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DE QUAL FUTEBOL O BRASIL É PAÍS? AS MULHERES E O JOGO DE "PELÉ".

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Academic year: 2021

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DE QUAL FUTEBOL O BRASIL É PAÍS? AS MULHERES E O JOGO DE "PELÉ". Talita Machado Vieira* (Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, UNESP, Assis-SP, Brasil); José Sterza Justo (Programa de Pós-Graduação em Psicologia, UNESP, Assis-SP, Brasil); Sonia Regina Vargas Mansano (Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia Social e Institucional, UEL, Londrina-PR, Brasil).

contato: tmachadovieira@gmail.com Palavras-chave: Psicologia social do esporte. Gênero. Corpo.

Este trabalho insere-se no contexto mais amplo de uma pesquisa de doutorado, em andamento, que versa sobre o exame da experiência de mulheres atletas de futebol, nos níveis da formação e do rendimento, conforme descritos pela Lei 9.615 de 1998 (Brasil, 1998). Seu propósito central consiste em acessar a história de vida das meninas e mulheres engajadas na prática do futebol-trabalho, a fim de analisar a percepção do imaginário social diante de tal escolha profissional (e mesmo em relação à prática genérica do futebol por mulheres) e seus efeitos no processo de subjetivação dessas atletas. Para nos conectarmos a essas experiências partiremos do olhar metodológico subsidiado na cartografia (Deleuze & Guattari, 1995), visando o destaque e o acompanhamento das linhas que compõem tal experiência. Neste trabalho, especificamente, buscamos apresentar a dimensão macropolítica (Rolnik, 2014) ou as linhas de segmentação dura (Deleuze & Guattari, 1995) do futebol feminino no Brasil que resvalam e se associam a uma concepção enrijecida e normativa do conceito de gênero. O material aqui apresentado resulta de estudo bibliográfico e do exame de algumas regulamentações jurídicas que marcam a história do futebol feminino brasileiro. Inicialmente, cumpre mencionar a necessidade de partirmos da interrogação acerca da noção de gênero, usualmente entendida como categoria estática que seria fixada aos corpos segundo princípios hormonais, cromossômicos e anatômicos (Carvalhaes, 2015). Tal compreensão pode ser considerada donatária do chamado sistema sexo-gênero, que se apoia no princípio biológico-naturalista para designar as possibilidades e interdições dos corpos, de acordo com normas instituídas para a inteligibilidade dos gêneros. A ideia de inteligibilidade a qual nos reportamos decorre das discussões produzidas pela filósofa estadunidense Judith Butler (2003) para quem os "Gêneros 'inteligíveis' são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo,

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gênero, prática sexual e desejo" (Butler, 2003, p. 38). Nesta formulação, criticada pela filósofa, assume-se que, além do gênero, a prática sexual e o desejo mantêm-se lineares e coerentes entre si e com o sexo, suposta realidade primeira. Podemos afirmar, ainda, tratar-se do conjunto de normas instituídas para a interpretação cultural dos corpos, aquilo que torna um corpo cognoscível em uma dada sociedade e tempo histórico. Neste sentido, o gênero, enquanto linha de segmentação dura (Deleuze & Guattari, 1995), operaria como dispositivo de represamento do desejo, ditando, de saída, o conjunto de práticas considerado adequado, pertinente e coerente para cada ser do par binário homem-mulher. Uma macropolítica do desejo que prevê as formas para o seu escoamento e expressão nas distintas atividades sociais. Dentre estas, os esportes, e mais especificamente o futebol no caso do Brasil, se apresentam como lócus de relevante atravessamento pelas questões relativas aos gêneros. Os esportes são marcados pela valorização de características histórica e socialmente ligadas ao masculino normativo: agressividade, força, atividade, bravura, virilidade e potência. Nesses termos, uma prática voltada à afirmação e constituição de uma masculinidade hegemônica assentada em uma construção idealística de virilidade (Monteiro & Altmann, 2014). Abordando especificamente o que se refere ao futebol, Dunning (1992), afirma que tal modalidade se localizaria no grupo de desportos de confronto, aqueles que envolvem a representação de uma luta entre dois indivíduos ou grupos. Tal categoria, em suas variações iniciais, se caracterizava pelo alto grau de violência envolvido no jogo, "[...] expressavam uma forma extrema de regime patriarcal. Como tal, integravam a expressão macho de uma forma relativamente desabrida" (Dunning, 1992, p. 395). Mesmo com sua submissão, a partir do século XIX, a um conjunto de regras escritas, que buscavam torná-los mais civilizados, mediante o controle do uso da violência, os esportes de confronto mantiveram-se como "[...] veículo de imposição e expressão da virilidade" (Dunning, 1992, p.396), aspecto associado ao emprego da força e de atos agressivos dirigidos ao adversário. O avanço do processo civilizador, tal qual apresentado e discutido por Elias (1994a, 1994b), no tocante a relação entre os sexos, conforme argumenta Dunning (1992), se deu pela diminuição das possibilidades de uso da força física – considerado como um dos principais meios de poder dos

homens em relação às mulheres 1 – e pelo aumento das oportunidades para as mulheres se

1 Sobre esse aspecto cumpre marcamos nossa discordância em relação ao argumento do autor que recorre à

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articularem em ações unificadas de reivindicação dos seus direitos. A nova situação possibilitou a crescente participação das mulheres em distintos segmentos da vida social, acompanhada pela redefinição de papéis nos domínios da vida pública e privada. Segundo o autor em tela, tais acontecimentos passaram a ser percebidos pelos homens como ameaça ao seu estatuto hegemônico na sociedade e aos privilégios conservados por eles até então. Com efeito, o esporte teria emergido para alguns homens como um reduto no qual a expressão do ideal masculino de virilidade, nos termos explicitados, estaria resguardada de modo legítimo e socialmente aceito, uma área masculina reservada:

[...] reagiram através do desenvolvimento do râguebi – que não foi, é claro, o único enclave criado –, transformando, assim, em área masculina reservada, onde poderiam reforçar sua masculinidade ameaçada e, ao mesmo tempo, imitar, denegrir e reificar as mulheres, a principal fonte de ameaça (Dunning, 1992, p. 400).

No cenário nacional, a concepção dos esportes como prerrogativa dos homens pode ser verificada recorrendo ao contexto brasileiro da década de 40 do século XX, no qual observamos que a prática do futebol por mulheres era percebida como risco, devido ao suposto comprometimento das suas capacidades reprodutivas (Franzini, 2005). Tal perspectiva adquiriu concretude jurídica por meio Decreto-Lei 3.199 de 1941, que coloca em evidência o encontro entre biologia e política no esporte, culminando na produção de estratégias para a gestão da vida. O referido dispositivo legal trazia em seu artigo de nº 54 o mandamento de que "Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país" (Brasil, 1941). Tal legislação inseria-se em um contexto sociopolítico mais amplo que articulava intenções e motivos do higienismo e da eugenia, atrelando-os a um projeto nacional de regeneração da pátria. Este implicava a proposta de reconfiguração de nossa composição racial (Souza, 2012) e tinha o corpo feminino como célula necessária para sua consecução (Goellner, 2005, 2009). A problemática da proibição ou das

Nesta questão nos posicionamos mais próximos do pensamento elaborado por Patiño (2011) para o qual as diferenças entre homens e mulheres estão mais vinculadas à sua ocupação dos espaços públicos e privados e a consequente possibilidade que esses espaços dispõem para que se possam mobilizar mecanismos de produção e distribuição do poder. Para o autor em tela, o fato de o futebol ser um campo significativo de exercício do poder, ocupando lugar de destaque na vida pública, pode indicar uma das razões pelas quais se trata de uma modalidade majoritariamente ocupada por homens.

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ressalvas acerca da prática do futebol por mulheres busca subsídios no sistema sexo-gênero. O incômodo desencadeado por esse debate parece estar associado à perturbação da inteligibilidade instituída. Rubio e Simões (1999) analisaram a participação e o processo de inclusão das mulheres no esporte. Eles sinalizaram que as justificativas adotadas para manter o afastamento das mulheres da arena desportiva possuem cunho político, ainda que, usualmente, se busque respaldo em critérios anatômicos e fisiológicos para sustentar tais posições. A vertente biologicista foi fundamental para a formação e legitimação dos discursos que tinham como horizonte legislar sobre as práticas corporais permitidas ou não às mulheres. Conforme atestam os autores "Entre os argumentos utilizados para a exclusão feminina encontramos a 'delicadeza' dos nervos e a constituição física menos favorecida, o que levava o esporte praticado por mulheres parecer indecente, feio e impróprio para sua resistência" (Rubio & Simões, 1999, p. 53). O caráter político implícito nos discursos mencionados legitima o radical biológico ao invés de se opor a ele. Neste ponto, encontramos a necessidade de focalizar a questão relativa à admissibilidade e ao reconhecimento do desejo feminino por uma atividade tradicionalmente

designada ao homem o que, supomos, não poderia ocorrer sem provocar fissuras na ordem

instituída dos gêneros. As considerações tecidas até aqui nos auxiliam na compreensão do status atual do futebol praticado por mulheres no Brasil e sua fundação em um processo histórico específico e atravessado por uma concepção estática de gênero que fixa os sujeitos a territórios previamente concebidos, demarcando as formas de expressão possíveis e interditadas a cada corpo, no interior de um sistema binário, inclusive, no que se refere às práticas corporais e esportivas.

Referências

Brasil. (1941). Decreto-Lei nº 3.199, de 14 de abril de 1941. Estabelece as bases de organização dos desportos em todo o país. Rio de Janeiro, RJ.

_______. (1998). Lei nº 9.615, de 24 de Março de 1998. Institui normas gerais sobre o desporto e dá outras providências. Diário oficial [da República Federativa do Brasil]. Brasília, DF, 25 Mar. _______. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

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Carvalhaes, F. F. (2015). Mulheres no crime: deslizamento de fronteiras. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Florianópolis.

Deleuze, G. & Guattari, F. (1995a). Mil platôs, vol.1. Rio de Janeiro: Editora 34. Deleuze, G.& Guattari, F. (1995b). Mil platôs, vol.3. Rio de Janeiro: Editora 34. Dunning, E. (1992). O desporto como uma área masculina reservada: notas sobre os

fundamentos sociais na identidade masculina e suas transformações. In: Elias, N.; Dunning, E. A busca da excitação. (pp. 389-142). (M. M. Almeida e Silva, Trad.). Lisboa: Difel.

Elias, N. (1994a) O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Elias, N.(1994b). O processo civilizador: formação do estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Franzini, F. (2005). Futebol é "coisa para macho"?: Pequeno esboço para uma história das mulheres no país do futebol. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.25, n.50, 315-328. Goellner, S. V. (2005). Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, São Paulo, v.19, n.2,143-151.

_______. (2009). Imagens da mulher no esporte. In: DEL PRIORI, M.; MELO, V.A. (Orgs.). História do Esporte no Brasil: do Império aos dias atuais. (pp. 269-292). São Paulo: Editora UNESP.

Monteiro, M. K. & Altmann, H. (2014) Homens na educação infantil: olhares de suspeita e tentativas de segregação. Cadernos de Pesquisa, v.4, n.153, 720-741.

Rolnik, S. (2014). Cartgrafia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS.

Rubio, K. & Simões, A. C. (1999). De espectadoras a protagonistas – A conquista do espaço esportivo pelas mulheres. Movimento: Revista de Educação Física da UFRGS, Porto Alegre, v.5, n.11, 50-56.

Souza, V. S. (2012). As idéias eugênicas no Brasil: ciência, raça e projeto nacional no entre-guerras. Revista eletrônica História em reflexão, v.6, n. 11, 1-23.

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