo qual Gandalf é conhecido pelos elfos. E Gandalf confirma:

– Sim, sou branco agora – disse ele. – Na verdade, eu sou Saruman, quase poderíamos dizer. Saruman como ele deveria ter sido [...] Atravessei o fogo e águas profundas desde que nos separamos. Esqueci muita coisa que julgava saber, e aprendi de novo muita coisa que havia esquecido. (TOLKIEN, 2001, p. 92, grifo do autor)

Neste excerto pode-se perceber a existência do duplo, de acordo com uma das categorias de Keppler, no verbete sobre o duplo no Dicionário de mitos literários (2005), chamada de duplo gêmeo, já que Gandalf é confundido por Aragorn, Legolas e Gimli, e torna-se o que Saruman deveria ter sido. Esta característica é, para Jung, em torna-seu conceito de integração da personalidade como “[...] uma parte não apreendida pela imagem de si que se tem o eu, ou por ela excluída: daí seu caráter de proximidade e de antagonismo. Trata-se das duas facetas complementares do mesmo ser [...]” (apud BRUNEL, 2005, p. 263).

Este caráter de proximidade e antagonismo comprova-se pela troca de identidade feita por Gimli e pela própria fala de Gandalf “[...] eu sou Saruman, quase poderíamos dizer.”

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(TOLKIEN, 2001, p. 92. Grifo do autor), em que ele mostra a proximidade através do uso em primeira pessoa do verbo ser e o antagonismo em “[...] quase poderíamos dizer.” Há outro excerto que evidencia esta relação de proximidade e antagonismo, ou de estranho e familiar, de acordo com o que Freud chama de “fenômeno do ‘duplo’” (1996, p. 252), em que Gimli indaga:

Foi você, Gandalf, ou Saruman, que vimos a noite passada?

– Certamente vocês não me viram – respondeu Gandalf –, portanto devo supor que viram Saruman. Evidentemente somos agora tão parecidos [...] (TOLKIEN, 2001, p. 96)

Neste capítulo, Gandalf relata o que aconteceu após a queda no abismo em Khazad-dûm.

[...] Caí por muito tempo, e ele caiu comigo. O fogo dele me envolvia. Eu estava me queimando. Então mergulhamos em águas profundas e tudo ficou escuro. A água era fria como a maré da morte: quase congelou meu coração. [...] ele tem um fundo, além da luz e do conhecimento – disse Gandalf. [...] – Lutamos muito abaixo da terra vivente, onde não se conta o tempo. [...] Naquele desespero, meu inimigo era minha única esperança, e eu o segui, agarrando-me em seus calcanhares. Assim ele me trouxe de volta, [...] Joguei o inimigo para baixo, e ele caiu e quebrou a encosta da montanha no ponto em que a atingiu ao ser destruído. [...] – Estava nu quando fui enviado de volta – por um tempo curto, até que minha tarefa estivesse cumprida. [...] Encontrei a cura, e fui vestido de branco. (TOLKIEN, 2001, pp. 99, 100, 101)

Neste excerto pode-se evidenciar a segunda etapa da aventura, na qual ocorre uma descida ao mundo inferior, que pode ser voluntária ou involuntária “[...] aos tortuosos caminhos do seu próprio labirinto espiritual [...] o estágio da ‘purificação do eu’ [...]” (CAMPBELL, 2007, p. 105), na qual Gandalf cai em um abismo com fundo “[...] além da luz e do conhecimento [...]” (TOLKIEN, 2001, p. 99).

A tarefa mais comum do heroi é a luta contra um monstro. Neste caso Gandalf não só lutou contra o monstro – balrog – mas há, também, a catábase presente em sua jornada. De acordo com Maria Fernanda Brasete, em seu artigo Ulisses e o feminino: eros e epos (2006), a catábase pode ter uma importância metafórica e simbólica “[...] uma vez que o reencontro de Ulisses com seus companheiros mortos, pondo em contraste os dois destinos, propiciar-lhe-ia um conhecimento mais profundo da sua condição humana: a incapacidade inexorável de vencer a morte.” (BRASETE, 2006, p. 10).

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No excerto destacado acima, Gandalf diz que caiu no abismo juntamente com o balrog e que “O fogo dele me envolvia. Eu estava me queimando. Então mergulhamos em águas profundas e tudo ficou escuro.” (TOLKIEN, 2001, p. 99). Tolkien descreve os balrogs como criaturas que eram inicialmente boas, entretanto foram corrompidas e foram lançadas e presas às profundezas de Arda, tornando-se feitas de chamas e sombras. Esta descrição faz uma alusão aos anjos caídos que foram aprisionados no inferno.

Gandalf luta e cai em um abismo profundo, passando a ser envolvido e queimado pelo fogo de seu inimigo. Ao voltar de sua metafórica catábase está nu e não é mais vestido de cinza, mas sim de branco.

De acordo com o Dicionário de símbolos (2006) a cor cinza “[...] extrai seu simbolismo do fato de ser, por excelência, um valor residual: aquilo que resta após a extinção do fogo e, portanto, antropocentricamente, o cadáver [...] não se deve esquecer que tudo aquilo que está associado à morte liga-se, como ela, ao simbolismo do eterno retorno.” (CHEVALIER, 2006, pp. 247, 248). Ainda de acordo com o mesmo dicionário, cinzento é uma cor relacionada à ressurreição dos mortos. Entretanto, mesmo sendo vestido de branco após seu retorno, aborda Aragorn, Gimli e Legolas com uma vestimenta cinzenta por cima da branca.

Gandalf encerra a narrativa de sua luta contra o balrog e parte para Rohan – um reino de homens – junto com Aragorn, Legolas e Gimli.

A voz de Saruman

Após a vitória em uma batalha contra o exército de Saruman no reino de Rohan, Gandalf vai ao encontro de Saruman, em Isengard, e Gimli decide acompanhar o mago, pois quer ver se Gandalf e Saruman realmente se parecem, ao que Gandalf responde: “Saruman poderia se parecer comigo aos seus olhos, se isso se adequasse aos propósitos dele em relação a você. [...] E Saruman tem poderes que você nem imagina. Tomem cuidado com a voz dele!” (TOLKIEN, 2001, p. 182). Neste fragmento, tem-se outro indício da duplicidade de Gandalf e Saruman, já que Saruman pode transformar-se em seu duplo, Gandalf, e assim atingir seu objetivo de enganar a todos, sendo assim um antagonista de seu duplo.

Gandalf parte em direção a Isengard, juntamente com o rei Théoden – rei de Rohan –, Aragorn, Legolas, Gimli e os dois hobbits que haviam sido sequestrados. Em Isengard, Saruman tenta enfeitiçar a todos com sua voz. Ao vê-lo, o grupo percebeu as cores que sua vestimenta refletia a cada movimento. Gimli chega à conclusão de que Saruman é “Parecido, e ao mesmo tempo diferente.” (TOLKIEN, 2001, p. 184). Neste fragmento, novamente tem-se a sensação do familiar dentro do não familiar, do heimlich dentro do unheimlich, assim como

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descrito por Freud, em O Estranho (1996). O grupo veio para negociar paz com Saruman, todavia, Saruman irrita-se, respondendo:

– Mas você, Gandalf! Pelo menos por você eu lamento, e me solidarizo com sua vergonha. Como é possível aguentar uma companhia dessas? Pois você é orgulhoso, Gandalf – e não sem motivo, pois tem uma mente privilegiada e olhos que enxergam longe e fundo. Mesmo agora você se recusa a escutar meus conselhos? [...] Então não somos ambos membros de uma ordem nobre e antiga e muito excelente da Terra-Média? Nossa amizade seria benéfica a nós dois da mesma forma. Ainda poderíamos realizar muitas coisas juntos, para curar as desordens do mundo. (TOLKIEN, 2001, p. 186, 187)

No momento deste discurso, Saruman novamente modulou a voz, tentando lançar um feitiço com sua voz e palavras, que foi desfeito por uma gargalhada de Gandalf que respondeu que Saruman havia perdido “[...] seu rumo na vida. [...] Não desejo matá-lo, ou machucá-lo, como bem sabe, se realmente me entende. E tenho o poder de protegê-lo.” (TOLKIEN, 2001, p. 186).

Gandalf e Saruman discutem e Saruman decide deixar a discussão. Com o poder de sua voz, Gandalf faz com que Saruman retorne: “– Não lhe dei permissão para sair – disse Gandalf numa voz firme. [...] Não sou Gandalf, o Cinzento, que você traiu. Sou Gandalf, o Branco, que retornou da morte. Agora você não tem cor alguma e eu o expulso da Ordem e do Conselho.” (TOLKIEN, 2001, p. 189). Neste excerto, percebe-se novamente o significado simbólico do cinza que remete ao eterno retorno e o branco, representando o rito de passagem (catábase) e a purificação realizada pelo heroi.

Em O heroi (2000), Flávio Kothe cita Bouvart e Pécuchet, que “[...] demonstram que é possível ser esfericamente plano sem ser planamente esférico: quanto mais eles mudam, tanto mais eles continuam sendo os mesmos.” (KOTHE, 2000, p. 38). Transportando para Gandalf e Saruman, pode-se falar que Gandalf, de cinzento tenha se transformado em branco, e Saruman de branco para prismático, eles continuam os mesmos em suas essências, pois o cinza nada mais é do que uma gradação da cor branca, e a luz branca, quando refletida em um prisma, reflete todas as cores que ela contém.

Como conclusão do embate entre Saruman e Gandalf, tem-se a fala de Gandalf pouco antes de partir de Isengard:

Primeiro, Saruman viu que o poder de sua voz estava diminuindo. Ele não pode ao mesmo tempo ser um tirano e um conselheiro. [...] Então dei a ele

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uma última escolha, uma escolha justa: renunciar tanto a Mordor quanto a seus planos particulares, e consertar a situação, ajudando-nos em nossas necessidades. [...] Mas ele escolheu recusá-los e manter o poder em Orthanc. Ele não está disposto a servir, apenas a comandar. (TOLKIEN, 2001, p. 190)

O embate entre as duas partes do duplo, acabou de maneira pacífica. O capítulo se encerra com Gandalf, Aragorn, Gimli, Legolas, os hobbits, rei Théoden e os cavaleiros de Rohan deixaram a fortaleza de Orthanc e Isengard para lutar contra Sauron.

Considerações finais: a última fase do heroi

Gandalf e Saruman iniciaram sua jornada com um objetivo uno: o de auxiliar os povos da Terra-Média a derrotar Sauron e, até ser corrompido pela ambição, Saruman e Gandalf formavam uma só entidade. A duplicidade criou-se a partir do momento em que Saruman fixou residência na fortaleza de Orthanc, em Isengard, e passou então a cobiçar o poder do Anel para si, enquanto Gandalf continuou em sua jornada contra Sauron.

Saruman aliou-se a Sauron, pretendendo traí-lo assim que recuperasse o Anel, não para Sauron, mas para si mesmo, para tanto, criou um exercito e começou a secretamente armar-se contra um possível ataque dos homens – seja de Rohan, seja de Minas Tirith – ou de Mordor. Saruman criou sua própria jornada, sem, entretanto, desvencilhar-se de seu duplo, Gandalf, de forma que se tem duas jornadas entrelaçadas, que se tornam una novamente com a resolução do conflito entre Saruman e Gandalf, com resultado favorável a Gandalf.

Saruman fugiu de sua fortaleza, porém foi morto por seu servo, Gríma, língua de cobra e seu espírito foi banido, proibido de voltar à Terra-Média. Gandalf auxilia Frodo, indiretamente, a destruir o Um Anel e parte em sua companhia para Valinor através dos Portos Cinzentos. Tem-se então o retorno do heroi a sua realidade anterior à aventura – retornando a Valinor, tornando-se, de acordo com Campbell (2007) Senhor dos dois mundos em um estado de presença anônima.

REFERÊNCIAS

ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2002.

BRASETE, Maria Fernanda. Ulisses e o feminino: eros e epos. Ágora. Estudos clássicos em

debate. Artigo de Internet. Disponível em:

<http://www2.dlc.ua.pt/classicos/Ulisses%20e%20o%20feminino.pdf> Acesso em 20 de jun. de 2012.

BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

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CAMPBELL, Joseph. O heroi de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2007.

CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 20.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Volume XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

KOTHE, Flávio R. O heroi. 2.ed. São Paulo, Ática, 2000.

TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis: a sociedade do Anel. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

____________. O Senhor dos Anéis: as duas torres. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ____________. O Silmarillion. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

Referências

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