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O cinema direto e a estética da intimidade no documentário dos anos 60

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO TESE DE DOUTORADO

FERNANDO WELLER

O CINEMA DIRETO E A ESTÉTICA DA INTIMIDADE NO DOCUMENTÁRIO DOS ANOS 60

Recife, PE 2012

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FERNANDO WELLER

O CINEMA DIRETO E A ESTÉTICA DA INTIMIDADE NO DOCUMENTÁRIO DOS ANOS 60

Tese apresentada ao Programa de Pós – Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito para obtenção do Título de Doutor em Comunicação.

Orientador:

Prof. Dr. Paulo Carneiro da Cunha Filho

Recife, PE 2012

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Catalogação na fonte Andréa Marinho, CRB4-1667

W448c Weller, Fernando

O cinema direto e a estética da intimidade no documentário dos anos 60 / Fernando Weller. – Recife: O Autor, 2012.

182p.: il.; 30 cm.

Orientador: Paulo Carneiro da Cunha Filho.

Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, CAC. Comunicação, 2012.

Inclui bibliografia.

1. Comunicação. 2. Documentário (cinema). 3. Cinema. 4. Intimidade (psicologia). I. Cunha Filho, Paulo Carneiro da (Orientador). II. Titulo.

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Autor do Trabalho: Fernando Weller

Título: “O Cinema Direto e a estética da intimidade no documentário dos anos 60”.

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação do Professor Dr. Paulo Carneiro da Cunha Filho.

Banca Examinadora:

_______________________________________ Paulo Carneiro da Cunha Filho

______________________________________ Rodrigo Octávio d’Azevedo Carreiro

________________________________________ Ângela Freire Prysthon

________________________________________ Mariana Baltar Freire

_________________________________________ Felipe da Costa Trotta

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AGRADECIMENTOS

Pela conclusão do presente estudo, agradeço aos professores Paulo Cunha e Thomas Waugh, pela orientação, bem como às professoras Mariana Baltar e Ângela Prysthon, pelo constante diálogo;

À CAPES, pelo financiamento de parte de meus estudos, especialmente no exterior;

À Universidade de Concórdia, em Montreal, pela acolhida, e a seus funcionários da biblioteca e mediateca;

Aos funcionários do PPGCOM, Zé, Luci e Cláudia, pela disponibilidade e presteza, como também à coordenadora, professora Isaltina;

Aos alunos da disciplina Cinema Direto, que me ajudaram a rever os filmes na fase final da tese;

Aos amigos Felipe, Gabi, André, Dani, Leo, Christian, Flávia, Leta e Silvino, pela paciência e estímulo ao longo dos últimos anos;

Aos meus pais, Rubens e Liliana;

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 5

1.1 Documentário e Intimidade ... 5

CAPÍTULO 2 ... 21

2.1 O percurso do cinema direto ... 21

2.1.1 O cinema direto ... 21

2.2. Cinéma vérité e cinema direto ... 42

CAPÍTULO 3 ... 52

3.1 Tecnologias da intimidade no documentário clássico: som e imagem ... 52

3.1.1 O som sincrônico no cinema, artificialismo e autenticidade ... 52

3.2 A voz do trabalhador e a encenação da espontaneidade em Night Mail ... 61

3.3 Housing Problems e a fala domesticada no documentário ... 68

3.4 O impacto do 16 mm: amadorismo e guerra. ... 79

3.5 A camera-stylo e o advento da TV ... 89

CAPÍTULO 4 ... 95

4.1 A estética da intimidade: os filmes do cinema direto ... 95

4.1.1 A face íntima do personagem público: carisma, olhar e encantamento ... 95

4.2 Câmera do direto versus imprensa: a disputa pela intimidade. ... 107

4.3 Primárias, o político carismático e sua mulher ... 121

4.4 Salesman e o destino trágico de um homem privado ... 134

4.5 O rei está nu: A Married Couple e a crise do personagem masculino... 151

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 167

REFERÊNCIAS ... 173

FILMOGRAFIA ... 179 

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RESUMO

O presente trabalho procura analisar um conjunto de filmes pertencentes ao movimento cinematográfico denominado Cinema Direto, surgido principalmente nos EUA, Canadá e França na virada dos anos 50 para os anos 60, tendo como foco principal a produção norte-americana do período. Segundo a hipótese central da pesquisa, o Cinema Direto praticado pelo grupo de cineastas vinculados à produtora Drew Associates nos EUA representou um momento de ruptura no modelo canônico documental não apenas do ponto de vista tecnológico, mas, especialmente, pelo diálogo inaugural que o domínio documental estabeleceu com as mudanças nas esferas do Público e do Privado no âmbito da cultura do pós-guerra. Uma primeira parte da pesquisa, de caráter histórico, procura traçar a gênese do movimento e a sua recepção crítica, relativizando as rígidas dicotomias frequentes na historiografia estabelecida do documentário entre os grupos de produção anglófonos e francófonos. Uma segunda etapa, consiste na análise dos filmes e seus diálogos com a chamada cultura intimista do pós-guerra, que se revelam nas recorrências estilísticas e temáticas, constituindo o que denominamos ao longo do trabalho de estética da intimidade no documentário.

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ABSTRACT

This thesis analyzes a group of films that belongs to a film movement known as Direct Cinema, emerged mainly in the U.S., Canada and France at the turn of the 1950 to 1960 years. Our main focus is the North American production of the period. According to the central hypothesis of the study, the Direct Cinema practiced by the group of filmmakers linked to Drew Associates production company in the U.S. represented a moment of rupture in the canonical model documentary not only from technological point of view, but especially for the original dialogue that the documentary field established with the changes in the spheres of public and private within the postwar culture. The first part of the research seeks to trace the historical genesis of the movement and its critical reception, relativizing the rigid dichotomies frequently established in the historiography of the documentary between the Anglo-Saxon and the French groups. A second step consists in analyzing a group of films and their dialogue with the so-called intimate culture that emerge from the stylistic and thematic recurrences, constituting what we call over the work a documentary aesthetic of intimacy.

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INTRODUÇÃO “FotografarpessoasévioláͲlas,aovêͲlascomoelasnuncasevêem, aoterdelasumconhecimentoqueelasnuncapodemter.” SusanSontag1 “Todavezqueumfilmeérodado,umaprivacidadeéviolada” JeanRouch2 1.1 Documentário e Intimidade

Em uma palestra para estudantes de uma escola de Cinema, em 20103, Don Allan Pennebaker, um dos principais documentaristas ligados ao que se convencionou chamar de Cinema Direto nos Estados Unidos nos anos 60 e 70, foi questionado pela plateia a respeito da distribuição de seus filmes. Ao falar sobre as eternas dificuldades comuns aos cineastas que não pertencem ao mainstream da indústria audiovisual, Pennebaker contou, em tom de anedota, um evento a respeito da exibição do filme Don't Look Back (1967). O filme acompanha a turnê, com o mesmo nome, do músico Bob Dylan na Inglaterra, ao estilo do Direto, ou seja, sem a gravação de depoimentos, sem a interferência explícita ou deliberada do realizador, sem o uso de narração e, sobretudo, apoiado em imagens observacionais feitas com equipamentos leves em 16 mm e som sincrônico. Don't Look Back é hoje considerado um dos documentos mais importantes sobre o Rock nos anos 60 e, em 1998, foi selecionado pela Biblioteca do Congresso estadunidense para a preservação em seu acervo devido à sua importância histórica, cultural e estética4. Entretanto, entre 1965 e 1967, Pennebaker não encontrava um distribuidor para seu filme, nem em salas de cinema, nem em canais de televisão. Estes não se interessavam pelo estilo de reportagem aberta, sem depoimentos, narração ou uma condução explícita para o que se supunha ser uma audiência televisiva.

Em 1967, Pennebaker foi procurado por Louis Sher, dono de uma rede exibidora chamada Art Theater Guild e também conhecido, segundo Pennebaker, como “The King



1

SONTAG, 2004, p. 25.

2

Do texto Camera and Man (ROUCH, 1975, p. 88, in HOCKINGS, Paul (org.). Principles of visual anthropology, 2003). Rouch, no texto citado, comenta a responsabilidade do cineasta etnólogo ao operar sozinho a aparelhagem de cinema no contato com a realidade filmada. Na continuação, afirma Rouch: “Mas quando o cineasta etnólogo está sozinho, quando ele não pode contar com esse grupo [a equipe] de estrangeiros […] a responsabilidade por qualquer profanação deve ser assumida por esse homem apenas”.

3

Palestra proferida na Concordia University, em Montreal, em 18/11/2010 para alunos da Mel Hoppenheim School of Cinema.

4

Fonte: Biblioteca do Congresso Norte-Americano, http://www.loc.gov/today/pr/1998/98-181.html, acesso em 22/06/2011.

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of Porn” (O Rei do Pornô). “Eu mostrei pra ele o filme e ele falou: é exatamente o que eu estava procurando! Parece um filme pornô, nas não é”, relatou Pennebaker. Assim, Don't look back estreou num cinema chamado Presidio em São Francisco para, em seguida, ser lançado em outras salas de cinema pornográfico nos Estados Unidos5.

Louis Sher não era simplesmente um distribuidor de filmes pornográficos, tal como relata Pennebaker, mas teve também um papel na cena underground cinematográfica norte-americana nos anos 60, distribuindo filmes, por exemplo, de Andy Wahrol (SCHAEFER, 2002, p. 6) a Emile de Antonio (DE ANTONIO apud ROSENTHAL, 1988, p. 165). A percepção de Louis Sher sobre Don't look back nos diz algo a respeito de uma espécie de vinculo de natureza que o Cinema Direto praticado nos anos 60 tinha com o modo do cinema pornográfico. O distribuidor intuiu – ou, por experiência, concluiu – uma semelhança em termos estilísticos ou formais entre o documentário de Pennebaker e o filme pornô, o que não se confunde com uma semelhança na ordem do conteúdo. Não há nenhuma cena de conteúdo sexual, conversas ou qualquer alusão à prática sexual no filme sobre Bob Dylan e, no entanto, havia, para Sher, algo de pornográfico em Don't look back.

Duas são as perspectivas que podemos aqui estabelecer de aproximação entre os dois modos, o documental e o pornográfico. A primeira diz respeito às transformações de ordem tecnológica ocorridas no cinema, que se intensificaram a partir do pós-guerra e alcançaram o que podemos chamar de ponto crítico na virada dos anos 50 para os anos 60. Trata-se do desenvolvimento, profissionalização e a consequente importância que o formato 16mm assumiu à margem do modelo industrial hegemônico o que incidiu de maneira decisiva sobre o vasto e heterogêneo campo da chamada não-ficção. No âmbito da pornografia, o 16mm possibilitou a emergência de uma rede exibidora em salas comerciais nos EUA chamadas mini cinemas ou pocket theatres, operadas, muitas vezes, pelos próprios realizadores dos filmes, que deslocaram o filme pornográfico dos usos domésticos para o espaço público, para as galerias e cinemas à beira da calçada. Por ser um formato considerado semi-profissional, o 16mm possibilitou uma maior



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A página da sua distribuidora, a Sherpix, no site “imdb.com” enumera 44 títulos entre os anos 50 e 70 distribuídos pela companhia, entre os quais, figura, inclusive, o filme Noite Vazia (1964), de Walter Hugo Khouri. Fonte:<http://www.imdb.com/company/co0014968/>, em 28/06/2011.

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liberdade frente à censura e os filmes, cada vez mais, tornaram-se explícitos (SCHAEFER, 202, p. 9).6

A mesma revolução tecnológica que incidiu sobre os filmes pornográficos nos anos 60 influenciou o documentário e ampliou uma visualidade fora dos padrões estéticos representados pelo profissionalismo do 35mm, empregado tanto no filme ficcional distribuído em salas comerciais, quando no documentário expositivo clássico. Como o exemplo de Sher nos indica, as mesmas salas, ora marginais, ora integradas em um circuito chamado de arte, foram responsáveis pela disseminação desta nova visualidade, originária de um mundo amador e vinculada aos temas do lar, da família, do sexo e da suposta interioridade do sujeito.

A abertura de um canal de exibição em salas comerciais em 16mm, permitiu que o universo da intimidade transbordasse para o âmbito público. Embora a TV, desde os anos 50, tenha assumido com mais intensidade esse papel de publicidade, a importância das salas alternativas, tais como as de Sher, estava na possibilidade delas superarem as restrições das diretrizes televisivas. Como veremos, embora o Direto tenha surgido como um projeto de transformação das “bases do jornalismotelevisivo”(DREW,1963), os filmes, quase sempre, foram recusados pelos canais de TV e ocuparam os espaços alternativos das salas em 16mm ou os festivais de cinema internacionais. A intimidade da TV é regulada pelo público, não no sentido cínico apregoado pelos canais comerciais em seu discurso de legitimação do sensacionalismo televisivo, mas no sentido, justamente, dos constrangimentos morais e comerciais aos quais a TV está submetida ao falar para muitos de uma vez. Assim, o 16mm como uma tecnologia da intimidade, empregado tanto pela TV, quanto pelo cinema que se propunha alternativo ao 35mm, deve ser compreendido nos seus dois polos, a produção e os canais de exibição.

O segundo elemento de aproximação entre o documentário e o filme pornográfico nos anos 60 diz respeito à uma estética da exposição da intimidade, ou um certo modo de mostrar o evento filmado que posiciona o espectador em um lugar, ora de testemunha, ora de co-participante da cena filmada. Tal espectador, no filme 16mm, ocupava supostamente o lugar frio e distanciado dos filmes científicos, a posição dócil daquele que aprende nos filmes educativos (que se endereçam à um sujeito na posição 

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A respeito da influência da influência do caráter amador e científico nos filmes pornográficos (“beaver films”), ver JOHNSON, Eithne. The “coloscopic”film and the “beaver” film. In: RADNER e LUCKETT (orgs.). Swinging single: representing sexuality in the 60s. Univ of Minessota, 1999. p. 301-327.

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de estudante) ou lugar indefinido da chamada opinião pública para a qual se voltava o cine-jornalismo. A nova visualidade impulsionada pelos novos usos dos equipamentos cinematográficos exigia um posicionamento outro do sujeito que opera a câmera e, consequentemente, do espectador.

Há uma relação necessária entre o primeiro aspecto (tecnologia) e o segundo (posição do sujeito). O que chamamos de estética da intimidade é dependente do percurso das tecnologias audiovisuais, de seus usos e das memórias agregadas aos dispositivos. Com a profissionalização do 16mm, uma estética amadora assumiu destaque na cultura audiovisual e, com ela, um ideal de espontaneidade que se opunha às práticas ditas profissionais, identificadas como artificialismos. Nossa hipótese central reside na percepção de que o Cinema Direto ocupa um lugar privilegiado na história do cinema documentário não apenas pelos aspectos inovadores em termos técnicos e estilísticos, mas, principalmente, por refletir, através de tais meios, as transformações mais amplas de ordem cultural que afloraram nos anos 60 e cujas consequências vivemos até os dias de hoje.

Por intimidade no filme, entendemos o estabelecimento de uma relação entre sujeitos fundada na troca de afetividades e baseada na crença mútua de um acesso à uma noção de verdade interior. Tal noção de verdade não se vincula mais a uma explicação racional das ações humanas ou dos processos políticos e sociais envolvidos na tomada da cena. Uma leitura das falas canônicas do documentário de tradição anglo-saxã, de Flaherty, de Grierson, de Rotha e de seus herdeiros do Direto, como Leacock e, até mesmo, Rouch, revela uma ênfase em uma dramaticidade implícita do real como verdade a ser revelada. Assim, a projeção da realidade como espelho do filme (e não o seu contrário) exige dos cineastas uma participação no processo de produção que é, antes de tudo, afetiva. Para alcançar a verdade é preciso voltar-se para os sujeitos, estabelecer relações sentimentais e, finalmente, dar-se na cena como um igual. A noção de igualdade, como um valor ético perseguido pelos cineastas, foi favorecida pela miniaturização de câmeras e microfones e a sua adaptação ergonômica para os operadores o que fez da técnica uma parte de seus corpos e não um elemento que se interpõe entre o trabalho fílmico e seu objeto.

O discurso íntimo no filme se refere a outro regime que não o da racionalidade, do convencimento, do esclarecimento, da convencionalidade, enfim, dos elementos

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determinantes do chamado documentário clássico, fundado em um vínculo com a coletividade e imbuído de uma missão pública. A noção de intimidade se vincula, essencialmente, à noção de sujeito, ou à troca entre sujeitos. É um diálogo que se estabelece no filme entre personagens e o espectador, no qual eles se pretendem despidos de sua dimensão coletiva e acreditam estarem expondo uma verdade, antes velada, sobre si. Certamente, essa noção de verdade é também uma idealização e se consolidou nos filmes como um conjunto de clichês em torno da noção de subjetividade. Tanto a pornografia, quanto o filme citado de Pennebaker procuram simular uma espécie de nudez, não apenas dos corpos, mas, sobretudo, dos sujeitos. Trata-se de uma ideia de um segredo sobre si que se revela no filme, segredo esse contado aos olhos e ouvidos da câmera por um personagem que finge não saber o seu destino público.

Bill Nichols estabelece algumas aproximações entre os domínios da pornografia e da etnografia no documentário que dizem respeito a esse caráter confessional que habita os desejos de seus praticantes. A busca pelo conhecimento (e domínio) do “Outro” está na base dos impulsos que movem tais disciplinas. Para Nichols, a estética da pornografia “se inscreve completamente nas preocupações do mundo moderno em torno da confissão (e da entrevista)” (NICHOLS, 1997, p. 268).

Sobre a pornografia e a etnografia, Nichols afirma:

Ambas se baseiam em um impulso documental, uma garantia de vermos o 'autêntico', captado no grão indicial da imagem e do som cinematográficos. O impulso documental responde a necessidade de verificação, de provas palpáveis e da manifestação corporal do Outro e da nossa capacidade de conhecê-la.(NICHOLS, 1997, p. 268)

Uma estética da intimidade no documentário, nesse sentido, seria um conjunto de marcas de estilo nos filmes documentários baseado em práticas audiovisuais que procuram fortalecer a impressão de acesso imediato ao “Outro” filmado e, consequentemente, reforçam a crença no poder da técnica cinematográfica de acessá-lo. Aqui, a noção de “efeito de real”, emprestada de Barthes a respeito da obra de Flaubert, ajusta-se à descrição do estilo adotado em tais filmes (BARTHES, 1968, p. 84)7. A preocupação dos cineastas se volta para a descrição do detalhe, para o evento ou 

7 Barthes Roland. L'effet de réel. In: Communications, 11, 1968. Recherches sémiologiques le

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situação marginal da cena, para o que escapa à visão geral e comum: as mãos de Jacqueline Kennedy enquanto discursa em Primary, contorcidas atrás de seu corpo, os pés de Janis Joplin cantando no palco em Monterrey Pop ou os contraplanos dos personagens em diálogos em quase todos os filmes que, silenciosos, apenas escutam alguém que fala fora do campo de visão. O Direto insiste em por no quadro aquilo que estaria, a princípio, fora do quadro e cada plano nos filmes é reiteração de um ideal revelatório, uma câmera diz estar mostrando algo que ninguém viu e que só ela foi capaz de mostrar. Nesse sentido, o Direto compartilha um ideal tão obsceno, no sentido estrito do termo (fora da cena), quanto a pornografia, o sensacionalismo ou a imagem da violência.

O discurso íntimo não discorre sobre a realidade, ele pretende mostrá-la, simplesmente. O ato de mostrar a realidade, ou melhor, de deixar que a câmera a mostre, é um ato, em si, de fabricação da realidade através da revelação do que era antes inexistente, porque destituído de publicidade. A crença do documentário de é que possível “dar voz” aos que antes não tinham acesso aos espaços públicos deriva desse ideal revelatório. Dar voz (ou a imagem) ao outro, no documentário é um valor fundamental para os documentaristas porque é a chave para a noção de realidade no filme. Note-se que não se diz dar à voz do outro um lugar no filme. A voz a que se refere a expressão é a própria dimensão pública, como se, na sua privacidade, os personagens não possuíssem voz. Os documentaristas pretendem oferecer aos seus personagens o meio fílmico, as tecnologias do registro e exibição de imagens e sons para que o personagem ocupe esse lugar de existência.

Mariana Baltar, ao analisar a produção contemporânea de documentários brasileiros, formula o conceito de “pacto de intimidade”, definido pela autora como “um pacto que se estabelece entre ator social (aquele que irá se configurar em personagem na instância do filme), diretor/equipe (visível ou não na narrativa) e espectador” (BALTAR, 2007, p. 190). Tal conceito é cunhado para definir uma estratégia que confere centralidade às trocas íntimas no documentário brasileiro contemporâneo em seu diálogo com a imaginação melodramática. O termo pacto sugere o estabelecimento de um acordo, palavra, talvez, mais apropriada por sua raiz etimológica (cor, do latim, coração) pois contém o sentido de uma aliança feita entre as partes via afetividade. Concorda-se, fundamentalmente, não por um convencimento baseado apenas na razão, mas por uma rendição do coração, afetiva.

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O conceito de Baltar pode ser estendido aqui do âmbito contemporâneo para o contexto de emergência do chamado documentário moderno, na virada dos anos 50 e 60. Haveria uma imediata identificação dessa noção de um pacto entre realizador, personagem e espectador com os cinemas apoiados no uso de entrevistas ou com caráter auto-reflexivo. A própria noção de “documentário interativo”, cunhada por Nichols (1997, p. 78) e popularizada nos meios acadêmicos brasileiros na década passada, sugere uma relação de negociação e, consequentemente, de pactuação entre os atores fímicos (realizador, personagem e espectador). Para Nichols, o modo interativo “introduz uma sensação de parcialidade, de presença situada e de conhecimento local derivadas do encontro real entre o realizador e o outro” (NICHOLS, 1997, p. 268).

O que sugerimos, no entanto, é que tal pactuação também se dá para além do âmbito da entrevista, do diálogo ou da presença explícita do realizador na cena. Ela é um fundamento do próprio ato da produção da imagem e da constituição do olhar na cena. Albert Maysles fala em uma troca de olhares entre realizador e personagem como a instância primeira da legitimação da filmagem8. O tomada de cena é, de certa forma, autenticada pelo olhar do personagem, algo que se transmite ao espectador. De uma maneira mais simples, podemos afirmar que espectador crê na sinceridade da cena quando percebe que a captura daquela imagem se deu através de uma pactuação entre o realizador e seu personagem. A filmagem com a câmera escondida ou produzida por ato de coação do personagem (por exemplo, em cenas de jornalistas filmando presos) aciona outras instâncias no espectador. Embora tão realistas quanto as imagens pactuadas, a ausência da percepção do acordo íntimo excluí o espectador do âmbito das trocas afetivas e, por conseguinte, torna a cena externa a ele. Certamente, há relações de prazer envolvidas na fruição de tais imagens e na sua produção e mesmo os pactos de intimidade não se dão em uma equidade absoluta de poder entre as partes.

Esse modo de legitimação percebido por Baltar é, assim, algo que permeia as experiências documentais a partir dos anos 50, para além de uma visão blocada em modos (por vezes antagônicos) que leitura meramente instrumental do livro de Nichols sugere. Na cultura intimista do pós-guerra, tal pactuação se funda, principalmente, através das trocas íntimas que conferem à imagem o estatuto de realidade, seja em um filme de Maysles, seja em uma obra de Rouch.



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Hanna Arendt, em A condição humana, lança luz sobre a relação intrínseca entre as noções de intimidade e realidade. Para a autora, a publicização da vida privada é uma condição para a emergência da realidade sob um determinado objeto, que provém da multiplicidade de perspectivas lançadas sobre ele no domínio público, sem que tal multiplicidade modifique a sua identidade. Ser real significa ser visto por muitos, de diferentes maneiras, mas a soma das visões deve convergir na identidade daquilo que aparece. Só assume realidade aquilo que é público.

A importância de ser visto e ouvido por outros provém do fato de que todos veem e ouvem de ângulos diferentes. É esse o significado da vida pública, em comparação com a qual até a mais fecunda e satisfatória vida familiar pode oferecer somente o prolongamento ou multiplicação de cada individuo, com os seus respectivos aspectos e perspectivas. A subjetividade da privatividade pode prolongar-se e multiplicar-se na família e até tornar-se tão forte que o seu peso se faça sentir no domínio público; mas esse 'mundo' familiar jamais pode substituir a realidade resultante da soma total de aspectos apresentados por um objeto a uma multidão de espectadores. Somente quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas em uma variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que os que estão à sua volta sabem e veem identidade na mais completa diversidade, pode a realidade do mundo aparecer real e fidedignamente. (ARENDT, 2010, p. 70)

A noção de privado, tomada pelo seu sentido etimológico original, compreende a ideia de limitação, de privação, ou de não pertencimento ao universo público do coletivo e, fundamentalmente, de não existência, porque não pode ser vislumbrado sob a diversidade do coletivo. O que é privado não existe no âmbito público até o momento em que é iluminado por um processo de publicização, que lhe confere legitimidade. O mundo comum acabaria, para Arendt, quando fosse visto somente sob um aspecto ou apresentando sob uma única perspectiva (ARENDT, 2010, p. 71) o que, fundamentalmente, se apresenta na forma da ameaça totalitária da política e da técnica na chamada modernidade.

Nesse sentido, as artes, o jornalismo, o cinema e, particularmente, o documentário, são fabricadores de intimidade à medida em que ocupam esse papel de publicizar as experiências privadas, apresentando-as ao domínio coletivo sob uma multiplicidade de perspectivas. Embora as tensões entre tais campos ocorram, posto que a noção de realidade é problematizada de diferentes maneiras e há uma disputa constante pela hegemonia do discurso sobre o real, é na soma de tais visões, com frequência conflitantes, que a realidade emerge. O registro e exibição das relações de intimidade, antes veladas sob a privacidade dos domínios do lar, da família, da amizade,

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da loucura ou da morte, assumem no século XX, com os chamados meios de comunicação de massa, uma posição central. Tal processo acompanha o desenvolvimento das tecnologias da publicização, tais como as câmeras, os gravadores de som, a TV, até os dispositivos contemporâneos, cada vez mais portáteis, cuja presença íntima em nossas vidas parece ser ilimitada.

Há, ainda, um paralelo entre as transformações ocorridas no domínio do documentário nos anos 60 e o percurso das ciências sociais, através das quais o documentário investiu-se de autoridade. As técnicas utilizadas pelos cineastas do Direto são muito semelhantes às práticas da chamada observação participante da antropologia e visam, a seu modo, captar uma suposta profundidade nas relações interpessoais ou identificam nas trocas de intimidade uma verdade acerca dos sujeitos. As preocupações no âmbito das ciências sociais com universo íntimo, ou a vida privada, intensificaram-se no pós-guerra e se aprofundaram nos anos 60. É possível entender as transformações ocorridas no domínio do documentário sob o impacto e a centralidade que a noção de intimidade assumiu na sociedade ocidental no século XX e, mais intensamente, a partir dos anos 60 e no contexto particular da sociedade norte-americana. As chamadas ciências do eu, como a psicanálise, deslocam no Ocidente a noção de verdade para a interioridade do sujeito. Como afirma Foucault, “O homem, no Ocidente, tornou-se um animal confitente” (FOUCAULT, 1977, p. 59). Podemos afirmar que a confissão implica numa revelação de uma verdade interior, na sua publicização para os ouvidos de Deus, no âmbito religioso, e para o Público, na sociedade secularizada. O documentário, inserido no ordem dos discursos do Estado e das ciências sociais, constitui-se como parte do que Foucault chama de “ciência-confissão”, uma “ciência que se apoiava nos rituais da confissão” e “assumia como o objeto o incofessável-confesso.” (FOUCAULT, 1977, p. 63).

Esse lugar de escuta ocupado pelo cineasta, um lugar que não se confunde com o do observador ideal e distanciado tal como apregoam os discursos clichês acerca do Direto, é definido de maneira clara por um depoimento do documentarista Albert Maysles, em 1964. Formado, não por acaso, em psicologia, Maysles equipara a posição do documentarista ao do terapeuta, alguém que dedica uma atenção ao discurso do outro. Tal posição implica em participação na cena, participação essa, obviamente, investida de um papel de poder em relação ao sujeito filmado. A chave para a relação de intimidade entre cineasta e sujeito filmado se dá, para Maysles, na presença

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participante, em situar-se na posição de alguém com o qual o entrevistado estabelece uma relação de confiança e não de esquecimento.

Quando fotografamos pessoas, elas não estão falando com uma parede. A câmera não é uma parede. A câmera é como um terapeuta não-diretivo [non-directive]. Não é terapia, apesar de em alguns casos poder ser, mas a relação que se dá é aquela de uma pessoa escutando. De certa forma, porque o observador está realmente interessado no que está se passando, ele se torna uma espécie de participante. Então, em certo sentido, nem tudo vai em uma direção, da pessoa que está sendo filmada para fora, para todos. Há um rebatimento, porque a pessoa está sendo filmada por alguém que está interessada nela. (MAYSLES, 2010, p.15)

O desejo revelatório do documentário foi inicialmente expresso nos filmes de exploração, de viagens a lugares distantes, onde supostamente habitava a alteridade e, em seguida, voltou-se para o domínio privado, urbano e familiar. Nanook do Norte (1922), de Flaherty, filme celebrado como fundador do gênero documentário, já contém essas duas dimensões, a do mundo exótico e a do universo íntimo. Quando o mundo e seus lugares se tornaram cade vez menos distantes por causa da tecnologia, o sujeito e sua vida privada, a sua suposta singularidade, passaram a ser o campo exploratório do documentário e o íntimo passa a ocupar o lugar do exótico e o ideal de revelação transmuta-se em um ideal confessional.

No anos 60, a intimidade assumiu um caráter central na cultura ocidental na medida em se tornou o foco das reivindicações políticas da geração nascida no pós-guerra. A luta pelos direitos das mulheres, dos negros, dos homossexuais, dos indígenas, dos loucos, enfim, das chamadas minorias, reflete um processo de privatização das questões políticas, bem como a publicização das demandas privadas que, elevadas a visibilidade do espaço público, passaram a existir. A intimidade passou a ser o elemento-chave no documentário que confere legitimidade ao filme e a bandeira de luta e liberação dos documentaristas, independentemente da posição ideológica e da intencionalidade política, explícita ou não, nos filmes. A liberação era entendida não apenas no sentido tecnológico (dos pesados equipamentos do cinema industrial), econômico (dos custos de produção e dificuldades de distribuição) e estético (da rigidez formal do documentário), mas, especialmente, uma liberdade que podemos chamar de comportamental. A liberdade de revelar as trocas íntimas entre personagens e, sobretudo, a liberdade do documentarista para se posicionar enquanto sujeito participante dessa dinâmica de trocas.

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As demandas subjetivas surgiam de maneira pontual no documentário chamado clássico. O movimento documentarista britânico, capitaneado por Grierson e inspirado pelo humanismo de Flaherty, procurava marcar uma distinção do documentário em relação às outras formas de representação da classe trabalhadora (tal como o jornalismo ou os discursos políticos institucionais) ao conferir uma suposta humanidade ao personagem trabalhador. Humanidade significava mostrá-lo em suas relações privadas, familiares, amigáveis ou singulares (a imagem do lar e a menção ao nome são dois elementos que conferem singularidade ao personagem). Assim, a dimensão íntima do trabalhador já era tema no documentário clássico, como veremos nos exemplos de Housing Problems e Night Mail no capítulo 2. No entanto, o que tornava tal representação incompleta era a ausência do sujeito da câmera na cena filmada. A encenação da intimidade em tais filmes não posicionava o realizador e, por conseguinte, o espectador, em coparticipação na cena, mas o situava no recuo da dimensão do olhar público. Trata-se, no modelo clássico, de um falar de si em público e não um falar de si com o público, este último, regime bem mais próximo do que Sennett chamou de “tirania da intimidade” para caracterizar a era contemporânea (SENNETT, 1998, p. 411).

Os documentaristas do Direto e a geração de documentaristas surgidas na virada dos anos 50 para os anos 60 no mundo anglo-saxão pretendiam romper com a prioridade do personagem monumental no documentário, encarnado na figura do trabalhador idealizado e aprofundaram o processo de representação da vida privada, deixando emergir a figura do homum comum, em sua vida familiar, expondo seus laços afetivos e pessoais. Essa radicalização da construção íntima do personagem, que introduz o cineasta ou o operador de câmera na função legitimadora da troca de intimidade, tem como efeito a construção de uma nova idealização e a reconfiguração do debate público acerca dos filmes e seus personagens, não mais a partir de temas supra-individuais, como a moradia, a guerra, a fome, a indústria, a nação, para valores inter-individuais, que dizem respeito ao personagem na sua relação com o filme como, o caráter, o medo, o amor, a coragem, a dignidade. Assim, o tema público passou, mais intensamente a partir na técnica do Direto, a ser abordado por um viés privado, intimista ou particular. As grandes questões de interesse coletivo passaram a ser mediadas pelo personagem e, mais especificamente, pela sua relação confessional com o sujeito da câmera.

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A visão do homem político, como John Kennedy em Primary (1960) ou Crisis (1963), passou a ser ampliada para o mundo familiar, o que sinaliza uma dissolução de fronteiras entre o universo público e privado, sendo a âmbito privado aquele capaz de revelar mais sobre os personagens do que a sua atuação pública. John Kennedy é em sua vida familiar, nos bastidores da campanha e da gravação para TV mais real do que em seus discursos públicos. De maneira emblemática, é a imagem da sua morte (o evento mais particular de um sujeito e, ao mesmo tempo, o de caráter mais universal) o símbolo maior dessa nova mitologia em torno do herói investido de privacidade. O rock star explorado nos filmes ao longo dos anos 60 e 70 é um outro exemplo desse mesmo personagem para o qual a face pública é, necessariamente, a sua face íntima, ou privada. Do mundo do trabalho e do discurso público (o personagem que vocaliza o coletivo para o coletivo), o documentário moveu-se para o mundo da família, dos laços da amizade e o domínio do privado (o personagem que fala de si e apela ao espectador, como indivíduo, por suas qualidades pessoais, talentos natos ou experiências adquiridas, e não a sua dimensão coletiva e impessoal).

Se, por um lado, essa nova abordagem, intensificada pelo Direto, estabeleceu novas mitologias em torno do personagem público, por outro, ela permitiu um acesso inédito às dinâmicas particulares nas quais as relações de poder ocorrem. De início, a nova equipe documental formada por, no máximo, três pessoas expôs as relações hieraquizantes no interior da prática cinematográfica, a subordinação de tal prática à ordem industrial e seus efeitos na abordagem dos personagens. Em seguida, ao voltar-se para o que podemos chamar de pragmática dos personagens, ou seja, suas ações e interações supostamente reais com outros personagens, o documentário migrou da arena Política para uma dimensão micro-política, ou “capilar”, usando a expressão de Foucault. Os filmes do Direto revelam a dinâmica interna de produção jornalística e os atritos entre jornalistas e figuras públicas (Primary, Happy mother's day, Don't look back, Meet Marlon Brando, Stravinsky, a portrait), revelam as relações familiares e os conflitos de gênero (A Married Couple, An American Familly), as práticas institucionais (toda a obra de Wiseman, Warrendale, Regards sur la folie), as mudanças comportamentais nos anos 60 (os filmes de Quebec durante a Revolução Tranquila, a série de filmes sobre rock dos irmãos Maysles e de Pennebaker), as relações entre memória e subjetividade (Grey Gardens, Pour la suite du monde) a produção artística e o diálogo com o mundo do espetáculo (Jane, Stravinsky, Meet Marlon Brando, A visit

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with Truman Capote) e, finalmente, a opressão do homem comum diante do trabalho e do mundo do consumo norte-americano (Salesman, The Store).

Como fenômeno que excede as fronteiras do cinema, a prevalência da noção de intimidade no gênero documental independe dos contextos de das particularidades de cada cineasta. No entanto, é possível investigar em que medida os cineastas os contextos particulares negociam, reinterpretam e põem em evidência o conflito contemporâneo a respeito da dissolução de fronteiras entre o domínio privado e o domínio público que se deu em função da elevação da intimidade como valor central no Ocidente, especialmente na segunda metade do século XX.

A historiografia clássica do cinema documentário insiste em uma oposição entre o Direto praticado nos EUA, representado pelo grupo da Drew Associates, e o Direto produzido na França, chamado, ainda, de Cinema Verdade, cuja figura central é Jean Rouch. Essa leitura tende a uma hierarquização dos grupos de produção e reflete as críticas no início dos anos 60, sobretudo na Revista Cahiers du Cinéma, que incorporaram o cinema de Rouch ao grupo da Nouvelle Vague francesa e relegaram a uma leitura meramente jornalística as produções estadunidenses no mesmo período. No Brasil, as poucas abordagens em torno do Direto refletem essa visão dualista e, muitas vezes, ignoram as afinidades e colaborações concretas entre os cinemas praticados em 16mm e som sincrônico no início dos anos 60. Apesar das diferenças de abordagem e de estilo, reflexos de culturas cinematográficas e contextos de produção em cada país, a perseguição do ideal de intimidade por parte dos cineastas foi uma constante que se verifica desde Crônica de um Verão, de Rouch e sua pesquisa em torno da noção de felicidade através da escuta dos personagens, até os exemplos menos intervencionistas, como Wiseman em Titicut Follies (1967), que procura revelar, na intimidadedo hospício, a pragmática das relações de poder. É intenção, no presente trabalho, superar tal dualismo e compreender os documentários feitos com os novos equipamentos de captação de imagem e som no interior das transformações na cultura cinematográfica na década em questão. É próprio dos novos equipamentos e dos desejos que inspiraram os seus usos nos anos 60 o diálogo com o tema da intimidade, mesmo que tal diálogo seja auto-reflexivo ou involuntário.

Muito se fala, ainda hoje, sobre o papel do cineasta ou do documentarista como uma entidade autoral da qual o filme se origina. No entanto, a revolução do Direto foi a

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revolução dos técnicos do cinema, que reagiram ao autorismo cinematográfico, representado pelas figuras do roteirista e do diretor. O Direto foi um movimento feito por fotógrafos, o operadores de câmera e técnicos de som, cuja presença integral na tomada da cena passou a ser decisiva. “Uma câmera que escuta”, nas palavras de Michel Brault, cineasta canadense e fotógrafo de Crônica de um Verão (1960). Leacock, Rouch, Maysles, Brault, Pennebaker, Wiseman são exemplos de cineastas que operavam ou a câmera ou som de seus filmes. Fora de uma dessas funções, da câmera ou do som, havia pouco espaço de ação para um diretor dos novos documentários em 16mm pois a realidade, segundo o pensamento em voga na época, opera por suas próprias regras, não cabendo ao cineasta dirigi-las, mas apenas compreender a sua dinâmica, os seus sentidos na imagem e no som.

Para finalizar, como nota introdutória a respeito do trabalho que segue, é preciso ressaltar que apenas uma pequena parte da produção nos anos 60 dos filmes do Direto estão acessíveis em DVD ou foram lançados em salas de cinema, o que torna a tarefa de estabelecer generalizações acerca do conjunto dos filmes do Direto, especialmente para um pesquisador situado no Brasil, bastante problemática. Grande parte da produção do Direto nos EUA e Canadá foi feita para a televisão e não teve grande repercussão ou impacto sobre a crítica cinematográfica e o público cinéfilo. Para acessar tais filmes, ou uma parcela representativa desses, pesquisamos nos acervos da Cinemateca Quebecoise e no National Film Borad do Canadá, em Montreal, (que disponibiliza, inclusive, grande parte do acervo em seu website), além da Biblioteca do Congresso Norte-Americano, em Washington, onde procuramos os filmes que foram produzidos pela Drew Associates entre 1957 e 1963. Mesmo acessando tais acervos e adquirindo os filmes que foram lançados em VHS, nos anos 80, e em DVD, a partir dos anos 90, o acesso que tivemos ao conjuntos dos filmes foi parcial. Selecionamos, entre os títulos assistidos, aqueles que expressam mais claramente o que chamamos de estética da intimidade e, principalmente, os filmes que julgamos ter uma repercussão de crítica e público que o inserisse na ordem dos discursos acerca do documentário dos anos 60 até os dias atuais.

Há mais de 40 anos atrás, o cineasta e crítico David Neves, em um precioso documento chamado “A descoberta da espontaneidade, breve histórico do Cinema-Direto no Brasil” registrava o impacto do Cinema Cinema-Direto no grupo do Cinema Novo brasileiro. Neves escrevia sobre uma tensão entre o que ele chamava de “saturação imaginativa” provocada no Brasil pelos ensaios e entrevistas dos “magos do cinema

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direto” e “a angustiante necessidade de se ver Primary, Showman, Pyramide Humaine” que, segundo o autor, “nunca chegaram ao Brasil” (NEVES, 1966, p. 258). A angústia relatada por David Neves é hoje amenizada pelo fluxo de imagens proporcionada pela internet, que oferece um acesso inédito e, quase sempre, pirata acinematografias antes desconhecidas e cumpre, parcialmente, o papel que os grandes festivais internacionais cumpriam para as gerações dos jovens cinemas mundiais dos anos 60. Como sempre, a tecnologia, tal é o caso do Direto, tem um poder de difusão muito maior do que os filmes produzidos por ela e o documentário foi praticado no Brasil com o uso da câmera 16mm e o gravador de som NAGRA sob influência talvez maior das leituras dos textos, entrevistas e manifestos, do que do filmes em si. Um estudo mais específico seria necessário para analisar o impacto na produção brasileira da chegada desses filmes no Brasil pelos meios digitais, algo que, no entanto, transcende os objetivos desse trabalho9.

Assim, não é objetivo aqui esgotar as leituras acerca do Cinema Direto ou reduzi-lo a uma simples questão em torno da exposição da intimidade. Menos ainda, desejamos estabelecer uma chave de compreensão maniqueista ou hierarquizante acerca dos filmes e cineastas que é própria ao discurso da cinefilia e da crítica cinematográfica. O filmes do Direto não são melhores ou piores do que outros documentários, não se apresentam em “oposição radical” (DA-RIN, 2004, p. 149) à outras tradições ou “civilizações” (MARCORELLES, 1963) – tal como a artificial oposição entre o documentário francês e norte-americano, oposição essa que a atende muito mais a um interesse de legitimação dos cinemas nacionais (que se espelham na França) do que, propriamente, a uma diferença de estilo ou de compreensão da prática documental. O Direto é tão contraditório ou paradoxal quanto o próprio gênero documental, ele carrega consigo as tensões entre as perspectivas institucionalizantes e os desejos artísticos, entre a política e a propaganda.

Com uma câmera 16 mm em um ombro e um NAGRA no outro, cineastas de diversas partes do mundo procuraram um contato mais íntimo com a realidade a ser



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O cineasta pernambucano Marcelo Lordello, por exemplo, mencionou em diálogo diálogo com alunos de cinema na UFPE em 01/06/2012 que uma das principais influências para filmar seu primeiro documentário “Garotas de ponto de vendas” foi Frederick Wiseman, cineasta ao qual teve acesso na década de 2000 através da internet. Outro indício desse impacto é o trabalho de João Sales, que filma Entreatos (2004) e Nelson Freire (2003) como resultado de um esforço de recuperação e difusão dos filmes do Direto no Brasil.

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filmada, que potencializasse os novos equipamentos e os aproximasse das questões de seus cotidianos. Incoerentes, inocentes e sinceros a seu modo, o resultado de suas produções espelha um conjunto de visões sobre o outro e as relações possíveis de serem estabelecidas entre sujeitos diante de uma câmera e um microfone.

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CAPÍTULO 2

“Uma câmera livre captura a vida espontânea” Lionel Rogosin10



2.1 O percurso do cinema direto



2.1.1 O cinema direto

A definição de Cinema Direto é tão problemática quanto à própria definição de documentário. Os termos Cinema Direto, Cinema Verdade, Cinéma Vérité in America, Living Cinema, Cinéma du Vécu, Free Cinema, Candid Cinema, Uncontrolled Cinema, Cinema observacional, entre outros, foram e são utilizados indiscriminadamente por cineastas, críticos e acadêmicos, ora como sinônimos, ora para ressaltar diferenças. No universo da produção audiovisual, certamente, a exigência de uma coerência no uso dessas denominações tem importância secundária e o emprego de tais rótulos atende, quase sempre, aos legítimos interesses propagandísticos de cineastas e produtores.

Apenas como exemplo, dentro do mesmo grupo de produção nos EUA há divergências na denominação do estilo dos documentários: enquanto o documentarista Robert Drew até hoje utiliza o termo Verité, Albert Maysles prefere empregar o termo Cinema Direto. Richard Leacock, por sua vez, formulou a expressão Living Cinema. Fora da Drew Associates, o canadense de Quebec, Pierre Perrault, cunhou o termo Cinéma du Vecu, assim como Cinema de la Parole. Outro canadense, Allan King, utiliza o termo Actuality Drama e Frederick Wiseman, estadunidense, utiliza Reality Fictions. O que a profusão de termos e denominações nos indica é um caráter heterogêneo do que chamamos Cinema Direto que, na verdade, não pode ser entendido como um movimento coerente e unitário, mas sim como um rótulo, nem sempre consensual, para um conjunto de filmes e cineastas surgidos principalmente sob o impacto do processo de transformações tecnológicas no campo audiovisual com a emergência da TV e num contexto particular de mudanças culturais e sociais dos anos 60.

No presente trabalho, adotamos o nome Cinema Direto para a produção canadense e estadunidense dos anos 60 e 70, embora uma ressalva deva ser feita para o 

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Anotação em seus diários de filmagem para On the Bowery (1957), citada no documentário The Perfec Team (2009), de Micheal Rogosin.

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fato de que, na época, o termo Direto também tenha sido utilizado para se referir a obra de realizadores franceses como Jean Rouch, Mario Ruspoli, Chris Marker, Agnes Varda, François Reichenbach e outros. O rótulo Cinema Verdade também foi e ainda é usado, com frequência, para definir as obras produzidas em países diversos como EUA, Canadá, França, Itália e, inclusive, Brasil nos anos 60 e 70. Aqui, adotamos igualmente o termo Direto para toda a produção documental com equipamentos leves de captação de som e som sincrônico dos anos 60, distinguindo, obviamente, as particularidades de cada grupo em cada país, as diferentes motivações estéticas e políticas de cada contexto11. Assim, nos referimos a um Cinema Direto nos EUA, um Cinema Direto no Canadá, bem como na França, Itália, Brasil e nos demais países. Por ser o foco de nossa pesquisa, nos deteremos apenas na tradição anglo-saxã documental, especialmente a norte-americana.

Ao empregarmos o termo Direto, não pretendemos unificar de maneira absoluta as produções do ponto de vista estilístico, ético ou político. Tal fato seria impossível, na medida em que os documentários produzidos na onda dos novos equipamentos possuem grandes diferenças e refletem a cultura cinematográfica de cada país (valor autoral, influência do jornalismo, negociações com os modelos hollywoodianos), as condições de produção (TV, Cinema, órgãos ligados à pesquisa social ou ao Estado) e formas de recepção (salas de cinema, TV, festivais e circuito alternativo em 16mm). O que há em comum entre os grupos de produção é um entusiasmo inicial no início dos anos 60 pelos mesmos equipamentos e um desejo de explorar os limites do realismo cinematográfico. Os novos equipamentos dotaram os cineastas e críticos de um discurso, muitas vezes, triunfalista, como se todos os anseios realistas das gerações anteriores finalmente tivessem sido atingidos.

O Cinema Direto, tal como o praticado nos EUA e Canadá é, em sua maior parte, um modo cinematográfico investido de um ideal de imediação entre o espectador e a realidade na tela. O cinema de Rouch, embora partilhe em determinados momentos desse mesmo ideal, adota uma abordagem diferente e procura na própria mediação, ou no dispositivo cinematográfico explicitado, uma relação de intimidade no filme. Tal



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Seguimos, assim, a leitura dos autores canadense Gilles Marsolais (1997) e Guy Gauthier (1994), do cineasta franco-italiano Mario Ruspoli (1964) e do crítico da Cahiers du Cinéma, Louis Marcorelles (1970), do teórico Michel Marie (1979), que compreenderam o Direto como uma tendência documental global, cuja origem se encontraria nos três pólos de produção: Canadá, França e EUA.

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diferenciação não significa, no entanto, que não existam filmes pertencentes ao âmbito do Direto que utilizem recursos reflexivos tais como a exposição da presença do operador em diferentes graus, dos equipamentos de filmagem, das negociações entre cineasta e personagens e estruturas de montagem reflexivas. Tais recursos podem ser empregados, mas o seu objetivo é o de fortalecer uma relação de intimidade com os espectador. Da mesma forma, existem passagens nos filmes de Rouch com características puramente observacionais.12Ambas as formas, no entanto, percebem uma caráter dramático implícito no cotidiano, no qual o filme deve se pautar e procuram uma espécie de dramaturgia do real.

A mais simples definição de Cinema Direto dá conta de um modo de documentário surgido no final dos anos 50, baseado no uso de câmeras portáteis 16mm (Éclair-Coutant NPR, Arriflex SR e Auricon) e equipamentos de captação de som sincrônico (NAGRA e Perfectone). Os filmes nesse período foram inovadores nas suas formas captação do som das locações em sincronia com as imagens, o que dispensava a necessidade de pós-sincronização, algo não exatamente inédito na história do cinema, como veremos nos exemplos do capítulo seguinte, mas que se tornou muito mais acessível com as possibilidades oferecidas pelos novos equipamentos à época.

Uma espécie de pacote tecnológico do Direto incluía, além das câmeras reflex portáteis e silenciosas: 1) películas mais sensíveis e o aperfeiçoamento de processos laboratoriais para ampliar a sensibilidade do filme na revelação (o que se deu, inicialmente no National Film Board canadense) dispensando, cada vez mais, o emprego da iluminação artificial; 2) as lentes zoom, criadas e aperfeiçoadas no fim dos anos 50 por Pierre Angénieux que deram maior agilidade ao operador da câmera e cujos movimentos acabaram por ser incorporados na montagem como elementos que conferiam mais realismo às cenas, até tornaram-se hoje um clichê do filme-reportagem; 3) a adaptação ergonômica das câmeras 16mm para uso nos ombros dos operadores que, além de fornecer maior mobilidade, aproximou a câmera do corpo do operador posicionando-a na altura do olho humano; 4) o surgimento de microfones direcionais e de tecnologias sem fio para sincronia entre a câmera e os gravadores de som, como o cronômetro de quartzo ou a transmissão de sinais de rádio entre os equipamentos; 5) finalmente, a substituição das válvulas eletrônicas por transistores nos equipamentos de 

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A sequência de Marceline em Cronica de um Verão, filmada por Michel Brault, é um exemplo de uma abordagem que poderíamos chamar de mista.

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gravação sonoro, o que diminuiu o peso dos gravadores de 90 kg para 9 kg (ELLIS, 2005, p. 210).

Trata-se de uma aparelhagem cada vez mais leve e discreta, voltada para o que chamaremos aqui de estética da intimidade, ou um conjunto de práticas cinematográficas que procura simular uma relação imediata entre equipe e objeto filmado e que posiciona o espectador em um lugar de testemunha e observador privilegiado dos acontecimentos antes confinados na esfera da vida privada. É possível compreendermos a tecnologia portátil e sincrônica na virada dos anos 50 para os 60 como um primeiro e importante passo em um processo de transformações tecnológicas e culturais no campo audiovisual que derivam hoje nas tensões contemporâneas em torno exploração da intimidade em programas televisivos, nos usos das internet em sites de relacionamento, nos blogs pessoais e na explosão digital da pornografia.

Particularmente, nos interessa o papel de tal tecnologia, hoje, na prevalência de abordagens ditas subjetivas no domínio do documentário, como os filmes em primeira pessoa, autobiografias ou no modelo ambíguo, entre militância personalista e espetáculo, cuja figura emblemática é o norte-americano Michael Moore. Há uma relação fundamental entre a corrida tecnológica em torno da minimização da interferência da aparelhagem cinematográfica na tomada de cena e um ideal de acesso ao indivíduo através do filme, ideal esse que se modifica de acordo com os contextos de produção. O debate, no presente texto, sobre a relação entre tecnologia e estética da intimidade não pretende estabelecer uma determinação da primeira sobre a segunda. Não foram as tecnologias, simplesmente, as responsáveis pela nova visualidade emergida no pós-guerra e intensificada nos anos 60. Ao contrário, um desejo de realização no filme de tal visualidade impulsionou a corrida tecnológica em torno da sincronia e da mobilidade da câmera e deu a ela uma significação no âmbito da cultura.

As técnicas do Direto permitiram aos documentaristas assumirem uma posição participante na cena filmada, ora no papel de testemunha discreta dos acontecimentos, ora atuando como provocadores ou catalisadores de situações que jamais ocorreriam sem a presença da câmera. A abordagem adotada em tais filmes é, quase sempre, intimista e o resultado de grande parte dos filmes é a revelação de uma constante tensão entre os domínios público e privado, tensão essa que caracteriza a nossa modernidade e que se aprofundou, justamente, na época do surgimento de tais filmes. Como

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consequência, no âmbito da discussão ética, muitos documentários do Direto foram acusados de explorar a intimidade dos personagens ou assumir posições sensacionalistas, o que nos indica que o uso das novas tecnologias no filme acompanhou um processo que podemos chamar de publicização da vida privada.

As principais heranças dessa nova configuração articulada pelo Direto até os dias de hoje são os recursos, aparentemente opostos, da entrevista para a câmera, que derivou nos chamados talking heads televisivos, e do registro de diálogos não encenados em som sincrônico, muitas vezes chamado de candid camera ou câmera observacional, estratégias consolidadas hoje como clichês do gênero documental e cotidianamente empregadas em programas de TV. A entrevista no documentário representa a aplicação no cinema de um dos instrumentos mais poderosos de perscruta do universo íntimo que, como nos aponta Foucault em sua História da Sexualidade, tem suas origens no confessionário cristão e foi potencializado no século XX pelas chamadas ciências do “eu”, como a psicanálise (FOUCAULT, 1977). A filmagem das ações sem uma intervenção explícita do realizador ou operador de câmera ou som identifica-se com as práticas científicas aplicadas ao universo da pesquisa social, como a chamada observação-participante etnográfica, cujo objetivo é o de revelar as interações entre os sujeitos inseridos no seu cotidiano.

A aplicação de tais práticas no documentário não pode ser compreendida, no entanto, de forma linear, como se o objetivo dos cineastas fosse o mesmo dos cientistas sociais. Trata-se de um empréstimo de discursos de verdade para o cinema o que, muitas vezes, pode também significar a sua desvirtuação ou negação. No entanto, as estratégias do Direto procuram conferir ao filme uma abordagem supostamente mais sincera ou autêntica, especialmente se levarmos em consideração o contexto de recusa às práticas tradicionais de narração em voz over e reconstituição de cenas nas quais se baseava o documentário chamado clássico.

Sob essas duas perspectivas, a da entrevista e a da observação-participante, a maior parte da produção de documentários após o advento das tecnologias de captação de som sincrônico nos anos 60 estaria, ainda, inserida no regime do Cinema Direto, principalmente a produção feita em vídeo e para TV13. Nesse sentido, compreendemos a emergência da tecnologia digital no cinema como uma continuidade ou aprofundamento 

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Brian Winston chega a falar em uma “a maldição do direto na era digital” (WINSTON in MOURÃO, 2002, pp.14-25)

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– e não ruptura – com o percurso histórico do documentário, intensificados em três momentos-chave: na passagem dos anos 50 para os anos 60 com emprego das câmeras leves 16mm, nos anos 70 e 80 com o surgimento do vídeo e, finalmente, nos anos 90 com a emergência do digital. Nesses três momentos, a tecnologia audiovisual atendeu a uma demanda por um tratamento mais intimista da imagem e do som, embora, muitas vezes, os usos de tais equipamentos não tenham correspondido às expectativas da indústria que os promoveu e surgiram filmes que questionam ou escapam a tal modelo14. A própria noção de realismo no filme, cabe ressaltar, nunca foi um consenso e sim uma ideia que se transforma em meio a diferentes contextos históricos.

A grande maioria dos autores no campo do documentário15 define tanto o Cinema Verdade quanto o Cinema Direto como modos cinematográficos surgidos em três principais polos de produção: EUA, Canadá e França. Nos EUA, o Direto surgiu através da produtora Drew Associates, entre 1958 e 1964, onde atuaram Robert Drew, Richard Leacock, Albert Maysles, David Maysles e Don Allan Pennebaker. No Canadá anglófono, o Direto teve a sua primeira expressão na série Candid Eye (1958-59) produzida pelo NFB, na qual atuaram os cineastas Terence Macartney-Filgate (que foi, mais tarde, colaborador na Drew Ass.), Roman Kroitor, Wolf Koenig e Colin Low. Em Quebec, os filmes do Direto foram realizados por Michel Brault, Pierre Perrault, Gilles Gruolx e Claude Jutra, no âmbito da sessão francófona do National Film Board em Montreal. Finalmente, na França, é central a figura de Jean Rouch atuando no Musée de l'Homme de Paris.

Robert Drew era um fotojornalista de revista Time nos anos 50 e queria realizar reportagens cinematográficas aplicando o conceito de fotografia conhecido como candid da revista Life. Drew era extremamente crítico ao jornalismo da época. Ele era contra a presença do narrador repórter e contra, sobretudo, ao modelo pautado na palavra de construção da reportagem.

minha formação é aquela do jornalismo fotográfico, da imagem fixa. Eu colaborei com a revista Life durantes muitos anos e praticava uma forma de jornalismo que exige que você esteja constantemente presente com seu aparelho fotográfico no ambiente e no momento exato onde se produz o evento. (DREW, 1963, p. 19).

O que descobri é que a reportagem na televisão e a reportagem que fazia estavam baseadas na lógica da palavra. Ou seja, eram conferências ilustradas



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Jean-Luc Godard seria o exemplo maior de um cineasta que se valeu das novas tecnologias portáteis, inclusive o vídeo já nos anos 70, para por em cheque as relações entre ideologia e técnica no Cinema.

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BARNOUW (1996), BARSAM (1992), ELLIS (2005), MARCORELLES (1970), MARSOLAIS (1997), GAUTHIER (2003), WINSTON, NICHOLS (1991), ROTHMAN (1997).

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com fotografias, ou entrevistas, o que é a mesma coisa. A vida real nunca aparecia no filme, nunca aparecia no aparelho de TV [...] nós tínhamos que abandonar a lógica da palavra e buscar a lógica dramática em que as coisas realmente acontecessem. (DREW, 2000).16

A Drew Associates surge com a parceria entre Robert Drew e o fotógrafo cinematográfico Richard Leacock em 1957, quando Drew consegue um financiamento da Time-Life Broadcast Division para por em prática suas ideias. É esse financiamiento que permite a Drew e a Leacock desenvolverem 3 anos mais tarde o filme Primárias (1960), considerado um dos marcos iniciais do Direto. Richard Leacock era também fotógrafo e possuía à época uma larga experiência em documentários, tendo trabalhado, inclusive, ao lado de Robert Flaherty em Loiusiana Story (1948) como operador de câmera. O desejo por uma abordagem mais realista no documentário já se fazia presente nos anos 40:

Ainda quando estávamos trabalhando em Lousiana Story eu observei que quando usávamos pequenas câmeras nós tínhamos uma tremenda flexibilidade, nós podíamos fazer qualquer coisa que quiséssemos e tínhamos uma maravilhoso sentido de Cinema. No momento em que tínhamos que filmar um diálogo, em lip-synch, tudo tinha que ser bloqueado e toda a natureza do filme mudava […] Nós tínhamos pesados discos de gravação e as câmeras, invés de pesar 2,5kg pesavam 90kg, uma espécie de monstro. […] Nós não podíamos mais ver as coisas como elas se desenvolviam e acabávamos impondo a nossa presença na cena a tal ponto que tudo o que acontecia diante de nós, tudo meio que morria. (LEACOCK, 1961, p. 23)

O relato de Leacock nos indica um conflito entre as demandas da fotografia documental e a necessidade de captação do som direto pelas tecnologias de época. A formação dos documentaristas clássicos como Flaherty ou Grierson era marcada pela presença de uma concepção formalista do Cinema, que valorizava a cena construída e diminuía a importância do uso do som sincrônico no documentário, associando-o com um caráter meramente jornalístico. Leacock reflete um mal-estar do fotógrafo no Cinema, para quem o caráter imediato, ágil tem um valor fundamental. Além de Leacock e Drew, Pennebaker e Albert Maysles eram fotógrafos.

Em 1959, em um pequeno e anunciador texto publicado na Revista Cahiers du Cinéma, Leacock (ainda creditado pela revista como colaborador e fotógrafo de Robert Flaherty) celebra o filme Wedding and Babies (1958), de Morris Engel, como o



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primeiro filme a utilizar a tecnologia do som sincrônico inteiramente móvel, o que possibilitou o registro de diálogos fora dos estúdios, nas ruas.

Isso é de um interesse extraordinário para todos os cineastas e para todos aqueles que se interessam pelo futuro da indústria do filme, porque é precisamente nesse domínio que nós descobriremos o máximo de possibilidades ainda não exploradas no Cinema. […] Morris Engel veio ao cinema com aquilo que muitos consideravam como a pior das bagagens – ele era fotógrafo das grandes revistas. Os fotógrafos da imagem fixa a sua revolução técnica há algum tempo. Eles também tiveram que carregar um equipamento pesado e volumoso até a invenção da Leica. Um novo campo de atividades de abriu para a fotografia fixa aquele que nós associamos aos brilhantes ensaios da revista Life. Esse equipamento leve, portátil, permite ao fotógrafo se deslocar livremente e capturar todas as nuances do assunto tratado sem ser esmagado pela aparelhagem técnica […] E, posto que pretendo utilizar eu mesmo esse novo equipamento, eu peço aos céus que me encontre um fabricante esclarecido, visionário, que queira não apenas fazer as pesquisas necessárias mas também fabricar e vender tal equipamento. (LEACOCK, 1959, p. 37-38)

Em um segundo momento, quando as técnicas só Direto tornam-se generalizadas no contexto audiovisual norte-americano dos anos 60, surgem outros nomes que são associados ao grupo. A figura mais célebre e mais próxima do que se pode considerar um auteur no Direto é o cineasta Frederick Wiseman. Sua origem não é do jornalismo e sim do direito. Wiseman era professor de Direito antes de se tornar cineasta e, embora o cineasta negue a influência de sua formação em seus filmes, para um observador dos filmes, essa filiação parece bastante óbvia pela escolha dos temas (sempre instituições) e pela frieza aparentemente mais sociológica na construção dos filmes. Seu primeiro filme é Titicut Follies (1967), sobre um manicômio judicial em Massachusetts, filme que ficou censura por mais de 20 anos por ter sido considerado invasivo e por ter exposto a intimidade dos detentos. A querela judicial é um material importante de reflexão sobre as implicações éticas no documentário e, sobretudo, no Direto.

Guy Gauthier atribui o surgimento do Direto nos três países mencionados aos seguintes fatores: forte tradição em produção de documentários, elevado desenvolvimento tecnológico, televisão em expansão e democracia (GAUTHIER, 2003, p. 15). Dos quatro motivos apresentados por Gauthier, o último, democracia, é questionável na medida em que se pode sempre por em dúvida a real amplitude de tal conceito nos países que se julgam democráticos. No entanto, o que podemos afirmar é que o discurso da liberdade de expressão, próprio das democracias liberais ocidentais, foi um fator importante que legitimou o campo do documentário e confere ao

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documentarista uma aura muitas vezes heroica. Ou seja, o Direto surge estreitamente ligado ao contexto da chamada democracia liberal anglo-saxã, não no sentido da suposta liberdade de expressão sugerida por Gauthier, mas pelo fato de que em tal regime, a primazia da dimensão individual se traduz em uma cultura cinematográfica que privilegia a abordagem do universo privado à dimensão pública. Além disso, é em tal regime que a indústria de equipamentos audiovisuais, impulsionada pela TV, irá investir no que chamados de tecnologias da intimidade17.

O Direto se valeu desse status e dessa cultura que autorizava a exposição pública de pessoas, eventos e instituições, especialmente nos EUA. Em diversas ocasiões, os filmes do Direto foram alvo de processos judiciais e muitos nem chegaram a ser exibidos na TV por violarem princípios internos dos canais, que alegavam exposição da intimidade de pessoas, nudez ou uso de vocabulário inadequado, embora muitas vezes o impedimento dos filmes se devesse ao desconforto com a ausência de uma condução retórica explícita no filme por um repórter ou narrador, cuja função tradicional é encerrar um sentido monolítico para a audiência. Apenas como exemplo, o filme Warrendale (1967), sobre o dia a dia de uma instituição de tratamentos de jovens com problemas mentais, do canadense Allan King, não foi aceito para ser exibido na CBC (Canadian Broadcast Corporation) sob alegação de uso de vocabulário inadequado para TV. O filme A Married Couple (1969) igualmente foi impedido de ser exibido na televisão pela nudez do personagem principal.

Trata-se de uma tensão recorrente promovida pela tecnologia do som sincrônico. As alegações da censura são as de que a intimidade dos presos (no caso de Titicut Follies) ou pacientes (no caso de Warrendale) estaria sendo violada e, como seriam pessoas supostamente inaptas a compreenderem as consequências do registro de suas imagens, sua concordância em assinar os termos de autorização da imagem não seria válida. Nas discussões judiciais acerca dos filmes, Wiseman se valeu das prerrogativas da primeira emenda da constituição norte-americana que impede restrições à liberdade de expressão. Nesses casos, entram em conflito dois valores cruciais da chamadas democracias liberais: o direito à livre expressão e o direito à preservação da intimidade.



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Assim como as câmeras mais leves e os equipamentos de som sincrônico, podemos pensar no conceito de tecnologias da intimidade para além do universo cinematográfico, incorporando aparelhos como a TV, os eletrodomésticos, o automóvel, o microcomputador, enfim, uma série de outras máquinas voltadas para o universo íntimo ou o uso privado.

Referências

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