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“Casaram-se solenemente em face da igreja”: matrimônio, mestiçagens e dinâmicas de apadrinhamento na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727-61)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

DAISY DE ASSIS SILVA

“CASARAM-SE SOLENEMENTE EM FACE DA IGREJA”: MATRIMÔNIO, MESTIÇAGENS E DINÂMICAS DE APADRINHAMENTO NA FREGUESIA DE NOSSA

SENHORA DA APRESENTAÇÃO (1727- 61)

Natal/RN 2016

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DAISY DE ASSIS SILVA

“CASARAM-SE SOLENEMENTE EM FACE DA IGREJA”: MATRIMÔNIO, MESTIÇAGENS E DENÂMICAS DE APADRINHAMENTO NA FREGUESIA DE

NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO (1727-61)

Monografia apresentada junto ao curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para a obtenção do título de Bacharel em História sob a orientação da Prof. Dr.ª Carmen Alveal

Natal/RN 2016

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DAISY DE ASSIS SILVA

“CASARAM-SE SOLENEMENTE EM FACE DA IGREJA”: MATRIMÔNIO, MESTIÇAGENS E DENÂMICAS DE APADRINHAMENTO NA FREGUESIA DE

NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO (1727-61)

Monografia apresentada junto ao curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para a obtenção do título de Bacharel em História.

Orientadora: Carmen Alveal

APROVADA EM ____/____/_____

______________________________________________________ Prof. Dr.ª Carmen Alveal

______________________________________________________ Prof. Dr.ª Juliana Teixeira Souza

______________________________________________________ Prof. Dr. ª Maria da Conceição Guilherme Coelho

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AGRADECIMENTOS

A Deus que me concedeu forças para a realização deste trabalho, não me deixando esmorecer e acreditar que chegaria até o final.

Aos meus pais Damião e Francisca, me apoiando, me incentivando nos momentos em que precisei.

Ao meu esposo Eduardo, pela paciência, ajuda constante e carinho.

A minha orientadora professora Carmen Alveal, que soube guiar meus passos pela jornada da graduação, ensinando-me e corrigindo para que eu melhorasse e aprimorasse meus conhecimentos, que sem dúvida foi fundamental para a minha formação.

Aos colegas do LEHS, cada um a sua maneira, sempre com dicas e sugestões que foram absorvidas por mim e resultaram na melhora do meu trabalho.

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo entender a participação da população mestiça e escrava na sociedade colonial do Rio Grande do Norte, tomando como base o sacramento matrimonial. Analisando os registros paroquiais da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação na primeira metade do século XVIII, pretende-se traçar um panorama social obtido através de laços matrimoniais e entender de que forma a Igreja, sendo um órgão de normatização e convergência dos aspectos espirituais e seculares, regia esta sociedade, pelo menos no que diz respeito às uniões legitimadas pela Igreja. Outro aspecto que se faz necessário para a realização da pesquisa é explicar estes casamentos a luz de códigos de conduta eclesiástica que vigoravam naquele período como as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. É pela análise em conjunto dos códigos de conduta que regiam a esfera

secular que se pode entender e desnudar esta sociedade. Dentro dessa realidade, busca-se

compreender de que forma a população negra, parda e indígena se relacionava em um contexto de exclusão social e o que almejavam quando sacramentavam sua união. Estes registros mostram a dinâmica organizacional da sociedade, as estratégias dos indivíduos nessa organização e a recorrência de uniões entre pessoas de mesma cor, condição jurídica, e os laços de solidariedade que eram efetivados na escolha das testemunhas. Como exemplo de possíveis estratégias e tentativa de ascensão social, percebe-se a escolha de muitas testemunhas que gozavam de títulos e patentes bem como a recorrente designação de “pessoas conhecidas” tão comumente utilizada pelos vigários. Desta forma, o trabalho pretende contribuir para um maior entendimento das camadas menos favorecidas na sociedade colonial, o negro, o mulato, o pardo, o escravo.

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ABSTRACT

This study aims to understand the participation of the mestizo and slave population in the colonial society of Rio Grande do Norte, based on the marriage sacrament. Analyzing the parish registers of the parish of Nossa Senhora de Apresentação in early 18th century, intended to map out a social panorama obtained through wedlock and understand how the Church, being an organ of standardization and convergence of spiritual and secular aspects regulate this society, at least in regard to unions legitimized by the Church. Another aspect that is necessary for the research is to explain these marriages based on ecclesiastical codes of conduct in force in that period as the Constituições da Bahia. It is the analysis of joint codes of conduct governing the secular sphere that we can understand and denude this society. We seek to understand how the black, mulato and Indian population was connected in a context of social exclusion and which sought when they confirmed their union. These records show us the organizational dynamics of society, the strategies of individuals in this organization and the recurrence of unions between people of the same color, legal status, and the ties of solidarity that were effected in the choice of witnesses. As an example of possible strategies and attempt to upward social mobility, we see the choice of many witnesses who enjoyed titles and patents and the applicant designation "known people" so commonly used by vicars. Thus, the work aims to contribute to a greater understanding of the most disadvantaged sections in colonial society, blacks, mulatos, me stizos and slaves.

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Ocupação das testemunhas dos nubentes brancos 1727-61 (%)p. ... 36

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Ocupação das testemunhas dos nubentes brancos 1727-61 ... p. 35

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... ... 10

CAPÍTULO I: A importância do matrimônio para a sociedade colonial: brancos, negros, pardos e indígenas sob o desígnio de uma mesma mentalidade...14

CAPÍTULO II: Os matrimônios da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação: presença de uniões mestiças na constituição das famílias do Rio Grande ... 25

CAPÍTULO III: Brancos, negros e pardos: Diferentes cores, interesses comuns...34

CONCLUSÃO ... 42

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Introdução

Durante o período colonial, a sociedade estava organizada e submetida a códigos de

conduta moral de cunho religioso1 os quais tinham como objetivo concentrar os fiéis sob os

cânones da Santa Madre Igreja, estabelecendo regras e diretrizes para a conduta da população, fosse ela livre ou escrava, no espaço físico em que habitavam. Dentre essa normatização e “ajustes” de condutas da população estava o matrimônio que assim como o batismo, inseria o indivíduo dentro do contexto social privilegiado em relação aos que por alguma razão, não se encontravam neste mesmo âmbito.

Entretanto, a população de fiéis não seguia a risca o que ordenava a Igreja. Percebe-se um afrouxamento das normas e a preocupação dos religiosos em adequar a população o mais próximo do ideal da mentalidade cristã da época. A população aproveitava-se da falta de rigor no cumprimento das regras e fazia da colônia um campo aberto ao novo, mesclando elementos da cultura europeia com a africana e a indígena, produzindo neste espaço novas maneiras de se conceber a própria existência.

Desta forma, o sacramento matrimonial vem sendo analisado não apenas como uma imposição da Igreja católica neste período, mas como um importante instrumento de ascensão e diferenciação social para aqueles que se empenhavam em oficializar a sua união perante a sociedade e a Igreja. Como exemplo dessa busca por oportunidades e anseio em alterar ainda que minimamente sua condição social está a população mestiça. Assim como a parcela branca, negros e pardos, e escravos e livres, articulavam-se dentro da colônia a fim de transformar sua condição e consequentemente de seus descendentes.

Pensando o matrimônio como estratégia que viabilizava a mobilidade social dentro de uma sociedade estratificada, Sheila de Castro Faria, fez um importante trabalho em que demostra as particularidades das relações que existiam entre a população mestiça e branca pobre na região fluminense, mostrando que em muitos casos o casamento era o elemento fundamental e determinante dos aspectos sociais e familiares da colônia.

1

Como exemplo mais expressivo de códigos de normalização social do período colonial, tem-se As Constituições

Primeiras do Arcebispado da Bahia, datado de 1707, em que estabelecia a forma de proceder socialmente tanto

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Do mesmo modo, mas se embrenhando nos aspectos das cores dessas populações, Cacilda Machado mostra a maneira de articulação existente entre os mestiços e brancos, na freguesia de São José dos Pinhais (Curitiba), quando da busca por melhorias sociais, enfatizando as relações de busca por prestígio nesta sociedade. Analisando o Recife colonial com base no matrimônio, Gian Carlo Melo Silva demonstra a função social do casamento para as práticas cotidianas, bem como mostra como a mestiçagem da população contribuiu para a formação da sociedade recifense.

A historiadora Larissa Viana, em sua obra O Idioma da Mestiçagem, estudou a mestiçagem no período colonial entre as irmandades de pardos no período entre os séculos XVII e final do XVIII. Para tanto, fez uma análise historiográfica sobre a problemática que a mestiçagem assumiu no século XIX, mostrando que a mestiçagem era considerada um fator de degenerescência da população e consequentemente, o motivo pelo qual uma nação seria inferior à outra. Analisou, portanto, os estereótipos depreciativos emergidos de pensadores europeus baseados nas teorias evolucionistas e de superioridade racial que embasavam os discursos dos pensadores naquele momento. Com o século XX, principalmente com Gilberto Freyre na década de 1930, com Casa-grande & senzala, o mestiço foi “reabilitado” e passou de elemento de desregramento social para aquele que reúne em si as melhores partes entre o

europeu, o africano e o indígena2.

Entendendo a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação como o lugar onde ocorrem as práticas culturais e religiosas normatizadoras, mas também como o espaço onde se desenvolvem os interesses seculares que norteavam toda a população, pretende-se estudar a mestiçagem dos relacionamentos e mostrar que as pessoas de cor almejavam estar inseridas de fato na sociedade colonial, no sentido de serem aceitas por ela e terem sua união reconhecida por todos e pela Igreja, pois desta maneira estariam mais perto de uma possível mobilidade social.

Para a realização da pesquisa e embasamento teórico, utilizou-se da obra do historiador francês Serge Gruzinski, O Pensamento Mestiço, o autor aborda o conceito de mestiçagem, que para ele extrapola os limites da simples mistura. O mestiço, para Gruzinski, é aquele que transforma o meio social em que vive pela apropriação da cultura do dominador e confere-lhe um caráter novo. Esse novo é o resultado da mistura da cultura europeia com a nativa, um resultado mestiço, mas que reflete a resistência dos povos oprimidos que mesmo

2 VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: As irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas, SP:

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diante da imposição do colonizador sabia como buscar estratégias para manter sua cultura e

ideologia na sociedade em transformação.3

Outra questão que será considerada no presente trabalho e que faz parte do aporte teórico são as redes de sociabilidades estabelecidas no ato matrimonial. As escolhas das testemunhas nos matrimônios corridos no Rio Grande no período abarcado pelo trabalho apontam para uma relação de reciprocidade entre as pessoas da elite e as classes desfavorecidas. As redes de sociabilidades vêm sendo exploradas pela historiografia como uma forma de poder e dominação senhorial sobre seus cativos, mas também como importante ferramenta utilizada pelos escravos e mestiços livres quando da inserção na sociedade colonial4.

A definição de espaço utilizada para a pesquisa é a definida pelo filósofo e sociólogo francês Pierre Bourdieu, na obra Razões Práticas sobre a teoria das ações, na qual discute o conceito de espaço simbólico e espaço social sobre as relações de uma perspectiva teórica e empírica, pois este espaço existe a partir da concepção ideológica. Para Bourdieu, o espaço social é onde ocorrem as relações de entre os agentes, e pelo habitus, ou seja, aquilo que gera as práticas distintas e distintivas na sociedade são as escolhas. Essas distinções ocorrem por meio do que ele chama de capital econômico e capital cultural. Os agentes (indivíduos) que ocupam posições diferentes no mesmo espaço social tendem a se opor uns aos outros movidos

pelas diferenças existentes entre os grupos (classes)5.

Assim, tomando o conceito de espaço social de Bourdieu, busca-se relacionar o espaço religioso da capitania do Rio Grande como o espaço onde ocorrem as relações emblemáticas entre as camadas “brancas” da elite com as mestiças, tanto pobre quanto escrava, observando as práticas que essas camadas se valiam para legitimação de um status social.

O recorte espacial para a realização da pesquisa é a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, tendo como datas limites o período compreendido entre os anos de 1727 a 1761, fazendo o levantamento dos matrimônios ocorridos na matriz da cidade e extraindo desses documentos o registro de pessoas mestiças, bem como procurando entender o padrão destes registros, no que tange à escolha das testemunhas pelos nubentes. Apesar de os párocos desta localidade serem bastante sucintos em relação aos registros, quando as informações

3 Gruzinski, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 4

Cf. BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Compadrio e Escravidão: uma análise do apadrinhamento de cativos em

São João del Rei, 1730-1850.

5 BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria das ações. Trad.: Mariza Correia – Campinas, SP: Papirus,

1996, pp. 13-28.

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envolvem pardos, negros e índios estas se tornam ainda mais escassas, demonstrando o quanto as pessoas ditas de cor eram discriminadas pelos demais segmentos da sociedade.

Para a pesquisa foram analisados três livros de matrimônios da matriz de Nossa Senhora da Apresentação cujos documentos possibilitaram levantar 491 registros em que se podia ler quem eram os nubentes, sua naturalidade, seus pais, condição jurídica, quem testemunhou e onde residiam. Infelizmente, para o caso dos registros de matrimônios do Rio Grande, não era mencionada a idade dos nubentes nem sua ocupação, salvo quando o noivo pertencia ao corpo militar ou possuía cargos na capitania. Neste estudo, serão enfatizados os aspectos jurídicos e a ocorrência de misturas entre étnicas e cores no matrimônio.

No primeiro capítulo serão abordados os códigos de conduta moral e religiosa que norteava a sociedade colonial, como as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que era a base da doutrinação imposta pela Igreja para a colônia e como esta se fazia presente no cotidiano da população que procurava se adequar às normas garantindo, desta maneira, o seu lugar no espaço em que as relações sociais ocorrem. Também se pretende mostrar a importância que o matrimônio tinha para os brancos, mestiços e escravos.

No segundo capítulo, evidenciar-se-á as uniões entre mestiços (livres ou cativos) e escravos, percebendo-os como agentes históricos buscando dentro das possibilidades oferecidas na colônia um status diferenciado. Procura-se demonstrar, pelos exemplos escolhidos, que o comportamento da população, fosse branca, negra, mestiça, cativa ou livre, era semelhante, pois o matrimônio era um instrumento importante na construção de uma possível rede de sociabilidades.

Já no terceiro capítulo outro aspecto abordado será a movimentação dos mestiços neste espaço afim de garantir para si e seus descendentes uma melhor condição de vida, entendendo as escolhas das testemunhas como uma evidência de que as redes de solidariedades aconteciam não apenas no ato do batismo, mas também nos matrimônios.

Assim, procura-se mostrar pelos registros matrimoniais que independentemente de sua cor ou condição jurídica, a população colonial buscava meios pelos quais pudessem garantir melhorias de vida e ganhos futuros. No caso dos mestiços, livres e escravos, o matrimônio era ainda mais importante, pois sendo um ritual branco, aqueles que se submetiam a ele, estava externando-se diante da sociedade que, apesar de sua condição subalterna, pelo menos no papel, eles se igualavam à elite.

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Capítulo I

A importância do matrimônio para a sociedade colonial: brancos, negros, pardos e indígenas sob o desígnio de uma mesma mentalidade.

Durante o período colonial, casar não significava apenas unir-se carnalmente a outra pessoa ou constituir - por meio de laços de afeição - uma família. Dentro da dinâmica social e católica do Brasil colonial, o matrimônio constituía-se um importante meio de controle e de normatização social regida pelo clero da Igreja, mas também poderia ser observado como um instrumento de ascensão social para a parte da população marginalizada, como escravos, negros, pardos e indígenas. Na medida em que estes se articulavam dentro da colônia a fim de estabelecer uniões, eles poderiam garantir estabilidade e alguma melhoria de vida.

A mudança da mentalidade sobre as uniões começaram ainda no século XVI. Neste período, a Igreja passava por um intenso processo de moralização do clero e estabelecimento de regras que visavam enquadrar tantos os féis como os religiosos. O Concílio de Trento (1545) veio justamente para consolidar entre a cristandade princípios morais que deveriam nortear o comportamento e a mentalidade da sociedade. Dentre as novas mudanças estava a

imposição do matrimônio e a atenção dada à melhor formação do clero6. A partir daí, as

práticas tidas como ilícitas (como o concubinato) passaram a ser alvo de repreensões dos religiosos e mal vistas pela sociedade.

A Igreja neste momento assumiu uma posição de agente normatizador da sociedade cristã, quando colooua o matrimônio como sendo um sacramento. O historiador Gian Carlo de Melo Silva, discorrendo sobre as mudanças no discurso do catolicismo sobre o casamento, colocando-o como um sacramento, afirma que a Igreja almejava ampliar suas influências entre os diversos campos da sociedade e que se tratava de um conjunto de estratégias maiores em que casar significava ganhar um status social alcançado por poucos, um grupo seleto que

tinha acesso à instituição eclesiástica7.

Quando se iniciou a colonização no Brasil, além dos conquistadores também desembarcaram os padres jesuítas responsáveis por propagar a fé católica entre os grupos

6 PIMENTEL, Helen Ulhôa. O casamento no Brasil Colonial: um ensaio historiográfico, P.23-24.

7 SILVA,Gian Carlo de Melo. Da intimidade do lar para o domínio divino: o ritual do casamento e suas

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indígenas. Aliado ao projeto de povoação, havia a inserção dos códigos de condutas trazidos pelos padres que tentavam moralizar o comportamento dos primeiros habitantes. Esta moralização ocorreu pela imposição dos códigos contidos no Concílio de Trento. Entretanto, com a estabilização colonial fez-se necessário estabelecer regras que fossem direcionadas à colônia. Então em 1707, com o sínodo da Bahia foram criadas as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que era um conjunto de regras e ensinamentos para os âmbitos seculares e religiosos8.

O cuidado dos religiosos com a manutenção da moralidade da sociedade que se formava era latente, pois procuravam fazer valer as regras e ordens contidas nas Constituições. Mas diante de tantos casos considerados imorais para as autoridades eclesiásticas, fazia-se necessário abrir mão do rigor e “letra da lei” para adequar o maior número de casais dentro dos ritos religiosos. Dentre estes casos, os que mereciam maior dispensa por parte dos clérigos era a união entre casais com grau de parentesco por consanguinidade e também no espiritual adquiridos no ato do batismo, que eram os casos que envolviam relações entre padrinhos e madrinhas com seus afilhados. Nestas duas situações, geralmente se impunha penitência aos nubentes e logo após os mesmos eram liberados para casar9.

Outro caso abordado nas Constituições, que envolvia relações de parentesco, eram as chamadas adoções legais, que para o caso da colônia referiam-se às crianças expostas (abandonadas) em casas de famílias, e da mesma maneira que nos dois casos citados acima, era proibido o matrimônio entre os membros desse núcleo familiar. Para a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação não foi encontrado nenhum caso envolvendo expostos nos matrimônios analisados.

As Constituições procuravam abranger e detalhar ao máximo todos os assuntos relacionados ao matrimônio. Eram também motivos para proibir o casamento os seguintes casos: erro de pessoa10, condição11, voto12, cognação13, crime14, disparidade15, força ou

8 Ibid, pp. 5-6.

9 VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Feitas e Ordenadas pelo

Ilustríssimo, e Reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua Majestade, Propostas e Aceitas em Sínodo Diocesano, que o dito Senhor Celebrou em 12 de Junho do ano de 1707. São Paulo: Typografia de Antonio Louzada Antunes 1707, p. 117.

10 Diz-se da pessoa que afirma ser quem não é, como o crime atual de falsidade ideológica.

11 Trata-se de casos em que uma pessoa cativa afirma ser livre. Se for descoberto o casamento é anulado. 12

Pessoas que fizeram votos à ordem sacra ou professaram a alguma religião aprovada.

13 São as relações de parentesco no plano da consanguinidade, espiritualidade e casos de adoção de crianças

abandonadas.

14 Casos em que uma das partes ou ambos os nubentes planejaram a morte do cônjuge para contrair novo

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medo16, ordem17, ligame18, pública honestidade19, afinidade20, impotência21, rapto22 e

ausência23. Para todos estes casos havia uma explicação da proibição e porque tornava nulo o

matrimônio24.

A idade mínima exigida para a realização da união era de 14 anos para os homens e 12 anos completos para as mulheres, mas que podiam ser liberados antes de alcançarem a idade mínima desde que tivessem “discrição e disposição que supra a falta de idade” e mesmo assim teriam de pedir autorização do Bispo ou clérigo superior para tal realização e o padre que os

casasse sem licença, seria punido25. Desta forma, as pessoas consideradas doidas ou

“desacisadas,” (desatinadas, sem siso, desvairado)26

não poderiam casar, salvo quando este estivesse em momentos de lucidez.

Para casar era necessário aos nubentes revelar o intento ao seu pároco e depois disto, iniciavam-se os banhos, em que eram pedidos os registros de batismos dando conta de sua origem, ou de óbito (para o caso dos viúvos). A partir daí, o pároco anunciava durante três domingos consecutivos que aqueles paroquianos desejavam casar e se houvesse algum

impedimento que fosse revelado27. O matrimônio não poderia ser realizado antes do sol

nascer e nem após o por do sol, como também fora da igreja, a não ser que fosse por ordem superior. Os nubentes deveriam se receber em estado de graça, visto que o matrimônio era um

sacramento, por isso ambos deveriam ser confessados antes da realização da cerimonia28.

15 Era proibido o casamento entre o fiel e o infiel.

16 Quando um dos nubentes ou ambos foram constrangidos a casar por medo. 17 Refere-se à Sagrada, ainda que seja apenas de subdiácono.

18

Quando alguém é casado por palavras de presente e não de fato. Se o cônjuge estiver vivo, não pode contrair novo matrimônio.

19 Diz-se do compromisso assumido para um futuro casamento. E se caso a noiva ou noivo falecer, era proibido

contrair matrimonio com o pai, mãe, irmão ou irmã do falecido.

20

Relações de parentesco contraídas com membros da família até o quarto grau de consanguinidade para ambos os casos.

21 Ocorria quando um dos cônjuges era incapaz de gerar filhos por condição física ou doença.

22 Quando a mulher era furtada contra a sua vontade, ou mesmo quando da fuga da noiva mas que contrariava a

vontade dos pais.

23 De acordo com o Sagrado Concílio Tridentino, eram considerados inválidos os matrimônios realizados na

ausência de um pároco ou sacerdote e também na falta de duas testemunhas.

24VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Feitas e Ordenadas pelo

Ilustríssimo, e Reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua Majestade, Propostas e Aceitas em Sínodo Diocesano, que o dito Senhor Celebrou em 12 de Junho do ano de 1707. São Paulo: Typografia de Antonio Louzada Antunes 1707, pp. 116- 119.

25 Ibid: pp. 109-110. 26

Cf. MICHAELIS, Dionário. Disponível em :

ttp://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=desassisado. Acesso em 06 de junho de 2016.

27 Ibid: p. 110. 28

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Desta forma, percebe-se que apesar de ser um instrumento de controle social e normatização da população no Brasil colonial, para que o intento de se construir uma sociedade regrada de acordo com o ideal traçado pela Igreja, a mesma tinha de relativizar alguns de seus parâmetros, pois do contrário o número de casamentos “oficiais” seria quase irrisório diante dos casos de mancebia.

Assim, quando a sociedade colonial estava consolidando-se, também crescia neste mesmo território uma população mestiça que, para além do que impusera a Igreja, brancos, negros e índios relacionavam-se tão intensamente que fugia do controle dos párocos a forma que estas uniões aconteciam. A quantidade de batismos realizados por mães solteiras e o número de filhos naturais na sociedade colonial não era um fenômeno raro. E ao que parece também não era considerado um absurdo a ponto de fazer estas mulheres e suas proles naturais sofrerem infortúnios ao ponto de lhes comprometer a sua inserção social. Claro que estas mulheres não eram privilegiadas e pertenciam quase sempre às classes mais baixas. De certa forma, este comportamento era mais comum entre as camadas de gente de cor e por isso mesmo, toleradas entre a elite. Por isso o matrimônio constituía um elemento de diferenciação social e era tão importante para os negros, pardos e indígenas, fossem eles cativos ou escravos.

Uma sociedade mestiça. Este era o Brasil que se desenvolvia, ainda que o estigma da cor fosse algo que se tentasse esconder. Este era a sua principal característica, a formação da sociedade brasileira estava profundamente ligada à mistura entre três etnias e culturas: a branca europeia, a negra africana e a indígena. Assim, entende-se o fenômeno da mestiçagem como o concebe o historiador francês Serge Gruzinski em sua obra O pensamento mestiço: uma interação cultural que inevitavelmente ocorria entre povos e que o dominado assimila elementos da cultura do outro e produz algo novo, como forma de resistência e de fazer perpetuar sua identidade.

Para explicar a mestiçagem, o autor analisa obras de indígenas que se apropriaram da cultura europeia e criaram algo novo durante o período da conquista e mostra como os elementos pagãos estavam presentes em obras indígenas no México, cuja temática remetia à cultura europeia, ponto que ligava as duas culturas. A trazida pelos conquistadores e, portanto a dominadora e a produzida pelos artistas indígenas durante este período que seria a parcela dominada, mas não tão passiva como se supunha, pois introduziu elementos do imaginário de suas tradições nas obras deixando sua marca na sociedade.

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(...) as mestiçagens aparecem primeiro como reação de sobrevivência a uma situação instável, imprevista e amplamente imprescindível (...) Assim a de imaginar as mestiçagens americanas a um só tempo como um esforço de recomposição de um universo desagregado e como arranjo local dos novos quadros impostos pelos conquistadores. O dois movimentos são indissociáveis. Nem um nem outro escapam ao ambiente profundamente perturbador que descrevemos29.

Portanto, aplicando a ideia de mestiçagem cultural à realidade vivida pelos habitantes do Brasil colonial, percebe-se tanto a luta dos padres para tentar manter a ordem e os princípios cristãos em todas as camadas sociais, mas também se percebe que a interação existente entre os conquistadores e os indígenas foi o fator determinante para a formação de uma sociedade oscilante entre a cristã branca e o imaginário pagão indígena e mais tarde o elemento escravo lançaria sua contribuição nas bases desta mesma sociedade.

Analisando o papel da mestiçagem e escravidão de forma comparativa no mundo ibérico, Eduardo França Paiva, se propõem a analisar as conexões existentes entre o global e o local pelo viés da atuação de diversos agentes históricos em localidades distintas, apontando semelhanças entre obras produzidas no contexto da colonização espanhola e entre a brasileira. Ele analisa de que forma os homens e mulheres mestiços, atuaram, viveram e fomentaram de forma intensa o processo de mestiçagem biológica e cultural ocorrido durante o processo de conquista e ocupação da América. Fazendo um paralelo entre obras e iconografias da América espanhola e transpondo para a realidade brasileira, mostra que apesar de distantes

geograficamente, essas obras mantinham semelhanças30.

A cultura mestiça pode ser observada, desta maneira, pelo viés de diversidade cultural que estas regiões (tantos cidades espanholas como Vera Cruz, Acapulco, Puebla, Cuzco etc. como as “brasileiras”, sobretudo as litorâneas como Recife, Salvador, Rio de Janeiro e posteriormente, as regiões auríferas como Minas Gerais) abarcavam. Nelas circulavam uma quantidade expressiva de negros, pardos, mulatos e descendentes de indígenas, que com suas comidas, linguagens, músicas, religiosidades, ritos e demais elementos de sua cultura, misturavam-se ao elemento dominador – o cristianismo - e nessa fusão desenhavam uma nova sociedade31.

Sendo o Brasil colonial um território formado, sobretudo pelas uniões (nem sempre consensuais) entre as brancos, negros e índios e de estas misturas culturais fazerem parte de

29 GRUZINSKI, 2001, Op. cit p. 110. 30

PAIVA, Eduardo França. Histórias comparadas, histórias conectadas: Escravidão e mestiçagem no Mundo Ibérico. In.: PAIVA, Eduardo França, IVO, Isnara Pereira. (orgs.) Escravidão, mestiçagens e histórias

comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH- UFMG; Vitória da Conquista: Edições UESB,

2008. (coleção Olhares). p. 13-27.

31

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sua base e cotidiano das pessoas, ainda era uma colônia e como tal estava submetido às bases e diretrizes da monarquia maior, portuguesa. E sendo Portugal um território cristão, suas colônias, incluindo o Brasil, deveriam ser organizadas sob a égide e preceitos morais que norteavam o pensamento europeu daquele período histórico. Então, o matrimônio era mais um elemento de controle social e imposição de um comportamento que aludia aos ideais de pureza, castidade e moral baseados na doutrina de Cristo e de seus defensores.

Partindo do pressuposto de que o matrimônio era um instrumento de diferenciação social e também de ascensão, já que para os que faziam parte da elite colonial o casamento não era apenas o momento de celebrar a união entre duas pessoas, mas significava a possibilidade de fazer alianças, estreitar laços de amizades e aumentar a fortuna das famílias envolvidas, entende-se que oferecia oportunidades únicas para todos os que legitimassem sua

união perante a igreja32. Da mesma forma, as populações escravas e mestiças percebiam o

casamento como uma forma de se diferenciar das demais camadas pobres e por isso o casamento para estes indivíduos pode ser considerado uma estratégia para alcançar melhorias em sua condição de vida ou status.

Sheila de Castro Faria, em seu trabalho no qual demostra as particularidades das relações que existiam entre a população mestiça e branca pobre na região fluminense, mostrando que em muitos casos o casamento era o elemento fundamental e determinante dos aspectos sociais e familiares da colônia. Além de ser tomado como estratégia que viabilizava a mobilidade social dentro de uma sociedade estratificada, a família formada pelo ato do casamento constituía um elemento fundamental na formação da colônia. A autora, explicando o que seria família para os moldes coloniais, afirma:

Para os séculos XVI, XVII e XVIII, o termo significava (....) a ideia de coabitação enunciada a princípio, independentemente dos laços de consanguinidade que poderiam existir entre pessoas que viviam na mesma casa. Incluíam-se criados, agregados, por exemplo. Predominava o sentido de “gente da casa”, sob um mesmo chefe. Um outro sentido é o de que família exprimia a ideia de consanguinidade sem coabitação, abrangendo, portanto, os parentes33.

No caso brasileiro, a historiadora afirma que era mais complexa a definição de família, pois a existência dos escravos não tornava os mesmos como integrantes de uma família, ainda

32

Dentre as possibilidades de aumento da fortuna das famílias esta o dote, prática costumeira em Portugal e que foi muito utilizada no Brasil por ocasião dos contratos de casamentos. Conforme SANTOS, Rosenilson da Silva.

Casamento e dote: costumes entrelaçados na sociedade da Vila Nova do Príncipe (1759 - 1795).

33 FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento – Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de

(20)

que estivessem vivendo sob as ordens de um senhor. Somente faria parte deste núcleo os criados, parentes, e agregados. E a estes parentes também poderia se incluir os “aliados”, que seria a extensão da unidade do lar, pois se poderiam considerar aliados todos os membros de

um lar ou de uma família que tivessem interesses em comum com laços de afinidade34. E que

para tanto faziam parte de uma rede de reciprocidades que na época do Brasil colonial fora uma das estratégias para a consolidação de poder em uma determinada região.

Considerando a família como um núcleo de relações que transborda os limites de um sistema formado por pai, mãe e filhos, as populações escravas e mestiças podem ser inseridas, dessa forma, no mesmo conceito, já que até mesmo os que não legitimavam suas uniões perante a Igreja, traçavam seus caminhos por redes de apadrinhamento com pessoas ligadas ao seu convívio, fossem elas livres ou cativas.

Sobre a formação da família escrava, o trabalho de Robert W. Slenes foi elucidador, pois rompeu com a ideia de que os escravos, devido à sua penosa condição, não constituíam famílias, pois a incerteza da vida aliada à instabilidade de moradia fazia destas pessoas apenas

semoventes, criaturas dispersas em um mundo de desgraça, servidão e esquecimento35.

Slenes, juntamente com outros historiadores que faziam parte da leva de estudiosos que

colocaram os escravos como sujeitos históricos como Sidney Chalhoub36 e Sílvia Hunold

Lara37, dentre outros, mostraram que os escravos atuavam na sociedade com estratégias de

sobrevivência e ganhos que ultrapassavam o entendimento da obediência cega como forma de melhores condições de vida.

O escravo, ainda que sujeito a um sistema opressor, era consciente do que ocorria ao seu redor e juntamente com as redes de relacionamento que estreitavam com outras pessoas livres ou cativas, muitas vezes conseguiam mudar a sua condição servil. Com o acúmulo de um pecúlio poderiam comprar sua alforria, ou ainda por meio de um casamento com uma mestiça livre, garantiria para a sua descendência a liberdade, ou quando dos batismos a escolha dos padrinhos era feita de um modo que a criança pudesse ser amparada no caso da morte dos pais. Casos como estes demonstram que o escravo estava longe da passividade e

34

FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento – Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de janeiro: Nova fronteira, 1998. Coleção Histórias do Brasil. p. 4.

35 SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: Esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil

Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999 pp. 43-53

36

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: Uma história sobre as últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras. 2011.

37 LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência- Escravos e Senhores na Capitania do Rio de Janeiro

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incertezas da vida. Eles, assim como os livres pobres, tentavam mudar sua condição de vida de acordo com o que o sistema lhes permitia.

Tratando da maneira como escravos tramavam e articulavam dentro do espaço em que viviam a fim de obter ganhos, favores e consequentemente mudar sua sorte, Sidney Chalhoub

em Visões da Liberdade: Uma história sobre as últimas décadas da escravidão na corte38,

aborda o exemplo de homens e mulheres cativos que se moviam freneticamente pelas ruas do Rio de Janeiro do final do século XIX. Nestas histórias, o autor analisa as intenções dos escravos quando estes se viam diante de situações que poderiam limitar sua liberdade. Dentro de um contexto urbano, Chalhoub mostra que os escravos eram os protagonistas de suas vidas ainda que sujeito à ordem de seu senhor, quando se valiam de direitos concedidos pela política e nova conjuntura social. Não foram raros os escravos que entraram com petições de liberdade na justiça contra seus senhores, nem tão poucos aqueles que com o seu trabalho compraram sua alforria, ou os que enfrentaram o seu opressor sem temer castigos e os que articulavam com uma população mestiça e livre aproveitando-se de um mundo em mudanças e impulsionando a própria legitimidade sobre o direito de posse sobre outro.

Nestes casos, o negro não só é colocado como sujeito histórico, como suas ações conduziram a uma mudança de mentalidade sobre a escravidão. Percebe-se que a conjuntura política e cultural vivida por estas populações mestiças, escravas ou livres era o fator determinante sobre a maneira como eles iriam se movimentar dentro dela. No período colonial, os escravos valiam-se das redes de solidariedade por meio de apadrinhamentos como forma de garantir melhores condições de vida ou incorriam à violência como exemplo de resistência. À medida que no Brasil começara a circular novas ideias sobre liberdade e nação, as camadas mestiças também se apoderaram delas em proveito pessoal e, desta maneira, fica evidenciado sua participação na conjuntura político social em que estavam inseridos.

Outro autor que aborda os laços matrimoniais como manobras para melhoria de vida é o historiador Gian Carlo de Melo Silva, abordando o Recife colonial. O autor analisa as particularidades que envolviam os assentos de matrimônio em que se é possível traçar um panorama social da localidade que se estuda. Os escritos dos vigários muitas vezes é revelador da composição da sociedade, pois pela leitura dos assentos a população mestiça, livre ou escrava é registrada e com isso é possível demonstrar quais os padrões de uniões em determinada freguesia. Na obra, o autor aborda a presença dos casamentos mestiços nestas uniões e mostra as estratégias usadas pela população mestiça em seu proveito.

38

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O matrimônio foi mais que uma prática do cotidiano colonial, ele foi o suporte social que os homens e mulheres utilizaram em seu favor quando estes tinham como objetivos desde a consolidação de poder, como o modo pelo qual os desfavorecidos podiam se colocar no universo branco. Para o autor acima citado,

O assento de casamento não é um simples registro da união de dois corpos, mas o local onde um conjunto de práticas sociais se encontra, fonte que permite aos historiadores escrever acerca de um passado construindo uma imagem (...)”39.

Assim, ao tratar das mestiçagens nos matrimônios do Recife colonial, o historiador mostra que as camadas mestiças estavam inseridas no cotidiano da cidade não como o resultado de misturas biológicas, mas são considerados seus aspectos culturais que, juntamente com o elemento branco cristão, deu vida à cidade do Recife.

Outra obra que analisa a questão matrimonial no que diz respeito à sua importância para o entendimento social de uma região, assim como as atitudes tomadas pela população que desejava o sagrado matrimônio foi a de Solange Mousinho Alves, analisando livros de matrimônio do sertão do São João do Cariri na Paraíba, em que a autora mostra as redes de sociabilidade e solidariedades existentes entre as camadas escravizadas da população. Para isso, a mesma utilizou fontes documentais produzidas pela Igreja (assentos de batismos,

casamentos e óbitos) a fim de montar o cenário social daquela localidade40.

Entende-se, assim, que os registros paroquiais são fontes preciosas para revelar o passado colonial brasileiro, seja ele em qualquer localidade, pois em uma sociedade pautada em códigos religiosos a presença eclesiástica era a principal representante do poder da monarquia portuguesa sobre suas colônias. Ademais, estes registros, ainda que lacunares e escassos, são os principais meios pelos quais se pode perceber a presença dos escravos e mestiços em suas práticas cotidianas e também o meio que eles ganhavam a vida, isso para localidades afastadas e menos expressivas do ponto de vista econômico. Pois ainda que pobres, cativos, carregando o fardo do estigma da cor, as pessoas batizavam seus filhos, casavam e quando morriam tinham seus nomes assentados nos livros de óbitos.

39 SILVA, Gian Carlo Melo. Um só corpo, uma só carne: casamento, cotidiano e mestiçagem no Recife Colonial

(1790-1800). 2. ed. Maceió: Editora Universitária da Universidade Federal de Alagoas, 2014. V.1, p. 20.

40 Alves, Solange Mouzinho. Parentescos e sociabilidades: experiências familiares dos escravizados no sertão

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Nestes registros, um dos aspectos que mais fica evidenciado quando se trata de mestiços livres ou escravos é a questão do apadrinhamento. A escolha dos padrinhos na hora do batismo e as testemunhas, quando se legitimava uma união, é bastante semelhante à escolha dos brancos. Nos assentos analisados para a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande, que é o recorte espacial do trabalho em questão, dava-se preferência à escolha por pessoas tidas por “conhecidas” na sociedade. Essas pessoas “conhecidas” não são pessoas escolhidas de qualquer maneira apenas para validar o matrimônio, mas fazem parte da elite colonial moradora na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, que em muitos casos eram ligadas às ordens militares. Assim, percebe-se na escolha das testemunhas a tentativa de estreitar laços com as pessoas com status mais elevado. Outro aspecto que pode ser observado nestes registros da freguesia de Nossa Senhora

da Apresentação são as relações paternalistas41 observadas na escolha das testemunhas, pois

mesmo que alguns escravos não obtivessem ganhos imediatos com suas escolhas, pelo menos preparavam o caminho para uma possível necessidade. E observando-se do ponto de vista do senhor, ajudar uma escrava a casar com um homem livre, por exemplo, significava um possível ganho de mão de obra para aquele senhor, pois após o casamento o homem não podia se apartar da mulher e como esta era escrava, acabava por fazer parte do núcleo familiar do senhor da sua esposa, como mais uma mão de obra para aquela casa.

Além das relações paternalistas do período colonial, havia também o patriarcalismo, conceito elaborado por Gilberto Freyre em sua obra Casa Grande & Senzala, em que os aspectos sociais do período colonial “brasileiro” perpassavam pelo latifúndio e a família era a base da sociedade em que o senhor exercia o papel de chefe absoluto e a mulher era a figura da fragilidade sempre enclausurada em casa cuidando dos filhos. É questionável o enquadramento dos modelos de sociedade estudados por Freyre, pois as pesquisas posteriores revelam as particularidades sociais de cada região do país, mostrando que o modelo de sociedade descrito por Freyre em que a mulher aparece resguardada a todo custo pelo pai para que chegasse virgem ao casamento, por exemplo, não correspondia à realidade colonial. Os

41 O historiador Douglas Cole Libby, aborda as relações paternalistas na obra do historiador norte americano

Eugene Genovese, em que mostra que estas relações se davam, sobretudo no âmbito restrito à casa senhorial e que na maioria das vezes o Estado não intervinha nestas relações e, portanto ficava o escravo sob a dominação física e psicológica dos senhores e às vezes do administrador daquela fazenda. LIBBY, Douglas Cole.

Repensando o conceito do paternalismo escravista nas américas. In.: PAIVA, Eduardo França, IVO, Isnara

Pereira. (orgs.) Escravidão, mestiçagens e histórias comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH- UFMG; Vitória da Conquista: Edições UESB, 2008. (coleção Olhares). p.27- 40

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próprios registros clericais mostram isso. Pela quantidade de mulheres solteiras que batizavam

seus filhos, a ideia de uma sociedade muito fechada em padrões rígidos não se sustenta42.

Dessa forma, é possível levantar dados sociais das camadas mais pobres e mestiças do período colonial. Mesmo em menor número, estes registros revelam como estas pessoas se articulavam no universo branco. Essas uniões nada tinham de insignificantes. Fazem parte da nossa história, e cada vez mais se percebe o negro ou o pardo, escravo ou livre43 na luta constante pelo estabelecimento de redes de solidariedade, enfim, lutavam com as armas que dispunham naquela ocasião, mas o certo é que passivos não ficavam.

Portanto, nas relações estabelecidas no ato matrimonial entre as diversas camadas sociais que compunham a sociedade do Rio Grande colonial, refletem as relações de cunho paternalistas quando os mestiços optavam por escolher pessoas de status mais elevados que o seu e também representantes da elite da época, observadas como uma maneira de se garantir ou almejar melhorias de vida por meio de redes de reciprocidade. Assim, as famílias formadas na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação em face da Igreja eram constituídas por uniões mestiças que se entrelaçavam nessa sociedade com o objetivo de externar seu desejo de mudança quanto ao estigma e preconceito social que permanecia entre essas famílias.

42 FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento – Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de

janeiro: Nova fronteira, 1998. Coleção Histórias do Brasil. p. 47-48.

43 Para um estudo mais aprofundado sobre as cores das população e mestiça e os embates em que estavam

envolvidos na sociedade colonial, no que diz respeito ao seu lugar social ver 43 VIANA, Larissa. O idioma da

(25)

Capítulo II

Os matrimônios da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação: a presença de uniões mestiças na constituição das famílias do Rio Grande

Segundo Luís da Câmara Cascudo, no período colonial, uma freguesia era o espaço territorial assistido pelos religiosos e a mesma era composta basicamente pela tríade: Matriz, capelas e padres. O mesmo autor afirma que não se sabe a data exata da criação da freguesia, mas que ela iniciou suas atividades com a fundação da Capela de Nossa Senhora da

Apresentação em 25 de dezembro de 1599 quando da criação da cidade do Natal44.

Com o crescimento da colônia na segunda metade do século XVIII, a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação passou a dividir o espaço da capitania com mais três freguesias: a do Assu, Nossa Senhora da Santana de Caicó e de Goianinha. Já as capelas que a matriz de Nossa Senhora da Apresentação englobava, destacam-se a de Ceará Mirim e São Gonçalo (na parte norte) e a capela da ribeira do Mipibu chamada Papari localizada ao sul da capitania.

Entendendo a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação como o espaço onde ocorrem as práticas culturais e religiosas normatizadoras, mas também como o espaço onde se desenvolvem os interesses seculares que norteavam toda a população, pretende-se estudar a mestiçagem dos relacionamentos e mostrar que as pessoas de cor almejavam estar inseridos de fato, na sociedade colonial, no sentido de serem aceitos por ela e terem sua união reconhecida por todos e pela Igreja, pois desta maneira estariam mais perto de uma possível mobilidade social.

A população mestiça moradora na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação pode ser percebida pelos escritos dos vigários das paróquias que registravam os assentos de matrimônios tanto de brancos quanto de negros, pardos, livres, escravos, forros que constituíam a população do Rio Grande. Os livros não separavam a população branca e abastada das camadas mestiças, pobres e cativas. Assim, em um mesmo livro é possível encontrar o casamento de um capitão e logo a seguir de um escravo.

Os assentos matrimoniais constituem importante documento para a investigação de uma determinada população, entretanto, a pesquisa muitas vezes fica limitada devido à própria escrita dos vigários, que muitas vezes não seguiam as recomendações eclesiásticas

44 CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal. 3.ed. Natal: Ed. IHG/RN, 1999. p. 99 (Coleção

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que ordenavam que os registros devessem seguir as normas instituídas pela Igreja a fim de manter um padrão. Alguns registros contêm apenas os nomes dos nubentes, o que dificulta o entendimento sobre quem eram aquelas pessoas.

Apesar da quantidade de registros encontrados para a freguesia estudada mostrarem que a maior quantidade de assentos diz respeito a uma parte branca e livre da população, pois do total de 491 registros analisados para os anos de 1727-61, apenas 42 faziam menção à cor ou à condição jurídica do indivíduo, ainda assim, pode-se considerar que mesmo em quantidade pequena, esses indivíduos, ao oficializar perante a sociedade e poderes constituídos sua união, tinham interesses concretos de se assemelhar aos brancos, pois como afirma Sheila de Castro Faria: “(...) Casar-se significava buscar uma estabilidade familiar e um respeito social, fundamental, no caso dos homens brancos de qualquer crença, e

estratégico, no caso de escravos, forros, e mestiços”45.

Da mesma forma, quando se atenta para os aspectos mestiços da população, principalmente em seus elementos negros, percebe-se o quanto o sacramento matrimonial, dentro dos padrões legais impostos pelas autoridades, estava carregado de valores simbólicos para as camadas pobres e cativas. Tomando como exemplo o assento abaixo:

Aos vinte e oito de outubro de mil setecento e quarenta e dous annos na Igreja do Senhor Sam Miguel da Missao do Guajurû desta fregezia de Nossa Senhora da Aprezentação do Rio Grande do Norte feytas as denunciaçoens na forma do Sagrado Concilio Tridentino nesta Matris (...) e cedendo a contrahente ao impedimento de escravidão ignorado com que se lhe saio, o qual lhe depos o Reverendo Assistente primeira, segunda, e terceira ves diante de testemunhas em particular e publicamente, ao que a dita contrahente sempre respondeo que queria cazar com o contrahente, e ainda que fosse escravo cujo impedimento foy anulado,(...) se cazarão em face da Igreja solenemente por palavras Mathias dos Santos natural da cidade de Olinda freguezia da Sê filho com Brazia Gomes Martins natural desta freguezia,(...)46

Neste exemplo, observa-se que os nubentes tiveram que se submeter por três vezes diante das autoridades eclesiásticas e demais testemunhas para poderem casar, visto que o noivo foi acusado de ser escravo, o que foi posteriormente esclarecido e desfazendo-se o impedimento, os dois puderam se unir em matrimônio. O interessante neste caso é ver como a noiva estava segura quanto à decisão de casar, pois afirmava com convicção que casaria com o Mathias dos Santos ainda que ele fosse escravo.

45 FARIA, 1998, op. Cit, p. 304

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No registro, o vigário não colocou a cor dos contraentes, mas se pode inferir que o noivo poderia ser pardo, mulato, negro ou possuir características indígenas, pois como foi levantada a hipótese de ele ser escravo, fica subtendido que o seu fenótipo corresponde a umas das muitas “cores da população”, já que se fosse branco não sofreria tal acusação. Outro fato que chama a atenção no registro é a fragilidade da condição de livre dos escravos forros, pois fornece a impressão que a qualquer momento uma pessoa poderia voltar ao cativeiro pela denúncia falsa de outrem, ou seja, a liberdade adquirida neste período ainda não era algo legitimamente reconhecido.

Em uma sociedade colonial, a escravidão estava tão imbricada nos fundamentos da sua economia e do trabalho, que um mestiço alforriado poderia ver-se destituído de sua liberdade. Já que o peso da discriminação pela cor era algo latente entre as pessoas, as pessoas de cor tinham de conviver com a possibilidade de perderem sua liberdade e voltar ao cativeiro ou serem vendidos para lugares distantes de onde viviam o que tornava a chance de provar que eram livres quase impossível, pois não teriam a quem recorrer e nem pessoas que testemunhassem a veracidade de sua liberdade.

A historiadora Keila Grinberg, analisa o caso de Liberata, escrava que ganhou a liberdade depois de procurar a justiça contra o seu senhor alegando que este há muito tempo prometia-lhe a liberdade e não cumprindo, e além disso por se encontrar constantemente ameaçada pela sua senhora e também da filha do dito senhor, pedia que se fizesse justiça e libertasse a mesma. A ação de Liberata é repleta de idas e vindas típicas dos tramites legais do século XIX, época em que ocorre o caso estudado. As ações de liberdade tornam-se mais comuns no século XIX. A autora não cita nenhum caso em que um escravo procurasse a justiça para reaver a sua liberdade em períodos muito anteriores a este, dado que ela mostra que o processo mais antigo encontrado na corte de Apelação do Rio de Janeiro remonta ao final do século XVIII.

Outro caso em que se aborda casos de escravidão ilegal é a dissertação de mestrado de Antônia Márcia Nogueira. Nela, a autora analisa o caso de Hypolita Maria das Dores, que

nasceu livre e foi escravizada e de sua luta por liberdade47. Quando seu pedido de liberdade

foi negado, a mesma fugiu da casa de seu opressor e procurou abrigo e auxílio de um primo de seu escravizador, sendo que este era inimigo declarado de João Pereira. Foi neste momento que a luta de Hypolita ganhou destaque nos jornais e com o apoio de Gualter Martiniano de

47 PEDROZA, Antônia Márcia Nogueira. Desventuras de Hypolita: Luta contra a escravidão ilegal no sertão

(28)

Alencar ela pode entrar novamente com a “ação de liberdade” e tentar provar que nunca fora escrava.

Situações como estas citadas acima demorariam anos para serem resolvidas, pois aqueles que alegavam serem proprietários de alguém não se conformavam em perder a posse de um escravo, que significava abrir mão de seu patrimônio. Mas também mostra a luta desses mestiços como agentes de seus próprios destinos. Aproveitando-se da constante mudança política e cultural na sociedade, recorriam aos meios legais de que dispunham para se libertarem do julgo da escravidão. No caso de Mathias dos Santos, podem-se fomentar hipóteses sobre sua denúncia. Ao que parece tratava-se de uma denúncia falsa sem fundamentos, pois provavelmente foi resolvida ainda quando se processavam os banhos do matrimônio, que foram feitos em todas as localidades onde residiu o nubente.

Além da fragilidade da própria liberdade, homens e mulheres, forros e livres tinham que amargar por toda a vida o estigma de ex-escravos ou filhos de escravos, marcas que carregavam consigo de modo que o fato de terem alcançado a liberdade não os colocava de maneira nenhuma em condição de igualdade com brancos. O passado cativo e servil continuava a servir como elemento de diferenciação social.

Esta permanência foi observada por Sheila de Castro Faria. Para a autora:

A caracterização de um indivíduo como preto/pardo livre/liberto significava uma evidente proximidade com um recente passado ou antepassado escravo. Em processos de banhos e dispensas matrimoniais, foi comum a qualificação dos contraentes como forros e, nos registros de batismos (...) constar-se que muitos não haviam nunca sido escravos, filhos que eram de mães forras. O estigma social da escravidão estava presente para os próprios alforriados e para a geração seguinte. Poucos, nestes casos, tiveram acesso a um prestígio social que ocultasse no sumiço da identificação pela cor condição48.

A cor que uma pessoa era classificada na sociedade também poderia revelar a sua condição social, pois quase sempre a mestiçagem era indicativa de pobreza e desqualificação na hierarquia social. Cacilda Machado percebeu as constantes mudanças de cor dos indivíduos estudados nos documentos que levantou para a região de São José dos Pinhais e cita exemplos de como as pessoas poderiam ser registradas como brancas ou pardas dependendo da posição

que tinham na sociedade49.

48

FARIA, 1998, op. cit p.135

49 MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social do Brasil

escravista. 1. ed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. v. 1. pp. 131-139.

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Para os registros na Capitania do Rio Grande, também se observam casos semelhantes, como o que segue abaixo:

Aos vinte e dous de Janeyro de mil e setecentos e sencoenta annos na Capela do Santo Antonio do Potegy desta freguezia de Nossa Senhora da Prezentação do Rio Grande do Norte (...) prezentes por testemunhas o Capitão Francisco Dinis da Penha, e o Tenente Gonçalo Freyre, pessoas conhecidas, que vierão assignados com o dito Reverendo em seo assento, se cazarão em face da Igreja solemnente por palavras Andre Rebouça de [Nação?] Jaguarebara escravo, que foy do Capitão Diogo

Malheyros com Anna Gomes, filha Legitima de Antonio, e Thereza escravos do

Capitão Francisco Dinis da Rocha natural desta dita Freguezia; e logo lhes deo as bençoens conforme aos Ritos, e Serimonias da Santa Madre Igreja; e pelo assento do dito Reverendo mandey fazer este, em que por verdade me assigney.50

Pelo assento acima, observa-se como a permanência do passado de escravo ainda era algo marcante na vida de forros. No caso, André que era índio, além de se registrar que foi escravo, ainda colocava o nome de ex-proprietário. Este tipo de designação que remonta ao passado do cativeiro dos nubentes não era fato isolado. Dos 42 registros analisados para o período da pesquisa pelo menos 16 apareceram com a referência a familiares escravos/ forros ou colocava-se o nome do ex-proprietário.

As fontes do Rio Grande contrariam o estudo feito por Sheila de Castro Faria (1998) em que afirma: “As testemunhas dos casamentos, sempre homens, não tinham a mesma importância dos padrinhos de batismos, (...) As ´testemunhas´ eram todos os que assistiam à cerimônia, (...)”51

. Para o caso da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, a escolha das testemunhas parecia seguir o mesmo rigor da escolha dos padrinhos nos batismos, pois se estes fossem apenas aqueles que assistiam a cerimônia não haveria tantas personagens “conhecidos” – como diziam os vigários – na ocasião da cerimônia, e ainda havia a presença de mulheres nestas testemunhas que geralmente eram as esposas das referidas testemunhas ou mulheres que detinham algum status na sociedade. Dificilmente eram pessoas vulgares.

Na documentação levantada na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, toma-se

conhecimento do destino de alguns expostos52. Essas crianças geralmente eram abandonadas

na casa de alguma pessoa que morava na mesma localidade da mãe da criança, como o caso que segue abaixo:

50 Livro de matrimônios Catedral 1740-1752 51

FARIA, 1998, op. cit p. 309.

52 Para um estudo sobre a condição das crianças expostas na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação ver

PAULA, Thiago Nascimento Torres de. Teias de caridade e o lugar social dos expostos na freguesia de Na. Sr.a da Apresentação: Capitania do Rio Grande do Norte século XVIII. 2009. Dissertação, 196f.

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Aos vinte de Mayo de mil e sete centos e sincoenta annos na capela de Sam Gonçalo do Potegy desta freguezia Nossa Senhora da Prezentação do Rio Grande do Norte feitas as denunciaçoens na forma do Sagrado Concilio Tridentino nesta Matris e nas mais partes necessárias desta freguezia sem sedes cobrir impedimento algum como consta dos Banhos que ficão em meu puder em prezença do Reverendo Coadjutor o Licenciado João Gomes Freyre de Licença minha e sendo prezentes por testemunhas o Capitão Ruperto de Sá Bezerra Homem cazado e Faustino Barreto, filho de Francisco Barreto, peçoas conhecidas que vinhão assignados no assento, se cazarão em face da Igreja solenemente por palavras Boa Ventura de Mello, filho de Francisco Monteyro e de Anna Rodrigues escrava de Brizida Rodrigues, natural desta dita freguezia, com Maria do Rozario, Criola emjeitada na Aldeya da Utiga em caza de Bernardo Soares, e de sua mulher Bernarda Martin, Indios da dita Aldeya, e moradores desta dita freguezia. E logo lhe deo as Bençoens conforme aos Ritos e Serimonias da Santa Madre Igreja; e pelo assento do dito mandey fazer este em que por verdade me assigney.53

Neste caso, Maria do Rozário, crioula, foi abandonada na Aldeia da Utinga na casa de Bernardo Soares e sua mulher Bernarda Martins que eram índios da mesma aldeia. No Rio Grande não existiam locais apropriados para o amparo de crianças indesejadas como as Santas Casas da Misericórdia, em Salvador criada em 1549 e no Rio de Janeiro em 1570. Então, para o Rio Grande, o destino das muitas crianças era serem abandonadas na casa de alguém que se

supunha podia dar o mínimo de assistência ao rebento54. O abandono de crianças no período

colonial era algo corriqueiro, fosse por motivos financeiros, morais ou por ser uma gravidez

não prevista55. Uma mulher solteira poderia abandonar seu filho para que no futuro não

tivesse maiores problemas na hora de contrair matrimônio56.

Brízida contraiu matrimônio com um escravo que era natural e morador na mesma freguesia dela. Não era o melhor dos pretendentes, visto que era cativo, mas sua descendência seria livre já que a noiva era livre. Não se pode tomar o exemplo de Brízida como base para todos os casos. Como foi dito anteriormente, às vezes livrar-se de uma criança era “necessário” para a manutenção da honra da família e, desta forma, alguns expostos tinham uma melhor sorte quanto ao seu destino, como o exemplo que se passa a narrar.

No dia 7 de maio de 1748 na matriz de Nossa Senhora da Apresentação, casaram-se o tenente Gonçalo Freire, filho legítimo do capitão Domingos da Silveira e Catarina de Amorim, com Dona Izabel Francisca Rodrigues exposta na casa do padre Domingos Rodrigues Telhoes. É possível perceber que o destino de Izabel poderia ser bem diferente de

53 Livro de Matrimônio Catedral 1740-1752

54 O historiador Thiago Torres, afirma em sua dissertação que o destino de muitos expostos na freguesia de

Nossa Senhora da Apresentação era a residência de alguém com posses ou ao relento, largados à própria sorte. PAULA, Op.cit, 2009, p, 125.

55 Cf. VENÂNCIO, Renato Pinto. Maternidade negada. In: DEL PRIORE, M. (org.) História das mulheres no.

Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p.189-222.

56

(31)

Brízida que era crioula e fora criada por um casal de índios. Izabel ostentava o título de Dona, designação que a colocava em um patamar diferenciado em relação aos demais moradores da freguesia e seu noivo já exercia cargos militares na capitania, o que para a época já o distinguia entre a população e, além disso, como era militar, a chance de alcançar outros cargos na parte administrativa da colônia não era impossível. Chama também a atenção a coincidência do sobrenome da exposta e seu receptor: ambos eram Rodrigues. Isso seria evidencia de que Izabel poderia ser filha de algum familiar do padre e para evitar o escândalo

da sociedade, optou-se por deixá-la na casa de outro para que fosse criada57.

Outro caso bastante interessante envolvendo uma exposta é o de Antônia da Trindade que contraiu matrimônio com João de Abreu em 6 de fevereiro de 1752. O noivo era filho legítimo do coronel Henrique Correia da Costa e de Paula Pereira, já Antônia era filha natural de Manoel de Melo Albuquerque e de Teodósia de Oliveira e foi exposta na casa do tenente-coronel Matias (ilegível). O registro mostra como os indivíduos na colônia se comportavam, e o fato de o casal ter tido uma filha sem estarem casados nos diz o quanto as regras não eram seguidas, e que isto não significava necessariamente a exclusão. Neste caso, a cor dos nubentes e dos pais não é dita, mas se infere que seriam brancos, já que a noiva casou com um tenente-coronel. A outra peculiaridade é que ao expor a filha, tanto Manoel quanto Teodósia, talvez não tivessem se afastado da mesma e Antônia tinha conhecimento de quem eram seus pais, pois estava registrado no assento de matrimônio.

Dessa maneira, o matrimônio mais uma vez foi usado como elemento de inserção social de indivíduos que tinham todas as prerrogativas para serem marginalizados. Não generalizando, claro, visto que muitos não tinham a mesma sorte e acabavam por morrer antes mesmo de serem adotados e muitos outros que acabavam por torna-se agregados da família que o acolheu e acabavam por aumentar a mão de obra desses lares. O matrimônio neste caso é mais uma opção de se destacar na sociedade e formar sua própria família.

No mundo colonial, as relações das populações muitas vezes surpreende o leitor, pois os dois casos que serão abordados a seguir foge dos padrões encontrados para os matrimônios do período, mas também são bons indicadores do que se tem afirmado deste o começo: de que casar perante a Santa Madre Igreja era motivo de distinção social e garantiria às camadas mestiças e pobres ganhos reais no universo excludente da colônia.

O primeiro caso ocorreu em 1739:

Aos vinte e três de Janeiro de mil e setecentos e trinta e nove anos na Capela do Senhor São Miguel da Missão do Guajirú desta freguesia de Nossa Senhora da

57

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