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Longevidade, travestis e a construção do conceito de sexualidade

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Academic year: 2021

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Longevidade, travestis e a

construção do conceito de sexualidade

“Porta Retrato: Key Francis (1906-2004)..., simboliza a longevidade Trans do RJ. Key foi uma importante figura no Jet Set LGBT do RJ, sendo a Turma OK seu local de origem. Faleceu aos 98 anos deixando uma legião de fãs e admiradores... Com a inocência de uma menina e uma simplicidade a ser copiada, lembro dela falando para mim "nunca homem algum tocou ou viu meu sexo..." após ficar estarrecida com Hanna Suzart (in memoriam) contar suas proezas viris com um cliente. Mesmo com seu falecimento em 2004, Key

Francis estará para sempre em nossos corações como um exemplo, uma referência e uma meta a ser alcançada! Majorie Marchi” (Blog da Associação das Travestis e Transexuais do Estado do RJ, 2011)

Pedro Paulo Sammarco Antunes Com o aumento da população idosa, as travestis que envelhecem merecem destaque, justamente por ser um segmento populacional que sofre exclusão em qualquer idade. Pouco se sabe sobre esse período da vida delas. Mesmo entre os membros de seu próprio grupo. Será que envelhecem? Se sim, como isso acontece?

É bem verdade que o preconceito em relação às travestis vem diminuindo lentamente ao longo dos anos. Os movimentos de lutas pelos direitos de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros vem conquistando espaço. Porém, o preconceito ainda é forte e atua na vida das travestis desde a infância, quando já são chamadas de homossexuais afeminados. As que chegam ao envelhecimento atravessam a vida sendo alvo de ataques constantes.

Nesse caso, o preconceito advém do processo de organização social que estipula o que é considerado normal e o que é considerado anormal. Aqueles que não se enquadram no funcionamento desejado sofrem preconceito. O conhecimento científico em relação àquilo que chamamos de sexualidade foi sendo construído sobre os corpos e ditando como esses deveriam ser. Embora haja pressões para se comportar dessa ou daquela forma, cada um vive sua

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velhice de forma singular. As travestis desde pequenas já enfrentam muitos desafios. Muitas já sofrem preconceito na própria família, depois na escola, alistamento militar e mercado de trabalho. Alegam que vão para a prostituição, pois não puderam estudar e não conseguem ocupação em lugar nenhum. Reiteram que sem formação escolar, ganham mais reconhecimento comercializando seus corpos do que tentando se encaixar no mercado formal de trabalho. Elas precisam investir maciçamente no design e construção de corpos que sejam lucrativos. Nesse campo, enfrentam risco de morte, pois estão em contato com a rotina violenta das noites urbanas. As que conseguem ir para fora do país, juntam dinheiro suficiente para quando voltar, se preparar para a velhice.

É importante lembrar que para as travestis que se prostituem, a velhice chega quando não podem mais trabalhar. Enquanto seus corpos forem considerados atraentes, elas continuam atuando. Não há números oficiais, mas segundo relatos, isso pode acontecer até mais ou menos os quarenta e poucos anos. Esse segmento da população é invisível em toda a sua trajetória existencial. As que chegam à velhice podem ser consideradas verdadeiras sobreviventes. Servem de alerta e reflexão para as mais novas.

Por que será que travestis são consideradas anormais? Como se constituiu o conceito de sexualidade? O que nos interessa aqui é analisar os discursos sobre a sexualidade. Qual é o tipo de “verdade” que a ciência produz quando define o que é a sexualidade? Qual é o componente de poder que está contido nessa “verdade”? Quais os efeitos de poder que se produzem através da oficialização dessas “verdades”? A normatização e regulamentação da vida parece ser uma desses efeitos. As políticas de regramento da vida sexual estipulam o que é “normal” e o que é “anormal” de acordo com certo padrão estabelecido por diversos interesses de comando.

Toda e qualquer definição sobre qualquer assunto ou objeto é feita com o objetivo de torná-lo conhecido. Ela se baseia na construção teórica daquele que a define. Ao definir algo, a própria definição já limita e controla aquilo que está sendo definido. Isso ocorre, pois as palavras que definem o que é isto ou aquilo criam regras padronizadas de como tal objeto “deve” ser ou não ser. Nomear algo é tentar controlar o que está sendo nomeado por meio de definições e prescrições (Foucault, 2008).

No entanto, a realidade vai além de qualquer tentativa de definição conceitual. O objeto escapa às palavras que tentam defini-lo como sendo desse ou daquele jeito. Quando algo não se enquadra em determinado conceito, outras definições imediatamente se encarregarão de capturar aquilo que escapa à definição padrão. Dessa forma, tudo está sobre o controle das definições de determinado saber que se transforma em poder (Castro, 2009).

Geralmente elas tentarão classificar e dividir os conceitos em dois aspectos distintos: aquilo que é considerado normal e aquilo que é considerado anormal. Normal está associado ao correto e anormal ao incorreto, o que também

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ocorre com o que se define por sexualidade humana. Ela varia conforme a época e o local em questão. Atualmente, ou há homens ou mulheres. Travestis não se encaixam na definição daquilo que é considerado homem, nem naquilo que é considerado mulher.

Nos meios religiosos e científicos defendeu-se por muito tempo que o sexo era algo a ser reprimido. Isso ocorreu. Principalmente, após o estabelecimento do cristianismo como religião principal no continente europeu na Idade Média. Qual o sentido em dizer que o sexo é reprimido? Qual é a relação de poder que isso produz? A estratégia principal do poder é reprimir? Liberar o sexo é contrariar o poder? Qualquer intervenção no sentido de prevenir algo, aciona um dispositivo de controle sobre esse algo. Tentar evitar a manifestação do sexo provoca o controle do próprio sexo. Portanto, dizer que o sexo é reprimido aciona dispositivos de controle sobre a vida sexual das pessoas. Enquadrar as travestis idosas em classificações psiquiátricas, por exemplo, sugere que o controle atue sobre as próprias travestis. Elas são impedidas de se manifestar, pois já receberam uma classificação, que as torna passíveis de tratamento e correção.

Depois do quarto concílio de Latrão, ocorrido no século XIII, a confissão torna-se obrigatória pela igreja católica. O confessionário é criado dentro da própria igreja. Aquele que confessa incita o especialista que ouve e classifica. Foucault ainda diz que o método psicanalítico de tratamento clínico criado pelo médico alemão Sigmund Freud (1856 - 1939), se inspirou também na confissão religiosa. Para Foucault, o psicanalista tem a função de ouvir, interpretar, categorizar e disciplinar, de acordo com as normas sociais vigentes, aquele que fala.

Para Foucault a confissão vai além do ato de enunciar para o outro suas culpas e pecados. Ela também se interioriza como prática de penitência e do exame de consciência. Estabelece-se como uma relação de saber-poder que funda subjetividades. Na época, o confessionário era um dos únicos lugares institucionais onde o discurso individual encontrava acolhimento. A medicina e a psicanálise seriam seus herdeiros.

O interrogatório e a confissão são formas em que o saber e o poder psiquiátrico se articulam. A psicanálise se inscreveria na linhagem confessional, ao constituir um sujeito sujeitado ao saber do outro. Analista mostra “a verdade” ao analisado. É como se a subjetividade de cada um fosse subjugada à sua própria sexualidade (Foucault, 1993).

Em outros termos, a vida sexual da pessoa diria “a verdade última” sobre quem ela era de fato. Sua subjetividade estava sendo manifestada por meio de desejos, fantasias e ações sexuais. Subjetividade (mente) e corporalidade (corpo) encontram na sexualidade sua conexão. Entre os anos de 1860 e 1870 houve certa multiplicação de discursos médicos que buscavam comprovar que os comportamentos sexuais, e todos os demais, tinham sua origem na biologia (Foucault apud Bento, 2008; Castro, 2009; Foucault apud Pelúcio, 2009).

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Quando o filósofo francês Rene Descartes (1596 - 1650) estabeleceu de forma clássica a divisão entre corpo (físico e mortal) e alma (espiritual e imortal) no pensamento filosófico, resgatou idéias do filósofo grego Platão (428 a.C. - 348 a. C.). Não é por acaso que tal forma de pensar acabou facilitando o controle maior do todo, através das partes “identificadas”: corpo e alma.

De acordo com os preceitos religiosos cristãos, era entendido que a carne passa refletir a alma ou subjetividade da pessoa. Eles acreditam que ali se encontra o espírito ou mente que por sua vez expressam a “identidade real” do sujeito. Portanto, aquilo que era considerado pecado se manifestava na carne em forma de desejos. Através da prática da confissão, os desejos consumados e até mesmo imaginados eram revelados. Em manuais de confissão, o desejo vai sendo mapeado e estudado para ser mais bem controlado.

A vida sexual das pessoas passa a ser exposta através das confissões. O sexo era revelado e liberado. Era pregado que através da liberação das fantasias e atos sexuais, por meio do confessionário, a alma se libertaria do pecado. A igreja provocou a confissão. O sexo foi transformado em algo poderoso. A sexualidade era estimulada. Os desejos foram categorizados em pecado e não pecado. Com a liberação daquilo que foi denominado de sexualidade, tornou-se possível construir um padrão de certo e errado, normal e anormal em relação a isso.

Com o passar do tempo, já por volta do século XIX, o tipo de atividade sexual que era considerada pecaminosa e anormal, começa a ser controlada e incorporada pelas ciências biológicas, representadas principalmente pela medicina e psiquiatria. Manuais médicos foram sendo escritos contendo a forma “normal” e “anormal” de como a recém “criada” sexualidade “deveria” ser praticada. Além de ser controlada pela igreja, agora ela passa a ser controlada pela medicina e justiça. Quanto mais liberada ela se tornava, mais visível, categorizada e disciplinada.

Os manuais eram baseados em padrões de normalidade. Tal padrão era submetido à moral religiosa, social, jurídica, médica, burguesa e européia do século XIX. Até essa época, o discurso religioso era praticamente responsável por mapear e organizar a disciplina do corpo, e de acordo com tal discurso, o sexo deveria ser exclusivamente heterossexual, monogâmico, dentro do casamento e para fins reprodutivos.

Todas as práticas sexuais que não atendessem a esse propósito eram consideradas anormais e passíveis de tratamento e correção. As práticas sexuais foram sendo detalhadas para serem facilmente controladas. Como exemplo disso, em 1886 surge na Alemanha o primeiro estudo médico na área chamado Psychopathia Sexualis (2001). É considerada uma obra cientifica clássica, que influencia diagnósticos referentes à sexualidade humana até os dias atuais. Foi escrita pelo médico alemão Richard von Krafft-Ebing (1840-1902). Nenhuma prática imaginada poderia ficar fora de tal mecanismo de visibilidade, classificação e controle. Para isso, os relatos eram realizados de

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forma minuciosa e com riqueza de detalhes, e cada nuance considerada anormal sofreria imediatamente categorização e patologização.

Os mecanismos de controle se apropriam daquilo que agrupava o maior número de pessoas possível. Um simples comportamento - a atividade sexual - que era exercido no cotidiano por grande número de indivíduos, agora passa a sofrer categorização e disciplina. Tal feito ocorreu por meio do crivo da própria sociedade burguesa que, por sinal, financiava as atividades científicas. A partir de então, as ciências biológicas, juntamente com a justiça e a religião, ditavam como a atividade sexual “deveria” ser praticada. Aqueles que não a praticassem da forma considerada correta, sofreriam punição e tratamento. É justamente o que ocorre com as travestis idosas, que são punidas pelo preconceito e recebem tratamento para se adequarem às normas de gênero impostas. Quem não é servo dos modelos impostos pode ter a chance de criar e reinventar a própria vida. Contudo, essa é uma tarefa difícil, pois os modelos são bastante opressivos. Quem se submete tem maior chance de ser aceito socialmente, e quem não se submete é automaticamente excluído.

Conforme vemos então, a sexualidade acabou sendo produzida através de conexões entre vários discursos e dispositivos de poder. Entre os principais vistos estão igreja, sistema político e jurídico, medicina, psicologia, pedagogia, economia, família e outras instituições sociais de forma geral.

Dessa forma, a sociedade disciplinar e as biopolíticas, da qual a sexualidade humana faz parte, vão configurando por meio da anatomopolítica individualizante e a biopolítica massificante o que vai ser denominado de sociedade do controle.

O falar de si inaugurou o espaço de reconhecimento e captura. Da culpa e pecado o sexo passa a ser considerado normal ou patológico. A profusão de discursos normatiza o sexo. O Ocidente dessa forma acaba inaugurando a ciência da sexualidade humana. É um saber que se constitui engendrado por relações de poder que regulam a vida. Por fim, acaba sendo um conjunto de saberes que objetiva e subjuga o sujeito, pois o corpo não pertence ao sujeito e sim às instituições que o definem como: a igreja, a família, o Estado, as ciências biomédicas, químicas, físicas e humanas, a filosofia e demais setores da sociedade.

Em relação ao gênero sexual, comportamentos e vestimentas são constantemente reiterados pelo sujeito no sentido de confirmar o que se espera culturalmente do seu corpo e, dessa maneira, o mecanismo de controle é reforçado e realimentado. Porém, onde há controle, há resistência. Travestis idosas vêm reiterando normas de gênero que se materializam em seus corpos, desde a adolescência. Ao mesmo tempo resistem a essas mesmas normas, quando efetuam alterações que partem de corpos biologicamente masculinos (Castro, 2009; Foucault, 1993; Leite Junior, 2006).

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A existência da travesti é precária desde a adolescência, pois já são consideradas anormais e, portanto, sem lugar. Muitas saem ou são expulsas de casa, por causa do intenso preconceito familiar e também da vizinhança. Assim, buscam habitar espaços onde serão aceitas. A maioria encontra na prostituição acolhimento afetivo, de moradia e funcionalidade mínima para sobreviver. Passam a vida em contextos violentos. Habitam o mundo de forma improvisada e frágil. As que chegam à velhice podem ser consideradas verdadeiras heroínas, como é o caso da nossa homenageada Key Francis, que atingiu a marca dos 98 anos de vida.

Referências

BENTO, Berenice. O que é transexualidade? São Paulo: Editora Brasiliense, 2008.

BLOG DA ASSOCIAÇÃO DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, Porta Retrato: KEY FRANCIS (in memorian), a mais idosa Sra. Trans do Rio de Janeiro, julho de 2011. Disponível em:

http://astrario.blogspot.com/2011/06/porta-retrato-key-francis-in-memoriana.html. Acessado dia 15/07/2011

CASTRO, Edgardo. Vocabulário Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I – a vontade de saber. São Paulo: Graal Editora, 1993.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. São Paulo: Forense Universitária, 2008.

KRAFFT-EBING Richard Von. Psychopathia Sexualis. São Paulo: Martins Editora, 2001.

LEITE JUNIOR, Jorge. Das maravilhas e prodígios sexuais. São Paulo: Annablume / FAPESP, 2006.

PELÚCIO, Larissa. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de AIDS. São Paulo: Annablume / FAPESP, 2009.

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Pedro Paulo Sammarco Antunes - Pedro Paulo Sammarco Antunes - Graduado pela Faculdade de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie (2002). Mestre em Gerontologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2010). Pós-graduação lato- sensu em Sexualidade Humana pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (2007) e em Gestalt-terapia pelo Instituto Sedes Sapientiae (2004). Tem experiência na área de psicologia clínica com ênfase em sexualidade humana e é colunista da revista G Magazine desde 2008. E-mail: pedrosammarco@hotmail.com

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