• Nenhum resultado encontrado

SobreimpreSSõeS leituras de filmes

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "SobreimpreSSõeS leituras de filmes"

Copied!
304
0
0

Texto

(1)
(2)
(3)

SobreimpreSSõeS

leituras de filmes

(4)
(5)

José bértolo

SobreimpreSSõeS

leituras de filmes

(6)

esta publicação é financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, i.p, no âmbito do projecto UiD/eLT/0509/2019.

(7)
(8)
(9)

Índice

preâmbulo ... 11

introdução (O Estranho Caso de Angélica) ... 19

Parte i: Transformação e reflexo Ser ou não ser (The Talented Mr. Ripley) ... 31

monstros (A Woman’s Face) ... 43

Actores reais (A Double Life) ... 55

estar ou não estar (Fallen Angels) ... 68

Ícones (rouben mamoulian) ... 84

Quadros (Vertigo) ... 93

Parte ii: experiência e alucinação Verdades alucinadas (La signora di tutti) ... 113

Sonhos vividos (Interlude) ... 128

Vidas inventadas (Senso) ... 145

Sombras de sonhos (Les Parapluies de Cherbourg) ... 164

Sonhos escritos (Kapurush) ... 176

Vidas, livros, filmes (paul Verhoeven) ... 187

Parte iii: Assombração e retorno A morte dos vivos (La Chambre verte) ... 205

(10)

retornos (La mala educación) ... 233

estar e não ser (Odete) ... 249

Fronteiras (O Tio Boonmee que se Lembra das suas Vidas Anteriores) ... 269

Fuga ... 273

Nota de edição ... 293

(11)

Preâmbulo

É bem conhecida a história de William mumler, o homem que, em 1861, se viu inadvertidamente acompanhado num auto-retrato fotográfico pela figura ténue de uma jovem. A origem do estranho fenómeno foi-lhe explicada por um amigo fotógrafo: mumler teria usado uma placa mal lavada, que conteria ainda vestígios de uma exposição anterior (o retrato de uma mulher jovem), a qual, por essa razão, acabara por figurar, num peculiar limite da perceptibilidade, na nova exposição. Nasceu assim, por um feliz acaso, a fotografia espírita, que seria larga-mente cultivada nas décadas subsequentes do século xix, durante as quais se produziriam inúmeras imagens de homens e mulheres milagrosamente acompa-nhados dos seus entes falecidos (cf. medeiros 2010: 154 e seguintes).

olhar hoje para os produtos da fotografia espírita do século xix não surte sobre nós os mesmos efeitos que com eles se procurava produzir originalmente – de espanto, surpresa, fascínio ou indignação –, não só porque já conhecemos o processo mecânico que lhes subjaz, mas também porque nos habituámos a desconfiar das imagens. As imagens, hoje, e não obstante a sua ubiquidade, não têm o mesmo poder sobre o observador, não provocam nele o mesmo tipo de impressões nem parecem transformá-lo tão radicalmente. olhamos as fotogra-fias de William mumler ou de William Hope, outro célebre captador de espí-ritos, e dificilmente vemos em cada uma delas mais do que o sintoma de uma prática que, no limite, nos encanta pela sua estranheza e pela sua improbabili-dade. Sorrimos, numa sobranceria com um tanto de condescendência, face a uma geração que pôde efectivamente acreditar que a fotografia encerraria em si a capacidade de tornar visíveis os fantasmas de pessoas mortas. Contudo,

(12)

aqui-lo que talvez também pudéssemos fazer é invejar essa geração para a qual a imagem ainda surtiu um efeito profundamente transformador, todos aqueles cuja experiência do mundo foi radicalmente alterada a partir do momento em que se puderam ver partilhar o mesmo espaço bidimensional – um pequeno rectângulo – com seres de outro mundo.

o positivismo e a ética racionalista venceram, e mumler foi, tal como outros praticantes dessa arte, julgado por embuste. porém, talvez lhe devessem ter sido prestadas honras, após os devidos esclarecimento e penalização, por ter descoberto e explorado a dupla exposição, uma técnica que se tornaria não só popular durante toda a história da fotografia, como também verdadeiramente paradigmática do potencial diferenciador e problematizador do real que a ima-gem fotográfica possui.

o nascimento do cinema foi contemporâneo de uma fase avançada da foto-grafia espírita, mas a promessa que residia no centro deste novo meio de represen-tação era, à partida, o seu exacto oposto. os irmãos Lumière procuravam difundir uma técnica que permitisse reproduzir o mundo tal como o vemos, e efectivamen-te nada mais do que isso. A imagem seria tão mais bem conseguida quanto mais próxima estivesse das impressões visuais que os nossos olhos nos transmitem ao cérebro no momento em que encaramos as coisas que se encontram ao nosso re-dor. o desejo da mimese encontrava no cinema um novo e paradigmático repre-sentante. No entanto, num curto espaço de tempo, méliès recupera o princípio da fotografia espírita e aplica-o à técnica cinematográfica, sem lhe associar a parcela de fraude que lhe fora associada no campo da fotografia durante as décadas prece-dentes (cf. Natale 2012). Como resultado, tornou-se claro que, se o cinema, devi-do à sua matriz fotográfica, estava votadevi-do à representação devi-do real visível, ele conti-nha ao mesmo tempo a promessa oposta: a de criar, a partir do visível, algo que os olhos não poderiam captar sem o auxílio de uma câmara.

por conseguinte, desde méliès, a utilização da dupla exposição esteve ao serviço da magia, da fantasia e também do espectral. mais do que isso, a dupla exposição – ou sobreimpressão, o termo que figura nos nossos dicionários de

(13)

cinema, por proximidade do fran-cês surimpression – acabou por in-tegrar a gramática fílmica, pro-longando-se muito para além da fase inicial, a do cinema das atrac-ções (Gunning 2006), já em pleno cinema narrativo, desde a década de 1910 até ao nosso século. É neste domínio, o do cinema

nar-rativo, que o uso da sobreimpressão adquire um carácter verdadeiramente re-velador, já que, sem os denegar, passa a exceder o espanto, o fascínio ou a sur-presa que transportara tanto na fotografia espírita quanto no primeiro cinema. A sobreimpressão rapidamente deixa de consistir num truque que visa sobretu-do salientar o potencial transformasobretu-dor da imagem de cinema, e passa a ser um recurso técnico associado ao domínio do simbólico, que adquire diversas e complexas significações em diferentes eventos narrativos.

invoco o caso paradigmático de um filme de ingmar bergman, Sommarlek (Um Amor de Verão, 1951), que abre com a protagonista, marie, a receber um pacote que contém um diário. Quando ela abre o manuscrito, surge um rosto sobre as páginas escritas. Trata-se do rosto de Henrik, o autor do diário, um rapaz com quem ela partilhara um Verão na juventude, havia muitos anos, antes da morte do jovem na passagem para o outono. A leitura do diário mo-tiva-a a deslocar-se para o lugar onde passou aquele Verão cujo desfecho trágico ela não conseguiu ainda ultrapassar e a impede de viver devidamente o presen-te, e, em particular, de se comprometer, num novo relacionamento, com o homem que agora a deseja, e que ela deseja de volta. Neste dispositivo narrati-vo, o rosto de Henrik surge sobreimpresso no diário – ou, melhor, na sua pró-pria caligrafia, um rastro ou traço matérico de si –, como o índice (i)material de um revenant. Num momento em que o rapaz já está morto, mas subsiste no mundo dos vivos de forma problemática (i. e., marie vive uma vida não vivida,

(14)

não lhe sendo possível desvincular-se da dor da perda, tornando-se refém de uma figura do passado que está impossibilitada de regressar porque já não exis-te senão em Marie), o filme veicula a força desta presença fisicamenexis-te ausenexis-te – mas simbolicamente, como vimos, bem presente – através de uma sobreim-pressão. Deste modo, uma sobreimpressão que se mantém visível durante apenas alguns segundos torna-se uma figura decisiva do filme, informando-o tanto do ponto de vista da narrativa quanto da sua forma, uma vez que o mo-vimento do filme será o de erradicar a figura de Henrik, de cuja assombração marie precisa de se desvincular (ou, para sermos menos violentos: uma assom-bração com a qual marie precisa de negociar uma nova, mais pacífica, coexis-tência) para poder prosseguir a sua vida entre os vivos.

o livro que aqui introduzo não é, estritamente, sobre o fenómeno da sobreimpressão; contudo, o conjunto de filmes sobre o qual me debruço activa os núcleos temáticos e teóricos que este recurso de natureza primeira-mente técnica mobiliza. Trata-se de filmes que tematizam tensões entre aqui-lo que é visível e as correntes que entrecruzam o domínio do invisível, no que se traduz amiúde, ao nível do trabalho sobre a narrativa, numa exploração vigorosa das dimensões icónica e simbólica do cinema e das suas imagens. estes são filmes sobre o movimento, sobre o turbilhão da vida (como canta Jeanne moreau em Jules et Jim [Jules e Jim, 1962, François Truffaut]) e tam-bém o turbilhão do cinema, que versam sobre ausências e presenças deficitá-rias, quebras no circuito de referencialidade entre objectos representativos (imagens especulares, retratos, documentos escritos) e os referentes que aqueles, em princípio, duplicam, mas também as fronteiras e os trânsitos entre a matéria e os seres. estes são filmes que desenvolvem e oferecem novas configurações a legados romanescos particulares, que remontam a literaturas de há muitos séculos, mas que obtiveram nas tradições não realistas do século xix o seu apogeu: histórias de duplos, de fantasmas, de homens sem sombra ou reflexo, de criadores e criaturas, de metamorfoses, de sonhadores e dos seus sonhos sonhados ou vividos.

(15)

A divisão em três partes por mim oferecida deve ser entendida como uma proposta não final, que encerra em si a possibilidade da reorganização. este é um livro assente na arte da combinatória, que contém em si o mesmo e, neces-sariamente, a promessa de inúmeros outros ligeiramente distintos. isto pode verificar-se porque as obras seleccionadas, não obstante apresentarem uma acentuada diversidade cronológica, geográfica, e, em menor escala, genológica, integram uma mesma constelação de filmes que, situando-se na dobra que liga Lumière e méliès, visam a desestabilização dos próprios princípios ontológicos do cinema, problematização esta que eles encetam de forma mais ou menos subtil, num trabalho profundamente reflexivo, embora num primeiro olhar camuflado pela lógica aparentemente transparente da narrativa.

As três partes são: Transformação e reflexo; experiência e alucinação; Assombração e retorno. embora tentativa, a arrumação não é arbitrária, e responde a determinados núcleos de natureza temática. A primeira parte de-bruça-se essencialmente sobre narrativas que versam sobre a representação, entendida sobretudo – embora não em exclusivo – enquanto acting. Trata-se de um conjunto de filmes protagonizados por indivíduos que, voluntaria-mente ou não, se encontram na situação de interpretar papéis em vida, o que resulta – ao nível do pensamento proposto pelos filmes – na questionação de diversas noções fundamentais da teoria da arte, das quais as mais evidentes serão, porventura, as de aparência e essência. A segunda parte reúne um con-junto de filmes que encenam cenários em que o sonho contamina a realidade dos sonhadores, conduzindo invariavelmente a uma reconfiguração de am-bos os domínios, bem como dos próprios seres que sonham. A terceira parte, e dando continuidade à reflexão que iniciei a propósito de Sommarlek, é re-servada a filmes nos quais os mortos, auxiliados pelo dispositivo cinemato-gráfico, auferem alguma forma de presença no mundo dos vivos, ao mesmo tempo que os vivos, no decorrer do colóquio com as criaturas do outro mun-do, fenecem (Henry James terá sugerimun-do, a este respeito, que qualquer pessoa assombrada se torna, ela mesma, assombração).

(16)

No entendimento que faço dos filmes em análise, as ficções não dizem respeito apenas a si mesmas – aos seus mundos, às suas personagens, às suas estruturas diegéticas –, e não procuram somente efeitos de verosimilhança e de «suspensão da descrença». o gesto de «ler pelo plot» (peter brooks) aqui ence-tado contém sempre uma natureza dupla, assente na noção de que estas ficções dizem também respeito, e essencialmente, à própria natureza do cinema, um reino de sombras, como escrevia máximo Górki, mas também de ilusões, de sonhos e de realidades, de duplos miméticos, de défices e débitos ontológicos, de invisibilidades tornadas visíveis, de visibilidades tornadas invisíveis, de vida embalsamada e de morte em devir.

este não é, no entanto, um livro enquadrado no campo da teoria do cine-ma. As questões e os problemas teóricos serão sempre mantidos no horizonte do pensamento, muitas vezes activamente convocados, mas raras vezes apro-fundados, e em momento algum resolvidos. este também não se trata de um livro de crítica, uma vez que procuro aqui, sempre que possível, furtar-me à valoração, que pode resultar em ruído, numa espécie de estática, que me difi-culta a audição daquilo que os filmes desejam comunicar-me.

este é, fundamentalmente, um livro de análise, ou melhor – e tal como se lê em subtítulo –, de leituras de filmes. Assim, convoco um princípio epistemo-lógico de larga tradição – e que assume variadíssimas configurações e metodo-logias específicas (a nenhuma das quais me procuro filiar, com exclusividade, aqui), em André bazin, nos críticos do Cahiers du Cinéma, em marie-Claire ropars, Noël burch, raymond bellour, ou ainda em David bordwell, V.F. perkins ou Tom Conley, entre outros –, que obteve uma forma eloquente no título Não Vi o Livro, mas Li o Filme, um volume de ensaios organizado por mário Jorge Torres em 2008. No seguimento da ideia contida na segunda par-te desse título, o trabalho levado a cabo nespar-te Sobreimpressões visa proporcionar uma relação atenta, distanciada e interpretativa com um conjunto de filmes, resolvendo-se num exercício de descodificação que, através da produção de um discurso analítico e reflexivo, revele as obras enquanto objectos

(17)

cuidadosamen-te elaborados nas relações que estabelecem com uma noção lata (multiforme e porventura incoerente) de Cinema. No cumprimento deste desejo, este livro demarca-se de uma parte significativa dos estudos fílmicos desenvolvidos ac-tualmente tanto em contexto académico quanto cultural-popular, os quais, por princípio, escalpelizam o filme enquanto sintoma de elementos exteriores a ele, propondo a sua leitura diagramática em função de um conjunto de ideias, dis-cursos e formas que lhe são, em última instância, prévios e extrínsecos, e que tendencialmente redundam em generalizações aduncas.

Não descartando o potencial de tais abordagens e a sua pertinência en-quanto maneira actualizada e sociológica de ler, é também minha convicção que começa a tornar-se urgente voltar a ler o cinema em função das coordena-das de análise que ele mesmo nos oferece, isto é, dos elementos próprios com os quais se compõe e nos provoca, cativa, e, idealmente, inquieta e incomoda.

Desenvolver o trabalho de análise aproximada que aqui proponho pode servir o propósito de agudizar a nossa sensibilidade crítica para a própria maté-ria de que os filmes são feitos: montagem, planos, sequências, sons, etc. em suma, a minha proposta resume-se – através de uma abordagem que se poderia designar heurística – a escutar os filmes, procurar atender àquilo que eles nos dizem, atribuindo uma atenção especial à forma como nos dizem aquilo que dizem e também aquilo que calam. Depois desse primeiro estágio, é necessário encetar um diálogo, responder-lhes. os textos que resultam destes movimen-tos, e que poderão ser lidos ao longo dos capítulos seguintes, são uma tentativa de partilha deste colóquio, consistindo também num ensaio de diálogo com outras leituras possíveis, que cada leitor poderá desenvolver no confronto com os mesmos objectos. estas são as minhas sobreimpressões, fábulas construídas a partir de outras (rancière 2014: 14), que partilho com todos aqueles que, mais ou menos doentes de cinefilia, desejem acolhê-las.

este livro beneficiou da comunicação pontual ou prolongada com diver-sos interlocutores, cujas réplicas fantasmais não poderiam senão encontrar-se

(18)

nestas páginas. É justo partilhar este trabalho com Amândio reis, que genero-samente leu e comentou cada página, mas também com Fernando Guerreiro, mário Jorge Torres, Guillaume bourgois, Clara rowland, Luís mendonça, raquel morais, rita Novas miranda, André Dias, ricardo Vieira Lisboa, emí-lia pinto de Almeida, Ana bela morais e Susana Nascimento Duarte, impor-tando também agradecer a moirika reker a revisão e os seus comentários. Di-versos argumentos, ideias e reflexões que surgem nestas páginas foram primeiramente testados e desenvolvidos nas aulas da unidade curricular de Análise Fílmica que leccionei na Faculdade de Letras de Lisboa em 2018, ten-do ganhaten-do muito das discussões com os alunos, cujas disponibilidade e indis-ponibilidade para aceitar conteúdos programáticos extemporaneamente roma-nescos e espectrais agradeço.

(19)

Introdução (O Estranho Caso de Angélica)

Too long I roam in the night

I’m coming back to his side to put it right

Kate Bush em El Dorado – Cinema e Modernidade, Fernando Guerreiro caracteriza O Estranho Caso de Angélica como «a confissão estética» de manoel de oliveira e como «um filme sobre a História do cinema» (2015: 379, 385). Seguindo estas coordenadas, dir-se-ia que, enquanto «confissão estética», Angélica consis-te num filme-súmula que recupera e sisconsis-tematiza uma consconsis-telação consis-teórica desen-volvida por manoel de oliveira ao longo das várias décadas da sua actividade, ao mesmo tempo que formula uma reflexão sobre a história do cinema, em particular das suas primeiras décadas – o que é particularmente significativo, num cineasta que realiza este filme em 2010, mas que havia assinado a sua pri-meira obra, Douro, Faina Fluvial, em 1931, perfeitamente imbuído nas van-guardas europeias que o advento do sonoro então aplacava.

De tão essencializada, a situação narrativa de Angélica parece especialmen-te apta a leituras alegóricas, entre as quais a mais promissora será justamenespecialmen-te a do filme enquanto alegoria de cinema. Nas sequências iniciais, isaac é chamado a uma propriedade para fotografar o cadáver da recém-falecida Angélica. Du-rante o processo de focagem, a morta abre os olhos e sorri para o fotógrafo, e, a partir desse momento, ele passa a ser visitado pelo fantasma da falecida, até morrer e se juntar a ela num outro plano da existência.

Já neste momento inicial, a estranheza do caso de Angélica consiste em ela adquirir vida no momento em que é olhada através da objectiva de uma

(20)

câma-ra. em primeiro lugar, ao nível da reflexão teórica proposta pelo filme, este acontecimento é fulcral porque sugere, desde logo, que o dispositivo fotográfi-co de captação de imagens possui a faculdade de – numa espécie de necroman-cia – atribuir vida àquilo que não a tem. por outro lado, e ligado com esse as-pecto, esta sequência é também central ao nível da interpretação do filme, que pode seguir dois caminhos: ou a vida de Angélica é uma alucinação do fotógra-fo, e, por conseguinte, o filme limita-se a assimilar a percepção alucinatória de isaac no seu próprio regime de imagem, dando a ver o que ele vê, ou, pelo contrário, Angélica pode ser considerada efectivamente uma criatura que, per-tencente ao domínio do sobrenatural, irrompe no domínio do natural, sobre-naturalizando-o.

procurar responder a esta questão pode ser em última instância inconse-quente, mas é útil identificá-la porque permite-nos perceber que os problemas que as duas perspectivas levantam são ligeiramente distintos. Ambos os cenários divergem na caracterização que propõem do real: se o fantasma é alucinação, a realidade não é sobrenatural em si, mas o filme é tornado fantástico pela afinida-de perceptiva estabelecida com o protagonista alucinado; se o espectro existe, porém, o filme propõe uma configuração do real como algo em que matéria e fantasma tomam igualmente parte. Comum a ambas estas abordagens – uma mais hermenêutica, a outra mais ontológica – é o facto de ambas serem obrigadas a lidar com a inegável dimensão espectral do filme. interessa-me adoptar aqui a segunda perspectiva, porque ela reconhece no filme um esbatimento da hierar-quização de níveis de real distintos, indo ao encontro de uma compreensão da realidade enquanto algo fundamentalmente mutável e compósito. Tal concep-ção abre a porta para o questionamento da instabilidade ontológica da imagem de cinema que é inevitavelmente formulada no filme de oliveira.

No contexto desta linha de reflexão sobre as imagens, Angélica inscreve-se na história da teoria de cinema logo num dos seus primeiros planos, ao ler-se «foto genia» na entrada de uma loja de material fotográfico. o nome do esta-belecimento reenvia para o conceito de photogénie, que Jean epstein

(21)

desenvol-veu a partir de Louis Delluc na década de 1920, e este reencaminhamento para a primeira Vanguarda Francesa potencia uma análise dialogante que pode ilu-minar a obra de oliveira.

É num filme de epstein que uma situação análoga à de Angélica serve para formular uma reflexão contundente sobre cinema. Na primeira parte de La Chute de la maison Usher (A Queda da Casa de Usher, 1928), um homem pinta um retrato da sua esposa, que vai definhando progressivamente até ao momen-to em que ele termina o retramomen-to e ela morre. Na segunda parte do filme, assiste--se ao regresso da esposa falecida para junto do marido no mundo dos vivos. esta vizinhança é aliás anunciada ao nível da figuração, uma vez que o plano em que isaac foca o rosto de Angélica parece remeter para o momento em que Usher está a terminar o retrato da sua esposa madeline. em ambos os planos – que são centrais em cada filme –, um efeito de sobreimpressão dá conta, sim-bolicamente, da problemática condição destes seres, situados na dobra em que se encontram os planos da morte e da vida. Nos dois casos, o acto de represen-tação (fotográfico e pictórico) surte efeitos nos referentes reais: em epstein, pintar a mulher equivale a matá-la; em oliveira, por seu turno, fotografar a mulher morta equivale a dar-lhe vida (de acordo com os dois caminhos antes expostos, isto acontece seja ela «alucinada» ou «real», uma vez que também a experiência da alucinação é inegavelmente real).

Neste contexto, é importante compreender que, em ambos os casos, as si-tuações de pintura e de fotografia tornam evidentes as problemáticas relações entre representação, vida e morte. São esses tópicos – temáticos e teóricos – que

(22)

ambos os filmes trabalham, convocando também o tópico do amor para concre-tizar narrativamente esses problemas, atribuindo-lhes uma forma romanesca.

Com efeito, o filme de oliveira pode ser entendido como uma síntese do pensamento que epstein desenvolve em Usher, explorando o «nervosismo» do mundo (a expressão é de epstein [1921: 43-44]) que teria reflexo na própria natureza (instável e espectral) do cinema. Também Angélica pode ser entendi-do como um filme sobre a potencialidade dupla entendi-do cinema de funcionar como uma arte do real e/ou do irreal. para consubstanciar esta ideia, é pertinente notar que, para além de retomar as vanguardas da década de 1920, oliveira recupera também os primeiros filmes da história do cinema. Numa entrevista cedida por altura da estreia de Angélica, o cineasta reconheceu mesmo que «[t]odo o cinema ficou inventado de entrada: Lumière deu o realismo, méliès a fantasia […] está tudo lá, não há mais nada» (oliveira 2011).

É importante notar que esta afirmação dá conta de que, para oliveira, o ci-nema se define essencialmente pela sua relação com o real. e, nessa relação com o real, dois grandes modos são propostos pelas duas linhas inicialmente desenvol-vidas pelos irmãos Lumière e por méliès. os primeiros conceberam uma utiliza-ção do cinematógrafo como meio de registar a realidade tal qual ela se nos apre-senta ao olhar, o que torna o cinema, no prolongamento da fotografia, uma forma de documentar indicialmente o real visível. No entanto, como notou máximo Górki ainda em 1896, as imagens de cinema não consistem em duplos icónicos perfeitos da realidade visível, possuindo, pelo contrário, um carácter per-turbador resultante de um irredutível défice ontológico em relação ao mundo, que transforma as imagens de cinema em coisas fantasmáticas e o mundo repre-sentado num «reino de sombras» (Gorki 2008), denunciando assim o realismo cinematográfico como algo à partida verdadeiramente problemático.

méliès, por seu lado, descobriu no cinema a possibilidade de, não obstante a natureza fotográfica das suas imagens, se furtar à representação fiel do mun-do. ele apercebeu-se de que, por meio do manuseio da técnica, um filme pode dar a ver uma realidade pervertida, sem paralelo directo no mundo real,

(23)

abrin-do a porta ao onirismo, ao imaginário, e, em certa medida – porque visibiliza coisas que de outro modo não são passíveis de serem vistas –, ao invisível.

invocando a célebre metáfora do cinema como espelho, dir-se-ia que os Lumière exploram o cinematógrafo como um espelho que duplica mimetica-mente o real visível, e que méliès, por seu turno, conceptualiza o cinema como um «espelho mágico», como algo que mantém uma relação aparentemente icónica e certamente indicial com o mundo visível – pois é refém da sua onto-logia fotográfica –, mas que não devolve a sua cópia exacta, e antes um reflexo adulterado.

Se até agora tenho levantado alguns problemas de definição do cinema enquanto meio de representação, ao mesmo tempo que contextualizo o filme de oliveira numa história tanto do cinema como do próprio pensamento sobre cinema, parece-me pertinente recordar agora uma curta sequência do filme, passando depois a considerar, a partir de alguns aspectos, de que modo esses problemas reverberam nela e, por efeito sinedóquico, também no filme.

Ao nível do discurso sobre a imagem, toda a sequência é significativa. ela começa com isaac a acordar, e quando o vemos reflectido no espelho disposto em frente da sua cama podemos pensar estar a vê-lo de forma não mediada, quando, na verdade, vemos o seu reflexo. Com uma grande economia, oliveira lembra--nos de que aquilo que percepcionamos como real pode, afinal, não o ser.

No prolongamento da cena, depois de o corpo de ricardo Trêpa surgir em campo e revelar simbolicamente – através do desdobramento das imagens – que o estatuto do seu corpo é talvez tão incerto quanto o do corpo de Angélica, surge o espectro desta. o espectador está então perante dois corpos de natureza diferente: o corpo «fotográfico» e o corpo «sobreimpresso», reminiscente da fotografia espí-rita do século xix, o que seria análogo a dizer, na esteira da dicotomia proposta por oliveira, algo como «um corpo Lumière e um corpo Méliès». Tal como na segunda parte de La Chute de la maison Usher, estamos aqui perante distintos níveis de realidade a ombrearem e a criarem um tertium quid ontológico que é, em última análise, a coalescência entre as concepções lumièriana e mélièsiana que constitui,

(24)

como afirmou oliveira em entrevista, o todo do cinema («não há mais nada»).

No entanto, o as-pecto fundamental desta sequência nasce da arti-culação entre esta pri-meira figuração simbólica do cinema enquanto confluência de dois tipos de realidades com a posterior definição desta sequência como um sonho. Após vários planos em que isaac se junta a Angélica e sobrevoa a terra, ele acorda e apercebe-se de que estivera a sonhar; isto é, que a sequência a que assistíramos fora um sonho. então, reportando-se num monólogo à experiência desse so-nho, refere-se a uma «estranha realidade» que se assemelha a uma «alucinação», e que é «tão presente como o agora». e acrescenta: «será [esta estranha realida-de] um penetrar no espaço do absoluto de que tanto ouvi falar? e que se desfaz como fumo de cigarro?» ora, esta descrição do sonho é, na verdade, uma mui-to justa descrição de cinema: um meio de representação que – como lembram André bazin (1991), barthes (1980) ou Laura mulvey (2009) – mantém parte da realidade da cena representada, mas que, não coincidindo perfeitamente com esta, se torna excêntrico ou, nas palavras de isaac, «estranho».

A acrescer, e pelo menos desde Caligari em 1919, a experiência da visualiza-ção de um filme pode ser aproximada dos domínios da alucinavisualiza-ção e do sonho, algo que os surrealistas desenvolveriam nas décadas de 1920 e 1930. Também a dimensão de presente («tão presente como o agora») é discutida por certos teóri-cos (cf. martin 2015: 25-26), que, em vez de ligarem o cinema ao «ça-à-été» barthesiano, o conceptualizam como uma arte do eterno instante da sua visuali-zação, aproximando-o assim, consciente ou inadvertidamente, da concepção da experiência cinematográfica como análoga à experiência onírica do sonho e da alucinação a que me referi. Também a equivalência que isaac estabelece entre o

(25)

sonho(-cinema) e o fumo de cigarro torna evidente a problemática condição material das imagens fílmicas, uma vez que a imagem final se concretiza através de uma sobreposição de diferentes matérias: o mundo físico, a imagem do mun-do impresso na película, a dispersão das figuras na luz e consequente concretiza-ção volátil na tela, a imagem percepcionada e, por fim, uma imagem mental (algo da ordem da «imagem-folhada» de Fernando Guerreiro [2017: 28]). Finalmente, a ideia de isaac de que o sonho-cinema é um «penetrar no espaço do absoluto» liga-se justamente à ideia de epstein e de outros pensadores do cinema, entre os quais bela bálàzs ou Dziga Vertov, de que o cinema não se limita a dar a ver o visível, mas possui a faculdade de revelar o invisível no visível (Turvey 2008), algo que Guillaume bourgois identifica como uma das características fulcrais da teoria e da prática do próprio oliveira (bourgois 2013: 54).

este sonho dentro do filme pode representar, assim, a condição e a situa-ção do cinema. e nesse sonho/nesse cinema, real e irreal, Lumière e méliès, isaac e Angélica, fundem-se num só.

o filme parece caminhar para esta congregação, até que, no fim, isaac morre para se juntar a Angélica. Sugeri antes que o caso estranho de Angélica corresponde, em suma, ao estranho caso do cinema: isto é, que a difícil condi-ção de Angélica – entre vida e morte, fixidez e movimento, visível e invisível, matéria e «não-matéria», verosímil e fantástico – pode ser entendida como símbolo da natureza instável do cinema. Noutros termos, ela seria o sonho (o cinema) que irrompe na realidade de isaac, desestabilizando-a na raiz; e no fim, isaac teria de morrer para se lhe juntar, passando a partilhar da sua ontologia, isto é, tornando-se também fantasma/cinema. mas esta sugestão poderia levar--nos a tomar Angélica como méliès, e fazer equivaler méliès a todo o cinema. e no entanto, aquilo para que a sequência do sonho, no seu carácter alegórico, aponta é o facto de o cinema se fazer da conjugação de dois tipos de corpos, o Lumière e o Méliès, sem que nenhum seja inteiramente realista ou onírico, mas necessariamente contaminado pelo outro. oliveira concretiza a ideia de edgar morin de que o cinema é um «3.º ontológico incerto» (1980).

(26)

Assim, enquanto «confissão estética» que recorre à «História do cinema» (para recuperar as palavras de Guerreiro), dir-se-ia que, contrariando uma vi-são evolucionista da arte cinematográfica, oliveira retorna – com esta narrativa sobre amor e morte – ao início da história do cinema para nos mostrar que as questões fundamentais desta arte permanecem por resolver.

Na verdade, o filme de oliveira parece entroncar numa longa e heterogé-nea linhagem de filmes que, através das suas narrativas sobre amor e morte, procuraram responder a algumas destas questões fundamentais. Analisando alguns destes filmes e ponderando sobre algumas destas questões, este livro visa contribuir para o seu não esclarecimento.

(27)

L’air de famille des visages de la chambre était un fait. Le type qu’il poursuivait, il le poursuivait obscurément.

(28)
(29)

parte i

(30)
(31)

ser ou não ser (The Talented Mr. Ripley)

identifying himself as Thomas phelps ripley was going to be one of the saddest things he had ever done in his life.

Patricia Highsmith, The Talented Mr. Ripley

o erro de Jude Law

Quando um entrevistador pediu a Jude Law que caracterizasse a persona-gem que interpretava em The Talented Mr. Ripley (O Talentoso Mr. Ripley, 1999), de Anthony minghella, o actor recorreu a palavras proferidas pela pró-pria personagem, explicando que estas podiam fornecer uma imagem mais justa de Dickie Greenleaf do que qualquer descrição sua: «o meu pai constrói barcos. eu velejo.» Ao evocar esta fala, Jude Law pretendia sublinhar diversas ideias-chave para a compreensão do seu papel: Dickie pertence a uma família privilegiada (Greenleaf é o nome da empresa de embarcações), é um homem insubordinado e literalmente um enfant terrible (ao invés de seguir o caminho do pai, construindo barcos, subverte esse caminho, velejando-os), e é um dile-tante e um bon vivant (o seu hobbie é velejar, luxuosamente, num mar onde não há caminhos inscritos, e rumo a lugar nenhum).

Na sequência inicial do filme, o pai de Dickie trava conhecimento com o pianista Thomas ripley num evento em Nova iorque. Ao aperceber-se de que o pianista veste um casaco de princeton – a universidade que o seu filho fre-quentou –, pergunta-lhe se algum dia se cruzou com Dickie na universidade. ripley não estudou em princeton (saberemos que lá trabalhou, mas como

(32)

afi-nador de pianos), e na verdade tomou o casaco por empréstimo de um amigo que não pudera tocar piano naquele dia devido a uma lesão; mas ele mente, respondendo afirmativamente, e dizendo ter privado com Dickie em prince-ton. o pai conta que, no momento presente, o filho leva uma vida desnorteada numa pequena vila no sul de itália, e pede a ripley que lá se dirija com o objec-tivo de persuadir Dickie a regressar aos estados Unidos. No caso de ele ser bem-sucedido no cumprimento dessa missão, receberá uma recompensa de mil dólares. ripley, que tenta compensar as suas dificuldades económicas com di-versos empregos e biscates, e que ainda para mais abomina viver em Nova ior-que, detecta nesta proposta a auspiciosa oportunidade de cumprir o sonho partilhado por qualquer americano culto (ripley é pobre, mas tem um gosto primoroso) da década de 1950: visitar a europa.

Ao chegar ao porto de roma, ripley conhece casualmente meredith Lo-gue, uma mulher jovem, bela e rica. beneficiando do facto de estar num lugar onde ninguém o conhece, o protagonista, que despreza a sua condição de Ripley e tudo o que ela traz consigo, apresenta-se a meredith como Dickie Greenleaf. porém, ela pergunta-lhe: «os Greenleaf dos barcos?» inocente e profundamen-te desconhecedor da sociedade e do mundo, Tom não imaginaria que a família Greenleaf fosse reconhecida do outro lado do Atlântico. No entanto, uma vez assumido o disfarce, ele é obrigado a levá-lo às últimas consequências, e pro-longa a mentira. meredith pergunta-lhe por que razão ele, ao sair do navio, le-vantou a sua bagagem na letra r (de ripley, sabemos nós), em vez de fazê-lo na letra G (de Greenleaf, o nome pelo qual ele acaba de se apresentar a ela), ao que ripley responde estar a viajar sob um nome falso como forma de fugir ao pai opressor. ele diz: «o meu pai quer-me em Nova iorque. ele constrói barcos, mas eu prefiro velejar.»

Atingimos assim o momento em que «Dickie Greenleaf» diz as palavras que Jude Law cita na entrevista a que me reportei acima. No entanto, o Dickie que as diz não é exactamente a personagem interpretada por Jude Law, mas um outro Dickie interpretado por Tom ripley (matt Damon) no interior da ficção.

(33)

o especial interesse do lapso de Jude Law reside no seu reenvio involuntário para o motivo central de The Talented Mr. Ripley, muitas vezes apropriada-mente referido pela crítica: a identidade. Ao atribuir à sua personagem uma fala que pertence a outra personagem (num momento em que esta outra está também a interpretar o papel da sua), Jude Law sucumbe à confusão de identi-dades em torno da qual a narrativa se desenha, e concretiza-a simbolicamente.

pelos olhos de Tom ripley

o aspecto mais curioso do lapso de Jude Law é que, não obstante o erro na atribuição da origem daquela fala, a descrição que ele oferece de Dickie é efecti-vamente adequada à sua personagem – é, aliás, por esta razão que o actor se es-quece de não ter sido ele a dizer aquelas palavras. esta espécie de anamorfose afi-gura-se intrigante, se atentarmos no facto de estas palavras surgirem no filme através da boca de um falso Dickie Greenleaf que descreve um homem por quem se faz passar, num momento em que ainda não o conheceu sequer. Com efeito, a personagem interpretada por Jude Law corresponderá à personagem que Tom ripley inventa nesta cena. Dickie Greenleaf torna-se, assim, uma personagem que, na lógica de significação do filme, surge desde logo contaminada pela inven-ção de ripley. É uma personagem impura, um fantasma invocado, primeiro pelo pai, depois por ripley, e que assombrará efectivamente todas as personagens não só até ao final, como também, veremos adiante, para além dele.

À maneira do melhor cinema clássico, tudo o que da ordem do teórico ou do conceptual se pode articular a propósito do filme de minghella tem uma concreti-zação material nos planos imagético e sonoro do filme. para consubstanciar a ideia que acabo de esboçar, torna-se relevante atentar no primeiro plano em que Dickie Greenleaf aparece em campo. Tom ripley está finalmente em mongibello, uma vila ficcional no sul de itália, e, olhando pelos binóculos, vê pela primeira vez Dic-kie. Treinando o italiano com o auxílio de um guia de língua, diz: «questa è la

(34)

faccia di Dickie», e o espectador vê tam-bém o rosto de Dic-kie emoldurado por uma íris que simula o efeito dos binócu-los e assinala a sub-jectividade do pla-no. Depois de dizer «questa è la faccia di Dickie», no entanto, ripley diz «questo è la mia faccia».

Se ao nível da verosimilhança narrativa a personagem está apenas a treinar o domínio da língua italiana, ao nível simbólico aquilo que ela está a fazer – ao sobrepor, ao nível do discurso, o rosto de Dickie e o seu rosto – é prenunciar, desde logo, e sobre um plano subjectivo em que se vê o rosto do outro, a con-fusão de identidades entre ambos, que o filme tratará de desenvolver na sua segunda metade. Contudo, minghella deixa aqui um elemento subtil, que deve também ser considerado, e que anuncia, desde logo, que a lógica de correspon-dência entre ripley e Dickie nunca será perfeita, porque haverá sempre uma pedra na engrenagem. Após dizer «questo è la mia faccia», ripley vai confirmar no guia de língua se o que disse estava correcto, e apercebe-se de que não esta-va. ele corrige, então: «questa è la mia faccia.» este é um jogo muito caracterís-tico daqueles realizados por minghella neste filme: uma mesma sequência contém, por vezes, elementos necessários para poder significar uma coisa e também o seu reverso. Aqui, o erro sintáctico funciona assim como uma mina no processo de identificação que se estabelece nesse momento. em suma, a agramaticalidade diz-nos que, contrariamente ao que parece estar a ser dito, o rosto de Dickie não é inteiramente o rosto de ripley…

referi que, através do plano subjectivo, vemos verdadeiramente Dickie pelos olhos de Tom. mas cedo percebemos que talvez tudo neste filme seja visto através dos olhos de ripley. minghella afirmou mesmo, num comentário

(35)

áudio incluído numa edição em DVD do filme, que, tal como patricia Highsmith escreveu o romance como se este estivesse a ser escrito por ripley, o cineasta concebeu as imagens do filme como se elas tivessem sido filmadas pelo protagonista. Tal como em Summertime (Loucura em Veneza, 1955), de David Lean, ou Three Coins in the Fountain (A Fonte dos Amores, 1954), de Jean Neg-ulesco, ambos filmes dos anos 50, a década em que se desenrola a acção de The Talented Mr. Ripley (do mesmo género, refira-se ainda o filme de Delmer Daves, Rome Adventure [Viver é o que Importa, 1962], aliás referenciado visual-mente no filme de minghella), itália é filmada de acordo com a estética do cartão postal. Contrariamente ao que testemunhamos nas imagens de Nova iorque das primeiras sequências, as cores de itália são quentes, cheias, e a super-fície das coisas possui uma qualidade quase háptica. Contrariamente à América achatada e depressiva de ripley, a europa revela-se um lugar tridimensional, construído em profundidade, de aparência pulsante, mas também, por isso mesmo, potencialmente mais perigoso, com algo de labiríntico e, ainda, no seu realismo encantatório e vertiginoso, de cinematográfico. o espectador vê itália, fundamentalmente, tal como ela é vista por Tom ripley, mas, ao contrário do espectador, ripley não só vê itália, como a experiencia, e ao experienciar uma itália que percepciona à semelhança de um cartão postal (tal como Helen ban-ning, em Interlude [Os Amantes de Salzburgo, 1957], de Douglas Sirk, analisa-do à frente), como um espaço analisa-do analisa-domínio analisa-do imaginário, analisa-do onírico, enfim, do cinema, ele está a viver o sonho, a viver o seu filme e, como consequência, a exercer plenamente a sua função de personagem – o que, veremos em seguida, se relaciona justamente com o «talento» de ripley a que se alude no título do livro e do filme.

Tal como nos filmes de Lean, Negulesco, Daves, ou Sirk, aqui o tema do fascínio dos americanos pela europa articula-se perfeitamente com questões da ordem do formal e mesmo do teórico. mas esta dialéctica chega ao filme de minghella, também (e porventura principalmente), por via da literatura. Na obra de patricia Highsmith menciona-se duas vezes Henry James, um autor

(36)

paradigmático na abordagem da relação dos americanos com a europa, e refe-re-se particularmente The Ambassadors, romance em que Lewis Strether é per-suadido pela sua prometida a dirigir-se à europa para resgatar o filho desta do clima de perversão e libertinagem em que ele vive. o modelo para a intriga de The Talented Mr. Ripley torna-se, assim, evidente.

Contudo, o que o tema da deslocação geográfica põe aqui em relevo é, tal como em várias das obras de James, a estranha descoincidência entre os seres hu-manos e o quadro espácio-temporal em que eles se percebem como, justamente, personagens, ou, por outras palavras, entre a realidade mental e a realidade física, contingente, do mundo. minghella refere James como uma influência decisiva na construção do filme; podemos adivinhar que essa influência não é só temática (como o fora essencialmente para Highsmith), como se verifica mesmo ao nível da forma, manifestando-se no jogo complexo entre as figuras humanas e os espaços em que habitam e as situações que experienciam. este jogo motiva algumas expe-riências formais relevantes, com questões de percepção e de focalização, de que é um exemplo particularmente eloquente o plano dos binóculos a que aludi. De James, mais do que de Highsmith, minghella toma o interesse pela psicologia das personagens e a capacidade de as explorar menos através da explicitação do que da sugestão. isto permite-lhe, por ínvios caminhos, ancorar o filme numa certa tradi-ção do melodrama cinematográfico, em que o verdadeiro sentido das coisas se atinge essencialmente através de processos do domínio do simbólico.

Talentoso homem sem qualidades

pouco depois de conhecer ripley, Dickie pergunta-lhe se ele tem algum talento. «Falsificar assinaturas, mentir, imitar praticamente toda a gente» é a resposta. Dickie adverte ripley de que ninguém deveria ter mais do que um talento. No romance de Highsmith, porém, a lista é ainda mais extensa:

(37)

Consigo fazer uma série de coisas – posso trabalhar como camareiro, babysitter, contabilista – tenho um lamentável talento para números [an unfortunate talent for figures]. Não importa quão bêbedo posso estar, apercebo-me sempre quando um empregado de mesa tenta enganar-me na conta. Consigo forjar uma assinatura, pilotar um helicóptero, jogar aos dados, imitar praticamente qualquer pessoa, cozinhar – e fazer um one-man show num clube nocturno, no caso de o humoris-ta habitual adoecer. (49, ênfase minha)

e contudo, tanto no filme como no livro, ripley é muitas vezes caracteriza-do como um homem sem qualidades. No filme, aliás, este diálogo tem lugar imediatamente depois de ripley revelar não saber preparar um martini, na pri-meira de uma série de sequências em que cresce o número de tarefas que o talen-toso protagonista não sabe ou não consegue realizar. o livro e o filme reiteram que o único verdadeiro talento de ripley é «for figures», isto é, para a representa-ção, e que poucas coisas que escapem a esse domínio estão ao seu pleno alcance.

Noutro capítulo deste livro, atentarei num passo de A Double Life (Abraço Mortal, 1947), de George Cukor, em que o protagonista se define como um «ac-tor real». o desenvolvimento do filme (a identidade precária deste homem subsu-me-se na personagem de otelo que ele interpreta na broadway, e, tal como a criação de Shakespeare, ele acaba por sentir ciúmes, por matar e por morrer, den-tro e fora do palco) demonstra que estas palavras não significam realmente que este homem é um actor de profissão; significam antes, num segundo nível de sentido, que a sua realidade é ser actor, ou seja, que a representação é a sua única realidade. o filme de Cukor acaba assim por documentar o triunfo da representa-ção sobre uma realidade prévia e autónoma através da instalarepresenta-ção de um regime de promiscuidade total entre elas. encontram-se semelhanças entre esta personagem de Cukor e Tom ripley, na medida em que o último, se não entrar no domínio da representação (da «impersonation»), não tem nenhum talento através do qual se possa realizar enquanto ser humano. esta vocação para a inexistência, ou para uma existência enquanto unicamente persona ou máscara, é contemplada no

(38)

romance de Highsmith quando, depois de ripley assassinar Dickie e assu-mir a sua identidade, se diz que era «estranha-mente fácil esquecer o timbre exacto da voz de Tom ripley» (106), ou ainda noutro passo em que se avança a ideia de que ripley é «apenas um nada» (107). No filme, Tom descreve Dickie, já depois da morte deste, como alguém que «tem diversas realidades, e que acredita em todas elas». Tendo em conta o registo da duplicidade que, por esta altura, o filme já instalou em definitivo, tor-na-se evidente que aquele que Tom descreve não é Dickie, mas ele mesmo.

o título The Talented Mr. Ripley aponta justamente para o único meio atra-vés do qual esta personagem pode existir no mundo: empregando os seus talen-tos, que consistem somente em «figures», isto é, em ser quaisquer outros que não ele mesmo. o aspecto fulcral é que ripley objectiva a situação aparentemente incompatível de ser em simultâneo um «homem sem qualidades» e um «homem talentoso». ele não tem qualidade alguma para além de um único talento que, não obstante a utilidade prática de lhe permitir «get away with murder», o senten-cia a uma espécie de não existênsenten-cia na primeira pessoa, porque o condena a ou-trar-se perpetuamente. Talvez ainda mais do que Highsmith, minghella foi sen-sível à profunda incongruência existencial de ripley.

No romance de Highsmith, esta espécie de vazio ontológico da personagem está na base de um certo niilismo, de uma amoralidade ou de um esvaziamento ético, que provocam um efeito de leitura particular. Trabalhando o distanciamen-to, a autora parece limitar ao leitor o espaço para sentir empatia por aquele mundo e por aquelas personagens. Foi esta mesma a aproximação de rené Clément na adaptação que realizou em 1960, Plein soleil, em que Alain Delon desenha o seu ripley como uma espécie de máquina – um homem frio, calculista, cerebral; um

(39)

sociopata, no fundo. por seu turno, o filme de minghella explora a via de uma psicologia estetizada, mas não absolutamente reduzida a binómios simples, e em última instância próxima do âmbito do melodrama, tanto ao nível dos temas (a imitação da vida, problemas de classe, relações familiares, amores não correspon-didos, sofrimento e sacrifício) como, em particular – e aflorei brevemente este as-pecto aqui –, ao nível do tratamento formal e estético desses temas.

Homem desconhecido

Na concepção do filme enquanto melodrama identitário, o trabalho ope-rado sobre a homossexualidade de ripley é essencial, e por razões que não são evidentes. o tópico da homossexualidade já era veiculado no romance de Highsmith. Depois de Dickie surpreender ripley no seu quarto a olhar-se ao espelho envergando as suas roupas, a suspeita da homossexualidade de Tom é brevemente discutida, chegando-se, no entanto, à confortável deliberação de que, no fim de contas, ele não é homossexual. Noutros passos da narrativa, duas personagens secundárias, marge e Freddie, explicitam também a sua des-confiança em relação à sexualidade do estranho amigo. No entanto, Tom afir-ma em diversos momentos que não é homossexual. esta negação, porém, não obsta a que, num romance narrado na terceira pessoa, mas claramente focaliza-do em ripley, os homens sejam qualificafocaliza-dos como «atraentes» (120) ou «boni-tos» (138). Nem impede que, por exemplo, depois de ver Dickie e marge a beijarem-se ao longe, Tom ripley tenha uma crise de ciúmes e alucine matar marge como se ele fosse Dickie, dizendo: «sabes porque tive de fazer isto […] estavas a interferir, colocando-te entre Tom e eu» (68).

Jamesianamente, nunca se clarifica a razão do fascínio de Tom ripley por Dickie no romance. A aspiração de classe e o apelo de um modo de vida livre e requintado, que são certamente factores significativos, não o explicam inteira-mente. A paixão de ripley por aquele homem é indubitável, mas os seus

(40)

con-tornos não são explicitados, e os equívocos em torno da identidade sexual de ripley favorecem uma interpretação que encontre na sua psicopatia uma con-sequência da homossexualidade reprimida.

Anthony minghella comentou em entrevista que, no seu filme, a psicopa-tia de ripley é independente da sua homossexualidade, e de forma alguma uma consequência desta (minghella 2013: 60-61). o filme evidencia a homosse-xualidade de ripley desde muito cedo, numa cena de sedução em que este propõe a Dickie partilharem a banheira. Num outro momento, posterior e paradigmático, ripley acusa o amigo de não assumir que o deseja também imediatamente antes do confronto físico que terminará na morte de Dickie. Após o homicídio (que, deve dizer-se, é, em minghella, na verdade um aciden-te e não um assassínio deliberado), um top shot dá a ver os dois homens, abra-çados e ensanguentados, como se pudessem ter-se finalmente reunido na mor-te, tal como romeu e Julieta ou Tristão e isolda – num momento em que Dickie está efectivamente morto mas o outro não, o que nos diz, portanto, que é ripley o responsável pela encenação desta cena alegórica que, para além de aludir às referidas narrativas paradigmáticas sobre amor e morte, tem também, significativamente, algo de languidez pós-coital.

Na parte final do filme, ripley desenvolve um relacionamento amoroso com peter Smith-Kingsley, num passo em que minghella torna efectiva uma sugestão aparentemente anódina contida no romance, na qual peter (aí uma personagem terciária) convida Tom para passar uns dias na sua casa na irlanda.

No filme, é esta personagem secundária que materializa a pulsão melodra-mática da narrativa. No relacionamento com Dickie, Tom ripley – o actor real – fora vítima de (con)fusão dos amantes, em que o desejo de possuir o outro intersecta, em termos dificilmente apreensíveis, o desejo de ser o outro. Com peter, ele aprende as lições (melodramáticas, é claro) do amor e da abnegação. ele adquire, em suma, uma nova humanidade – e note-se que este potencial salvífico do amor homossexual opõe-se completamente ao tratamento da se-xualidade no romance, se valorizarmos a ideia de que em Highsmith a

(41)

psicopa-tia de ripley parece poder ser um efeito da sua homossexualidade. em min-ghella, peter Smith-Kinglsey encarna a estabilidade, a possibilidade de fuga ao domínio da representação e da entrega à verdade nua dos afectos. em suma, ele exprime a possibilidade de um happy ending em que ser Ripley é para Tom uma condição desejável.

No final do filme, após conseguir – através da aplicação do seu talento para o engano – ilibar-se da culpa de todos os crimes que somou, Tom ripley viaja com o seu companheiro num navio em direcção à Grécia. encarando o céu e o mar, o casal abraça-se. Tom pergunta: «sabes o que gostaria de mudar neste mo-mento?», apressando-se a responder ele mesmo: «nada». estas linhas de diálogo de aparência perigosamente esvaziada e novelesca são, na verdade, centrais na economia dramática do filme, pois marcam o primeiro momento em que Tom não deseja alterar a realidade que está a viver enquanto Tom Ripley. Ao contrário do que sucede no romance, em cujo final ripley perversa e orgulhosamente assu-me «a sua liberdade e a de Dickie combinadas» (258), aqui insinua-se a possibili-dade de um cenário futuro em que ripley poderá viver liberto da assombração de Dickie, e disponível para ser, inteiramente, apenas ele mesmo.

Contudo, este cenário não se realiza porque, no mesmo navio, ripley reen-contra a meredith Logue que conhecera na viagem para itália, para a qual ele não é Tom, mas sim Dickie. Não podendo eliminá-la, uma vez que ela está acompa-nhada por outras pessoas que também o conhecem enquanto Dickie, ripley vê--se obrigado a assassinar o único homem que ama, e que o ama de volta como quem ele é realmente (meredith também o ama, mas como Dickie Greenleaf – o que denuncia um parentesco entre ela e Scottie Ferguson, de Vertigo, em análise à frente), para poder continuar a perpetuar a teia de mentiras em que se enredou, ou melhor, para poder continuar a viver usando os seus talentos, ou melhor ainda (e em termos adequadamente jamesianos), para poder continuar a viver a vida não vivida que o seu «unfortunate talent» lhe destinou.

Antes de matar peter, ripley diz-lhe – estando, na verdade, a falar consigo mesmo – que permanecerá sozinho e que jamais será encontrado. Diz-lhe

(42)

ain-da a frase que, segundo minghella, é o emblema deste filme, e que, quanto a mim, compreende o essencial da sua força melodramática (e que, com outro tratamento, poderia ser trágica): «sempre pensei que seria melhor ser um falso alguém do que um verdadeiro ninguém» [I always thought it’d be better to be a fake somebody than a real nobody]. perplexo, peter responde a única coisa que se pode responder a alguém que se ama: «tu não és um ninguém», e, enquanto enumera as qualidades de Tom ripley na terceira pessoa («Tom é talentoso, Tom é carinhoso, Tom é belo…» [fina ironia esta de Tom ser pela primeira vez caracterizado na positiva, no preciso momento em que é condenado a voltar a assumir o papel de Dickie Greenleaf, sentenciando-se a não mais poder existir na primeira pessoa]), é asfixiado por ele. Sugere-se que, com peter, morrem todas essas qualidades de ripley que não têm relação com o seu «talent for figu-res», e, consequentemente, com peter morre a possibilidade de ripley poder desvincular-se do seu lamentável talento para se outrar. Tanto no enquadra-mento noir do livro como no enquadraenquadra-mento melodramático do filme, Tom ripley está condenado a ser um cavelliano (1996) «homem desconhecido».

(43)

monstros (A Woman’s Face)

o jovem sorriu, mostrando dentes brilhantes. Do bolso da camisa, tirou a fotografia de Hatsue e estendeu-a à namorada. Hatsue tocou ao de leve no retrato e tornou a entregar-lho. o orgu-lho reluzia no seu olhar. pensava que fora a foto que protegera Shinji. mas, neste momento, o rapaz ergueu as sobrancelhas. Sabia que fora a sua força que lhe permitira levar a melhor sobre o perigo naquela noite memorável.

Yukio Mishima, O Tumulto das Ondas

Joan Crawford

A aproximação entre Joan Crawford e a ideia de monstro não soará demasia-do descabida a quem estiver familiarizademasia-do com o trabalho desta actriz norte--americana, e a relativa facilidade com que se pode aceitar esta associação terá duas origens de ordem distinta. em primeiro lugar, o trabalho que Crawford desenvolveu na fase final da sua vida, no seio de um cinema de série b, pseudo--gore, cujo título mais paradigmático é certamente What Ever Happened to Baby Jane (Que Teria Acontecido a Baby Jane?), filme de 1962, de robert Aldrich, em que a personagem de Crawford se digladia com a irmã, interpretada pela suposta rival de Crawford em vida, bette Davis; podendo ainda destacar-se, no âmbito deste trabalho na série b, os dois filmes feitos com William Castle, Strait-Jacket (Volúpia do Crime, 1964) e I Saw What You Did (Telefone Fatal, 1965). em se-gundo lugar, e através de um ângulo porventura mais importante, a

(44)

normaliza-ção de Joan Crawford enquanto monstro tem especialmente origem na fortuna que o nome da actriz obteve após a sua morte em 1977, e que foi – e ainda é, em certa medida – maculado por Mommie Dearest, o livro de memórias publicado em 1978 pela filha adoptiva Christina Crawford, no qual esta denuncia a actriz enquanto uma pessoa abusiva e perigosamente neurótica.

Na verdade, parece ter-se tornado difícil desvincular a figura de Crawford da imagem de Faye Dunaway no filme de 1981, Mommie Dearest (Querida Mãezinha, de Frank perry), que adapta o livro homónimo, e em particular da célebre sequência que termina com a protagonista a fustigar a filha criança com um cabide de arame. o princípio de ordem doméstica gritado por Dunaway em estado de histeria, «no wire hangers!», tornou-se um lugar-comum de um determinado universo camp.

ignorando este factor mais imediato, é de notar que a sequência do filme de perry a que me refiro trabalha, justamente, a ideia de Joan Crawford enquanto monstro, em termos visuais, através de diferentes elementos: 1) o rosto de Faye Dunaway é reduzido a uma máscara de beleza, que, despersonalizando a figura, atenua a humanidade do rosto e aproxima-o da esfera do monstruoso e do infor-me; 2) o overacting da actriz enfatiza esta mesma ideia, através dos gestos e das expressões faciais exagerados, bem como da modulação da voz, que perde a colo-cação e a prosódia características de Crawford e adquire uma dimensão quase gutural; 3) a mise en scène, e em particular o trabalho sobre a luz, produz um universo de ameaça e sombras que convoca manifestamente o universo do hor-ror. em suma, nesta sequência de Mommie Dearest – porventura, e tristemente, a sequência mais célebre em que uma Crawford participa –, Christina (a heroína do filme) é alvo da violência de um monstro chamado Joan Crawford.

refiro, por fim, dois produtos da cultura popular recentes, que, aparente-mente pretendendo rectificar o estatuto camp-monstruoso de Crawford tal como ele se cristalizou no imaginário popular (através da aposta no girl power, no primeiro caso, e na humanidade maculada e vulnerável, no segundo), pare-cem funcionar, pelo contrário, enquanto factores de consolidação desse mesmo

(45)

estatuto: uma série de seis episódios do podcast You Must Remember This, inti-tulada Six Degrees of Joan Crawford, e a primeira temporada da série televisiva Feud, centrada nos anos de Baby Jane e, especialmente, na rivalidade entre Crawford e Davis.

posto isto, este texto incide na única instância em que Craword protagoni-zou de facto um monstro. Contrariamente ao que talvez fosse de esperar, não se trata de um filme pertencente à fase final da sua carreira, mas sim à fase intermé-dia, os anos 40, durante a qual a actriz desempenhou uma série de papéis impor-tantes, entre os quais os de protagonista em Mildred Pierce (Alma em Suplício, de michael Curtiz, 1945) e Possessed (Loucura de Amor, de Curtis bernhardt, 1947).

Um monstro

A Woman’s Face (A Cicatriz do Mal, 1941) oferece, então, uma resposta literal ao problema do monstro. o filme de George Cukor começa com o pla-no de um anúncio em que se lê que Anna Holm – a protagonista – está a ser julgada por homicídio. Seguidamente estamos em tribunal, e Joan Crawford entra em campo, sempre com o rosto total ou parcialmente oculto. São chama-das uma série de testemunhas e, após o seu juramento, uma delas começa a narrar os factos. É importante que nesta cena se mencione o erro de pôncio pilatos, chamando-se a atenção para a responsabilidade que comporta, ou que deve comportar, a deliberação sobre os destinos dos outros. em suma, o juiz sublinha a ideia de que das narrativas destas testemunhas derivará a determina-ção do destino daquela mulher. No entanto, o que é importante avançar, desde já, é que aquilo que está em causa, desde o início do filme, não é apenas a ver-dade dos factos (isto é, se Anna Holm matou ou não), mas, essencialmente, a verdade do seu carácter: ou seja, no caso de Holm, se ela é boa ou má, uma heroína ou uma vilã, uma mulher ou um monstro. em suma, este é um filme que parece ser sobre uma série de circunstâncias narrativas (i. e., os eventos que

(46)

têm lugar – paixões, homicídios, traições, etc.), mas que é, na verdade, sobre a interioridade das personagens: os seus medos, os seus complexos, as suas feridas (ferida que, aqui, é simbolicamente literalizada sob a forma de uma cicatriz no rosto da protagonista).

Gostaria, portanto, de chamar a atenção para o facto de, por debaixo do plot, estar, na verdade, uma escavação ontológica – o que é, aliás, também característi-co de algum cinema de Cukor, em especial de A Double Life (Abraço Mortal, a que é dedicado o capítulo seguinte), que surgiria em 1947, e que A Woman’s Face prenuncia na sua dimensão de estudo de uma personagem que se encontra pe-rante a ameaça da desintegração. por conseguinte, é relevante compreender que, se o filme começa por formular, desde a sua primeira imagem, a questão «Anna é ou não culpada de matar alguém?», a pergunta que realmente passará a importar, para aqueles sensíveis a essa dimensão mais subterrânea da obra, é: «quem é real-mente a mulher oculta por debaixo desta woman’s face?»

Na formulação e no desenvolvimento desta questão, o trabalho operado sobre a imagem de Crawford é fulcral. É por isto que importa chamar a atenção para o modo como a sua personagem aparece de viés, ou mesmo de costas, ao longo de toda a primeira sequência, sendo forçoso notar que este trabalho de figuração concretiza simbolicamente a dúvida identitária no centro do filme.

A narrativa arranca com a narração da primeira testemunha, que espoleta uma analepse. A partir de então, a malha do filme constrói-se através de peda-ços narrados por cada uma das testemunhas, e também pela acusada. No pri-meiro flashback, o mais recuado no tempo, ficamos a conhecer Anna Holm, proprietária de um restaurante, que, sabemos logo depois, usa este negócio apenas como uma fachada para encobrir formas de lucro mais obscuras, entre as quais o crime de extorsão. Sabemos também, desde o início, que ela será julgada por um homicídio cuja vítima é, por enquanto, desconhecida.

o modo como o filme trabalha a imagem da personagem nesta primeira sequência em flashback é particularmente significativo. No escritório mal ilumi-nado, anexo ao restaurante de Holm, vemos, antes do corpo da mulher, a sua

(47)

sombra projectada na parede. Só depois ela aparece, entre sombras, com apenas parte do rosto visível. Torsten barring, interpretado por Conrad Veidt, trava conhecimento com ela naquele mesmo momento – à semelhança do espectador –, e repara que ela esconde parte da cara. Aproxima-se gradualmente dela, e um grande plano sobre o rosto até então obscurecido permite-nos perceber a razão pela qual ela se esconde: o seu rosto está parcialmente desfigurado.

A sequência é fulcral por duas razões. Num nível mais elementar do enten-dimento da narrativa, ela é matricial na medida em que remonta ao momento em que Anna e Torsten se encontram pela primeira vez, o que acaba por ser relevante – no âmbito de um filme com uma estrutura em flashback que pre-tende iluminar o ponto presente da narrativa (o julgamento) – porque o crime pelo qual ela é julgada é o homicídio desse mesmo Torsten (algo que, no en-tanto, o espectador só fica a saber no final). em segundo lugar, é importante perceber que Joan Crawford constrói a sua personagem como uma mulher fria e dura, não só através das coisas que diz, mas também, e essencialmente, dos seus gestos mecânicos ou do ritmo entrecortado da voz. em terceiro lugar, é fulcral reparar ainda na pequena brecha de vulnerabilidade que Crawford ex-põe no momento em que a personagem de Veidt, após vê-la pela primeira vez, não demonstra repulsa perante o seu rosto deformado.

Num plano mais imediato, temos uma mulher dura, que, saberemos pou-co depois, maltrata os que a rodeiam e pratica o pequeno crime (chantagem e extorsão). No entanto – e este é o território em que Crawford, enquanto actriz, se revelou especialista (basta lembrar, por exemplo, o bem conhecido trabalho de construção de Vienna em Johnny Guitar [Nicholas ray, 1954]) –, há outra mulher por debaixo desta primeira que, vulnerável e receptiva, emerge ao mí-nimo sinal de empatia. A natureza da personagem de Crawford discute-se no jogo entre estes dois polos – que têm que ver não só com um binarismo interior (o bem e o mal) como também com uma duplicidade externa (a mulher e o monstro), numa espécie de actualização de The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de robert Louis Stevenson.

(48)

À semelhança do que tem lugar na obra de Ste-venson, havendo duas Anna Holm, a exterior parece constituir uma espécie de imagem deformada na qual – em efeito de espelho – a interior é obrigada a ver-se. e, no entanto, tal como em Stevenson (embora, ressal-ve-se, em termos distintos), elas coexistem no mesmo corpo: isto aponta para uma esquizofrenia identitária (que cobre tanto a alma como o corpo) que o filme terá de resolver: uma das duas Annas será extinta quando a Anna verdadeira ven-cer a outra.

No entanto, para afinar o entendimento desta dicotomia de aparência porventura demasiado simplista, é necessário tomar em consideração que, an-tes de as duas Anna Holm se revelarem nesta primeira sequência, aparece na parede a projecção da sua sombra, sugerindo-se que, no fundo da equação on-tológica que o filme nos apresenta (ser uma ou ser outra, ou, ainda, ser duas), há a ameaça de se vir poder a ser nenhuma / nada. No seu seguimento, o filme desenvolverá um convencionalismo moralizante que não lhe permitirá traba-lhar esta terceira via; no entanto, Cukor deixará aqui a porta bem aberta para fazer este mesmo trabalho em A Double Life.

Uma mulher

Na verdade, as dicotomias sobre as quais A Woman’s Face trabalha são efec-tivamente simplistas, o que não deve ser entendido necessariamente como uma simples redução a esquemas binários do domínio do melodrama menos

(49)

sofistica-do, mas sim como o reenvio para um quadro de conceitos essenciais que tem muito que ver com o mito e, especificamente, com os contos de fadas.

Na primeira parte do filme, assistimos à vida de crime de Anna Holm, ao mesmo tempo que a vemos sofrer uma aparente transformação anímica peran-te uma situação de vida absolutamenperan-te nova para si: ser o alvo da aperan-tenção de um homem, Torsten. Se antes procurara esconder-se, anulando-se enquanto figura corpórea e visível no mundo (visível no sentido de ser passível de ser vis-ta), agora ela compra blusas de rendas, e substitui o chapéu que usava conti-nuamente há anos, e o qual, nas suas palavras, já nem as traças suportavam. Ficamos a saber também que, no fundo (e esta é uma expressão que uso delibe-radamente, uma vez que falo de um filme que é, justamente, sobre relações entre forma e fundo), ela é uma romântica que leu todas as cartas de amor de autores célebres, é uma profunda conhecedora de música erudita, toca piano e violino, e, para além de tudo isto, ainda pinta e escreve poesia.

em suma, aquilo a que se assiste é a apresentação de uma série de caracterís-ticas próprias de uma senhora educada (uma lady), plena de qualidades, que não parece condizer com a mulher que contextualmente (no contexto da sua vida – a vida de uma mulher que foi transformada num monstro em criança) ela é, ou seja, uma mulher de baixa estirpe, que ganha a vida a gerir um grupo de crimino-sos com os quais chantageia mulheres adúlteras a troco de dinheiro que, depois, ela não pode gastar sequer, porque não tem propriamente uma vida a que possa chamar sua. isto é, uma mulher que age por pura vileza, que personifica – ou pretende personificar, porque passa a acreditar que é um monstro, e que, como monstro, tem de cumprir o destino monstruoso que lhe está votado –, como uma espécie de Nosferatu, o mal (lembre-se o título português: A Cicatriz do Mal). portanto, uma mulher que não é, na verdade, uma mulher, mas sim uma criatura abominável, de contornos míticos, quase arquetípicos.

muito rapidamente, o filme começa a trabalhar a duplicidade desta perso-nagem, expondo uma certa inconsistência ontológica. Não precisamos de estar demasiado atentos para perceber as pistas que nos levam a crer que, na verdade,

Referências

Documentos relacionados

A tem á tica dos jornais mudou com o progresso social e é cada vez maior a variação de assuntos con- sumidos pelo homem, o que conduz também à especialização dos jor- nais,

Se você permanecer em silêncio e não der nenhuma informação, o Serviço de Imigração talvez não tenha nenhuma prova que você esteja aqui ilegalmente, eles talvez não

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

O valor da reputação dos pseudônimos é igual a 0,8 devido aos fal- sos positivos do mecanismo auxiliar, que acabam por fazer com que a reputação mesmo dos usuários que enviam

Foi realizada assembléia estadual na DRT/SP, quando foi discutido o que significa o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) como um pacote para “fazer crescer” a economia.

Declaro meu voto contrário ao Parecer referente à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apresentado pelos Conselheiros Relatores da Comissão Bicameral da BNCC,

libras ou pedagogia com especialização e proficiência em libras 40h 3 Imediato 0821FLET03 FLET Curso de Letras - Língua e Literatura Portuguesa. Estudos literários

Para preparar a pimenta branca, as espigas são colhidas quando os frutos apresentam a coloração amarelada ou vermelha. As espigas são colocadas em sacos de plástico trançado sem