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A morte do homem cordial : trajetória e memória na invenção de um personagem (Sérgio Buarque de Holanda, 1902-1982)

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – IFCH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

RAFAEL PEREIRA DA SILVA

“A MORTE DO HOMEM CORDIAL”:

TRAJETÓRIA E MEMÓRIA NA INVENÇÃO DE UM PERSONAGEM (SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA, 1902-1982)

CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 29 de Outubro de 2015, considerou o candidato Rafael Pereira da Silva aprovado. Prof. Dr. Edgar Salvadori de Decca

Profa. Dra. Maria Stella Martins Bresciani

Prof. Dr. Carlos Eduardo Ornellas Berriel

Prof. Dr. Sérgio Ricardo da Mata

Profa. Dra. Luciana Quillet Heymann

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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Agradecimentos

Não sei se para todos, pelo menos para mim, essa é uma das partes mais aguardadas da escrita de qualquer trabalho, por duas razões óbvias. A primeira, porque indica que mais uma etapa foi concluída; a outra, porque é hora de prestarmos contas àqueles que realmente estiveram conosco durante o processo. Penso também que este é um espaço de celebração, de memória, deixando claro que ausências foram por mero esquecimento, não por apagamento. Vejamos.

Do lado familiar, sou imensamente grato aos meus pais, Iuçá e Graça, que ainda hoje não sabem exatamente do que trato em minhas pesquisas, mas compreendem a sua importância para a formação humana e cidadã. Agradeço também às minhas irmãs, Fernanda e Beatriz, pela preocupação constante e pela amizade.

Ao meu primo Alexandre agradeço pelas conversas, viagens culturais, aulas sobre rotas latino-americanas, museus e lugares de visitação mundo afora e aos parentes distantes, Bezego, Neide, Isabel e Nivaldo (in memoriam).

Durante a última década a família cresceu e por isso mesmo agradeço acima de tudo à Giselle, mãe da Lara, minha esposa e companheira, que com sua amizade, carinho e excessiva paciência, compartilhou por dentro todo este processo. Aos meus sogros, Silvio e Lea, o meu mais sincero obrigado, sobretudo por cuidarem da nossa Larinha em momentos de ausência minha e da Giselle por motivos de escrita e trabalho. Agradeço ainda ao bisavô da Lara, Seu Jaime, que recém nos deixou, já centenário. Figura exemplar, que além de músico, poeta, memorialista e escultor, foi um humanista em tempos de indiferença e presentismo constante.

Ainda por esses lados, deixo minha gratidão à maravilhosa Profa. Dra. Maria das Graças Dias (in memoriam) e aos seus filhos e queridos amigos, Túlio e Michelle, bem como aos seus companheiros, Cristy e Edu; à Márcia, ao Gian, Lucas, Júlia, Jana, Juliano, Renata e aos demais amigos desse grupo.

Na Unicamp, agradeço de forma muito especial ao professor Dr. Edgar de Decca, que além de uma orientação precisa durante esses anos, me abriu perspectivas de mundo a partir de sua experiência acadêmica, me instigando, a

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cada encontro ou troca de e-mails, a ter o protagonismo de um pensamento crítico e livre de quaisquer amarras.

Na Itália, durante os meses em que lá estive, agradeço ao professor Dr. Ettore Finazzi-Agrò pela recepção e aprendizado obtido na Universidade de Roma. Por seu intermédio, estabeleci amizade, mesmo que a distância com o professor da Universidade de Bologna, Dr. Luca Bacchini, a quem também agradeço pelas profícuas conversas.

De volta à Unicamp, agradeço a todo o grupo da Olimpíada Nacional em História do Brasil, coordenada pelas professoras Dra. Cristina Meneguello e Alessandra Pedro (Leca); ao Bruno Terlizzi, que por inúmeras vezes me recebeu em sua casa de Barão Geraldo, local agradável e de ótimos momentos; à Jussara agradeço a amizade e as trocas acadêmicas constantes; à Clécia e ao Mauro pela amizade e por também terem aberto a sua casa para me receberem inúmeras vezes no último ano, tornando a vida em Barão Geraldo muito mais leve, bem como ao Érito, pelas longas e agradáveis conversas nos bares do centrinho. Agradeço a dedicação dos professores Dr. Carlos Berriel e Dra. Maria Stella Bresciani pela leitura atenta da primeira versão desta tese, pelas valiosas críticas concedidas durante o exame de qualificação e por aceitarem o convite para a defesa. Agradeço ainda aos maravilhos profissionais do Arquivo Central da Unicamp, representados por Telma Murari e Neire Rossio.

Ainda em Campinas, agradeço ao “acaso” por ter convivido o ano inteiro de 2010 na inesquecível casa da Rua Plínio Aveniente, 88, ao lado dos amigos Vinícius (Moscão), Carlos Alberto (Carlão), Deivison, Alisson, que era “agregado”, Marcelo Mac Cord e Dani Pistorello, que volta e meia por lá batiam ponto. Esse grupo quando pode ainda se encontra em bares, eventos, acadêmicos ou não, mundo afora. Raro hoje é estarmos todos. Mas já pudemos matar a nostalgia em Campinas, Belo Horizonte, Paris, São Paulo, Coimbra, Rio de Janeiro, Florianópolis, Brasília. As lembranças dessa casa constituem um de nossos marcos biográficos. Tempos em que se pedia gelo no vizinho e as "únicas" responsabilidades eram dar vida à ideia abstrata de uma tese, escolher a cerveja mais barata no mercado para regar as longas sessões “psicanalíticas" na cozinha de casa, enquanto alguém, nunca eu, preparava a comida, ou pagar em dia o oneroso aluguel de Barão Geraldo. Não poderia existir um grupo mais harmônico do que esse!

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Em Brasília, onde resido atualmente, não posso esquecer de agradecer aos amigos para toda hora Alexandre e Luciana, agora na companhia do José, que nasceu junto com o término da tese. Aqui também sou grato ao Deda e à Vanessa, pela amizade, pelas peixadas, sem duplo sentido por estarmos na capital, e por cuidar de nossa casa nos longos períodos em que estivemos ausentes; ao Rodrigo e à Lili, amigos da UFSC, que anos atrás me receberam e me abriram as portas dessa cidade tantas vezes fria.

Agradeço muito aos amigos de mais de três décadas, Juliano, Fábio, Pablo, Cícero, Júnior, Thiago, Murilão, Silvinho e às suas respectivas famílias, agregados, filhos, companheiras. Da UFSC, onde passei muitos anos, agradeço a amizade sincera do Camilo, Marcão, Disma e Karlinha, Lagarto (Prof. Dr. Rafael da Cunha Schaefer), Maíra, Marcelo, Juliana Vamerlati, responsável pela revisão do texto, Juan (Bolívia), Karla, Juliana Sartori, todos muito presentes, uns mais, outros menos, ao longo de mais de uma década.

Agradeço ainda aos meus “velhos" professores, Dr. Paulo Pinheiro Machado, Dr. Adriano Luiz Duarte, Dr. João Klug e a Dra. Maria de Fátima Fontes Piazza, interlocutora em tempo integral desta tese. Agradeço aos demais membros da banca, professores Dr. Sérgio da Mata, Dra. Luciana Heymann, Dr. Jeferson Cano e Dr. Rui Rodrigues por aceitarem, de prontidão, o convite.

Finalmente, agradeço ao CNPq pela bolsa de pesquisa no Brasil e à Capes pela Bolsa-Sanduíche no exterior, sem as quais o trabalho investigativo e a redação não seriam possíveis.

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“Parte substancial de nossos literatos, isto é, de nosso público escritor e leitor de livros, satisfaz suas necessidades religiosas

exclusivamente na forma de culto ao gênio”.

(Edgar Zilsel, Die Geniereligion. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1990. p. 53-54)

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RESUMO

A partir da década de 1980, a trajetória intelectual e biográfica de Sérgio Buarque de Holanda passou a ser contada por um viés linear e memorialístico. De maneira geral, essa trama, que ligava o passado modernista de Sérgio ao maduro militante petista e de esquerda do fim da vida, se constituiu por um viés de excepcionalidade da personagem, ainda hoje vista em publicações e eventos acadêmicos que a sustentam. Partindo dessa constatação, esta tese conta a história de Sérgio Buarque de Holanda pela perspectiva da memória e dos lugares em que ela foi inscrita e propagada, segundo o entendimento de que nesses lugares podemos perceber suas dimensões material, simbólica e funcional. Assim éque encontramos Sérgio Buarque inscrito em textos memoriais, discursos fúnebres, livros, eventos, ruas, biblioteca e arquivo, um conjunto de lugares de consagração arquitetados por um grupo específico de acadêmicos no intuito de moldá-lo à sua vontade de memória. Nessa operação foi intencional o apagamento de rastros políticos de Sérgio Buarque, muito mais ligados aos campos educacional e pedagógico e muito menos à esquerda combativa de outrora, como insistem ainda hoje alguns de seus comentadores oficiais. Por fim, a tese ainda busca nas “tramas do arquivo”, suporte material e funcional dessa memória, demonstrar que Sérgio Buarque de Holanda se constituiu, na guarda de seu papelório, como personagem de si mesmo, alimentando a mesma versão oficial e linear da vida exposta nesses diferentes lugares.

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ABSTRACT

The intellectual and biographical trajectory of Sérgio Buarque de Holanda has been recounted with a linear and memory-based bias from the 1980s onward. In general, this approach, which connected Sérgio’s modernist past with the mature militant of the Worker’s Party (Partido dos Trabalhadores) and of the left at the end of his life was constituted by a bias toward the exceptionality of the personage, still seen today in academic publications and events which give it support. Based on this verification, this thesis recounts the history of Sérgio Buarque de Holanda through the perspective of memory and the sites at which it was registered and propagated according to the understanding that at these sites we can perceive its material, symbolic and functional dimensions. This is how we find Sérgio Buarque registered in memorial texts, funeral speeches, books, events, streets, libraries and archives, a set of sites of acclaim created by a specific group of scholars aiming to shape him to the will of their memory. In this operation the erasing of political traces of Sérgio Buarque was intentional, these being more connected to the educational and pedagogical fields than to the old combating left as some of the official commentators currently insist upon. Finally, this thesis also seeks through the “archive approach”, material and functional support of this memory, to show that Sérgio Buarque de Holanda constituted himself, in the keeping of his printed legacy, as a character of himself, feeding the official and linear version of life exposed at these different sites.

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Sumário

Introdução ... 1

Capítulo 1: SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA: UM INTELECTUAL "ENTRE DOIS PROJETOS” ... 21

1.1 Militância errante no modernismo brasileiro ... 22

1.2 Sérgio Buarque e os quadros intelectuais a partir dos anos 1930 ... 54

1.3 "Raízes do Brasil" à contrapelo ... 63

1.5. Abrindo parênteses: a "História do Brasil" de 1944 ... 74

1.6. Fechando parênteses ... 79

Capítulo 2: O RETORNO A SÃO PAULO: DO MUSEU PAULISTA À APOSENTADORIA E DEPOIS… ... 91

2.1. Da Maria Antônia ao Butantã: a aposentadoria de Sérgio Buarque de Holanda ... 113

2.2. A década de 1970: política e historiografia ... 118

2.3. Os últimos anos de vida: Rua Buri 35, o Centro Brasil Democrático e um pouco do Partido dos Trabalhadores ... 125

Capítulo 3: UMA MEMÓRIA PARA AS NOVAS GERAÇÕES ... 144

3.1. Morre o “Homem Cordial" ... 144

3.2. A constituição de espaços de recordação: a Biblioteca e o Arquivo (de) Sérgio Buarque de Holanda na Unicamp ... 162

3.2.1. Os labirintos burocráticos e a compra da Biblioteca... ... 167

3.3. A várias mãos: a montagem de um Fundo Privado ... 182

Considerações finais ... 204

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Introdução

Milhares de pessoas transitam todos os dias pela Unicamp. De carro, de bicicleta, de ônibus ou à pé, uma grande parte delas passa em frente à Biblioteca Central, cujo endereço é a Rua Sérgio Buarque de Holanda, 421. Desse vasto universo de transeuntes, é quase certo que a maioria deles não se pergunte sobre o homem cuja placa da rua homenageia e muito menos que em um dos andares da mesma biblioteca que lhes passa despercebida aos olhos, encontra-se um dos mais importantes acervos culturais do país.

Supondo que dos milhares de passantes, um deles mais atento tivesse a curiosidade de saber quem foi aquela pessoa, o que num primeiro momento ela descobriria a seu respeito? Teria sido um professor, um político, um escritor? Iniciaria seus questionamentos relacionando o sobrenome de seu objeto ao conhecido dicionário ou então ao famoso compositor de Música Popular Brasileira? Imaginemos que se dotado de ímpeto investigativo, o curioso pedestre resolvesse ir um pouco mais à fundo em suas questões e buscasse respostas na biblioteca: o que de imediato encontraria? Caso perguntado por alguém sobre suas descobertas, o que ele responderia?

Continuamos a cena hipotética e eis a resposta do caminhante: o homem da placa era paulista, escritor, pai de Chico Buarque e de mais seis filhos! Também foi modernista, crítico literário, jornalista, sociólogo, historiador e professor da Universidade de São Paulo-USP. Teve amigos importantes como Mário de Andrade, Antonio Candido, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Paulo Vanzolini, Manuel Bandeira, Paulo Duarte, Rubens Borba de Moraes, Afonso Arinos de Melo Franco e muitos outros. Publicou livros seminais, como "Raízes do Brasil”, que discute nossa identidade, “um clássico de nascença”, diriam! Foi sempre um homem de esquerda, solidário aos companheiros perseguidos nas duas ditaduras e, no fim da vida, foi membro fundador do "Partido dos Trabalhadores” - PT.1

1 O vínculo de Sérgio Buarque com o Partido dos Trabalhadores e consequentemente com a

"memória das esquerdas” foi institucionalizado em 2001, com a criação do “Centro Sérgio Buarque de Holanda - Documentação e Memória Política”, fundado com o objetivo de se dedicar ao resgate, organização, disponibilização e pesquisa sobre a documentação histórica relativa ao "Partido dos Trabalhadores" e ao seu contexto histórico. Segundo o historiador Alexandre Fortes, que dirigiu o

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Os livros que pertenceram ao Dr. Sérgio, como lhe chamavam, estão no setor de Coleções Especiais e Obras Raras dessa Biblioteca que sempre passamos em frente, mas que nunca entramos. Lá há milhares deles, de história, literatura, artes, sociologia, alguns muito raros, muitos em língua estrangeira e tantos outros com dedicatória. O escritório no qual escreveu parte de seus livros encontra-se lá, da mesma forma como ele o deixou antes de partir - me contou a bibliotecária, quando visitei! Isso demonstra o quanto ele era dedicado, erudito, disciplinado, leitor voraz, escritor perfeccionista, um verdadeiro “mestre”, concluí!

O interlocutor, impressionado com tamanha informação, interrompe a narrativa e indaga: como você sabe de tudo isso? O que já foi escrito a respeito desse homem, o senhor Buarque de Holanda? A que o narrador com toda a segurança e pompa responde: há uma vasta fortuna crítica a seu respeito! De cabeça lembro de alguns autores muito importantes e que sendo muito amigos dele não lhes deixaram escapar nenhum momento da vida, nos brindando com seus testemunhos. São estudiosos como Antonio Candido, Francisco de Assis Barbosa, Maria Odila Leite da Silva Dias, Fernando Novaes, José Sebastião Witter, Laura de Mello e Souza, Francisco Iglesias e outros que não me recordo agora.

Descobri também que existe um arquivo bem ao lado do restaurante universitário, com milhares de documentos que lhe pertenceram, como cartas, recortes de jornais sobre seus livros, cadernos com anotações das pesquisas que fazia, textos inéditos datilografados, discursos proferidos, fotografias e muito mais coisas. Há um inventário que as moças do arquivo levaram anos para terminar, tamanha a quantidade de papéis guardados por ele e mais tarde levados até lá pela sua esposa.

Foi com base nesse material que rodaram até um filme, “Raízes do Brasil: uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda”, ideia de uma de suas filhas, Ana de Hollanda, que foi ministra da Cultura, para homenagear não apenas o patriarca, Centro por cinco anos, a escolha do nome de Sérgio se deu pelo fato de ele ter sido simultaneamente um dos grandes historiadores do país e um dos fundadores do partido, num momento em que o grosso da intelectualidade de esquerda ainda apostava em outras alternativas políticas, como o setor "autêntico" do MDB ou o PCB. Levou-se em conta ainda as relações muito próximas entre Fundação Perseu Abramo e a direção do PT com a família Buarque de Holanda, em especial a viúva, dona Maria Amélia, presente na inauguração do Centro. Essas informações me foram dadas pelo próprio Alexandre Fortes por e-mail em 31 de agosto de 2012. Para maiores detalhes sobre o acervo ver: FORTES, Alexandre. Construção de acervos e memória da esquerda: a experiência do Centro Sérgio Buarque de Holanda. (Mimeo.).

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mas todo o clã. O filme conta com belos depoimentos da esposa, filhos, netos de Sérgio e também de alguns daqueles autores de que lhe falei antes, como o Antonio Candido. Para quem não leu "Raízes do Brasil” inteiro, o filme apresenta algumas passagens do livro, como aquela que exprime a nossa identidade e ficou muito famosa, que fala da alegria do brasileiro, de que a gente é cordial e tal!2

Grosso modo, para quem não é especialista na obra de Sérgio Buarque, esta é a imagem corriqueira que passou para a memória histórica quando se trata de falar do “maior dos nossos historiadores”. Foi a partir dela que, durante os tempos de graduação (1999-2003) na Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, por exemplo, imaginando a vida perfeita dessa personagem, redigi um trabalho de conclusão de curso reproduzindo inocentemente pari passu, os ensinamentos daqueles estudiosos citados. Como ousar questionar tamanha autoridade e lugar de enunciação? Com exceção de uns poucos capítulos de “Raízes do Brasil”, quase sempre "O semeador e o Ladrilhador" e o "Homem Cordial”, lidos em uma ou outra disciplina, o que nos chegava das obras de Sérgio era uma edição de “Visão do Paraíso” em capa dura, editada em 2000 pela “PubliFolha” que compunha a "Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro”.

Anos mais tarde, no intuito de preparar o projeto de doutorado, cursei como aluno ouvinte no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC, uma disciplina chamada “História Intelectual e os Estudos de Epistolografia”. Ministrada pela professora Maria de Fátima F. Piazza, as discussões giravam em torno de temas como “escrita de si”, biografia/autobiografia, composição de arquivos pessoais e a possibilidade de abordagem das cartas como objeto/fontes de pesquisa. Durante as leituras, que envolviam ainda teses e dissertações sobre intérpretes “menos famosos”, algumas em especial nos deram a deixa para a ideia central da tese que agora apresentamos.

2 Obviamente o personagem fictício se vale de uma leitura às avessas do conceito cunhado por

Sérgio Buarque em seu livro de estreia. A constituição desse documentário foi devidamente problematizada em um artigo que aponta o filme como sendo a materialização imagética de um texto biográfico de 1979, “Apontamentos para uma cronologia de Sérgio Buarque de Holanda”, escrito por Maria Amélia Buarque de Holanda para o lançamento da edição venezuelana de “Visão do Paraíso”. Sua conclusão é que, dotados, ambos, de um modo de narrar tradicional e cronológico, acabam por monumentalizar o sujeito biografado com o intuito de impor um sentido unívoco ao devir da memória de Sérgio Buarque. CARVALHO, Raphael Guilherme de. A biografia entre o cinema e a história: modos tradicionais de narrar na memória de Sérgio Buarque de Holanda. In: Revista Ágora (Vitória), v. 7, pp. 1-20, 2011.

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Destacamos desse conjunto duas delas. A primeira, de Rebeca Gontijo, sobre o historiador Capistrano de Abreu, levanta a hipótese de que a construção identitária da personagem envolve dois tipos de exercício de legitimação. O primeiro

coletivo, resultante da atuação dos pares, admiradores, discípulos, biógrafos e

intérpretes do historiador, no sentido de situá-lo em relação a uma tradição intelectual. O outro individual, correspondendo às investidas feitas pelo próprio Capistrano a partir de determinadas circunstâncias, por meio das quais ele constitui a si mesmo como indivíduo e como intelectual.3

A segunda, de Giselle Martins Venâncio, intitula-se "Na trama do arquivo: a trajetória de Oliveira Vianna”. Para a autora, Vianna organizou, ao longo de sua vida, um arquivo e uma biblioteca pessoal nos quais ordenou os acontecimentos que balizaram a sua trajetória, estabelecendo coerências, construindo continuidades e linearidades, visando, de certa forma, legar um “esboço” de sua própria biografia. Nesse sentido, seu arquivo privado e sua biblioteca pessoal sugerem uma escrita autobiográfica, apontando para a “fabricação” de uma memória postumamente elaborada por seus herdeiros intelectuais.4

Frente a esses exemplos, a pergunta que nos surgiu à época era pensar por que tantos intelectuais se tornaram objetos de estudo nessa perspectiva e Sérgio Buarque de Holanda não, já que tinha organizado assim como os demais, um arquivo pessoal e uma biblioteca privada?5 E mais, por que essa exposição linear de

sua vida jamais recebeu um outro tratamento?

Arriscamos dizer que há uma espécie de “obsessão comemorativa” em torno da figura de Sérgio Buarque e de seus escritos, fenômeno iniciado ainda na década de 1980 e sem prazo de validade. Apenas durante o tempo de nossa passagem pelo curso de doutorado, iniciado em 2010, vieram à público mais de uma

3 Essa tese encontra-se publicada com a seguinte referência: GONTIJO, Rebeca. O velho

vaqueano. Capistrano de Abreu (1853-1927): memória, historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.

4 VENÂNCIO, Giselle Martins. Na trama do arquivo: a trajetória de Oliveira Vianna. Tese

(Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 2003.

5 Dentre alguns trabalhos podemos citar: PIOVESAN, Greyce Kely. Prezado doutor, querido amigo,

caro memorialista: a sociabilidade intelectual nas cartas para Pedro Nava. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2009; LEMOS, Clarice Caldini. Os bastiões da nacionalidade: nação e nacionalismo nas obras de Elysio de Carvalho. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2010.

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dezena de títulos6, alguns relançamentos e outros sobre a obra do historiador, sem

contar artigos científicos, reportagens, matérias jornalísticas, etc. Uma delas, aliás, aponta que “novas edições dos livros de Sérgio Buarque e mais obras sobre o crítico literário e historiador estão previstas para sair em breve”, dentre elas uma biografia assinada por Pedro Meira Monteiro, que ainda trabalha ao lado de Lilia Schwarcz, na confecção de outra edição crítica e anotada de "Raízes do Brasil". Afinal, “se Monções mereceu uma edição caprichada ao completar 70 anos, as oito décadas do clássico mais clássico de um dos mais importantes pensadores brasileiros são um bom pretexto para conhecer ou passar em revista sua vida e obra”.7

Em resumo, o bastão vai sendo passado de uma geração antiga para uma nova de professores universitários, muitas vezes “altaneiros e impossíveis de compreender, contratados por comissões, ansiosos por agradar a vários patrocinadores e agências, eriçados com credenciais acadêmicas e com uma autoridade social que não promove debate, mas estabelece reputações e intimida os não especialistas”.8

Relevante na “versão oficial" é o fato de Sérgio Buarque ter se transformado em um personagem atemporal, elevado sempre ao posto de “o maior de todos os tempos” e descolado de outros intérpretes de sua geração, a exemplo de Oliveira Vianna, Paulo Prado, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre, mas que como eles imputava aos nossos pais colonizadores "o desacerto entre ideias e instituições

6 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de História do Império. São Paulo: Companhia das

Letras, 2010; ______. Visão do Paraíso: os motivos edênicos do descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; ______. Monções e Capítulos de Expansão Paulista. São Paulo: Companhia das Letras, 2014;______. O Homem Cordial (Coleção Grandes ideias). São Paulo: Penguin, 2012; ______. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2015; MONTEIRO, Pedro Meira (org.). Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: correspondência. São Paulo, SP: Companhia das Letras: USP/Instituto de Estudos Brasileiros: EDUSP, 2012; MARRAS, Stelio (org.). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, SP: EDUSP: Instituto de Estudos Brasileiros, 2012; EUGENIO, João Kennedy. Ritmo Espontâneo: organicismo em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Terezina: EDUFPI, 2011; COSTA, Marcos (org.). Sérgio Buarque de Holanda: escritos coligidos. São Paulo, SP: Editora da UNESP: Fundação Perseu Abramo, 2011. 2v; MARTINS, Renato (org). Sérgio Buarque de Holanda: encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009; NICODEMO, Thiago Lima. Alegoria Moderna: crítica literária e história da literatura na obra de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: FAP-Unifesp, 2014; BUARQUE, Chico. O Irmão Alemão. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2014.

7 PIVETTA, Marcus. Monções (quase reescrito), Pesquisa FAPESP, n. 230, abril 2015, p. 79.

Enquanto revisamos o texto final da tese, acaba de ser lançado outro livro que tem Sérgio como personagem. Trata-se de uma abordagem voltada para a crítica e história literária, de autoria de Antônio Arnoni Prado, intitulada, “Dois letrados e o Brasil nação: a obra crítica de Oliveira Lima e Sérgio Buarque de Holanda". São Paulo: Editora 34, 2015.

8 JACOBY, Russell. Os Ú́ltimos Intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. Magda

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políticas e a condição do brasileiro (…) trazendo de Portugal para cá os resquícios da organizarão feudal e, sobretudo, povo mestiço servindo de ponte entre a Europa e a África. Pouco europeu”. Além da interpretação crítica ao liberalismo, Sérgio se insere no rol daqueles, cujas obras se utilizavam de imagens de forte poder persuasivo, construídos com metáforas e outras figuras de linguagem, "de fácil assimilação e que ponteiam de forma abundante suas análises", dando título a livros como “Retrato do Brasil”, de Paulo Prado, ”Raízes do Brasil", "Evolução Política do Brasil", de Caio Prado Júnior e "Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre.9

Visto assim, Sérgio Buarque passaria imune a quaisquer tipos de divergências, pessoal, ideológica ou acadêmica, não raras nos meios intelectuais dos quais fazia parte. Explicação de alguns autores, quando silenciam de sua biografia uma participação mais efetiva nas esferas do estado varguista, como se fosse demérito, mencionando apenas pelo alto sua passagem por órgãos de cultura, destino de tantos modernistas de sua geração, e não economizando loas, por exemplo, à sua imagem projetada a posteriori de "intelectual combativo e signatário da Declaração de princípios contra a ditadura de Getúlio Vargas”.10

Além de contestador, Sérgio Buarque também passou para a memória como um dos intérpretes ligados à nossa “moderna historiografia”, surgida com o "sopro de radicalismo intelectual" que eclodiu logo após a chegada de Vargas ao poder e que não teria, apesar de tudo, “sido abafada pela ditadura do Estado Novo”. Em pesquisa sobre a história da historiografia no Brasil das décadas de 1940 a 1960, Rebeca Gontijo e Fábio Franzini problematizaram a memória que formou esse ideal moderno. Para eles, não há dúvidas de que o famoso prefácio de Antonio Candido à quinta edição de "Raízes do Brasil", escrito em 1969, é o marco inaugural de uma nova visão a respeito desses intérpretes, na qual o livro de Sérgio assume lugar de destaque justamente ao lado de Casa Grande & Senzala (1933), de

9 BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira

Vianna entre os intérpretes do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2007. p. 10. Para a autora, intelectuais como Paulo Prado, Sérgio Buarque, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, em particular, e bem mais tarde Darcy Ribeiro, podiam ignorar ou até polemizar com as ideias e o projeto político de Oliveira Vianna, visto como conservador, racista, autoritário, sem no entanto, deixarem de se nutrir na mesma fonte e estruturarem suas análises, embora com ênfases e matrizes diversos, nas mesmas hipóteses explicativas para a situação do Brasil nos anos 1920 e 1930”. pp. 10-11.

10 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda, historiador. ______. (org.). Sérgio

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Gilberto Freyre e Formação do Brasil Contemporâneo (1942), de Caio Prado Júnior”.11

De testemunho de uma geração que sofreu os impactos desses autores durante a formação secundária e universitária, o prefácio, que se tornou independente do livro, foi apropriado em muitos casos de maneira acrítica, e o que “nele era memória se cristalizou em história, do que decorreu uma canonização, ainda que informal daqueles livros e autores que supostamente haviam marcado a sua geração, ou ao menos, da qual ele fazia parte”.12

Não por acaso, na década de 1970 durante o auge da repressão militar, encontrarmos intérpretes como Francisco de Oliveira Vianna, Alberto Torres, Francisco Campos e Azevedo Amaral, todos eles contemporâneos da tríade, sendo rotulados como conservadores, direitistas, autoritários, racistas - em suma, merecedores de pouco crédito.13 Time ao qual veio se juntar Gilberto Freyre,

também mandado às favas por seus posicionamentos favoráveis aos militares brasileiros e ao salazarismo português e após passar pelo tribunal dos sociólogos da Universidade de São Paulo, liderados por Florestan Fernandes, que o acusaram de ter amaciado demasiadamente as violentas relações entre senhores e escravos.

Imagem que restou, mesmo que hoje saibamos que todos esses intérpretes, incluindo os “modernos”, se dobraram, por exemplo, ao determinismo mesológico: “o espaço incerto ocupado por Portugal, pouco definido entre a Europa e a África, teria moldado o físico e o caráter do colonizador, fazendo que, em terras do novo continente, esse homem passasse a sofrer o peso das condições adversas dos trópicos". Em suma, como ensinou Maria Stella Bresciani, o determinismo do meio ambiente aparece com maior ou menor ênfase nas explicações dos fracassos

11 FRANZINI, Fábio; GONTIJO, Rebeca. Memória e história da historiografia no Brasil: a invenção de

uma moderna tradição, anos 1940-1960. In: SOHIET, R. (et al. ) Mitos, Projetos e Práticas Políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. Não por acaso, a apresentação da última edição de Raízes do Brasil (2015) traz o seguinte texto: "Nunca será demasiado reafirmar que 'Raízes do Brasil' inscreve-se como uma das verdadeiras obras fundadoras da moderna historiografia e ciências sociais brasileiras. (…) E as novas gerações de historiadores continuam encontrando, nela, uma fonte inspiradora de inesgotável vitalidade. Todas essas qualidades reunidas fizeram deste livro, com razão, no dizer de Antonio Candido, "um clássico de nascença”. Disponível em: http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13938. Acessado em 29 de abril de 2015.

12 Idem, p. 157.

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e sucessos do colonizador e forma um lugar-comum no qual os estudiosos se encontram”.14

Sérgio não só escapou ileso a essas disputas ideológicas, como também foi elevado ao grau máximo de toda uma geração e a modelo exemplar de intelectual. Na época em que foi agraciado com o troféu Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escritores por suas "Tentativas de Mitologia” (1979), por exemplo, Antonio Candido escreveu uma resenha da obra deixando clara a imagem que gostaria de deixar para o futuro: “Por tudo isso, quem votou este ano em Sérgio Buarque de Holanda (…) acertou em cheio, pois consagrou um intelectual que apresenta não apenas a eminência específica requerida, mas que possui também as qualidades humanas que o tornam modelar como inspiração para os outros. Um verdadeiro mestre, portanto”.15

Desde então, a partir da morte de Sérgio Buarque, essa versão passou por constantes (re)atualizações, dado o momento político do país, “de ressaca revolucionária” e os seus reflexos no campo historiográfico que expunham o ocaso dos grandes modelos explicativos de base marxista, abrindo o campo disciplinar às novas possibilidades de pesquisa, dentre as quais a retomada dos “clássicos" à luz da chamada “nova história cultural”.16 Nesse sentido Françoise Waquet deixa claro

que “o mestre não existe em si (quaisquer que sejam sua ciência e seu talento), é criação do discípulo e a posteriori”, numa fusão de rememoração e construção intelectual para formar uma imagem que transcende os fatos sobre os quais se funda”.17

14 Idem, pp. 12-13.

15 CANDIDO, Antonio. As Tentativas de Mitologia de Sérgio Buarque de Holanda. O Escritor. Jornal

da UBE, n. 100, outubro de 2002, p. 24.

16 Refiro-me a influência que teve no país os volumes organizados por Pierre Nora e Jacque Le Goff,

Faire de l'histoire. Paris: Gallimard, c1974. 3v. (Collection folio/histoire). Bons exemplos da influência de Sérgio Buarque na historiografia dos anos 1980, sobretudo a produzida na USP são: SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983; DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984; SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. Por um outro viés, podemos afirmar ainda que “na historiografia dos anos 1980, a revolução passou por uma profunda revisão e as questões pertinentes ao contexto dos anos 1960 perderam a sua força de atração”. DECCA, Edgar S. de. A revolução acabou…Prefácio à 5ª edição. O Silêncio dos Vencidos: história, memória e revolução. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 28.

17 WAQUET, Françoise. Os Filhos de Sócrates: filiação intelectual e transmissão do saber do século

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Não é por acaso, portanto, que os anos 1980 marcaram definitivamente uma tendência de consagração, compilação e de primeiros estudos da obra buarqueana, continuada na década seguinte e animada de modo particular por Antonio Candido, Francisco de Assis Barbosa, José Sebastião Witter e Maria Odila L. da S. Dias, que como se percebe foram responsáveis por alguns textos que ajudaram a traçar o perfil oficial do mestre-amigo.18

Apenas no final da década de 1990 é que as narrativas testemunhais e celebrativas perdem força em detrimento de estudos mais críticos e sistemáticos, mas não menos entusiasmados, resultantes de pesquisas desenvolvidas em diversos programas de pós-graduação ou a partir das publicações póstumas de textos avulsos de Sérgio, entendidos como fontes, que visam ampliar a possibilidade de outras leituras de seu percurso. Parte delas motivadas pela consulta a biblioteca e ao arquivo pessoal19 do historiador, fazendo com que ele continuasse a ser objeto

de debates e tema de novas produções acadêmicas.20

18 Dentre os principais trabalhos destacam-se: CANDIDO, Antonio. Sérgio em Berlin e depois. In:

Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, Vol.1 número 3, páginas 4 a 9, julho de 1982; DIAS, Maria Odila Leite da Silva (org.). Sérgio Buarque de Holanda: história. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1985; NOGUEIRA, Arlinda (org.). Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura: Arquivo do Estado: USP: IEB, 1988; CANDIDO, Antonio. (org). Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1998.

19 Utilizo aqui a noção de “arquivos pessoais” como conjuntos documentais resultantes de uma série

de gestos e práticas, conformados pelos titulares, mas também por seus colaboradores, familiares e herdeiros, e disponibilizados por meio de estruturas institucionais que os “produzem" como fontes. HEYMANN, Luciana Quillet. O lugar do arquivo: a construção do legado de Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa/FAPERJ, 2012. p. 74.

20 Como exemplos temos: CARVALHO, Marcus Vinicius Correa. Raízes do Brasil, 1936: tradição,

cultura e vida. 1997. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas; CARVALHO, Marcus Vinicius Correa. Outros lados: Sérgio Buarque de Holanda: crítica literária, história e política (1920-1940). 2003. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP; MONTEIRO, Pedro Meira. A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos em Raízes do Brasil. Campinas/SP: UNICAMP: FAPESP, 1999; ______. Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: correspondência. São Paulo: Companhia das Letras: USP/Instituto de Estudos Brasileiros: EDUSP, 2012; WEGNER, Robert. A Conquista do Oeste: a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: UFMG, 2000; PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). Um historiador nas fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: UFMG, 2005; NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do vivido: visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1950. São Paulo: EDUSP, 2008;______. Alegoria Moderna: A Crítica Literária de Sérgio Buarque de Holanda. 1. ed. São Paulo: Unifesp; FAPESP, 2014; EUGENIO, João Kennedy. Ritmo Espontâneo: organicismo em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Teresina: EDUFPI, 2011; MORAES, Ricardo Gaiotto de. Críticas Cruzadas: Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda. 2014. 177 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, SP; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de história do império. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2010; _______. Monções e Capítulos de Expansão Paulista. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

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O propósito desta tese, portanto, é expor em primeiro plano a história da memória de Sérgio Buarque de Holanda, construída a partir de sua morte, percebendo por meio do recorte cronológico instituído por essa memória, os silenciamentos impostos à trajetória desse intelectual. Nesse sentido, o foco é lançado sobre um grupo específico de professores e acadêmicos que ainda hoje detém o que chamaremos aqui de “monopólio da memória”; em outras palavras, a permissão que lhes foi concedida pela família do morto, com base em relações de amizade, de forjarem, por meio de seus testemunhos e publicações, uma versão biográfica oficial da personagem, transmitida por espaços de consagração, como a Universidade de São Paulo-USP e inscrita em lugares de memória como a biblioteca e o arquivo.

Dito de outra forma, a versão oficial que apreendemos a partir de nossa pesquisa é a que canonizou definitivamente Sérgio Buarque de Holanda nos campos disciplinares da história e da crítica literária, visto que não há em torno de seu nome uma memória em disputa. Iniciada por ele próprio ao “arquivar a própria vida” e desenvolvida por esse grupo de amigos a partir da década de 1980, essa narrativa primou por um caráter excepcional da personagem, pela sua condição de mestre, com viés político à esquerda e a partir de um recorte cronológico específico, predominando nessa complexa operação, além dos atos de poder, o fatalismo biográfico. Em suma, se deu a Sérgio uma vida modelar, vista a partir de celebrações, homenagens póstumas, coletâneas e na publicação de inéditos, que (re)atualizam no tempo a imagem consensual que querem postergada.

Isto posto, entendemos que houve por parte desse grupo e da família da personagem uma ativação memorial visando, de alguma forma, ao controle do seu passado biográfico (e, portanto, do presente, daquilo que pode ou não ser dito e daquilo que deve ser silenciado). Por essa perspectiva, reformular o passado em função do presente via gestão de memórias significa, antes de mais nada, controlar a materialidade em que essa memória particular se expressa (do nome de rua às comemorações, exposição de objetos, montagem de arquivo e biblioteca,

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publicações póstumas…). Noção de que a memória torna poderoso(s) aquele(s) que a gere(m) e controla(m).21

A memória histórica que se criou em torno de Sérgio Buarque de Holanda pode também ser entendida a partir do que apontou o historiador português Fernando Catroga. De acordo com ele, o conteúdo da memória é inseparável dos seus campos de objetivação (linguagem, imagens, relíquias, lugares, escritas, monumentos) e dos ritos que as produzem e transmitem, demonstrando que ela nunca se desenvolverá no interior dos sujeitos, sem suportes materiais, sociais e simbólicos de memórias.22 Partindo dessas constatações defendemos a ideia de que

é possível perceber quais foram os campos de materialidade/objetivação e quais foram os ritos que produziram essa “memória oficial” acerca do cultuado historiador. Desse modo, consideramos para essa análise os seguintes itens: 1) as publicações que indicam traços biográficos, organizada por pares; em suma, aquilo que virou historiografia/fortuna crítica; 2) os discursos, as homenagens póstumas e os eventos comemorativos; 3) a compra de sua biblioteca e a montagem do Fundo Sérgio Buarque de Holanda.

De modo geral, as discussões no campo da memória vêm avançado bastante nas últimas décadas e têm trazido não apenas aos pesquisadores, mas também ao conjunto da sociedade, reflexões cada vez mais instigantes sobre os usos e apropriações do passado. Grosso modo, foi a partir de meados da década de 1970 que a noção de “memória coletiva” consagrada por Maurice Halbwachs23,

conheceu um novo surto. Na França, por exemplo, no trabalho coletivo iniciado por Pierre Nora, "Os lugares de memória”24, aparece a noção de sociedades memoriais

para descrever as nossas sociedades contemporâneas invadidas por memórias múltiplas.

Nora retoma e apropria-se das ideias básicas de Halbwachs - a oposição que estabelece entre memória individual e memória coletiva e, sobretudo, entre memória coletiva e história - as opondo ainda mais radicalmente. À memória

21 SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. In:

BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (org.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. 2. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. p. 42.

22 CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. 1. ed. Coimbra: Quarteto, 2001. p. 23.

Col. Opúsculos.

23 HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective. Paris, PUF, 1950.

24 NORA, Pierre. Les lieux de Mémoire. Paris, Gallimard, Coll. Bibliothèque illustrée des histoires, 3

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coletiva, Halbwachs confere o atributo de atividade natural, espontânea, desinteressada e seletiva, que guarda do passado apenas o que lhe possa ser útil para criar um elo entre o presente e o passado, ao contrário da história, que constitui um processo interessado, político, portanto, manipulador. A memória coletiva, sendo sobretudo oral e afetiva, pulveriza-se em uma multiplicidade de narrativas; a história é uma atividade da escrita, organizando e unificando numa totalidade sistematizada as diferentes lacunas.

Hoje é impossível operar uma distinção clara entre memória coletiva e memória histórica pois, segundo Nora, a primeira passa necessariamente pela história, é filtrada por ela; é impossível à memória escapar contemporaneamente dos procedimentos históricos. Assistimos hoje, de acordo com o autor, ao fim das “sociedades-memórias”, e o que evidenciamos como uma revalorização retórica da memória esconde, na verdade, um vazio. “Fala-se tanto de memória precisamente porque ela não existe mais”.25

Em seu famoso texto "Entre mémoire et histoire” Nora organiza uma rígida dicotomia entre essas duas noções. A memória seria a tradição vivida e a sua atualização no eterno presente seria espontânea e afetiva, múltipla e vulnerável; a história, pelo contrário, uma operação profana, uma reconstrução intelectual sempre problematizadora que demanda análise e explicação, uma representação sistematizada e crítica do passado. A memória tece vínculos com a tradição e o mundo pré-industrial, a história com a modernidade; neste sentido, a história-memória é sobretudo conservadora; a história crítica, subversiva e iconoclasta. Tudo aquilo a que chamamos hoje de memória, conclui, já não o é, já é história.26

A memória encontra-se assim, prisioneira da história, transformou-se em seu objeto e trama, em memória historicizada. De acordo com Jacy Alves de Seixas, esta contemporânea apropriação da memória pela história resultou em dois efeitos importantes. O primeiro é a sua extrema operacionalidade e produtividade. É o “frenesi de memória” das últimas décadas, fenômeno novo e salutar, que está na raiz de importantes movimentos identitários (sociais e/ou políticos) e de afirmação de novas subjetividades, de novas cidadanias. Responsável pelo “resgate" de

25 SEIXAS, op.cit., p. 40; NORA, Pierre. Entre mémoire e histoire. La problemátique des lieux. In:

______. (org.). Les lieux de mémoire. vol 1. La République. Paris: Gallimard, 1984.

26 NORA, op.cit., p. xix-xx; RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain

François (et.al). Campinas: SP: Editora Unicamp, 2007. Em especial o sub-capítulo “Pierre Nora: insólitos lugares de memória. pp. 412-421.

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experiências marginais ou historicamente traumáticas, localizadas fora das fronteiras ou na periferia da história oficial ou dominante e pelo aparecimento de novas noções como as de “memórias subterrâneas", "lembranças dissidentes", "lembranças proibidas", "memórias enquadradas", "memórias silenciadas”.27

O segundo efeito, que se entrelaça com o primeiro, diz respeito a questionamentos até há pouco considerados pela historiografia, quais sejam: a dimensão afetiva e descontínua das experiências humanas, sociais e políticas; a função criativa inscrita na memória de atualização do passado lançando-se em direção ao futuro, que se reinveste dessa forma de toda a carga afetiva atribuída comumente às utopias e aos mitos. Dito de outro modo, a autora busca refletir sobre as relações entre memória e história, atribuindo a necessidade de se iluminar a memória também a partir de seu próprios refletores e prismas. Necessário, portanto, segundo ela, incorporar tanto o papel desempenhado pela afetividade e sensibilidade na história quanto na memória involuntária. Necessário, igualmente, nos atentarmos para o movimento próprio à memória humana, ou seja, o tempo-espaço no qual ela se move e o decorrente caráter de atualização inscrito em todo percurso da memória.28

27 SEIXAS, op.cit. p. 43; VIDAL, Laurent. Acervos pessoais e memória coletiva. Alguns elementos de

reflexão. Patrimônio e Memória, vol. 3, n. 1, 2007, p. 8. Exemplo bastante conhecido é o texto de Michael Pollak, “Memória, esquecimento, silêncio”, Estudos históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n°3, 1989, pp. 3-15. Essas disputas pela memória, que incluem a historiografia, levou à formação em 2013, de um grupo de discussão e pesquisa coordenado pelo professor Edgar de Decca, intitulado “Historiografia, conflito e memória”, no qual entre outros pontos, se propõe reavaliar as competências do discurso histórico produzido na universidade e seus confrontos com o campo das memórias coletivas desses novos sujeitos sociais emergentes. Segundo a autora, a expressão “frenesi de memória” é autoria de Arno Mayer e está contida no artigo “Les pièges du souvenier, Esprit, nº 7, jul., 1993. pp. 45-59.

28 SEIXAS, idem., pp. 44-45. A ideia de “memória involuntária” (aquela que existe fora de nós, inscrita

nos objetos, nos espaços, nas paisagens, nos odores, nas imagens, nos monumentos, nos arquivos, nas comemorações, nos artefatos e nos lugares mais variados) proposta pela autora se dá com base na leituras de Henri Bergson e Marcel Proust. Partindo deles, Seixas contrapõe essa noção à de “memória voluntária, que deixa escapar toda a dimensão afetiva e descontínua da vida e da ação dos homens. Para ela, a “observação proustiana é de tal modo instigante para o historiador que, de imediato impõem-se algumas considerações de ordem historiográfica. A primeira delas parte de uma constatação: (…) a historiografia elegeu a memória voluntária, desqualificando a memória involuntária tida como constitutiva de um terreno de irracionalismo(s) e, por essa razão, avessa à história”. Em seguida faz o seguinte questionamento: será esse procedimento ainda hoje pertinente e fecundo? A resposta é negativa, porque é justamente essa dimensão afetiva e descontínua relegada pela memória, a sua dimensão exilada, que parte das ciências humanas tem buscado precisamente integrar, com o estudo dos mitos, das sensibilidades e paixões políticas, da imaginação e do imaginário na história. Seixas conclui sua crítica afirmando que, “mesmo a noção de resgate ou de recuperação da memória dos excluídos e dos vencidos na história (…) na verdade, aplica-se apenas se referida à memória voluntária. (…) Desnecessário lembrar quanto a história contemporânea tem presenciado a manifestação dessa instável memória involuntária, carregada de emoções,

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Partindo dessas reflexões, Seixas nos chama a atenção para duas questões muito atuais, quais sejam, a relação entre memória e ética e a função utópica e mítica desempenhada pela memória. A primeira questão foi colocada em pauta nas últimas décadas e coincide com acontecimentos históricos como a implosão da União Soviética, a queda do Muro de Berlim, a explosão da ex-Iugoslávia, o fim do Apartheid na África do Sul e outros. Segundo a autora, é do interior desse caldeirão, carregado de fortes sentimentos e emoções, que memórias diversificadas irrompem e invadem a cena pública, buscam reconhecimento, visibilidade e articulação, respondendo a uma necessidade que a racionalidade histórica é impotente para exprimir, “atualizando no presente vivências remotas (revisitadas, silenciadas, recalcadas ou esquecidas) que se projetam em direção ao futuro.29

A segunda questão parte da hipótese de que esse “frenesi de memória” assistido hoje, represente o contraponto à timidez, recuo ou crise das utopias racionalistas, particularmente sensível nas três últimas décadas do século XX. Ou seja, “não mais as utopias, mas a(s) memória(s) estaria(m) apontando os lugares de realização histórica. Nesse sentido, os discursos e as manifestações poderosas da memória se colocariam atualmente à história como uma “palavra de oráculo”, cumprindo funções que até recentemente (a década de 1960, provavelmente) as utopias históricas preenchiam. Assim, conclui a autora, "o sonhar coletivo e individual sem o qual não há ação possível, o lançar-se coletivamente em direção a um futuro representado como melhor investir-se-iam não mais nas utopias históricas, mas valer-se-iam da memória para projetar-se e atar passado e futuro”.30

Além da problemática da memória, essa tese também dialoga com a chamada “História Intelectual" ou "História dos Intelectuais”31, como a designa a

frequentemente avessa às clivagens ideológicas e políticas tradicionais. Memórias que parecem emergir, irromper de um passado mais-que-morto para assombrar o nosso presente concebido, contra todas as evidências, segundo os cânones da ideologia do progresso”. pp. 47-48.

29 Ibidem, p. 53. 30 Idem, p. 55.

31 Para elaborar essa pequena síntese sobre o assunto, utilizei as seguintes referências:

ALTAMIRANO, Carlos. Ideias para um programa de história intelectual. In: Tempo Social Revista de Sociologia da USP. São Paulo: USP, v.19, n. 1, jul. 2007. pp. 9-17; BEIRED, José Luis Bendicho. Vertentes da História Intelectual. In: BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio; GARCIA, Tânia da Costa (orgs). Cadernos de Seminário de Pesquisa: Cultura e Política nas Américas. Assis: UNESP, 2009. pp. 86-98; BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. pp. 194-195; CARVALHO, José Murilo de. História Intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. In: Topoi: Revista de História do Programa de Pós-Graduação em História Social.

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historiografia de tradição francesa, um campo de possibilidades ainda em discussão, situada nos limites das histórias política, social e cultural. Deste modo, não existe um consenso entre os autores de como definí-la.

Em meados dos anos 1980, em particular na Europa, como apontou Marie-Christin Granjon, a percepção sobre o papel dos intelectuais mudou de direção, possibilitando uma inovação na historiografia dos intelectuais, quando, de tradicionais juízes de seu próprio engajamento passaram a ser considerados como um objeto histórico similar a outros, passíveis de serem investigados pelos especialistas das ciências humanas.

Jean-François Sirinelli, por sua vez, chamou a atenção para o caráter polissêmico da noção de intelectual e estudou como essa noção se transformou com o passar do tempo, a partir de duas perspectivas entrelaçadas e ambas presentes na famosa e polêmica petição "J’accuse!”, publicada em 1898, no diário "L’Aurore

littèraire, artistique, sociale", por Émile Zola em defesa do capitão Alfred Dreyfus.32

Uma mais ampla, em que os criadores e mediadores culturais eram os intelectuais, o que englobava os escritores, jornalistas, professores. A outra, mais estreita, assenta-se na noção de engajamento, onde o enfoque pode assenta-ser os intelectuais que intervieram na vida das cidades, como por meio da assinatura de manifestos ou ainda por meio de debates na imprensa.

Dentre as fontes para o estudo da história dos intelectuais, Sirinelli destaca justamente a importância dos textos impressos, nos quais os intelectuais têm papel fundamental, desde a gênese, circulação, até sua transmissão para Rio de Janeiro: UFRJ, n. 1, 2000. pp. 123-152; CHARTIER, Roger. História Intelectual e História das Mentalidades: In:_____. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. pp. 23-60; DOSSE, François. Biografia Intelectual. In: ____. O Desafio Biográfico: escrever uma vida. São Paulo: EDUSP, 2009. pp. 361-403; GRANJON, Marie-Christine. Une enquête compare sur l’histoire des Intellectuels: sinthèse et perspectives. In: TREBITSCH, Michel; GRANJON, Marie-Christine (Direc). Pour une histoire compare des intellectuels. Paris: Editions Complexe; IHTP/CNRS, 1998. pp. 19-36.

32 Como se sabe, este oficial do exército francês de origem judia foi acusado injustamente de traição.

Aqueles que assinaram a petição a seu favor e pediram a revisão do processo “em nome da justiça, da verdade e contra a razão do Estado” foram chamados de intelectuais. O aparecimento dessa noção estava vinculado com o posicionamento público dos intelectuais e sua intervenção para alterar o julgamento do capitão, que os configurava como “intelectuais de esquerda”, defensores de valores e causas universais. Intelectual, portanto, designa, originalmente, uma vanguarda cultural e política que ousava desafiar a razão do Estado. (...) Continuando a designar um grupo político, o substantivo “intelectual” qualifica sobretudo uma atitude e uma maneira de se posicionar no mundo”. Esse breve histórico foi retirado do livro de Sílvia Cezar Miskulin, Os intelectuais cubanos e a política cultural da Revolução (1961-1975). São Paulo: Alameda, 2009, p. 18, mas a referência exata da passagem pode ser lida também na pesquisa de Helenice Rodrigues da Silva, intitulada Fragmentos da História Intelectual. Entre questionamentos e perspectivas. Campinas: Papirus, 2002, pp. 15-16.

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formar opiniões. Uma história social desses textos exigiria a análise sistemática de elementos dispersos, conectados com a realidade em que estão inseridos, possibilitando ao pesquisador reconstruir redes de sociabilidade, entendidas como uma “ferramenta” explicativa para compreender a organização e a dinâmica do campo intelectual, com suas amizades e inimizades, vínculos e tomadas de posição. Mas é somente após a Segunda Guerra Mundial que o modelo do "intelectual engajado” se torna mais concreto, já que era possível indentificá-lo, por exemplo, na figura de Jean-Paul Sartre. Não apenas sua obra expressou seu engajamento, mas sua trajetória também, notou Helenice Rodrigues da Silva, com a participação de Sartre na luta de resistência aos nazistas, até seu posicionamento público favorável à independência da Argélia, na guerra de libertação contra a França (1954-1962)”.33

O escritor tornou-se porta-voz do chamado “terceiro-mundismo” ao pregar o caráter revolucionário dos movimentos de libertação nacional e justificar, de certo modo, a violência como meio válido para que o “colonizado” se afirmasse perante o “colonizador”. O modelo de intelectual engajado personificado pelo filósofo posicionava-se à esquerda, e, na maioria das vezes, subordinava a produção do conhecimento e a elaboração de ideias ao político. Em suma, Jean-Paul Sartre “encarnava a figura do ‘intelectual total’, ou seja, aquele que se posicionava sempre sobre as mais diversas questões do tempo presente”.34

Mas se por um lado, o engajamento dos intelectuais europeus do pós-guerra teve reflexos diretos nas lutas anticoloniais e nas utopias revolucionárias, em especial após a Revolução Cubana de 1959, por outro, nos Estados Unidos, o que houve foi uma inversão e os intelectuais deixaram as ruas dos centros urbanos e as páginas da imprensa para se institucionalizarem na academia e ocuparem espaços produtivistas nas revistas especializadas.

Essa é a tese defendida por Russel Jacoby em seu livro "Os Últimos Intelectuais, a cultura americana na era da academia”, uma crítica violenta ao ambiente acadêmico departamentalizado dos dias de hoje, conforme o paradoxo exposto no título. Para Jacoby, “os últimos” expõe o fim dos intelectuais públicos que buscavam espaço na imprensa e em outros veículos de informação, cuja linguagem,

33 SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos da História Intelectual. Entre questionamentos e

perspectivas. Campinas: Papirus, 2002.

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estilo e crítica radical pressupunha um leitor educado, amplo e sedento por debates, ao mesmo tempo em que também seriam os “novos”, acadêmicos voltados para si mesmos, para dentro dos muros universitários e que “escrevem uma prosa esotérica e bizarra, dirigida principalmente para a promoção acadêmica e não para a mudança social”.35

Por fim, a História Intelectual pode ainda ater-se à análise das ideias políticas ou ampliar-se a um diálogo mais próximo no campo da história cultural. No primeiro caso, por exemplo, J.G.A. Pocock preocupa-se com o contexto de elaboração dos vocabulários políticos, ou seja, trata-se de situar os textos no seu campo específico de ação ou de atividade intelectual, levando em consideração quem os maneja e com quais objetivos. O autor, então, estabelece uma divisão da linguagem política em dois níveis: língua (langue) e fala (parole), com o objetivo de compreender como ambas interagem ao longo do tempo. Assim, por meio dos atos de fala (speech acts) o sujeito se apropria da língua, seja para reafirmá-la ou então para inová-la mediante a reelaboração dos conceitos do discurso.

No segundo, o historiador Roger Chartier concebe a história intelectual como sinônimo de história cultural. Propõe um programa crítico tanto da oposição entre a alta cultura e a cultura popular – que estariam unidas por fenômenos de circulação e de apropriação – quanto entre criação e consumo, produção e recepção, sustentando que o sentido da obra também é constituído por meio das suas interpretações. Em suma, o pesquisador deve investigar a produção intelectual na sua relação com as outras produções culturais que lhes são contemporâneas, e, ao mesmo tempo, nas suas relações situadas em outras esferas da totalidade social (socioeconômica ou política).

De modo geral, as pesquisas recentes no campo da História Intelectual vislumbram certas inovações nas análises, nas quais aparecem um tratamento explícito ao estilo ou a exploração e valores meta-históricos se pensarmos nas polêmicas levantadas por Hayden White, que configuram os textos, ou a busca de linguagens, no sentido de Pocock, historicamente construídas e transmitidas de texto a texto ao longo de extensos períodos históricos. Não raro, hoje também são as análises por meio das fontes epistolares, dos periódicos culturais, das biografias

35 JACOBY, Russell. Os Últimos Intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. Magda

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intelectuais36 ou dos arquivos privados, portas de entrada bastante convidativas

nesse vasto campo.

Frente ao exposto, o resultado final de nossas reflexões pode ser acompanhado ao longo de três capítulos. Os dois primeiros, intitulados “Sérgio Buarque de Holanda: um intelectual entre dois projetos” e “O retorno a São Paulo: do Museu Paulista à aposentadoria e depois…” visam acompanhar a trajetória intelectual de Sérgio Buarque de Holanda desde a sua juventude modernista até sua morte em 24 de abril de 1982.

Embora tenhamos optado pela cronologia imposta pela memória histórica, nosso intento busca amenizar certas “construções" cristalizadas no tempo por muitos biógrafos. Nesse sentido, nossa hipótese é a de que Sérgio tenha oscilado entre “dois projetos” intelectuais não antagônicos: um, de interpretação do Brasil derivado de sua experiência militante no modernismo e o outro, de divulgação da História, sem um fim político utópico postulado pela esquerda, concretizado por meio de algumas de suas publicações didáticas e pela sua atuação em instituições de ensino, pesquisa e memória, a dimensão pública da sua militância, silenciada, para que fosse enquadrado como um intelectual das esquerdas.

No último capítulo, intitulado “Uma memória para as novas gerações”, continuamos a descrever a trajetória de Sérgio Buarque de Holanda, só que agora pela perspectiva da memória e dos lugares em que ela foi inscrita e propagada, levando em conta o entendimento proposto por Pierre Nora, de que nesses lugares

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polêmico "L’illusion biographique”, artigo no qual Pierre Bourdieu criticava a subjetividade de biografias históricas, segundo ele "capazes exclusivamente de reconstruir a vida de forma artificial, mesmo absurda: A história de vida é uma dessas noções do senso comum que entraram, de contrabando, no universo erudito”. In : Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 62-63, juin 1986. O amplo debate que se estabeleceu desde então pode ser sintetizado da seguinte forma: “(…) é importante termos claro que as biografias praticadas por historiadores profissionais não visam a fazer vir à tona segredos antes escondidos, mas sim compreender historicamente os percursos de certos personagens, de modo a entender, por exemplo, o funcionamento de determinados mecanismos sociais e sistemas normativos, a pluralidade existente em grupos e instituições vistas normalmente como homogêneas, a construção discursiva e não-discursiva dos indivíduos, as margens de liberdade disponíveis às pessoas em diferentes épocas históricas, entre outras questões”. SCHMIDT, Benito Bisso. Quando o historiador espia pelo buraco da fechadura: biografia e ética. História (São Paulo), v. 33, n. 1, jan./jun. 2014. p. 140. Outros trabalhos relevantes para essa discussão são: BURKE, Peter. A invenção da biografia e o individualismo renascentista. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 19, v. 10, pp. 83-97, 1997; LEVI, G. Usos da biografia. In: FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. (orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996; LORIGA, Sabina A biografia como problema. In: REVEL, J. (org.). Jogos de escalas. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998; DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Tradução de Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo, SP: EDUSP, 2009; PRIORE, Mary Del. Biografia: quando o indivíduo encontra a história. Topoi, v. 10, n. 19, jul.-dez. 2009.

Referências

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