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Juliet Marillier AUTORA BEST-SELLER DO ROMANCE FANTÁSTICO. Tradução Inês Castro

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Academic year: 2021

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Juliet

Marillier

AUTORA BEST-SELLER DO ROMANCE FANTÁSTICO

Tradução Inês Castro

(2)

Para os cães que amei e perdi, especialmente Harry, Zen e Fergal

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LISTA DE PERSONAGENS

Indica-se a pronúncia para os nomes mais difíceis.

ILHA DOS CISNES Liobhan (lee-von)

Brocc

Dau (rima com now) Archu (ar-khoo) Cionnaola (kin-eh-la) Brigid (breed) Illann Cuan Haki Eabha (eh-va)

Fergus: curandeiro residente Criodan: druida da ilha Guss

Hrothgar Yann

Garbh (gorv) Eimear (ee-mer)

Deirdre: herborista nas instalações do continente Jabir: curandeiro mouro

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Saran: homem de leis da corte de Dalriada

Gáeth: mordomo de uma casa a caminho de Oakhill OAKHILL

Lorde Scannal: pai de Dau, chefe de clã Seanan: irmão mais velho de Dau Ruarc: segundo irmão de Dau

Beanón (ban-ohn): homem de leis de Lorde Scannal Naithí (no-hi): conselheiro de Lorde Scannal

Ardgan: criado particular de Seanan Gobán: criado particular de Lorde Scannal Ultán: homem de confiança de Seanan Donn: homem de armas

Canagan: homem de armas Morann: homem de armas Fergal: mestre de armas Iarla: mordomo

Torna: antigo mordomo, agora falecido Berrach: um dos homens de Seanan Padraig: moço de estrebaria

Caol (kehl): moço de estrebaria Torcan: moço de estrebaria Fionn: ferrador-chefe

Íonait (ee-nit): mulher de Fionn, ajudante de cozinheira Mongan: chefe das cavalariças

Corb: ajudante de cozinha

Niall: encarregado da equipa de reparação dos muros Miach (mee-akh): herborista da família

Lughan: palafreneiro Tomas: palafreneiro

Davan: homem aleijado na história de Liobhan Flannat: rapariga bonita na história de Liobhan Cian: um músico

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Dança com o Destino

ST. PADRAIG’S Irmão Íobhar (ee-var)

Irmão Petrán: enfermeiro

Irmão Pól: ajudante de enfermeiro Irmão Martán: farmacêutico/herborista Padre Eláir: prior

Irmão Máedóc: antigamente, homem de leis FAIRWOOD Lorde Ross: chefe de clã

Cormac: o seu filho

Sárnait (sar-nit): a sua filha

OUTRO MUNDO Brocc Eirne (ehr-nyeh) Rowan Nightshade Pé-Gentil Borboleta-Traça Casaco-de-Cardo Verdadeiro (Elouan) Ágil-e-Veloz Lua-Fugitiva Conmael

OUTRAS PERSONAGENS CUJO NOME É MENCIONADO Blackthorn: uma mulher sábia, mãe de Liobhan, Brocc e Galen Grim: pai de Liobhan, Brocc e Galen

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Galen: o seu filho mais velho, guarda-costas e assistente do príncipe

Aolu

Aolu (eh-loo): príncipe herdeiro de Dalriada Oran: rei de Dalriada, pai de Aolu

Faelan: rei de Breifne Juniper: uma mulher sábia

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CAPÍTULO 1

LIOBHAN

E

stá um dia magnífico. O sol quente, as nuvens tufos altos bran-cos, o mar tão calmo quanto é possível em volta da Ilha dos Cisnes. Estamos sentados nos bancos corridos do recinto de combate, a formigar de expectativa, sabendo que a comemoração de hoje assinala o fim de muitos meses de trabalho estafante. Trabalho que adorámos e odiámos. Trabalho que nos testou até ao extremo da nossa resistência e pôs à prova os limites mais profundos das nossas capacidades, embora, como nos disse Archu, numa situação de crise conseguimos sempre descobrir um pouco mais para dar. Trabalho que forjou não apenas quatro guerreiros aptos a juntar-se à força perma-nente da ilha, mas também quatro verdadeiros amigos.

Eles não escolhem muitos. Quando começámos a treinar, havia vinte no nosso grupo. Quinze foram para casa. O meu irmão Brocc perdeu-se na nossa primeira missão. Não morreu; foi para o Outro Mundo, numa estranha e misteriosa sequência de acontecimentos. Sinto a falta dele todos os dias. Penso nele sempre que canto. Tenho medo de que nunca mais volte.

– Tudo bem? – murmura Dau, que está sentado ao meu lado. – Tudo. – A minha voz é cortante, mas não consigo evitá-lo. Que-ria tanto que Brocc estivesse aqui connosco, a desfrutar deste dia, a partilhar o nosso sucesso. – Olha, aí estão eles!

Pomo-nos de pé de um salto, com gritos de encorajamento, quando os nossos colegas instruendos entram no recinto de combate, com os bastões nas mãos. A próxima exibição é deles, depois sou eu e Dau.

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Estamos bem aquecidos, prontos para começar, mas não vamos deixar de ver Hrothgar e Yann mostrar os seus talentos. Um grande alarido ergue-se no ar, as vozes de todos os residentes da Ilha dos Cisnes a  aclamar os combatentes. Não há, de momento, ninguém em missão, por isso há uma multidão de quase sessenta a assistir: lutadores, ins-trutores, as pessoas que dão apoio ao trabalho da ilha e os anciãos: Cionnaola, o nosso líder; Archu, o nosso instrutor-chefe; Brigid, Eabha, Haki e os outros. São os melhores dos melhores. Os que têm a sorte suficiente, e o talento suficiente, para serem treinados aqui são muito solicitados quando reis e chefes de clãs precisam de concretizar uma tarefa que esteja além das capacidades dos seus homens de armas. Ou dos seus espiões, se os tiverem. Por vezes, as nossas missões fogem um pouco às regras da lei. Fazemos trabalho dissimulado. Trabalho secreto. É por isso que vivemos e treinamos num local tão isolado. É por isso que poucos estranhos aqui vêm. E é por isso que o período de for-mação é tão longo. Estiveram não só a testar as nossas capacidades físicas, mas também a assegurar-se de que somos de confiança. A certificar-se de que não nos vamos abaixo sob tortura. E a certificar-se de que sabemos pensar. Não é habitual aceitarem quatro novos guerreiros ao mesmo tempo. Sabemos a sorte que temos. E sabemos que o merecemos.

Hrothgar e Yann entram no recinto de combate. A orla do terreno está marcada com um anel de corda pousado no chão. Os combatentes param, de frente para os anciãos, e, com os bastões na vertical, curvam--se numa saudação. Cionnaola faz um aceno de cabeça solene. A mul-tidão está calada agora.

– Três moedinhas em Hrothgar – sussurra Dau ao meu ouvido. – Combinado.

Hrothgar, um nórdico, é mais alto e mais largo do que Yann. Mas o armoricano tem talento para ludibriar. Isso torna-o perigoso. Yann já me venceu uma ou duas vezes, utilizando essa habilidade, e eu sei que é um erro subestimá-lo.

Viram-se os dois um para o outro e fazem outra vénia. Assumem a posição de combate, com o bastão agarrado nas duas mãos, uma perto da extremidade, outra mais para cima. Movimentam-se, para trás e para a frente, golpeando à vez, ambos à procura de uma aberta. Os dois homens usam elmos de couro protetores – aquelas coisas aquecem

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Dança com o Destino

como um forno e acabamos com suor a obscurecer-nos a visão, mas para este tipo de combate são necessárias – e corpetes de couro enchu-maçados por cima das calças e túnicas.

– Espera, espera – murmura Dau. – Ah! – quando Yann perde a paciência e se lança para a frente.

A sua intenção é clara: jogar para o lado o bastão de Hrothgar e depois dar uma estocada com o seu na barriga do outro homem. Mas não é rápido o suficiente; a ponta da arma de Hrothgar bate com força no braço de Yann. Sei o que aquilo faz: os nossos dedos ficam dormen-tes durante longos e preciosos momentos. Yann salta para fora de alcance, retrai-se, a abanar a mão e a flexionar os dedos.

– Que fita – resmoneia Dau.

Não posso contestar. Quando Yann agarra outra vez no seu bastão, mudou a posição das mãos; agora estão um palmo mais à frente. Isso fará com que o bastão fique um pouco mais longe de Hrothgar do que antes. Yann usou o seu erro em seu benefício. E agora, sob o disfarce de uma hesitação momentânea, coloca um pé à frente, mas inclina a parte superior do corpo para trás.

– Esperto – murmuro.

Hrothgar dá uma estocada de cima para baixo, apontando para o peito do seu adversário. Se Yann não o tivesse enganado, seria um golpe que terminaria com o combate. Mas Yann está mais perto do que Hrothgar esperava. O armoricano transfere o peso para o pé dian-teiro e faz deslizar o bastão pela mão, direito ao peito de Hrothgar, entre as costelas inferiores. Hrothgar dobra-se. Não consegue respirar. A mão ergue-se no gesto de rendo-me.

A multidão ruge. Yann dá um passo atrás, espera que o seu adver-sário recupere o fôlego, o que demora algum tempo, e depois coloca--se de novo ao lado de Hrothgar para receberem os aplausos.

Dau e eu não esperamos para os ver afastar-se. Agora é o nosso combate. O último do dia; um combate sem armas, à melhor de três

rounds.

– Não posso apostar neste – diz Dau com um sorriso maroto quando avançamos para o recinto de combate, onde alguém alisa o solo com um ancinho, a prepará-lo para nós. As pessoas têm o hábito de atirar coisas quando ficam animadas. O pó ergue-se em volta do ancinho.

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– Mas, se pudesses, apostavas que ganhavas tu, sem dúvida. – Sem dúvida. Desejava-te boa sorte, mas quero a Lâmina de Bran, por isso não desejo.

– A perícia bate a sorte – digo-lhe, interrompendo-me para colocar o meu elmo.

Deuses, detesto estas coisas! Aquecem ainda mais quando temos uma data de cabelo para lá meter à força, como eu. Já estive tentada a cortar o cabelo muito curto, mas quando não estou a lutar sou música e o cabelo comprido fica bem quando me visto para atuar. E é útil quando estou a trabalhar disfarçada e preciso de parecer mais uma mulher vulgar e menos uma guerreira da Ilha dos Cisnes.

A um gesto de Archu, Dau e eu caminhamos juntos para o recinto de combate, onde tudo está agora pronto. As pessoas aclamam e gritam quando entramos; é um dia alegre, não apenas para nós, mas para toda a comunidade. Um dia especial. A Lâmina de Bran está exposta sobre um coxim, ao lado de Cionnaola. Será outorgada ao lutador mais notá-vel, não apenas hoje, mas durante todo o período de formação. É uma adaga antiga, bem cuidada, perfeitamente equilibrada, de estilo sim-ples, à exceção da imagem minúscula de uma abelha a voar, esculpida no punho de carvalho. Diz-se que a arma pertenceu ao homem que fundou a Ilha dos Cisnes há muito tempo, um homem que foi apeli-dado de fora da lei, mas que mostrou grande coragem, denodo e gene-rosidade para com a sua equipa. O filho e o neto, por sua vez, fizeram parte da comunidade da ilha e existem descendentes dessa equipa original ainda entre nós. Ninguém fica com a Lâmina de Bran para sempre. Um de nós recebê-la-á hoje, cuidará dela e usá-la-á até que um novo guardião ganhe esse privilégio através de algum ato excecional de valentia ou mérito. Um período de formação e prova como o que fez com que eu e os meus três camaradas conquistássemos lugares na ilha acontece apenas raramente. É mais vulgar os guerreiros entrarem para a comunidade um de cada vez, todos através do seu percurso pessoal. O guerreiro ou guerreira tem de ser capaz. Tem de ser com-petente. E precisa de ter a atitude correta. Pensei que Dau não a tivesse quando o conheci. Os seus modos eram arrogantes, desdenhosos, distantes, como se poderia esperar do filho de um chefe de clã. A mis-são mudou essa minha opinião. Mudou-nos a ambos. Mas a velha

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Dança com o Destino

rivalidade ainda se mantém. Ambos queremos a Lâmina de Bran. Ambos queremos ser o melhor.

Saudamos os anciãos, fazemos uma vénia a Cionnaola, posicio-namo-nos dentro das linhas indicadas pela corda.

– Três rounds – grita Archu, informando a multidão do que nós já

sabemos. – Quem ganhar dois será o vencedor. Se colocarem o pé fora dos limites, perdem de imediato esse round. Nada de arrancar olhos.

Nada de golpes nas virilhas. Recordem-se de que é uma exibição, não uma luta até à morte. Se infringirem as regras, não só perderão a luta como também andarão a esvaziar latrinas e a carregar mercadorias das barcas durante muito tempo. Entendido?

Isto se calhar é para mim. Tenho a reputação de usar truques sujos para ganhar se a situação o exigir. Mas sei muito bem que não posso fazer isso hoje, logo hoje. Dau e eu assentimos e murmuramos:

– Entendido.

– Comecem – clama Archu.

Tenho um plano. Enquanto dançamos em círculos, aproximo-me da corda. Perto o suficiente? Sim! Mergulho para os joelhos de Dau, com a intenção de o fazer cair para trás. Mas, ao tombar, ele contorce--se, conseguindo aterrar dentro do espaço do recinto. Tento agarrar-lhe a perna. Ele escapa às minhas mãos e, quase antes de eu perceber, esta-mos ambos no chão. Ele prende-me com um golpe a que chamaesta-mos o caranguejo, com ele de costas por baixo de mim, as pernas enganchadas por cima das minhas ancas e o braço em volta da minha garganta. Merda! É render-me ou desmaiar em cinco segundos. Levanto a mão e faço o sinal de rendição para mostrar que estou a abdicar do round. Dau afrouxa

a pressão. Engulo ar. Estou a tremer de fúria quando nos desenredamos e nos levantamos. Não zangada com Dau. Furiosa comigo mesma por não ter previsto que aquilo ia acontecer. Por ser demasiado lenta. Mal-dição! Agora tenho de ganhar os dois combates que restam. Endireito--me. Forço-me a respirar. Este maldito elmo está a pôr-me louca; é tão quente que estou a suar como um porco. Desaperto a correia, tiro aquilo e atiro-o para lá da orla do recinto. Não é obrigatório usá-los para lutas sem armas; devemos recorrer ao nosso bom senso. Passado um instante, Dau tira também o seu elmo e põe-no de parte. Lança-me um sorrisinho, mais do tipo malicioso. Naquela expressão, vejo o antigo Dau, aquele

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de quem eu não gostava muito, e cerro os dentes. Vou vencer este e o próximo. Quero a Lâmina de Bran. Se ganhar, serei a primeira mulher a tê-la; nem Brigid, uma guerreira experimentada e instrutora de com-bate, teve alguma vez a guarda da arma.

– Vamos, Liobhan! – grita alguém de entre a multidão e segue-se um coro de gritos, alguns para mim, alguns para Dau, alguns para ambos. Firmo-me. É o round dois e preciso rapidamente de ficar em

posição de superioridade.

– Comecem! – exclama Archu.

Dau avança de imediato para me agarrar, mas estou à espera daquilo depois do último ataque. Baixo-me, esquivo-me às suas mãos e espeto o meu cotovelo no seu fígado. Cruel. Mas eficaz. Ele geme e sucumbe, enrolado sobre si mesmo em sofrimento. Quando se consegue mexer, estica uma mão e faz o sinal de rendição.

Ajudo-o a levantar-se. Em parte apetece-me dizer que lamento. É meu amigo e magoei-o. Mas não deixo a amizade atrapalhar uma boa luta. Mais um round e pronto. Dau está enfraquecido por causa

daquele golpe. Consigo fazer isto. Encontro-lhe o olhar. Ele está um bocado pálido e a respirar com dificuldade, tal como eu. O suor faz-lhe brilhar o rosto e escurece o seu cabelo loiro. Tem os olhos semicerra-dos; o queixo cerrado com força. Fulmino-o também com o olhar.

– Comecem! – chega o grito.

Andamos em círculos. Nenhum som agora da parte da multidão; um silêncio mortal abate-se sobre tudo. Então, rápido como um relâm-pago, Dau simula um soco direito ao meu estômago. Agarro-lhe no braço e puxo-o para o desequilibrar, depois engancho-lhe o pé para o fazer cair. Ele tropeça, rola, recupera, volta a pôr-se de pé.

Continua a mexer-te, Liobhan. Tento agarrar-lhe a cintura. Sou

melhor lutadora no chão do que ele. Se conseguir derrubá-lo… Ele liberta-se e dá-me uma pancada no tornozelo. Tropeço, caio, rolo até ficar de pé e coloco alguma distância, alguns passos, entre nós para ganhar tempo. Ele sorri. Muito arrogante. Vou ganhar isto. Tenho de ganhar.

Tento agarrar a perna de Dau. Ele salta para trás, para fora do meu alcance, prende o pé em alguma coisa e cai pesadamente. A cabeça bate no chão com tanta força que ouço o baque. Avanço para saltar

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Dança com o Destino

para cima dele e prendê-lo numa chave de perna, mas imobilizo-me de repente. A multidão silencia.

Dau está deitado de barriga para cima na terra dura, com os braços muito abertos como os de uma criança adormecida. Tem os olhos fechados. O seu rosto é como o de um fantasma, de uma palidez doen-tia, e está muito, muito imóvel. O meu coração deixa de bater por um segundo e ajoelho-me ao lado dele. Houve uma ocasião, não assim há tanto tempo, em que pensei que tinha matado um homem simples-mente por tê-lo empurrado com um pouco de força a mais. Esse homem viveu e Dau também viverá; está a respirar.

– Afasta-te, Liobhan.

Archu está ao meu lado e outros avançam a passos largos na nossa direção: Cionnaola e o curandeiro residente da Ilha dos Cisnes, Fergus. Afasto-me do caminho deles, mas não vou a lado nenhum até saber se Dau está bem. De vez em quando, há pessoas que ficam inconscientes durante os nossos treinos; não é possível ter uma escola de arte da guerra a funcionar sem que as pessoas se magoem por vezes umas às outras ou a si mesmas, embora todo o nosso treino seja realizado sob regras rígidas para nos manter em segurança.

Dau ainda não se mexeu. Fergus efetua vários exames e depois abana a cabeça e murmura qualquer coisa para Archu, que grita:

– Maca!

Dois homens trazem a maca; quatro homens, sob a orientação do curandeiro, erguem Dau com extremo cuidado e depositam-no na maca, mantendo-lhe o corpo o mais imóvel possível. Eu quero ajudar, mas Archu faz-me sinal para me afastar.

Levam a maca a passo de caracol, como se o menor solavanco pudesse causar algum mal ao ocupante. Archu e Cionnaola ficam para trás. Estão a examinar o local onde Dau caiu. Archu levanta qualquer coisa do chão. Parece um cordão de couro com algo pendurado, talvez um amuleto da sorte. O tipo de coisa que as pessoas atiram, às vezes, quando ficam animadas. Demasiado pequeno para ser perigoso. Ou assim se pensaria.

– Poderá ter tropeçado nisto – diz Cionnaola. – É fácil o ancinho não dar por ele. – Lança uma olhadela aos espectadores, que conversam em voz baixa. – Puro azar. – Vira-se para olhar para mim. – Não viste isto?

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Mostra-mo por instantes e depois guarda a pequena coisa no seu bolso. É uma bugiganga em forma de pássaro e sei a quem pertence, como Cionnaola se calhar também, à filha de uma das nossas cozinhei-ras. Uma criança de cinco anos, tão excitada com a luta que atirou o seu amuleto da sorte para o círculo. Não vi isso, mas ouvi-a gritar: Vamos, Liobhan!

– Não. Devia estar parcialmente enterrado. Havia muita poeira a soprar por aqui. – Lanço um olhar para o portão, por onde a maca está a ser carregada e a desaparecer de vista. – Ele vai ficar bem?

– Não sei responder a isso. – Archu parece abatido. – É melhor voltares para o teu alojamento, Liobhan. – Vendo talvez qualquer coisa no meu rosto, amolece um pouco. – Manter-te-ei informada.

Vou até ao meu alojamento e escolho roupas limpas. Depois sigo para a sala dos banhos, onde dispo o que estou a usar. Esfrego todos os centímetros do meu corpo. Desmancho as tranças bem apertadas do cabelo no seu penteado de combate e lavo-o. Seco-me e visto o vestido e o vestido-avental que trouxe comigo, enfiando os pés em sapatos macios. Enrolo numa trouxa a camisa e as calças para lavar depois. Dirijo-me ao armeiro e limpo o meu corpete de couro, o cinto e as botas até ficarem impecáveis. Há por lá uma ou duas pessoas, mas não olho para elas e elas não falam comigo. Quando volto aos alojamentos das mulheres, muito mais pequenos do que os dos homens, visto que a maioria da população da ilha é do sexo masculino, já tenho os meus receios mais controlados. Mas não consigo tirar a imagem da cabeça. Alguém descreveu certa vez Dau como o belo príncipe de um conto. Era isso que parecia: um príncipe morto, tombado no campo de bata-lha na flor da juventude, o cabelo dourado cheio de pó e ensanguen-tado, as pálpebras fechadas sobre olhos de um azul-celeste, a pele de uma palidez irreal. Quanto tempo demorará Archu a dar-me notícias? Com certeza que Dau já deve ter recuperado a consciência.

Fico por ali à porta dos alojamentos das mulheres durante algum tempo. Toda a gente já abandonou o recinto de combate. As pessoas regressaram ao seu trabalho e, exteriormente, parece um dia claro de

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Dança com o Destino

primavera na ilha. A brisa aumentou. Faz com que as ondas do mar criem espuma. As gaivotas voam em círculo lá em cima, a gritar. Todos estarão ocupados. Alguns a preparar a refeição da noite, a tratar das ovelhas ou das galinhas, a reparar escoadouros ou edifícios ou muros de pedra. Alguns estarão a treinar com armas ou a manter a sua forma física escalando, correndo ou fazendo exercícios. Outros dedicar-se-ão a outras formas de treino. A Ilha dos Cisnes tem de ter sempre pessoas prontas para serem enviadas em missão. Pedidos para os nossos servi-ços especializados podem surgir em cima da hora. Foi o que sucedeu no verão passado, quando fomos disfarçados de menestréis ambulantes; eu e Brocc fomos escolhidos por causa da experiência que tínhamos a cantar e a tocar. Oh, quem me dera que ele estivesse aqui comigo agora. Por que ninguém me trouxe notícias de Dau?

Ando a passos largos para cima e para baixo mais algum tempo, a colocar-me perguntas sem respostas. Por fim, vou à enfermaria para descobrir o que está a acontecer, apesar de Archu me ter dito para ficar nos alojamentos. A porta do edifício de pedra está entreaberta, mas não se houve som nenhum lá dentro. Não sei se isso é bom ou mau. Fico ali à espera até que Archu me avista e sai, fechando a porta atrás de si.

– Liobhan. É melhor não estares aqui agora.

O seu tom de voz cuidadosamente controlado deixa-me doente de preocupação. A sua expressão é sombria. Estou prestes a explodir numa torrente de palavras, mas contenho-me. Em vez disso, digo baixinho:

– Só quero saber como ele está. Archu suspira.

– Foi uma pancada forte na cabeça e Fergus diz que foi num sítio particularmente delicado. Dau já recuperou a consciência, mas não está bem. Está com dores e confuso, como se poderia esperar. E… parece que a sua visão pode ter sido afetada.

Percorre-me uma rajada fria de pavor.

– Queres dizer… qual é a gravidade… posso vê-lo? – Levo a mão à boca, pressiono as costas nos lábios para me calar. Caso contrário, ainda gemo ou praguejo ou faço qualquer coisa estúpida.

– Fergus diz que não há visitas. Pediu a ajuda de outro curandeiro e mandámos chamar esse homem. Até que ele chegue, Criodan está

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a ajudar. – Archu cruza os braços e lança-me um olhar muito direto. – Vejo que estás preocupada e entendo por quê. Mas neste momento não és necessária aqui.

– Mas… – Mas Dau é meu amigo. Quero saber se ele está bem. Quero saber se ele poderá ficar aqui e lutar e ter um futuro.

– Liobhan. Vai-te embora. E fica longe desta vez. Vai ajudar noutro sítio.

Yann e Hrothgar descobrem-me quando estou a lavar as minhas roupas com tanta violência que ameaçam desfazer-se pelas costuras. Uma das coisas boas de viver na Ilha dos Cisnes, e há muitas, é que estamos rodeados por camaradas e esses camaradas entendem o que sentimos quando as coisas correm mal. Hrothgar, o nórdico alto, iça-se e senta--se na bancada de trabalho com as pernas a baloiçar e Yann pergunta com o seu suave sotaque armoricano se estou bem. Fecho os olhos por um instante, as minhas mãos ainda no lavadouro.

– Queres falar sobre isso? – pergunta Hrothgar.

Ergo as calças da selha e torço-as com força. Yann passa por mim sem dizer uma palavra e faz o mesmo com a camisa.

– Soubeste alguma coisa? – obrigo-me a perguntar. – Alguma notí-cia sobre o estado dele?

– Nada ainda. Ouvi-o gritar, há bocado. Cabeça dorida, calculo. Ele caiu com força.

– A gritar o quê?

– Não eram palavras. Apenas sons enfurecidos.

Emudeço enquanto vou estender as roupas num varal, onde o vento as secará depressa. Os dois homens seguem-me. Ficamos ali algum tempo a olhar para o continente. Há lá um pequeno povoado, parte da comunidade da Ilha dos Cisnes. Alberga uma estrutura de treinos secreta conhecida como Celeiro, um conjunto de cavalariças e zona de exercício para cavalos e alojamentos para as pessoas que lá traba-lham. Dau e eu treinámos para a nossa missão no Celeiro, com o meu irmão. Deuses, isso foi apenas há três estações? A missão, perder Brocc, ter de ir a casa explicar aos meus pais, depois voltar para aqui e

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Dança com o Destino

esforçar-me até ao limite para conquistar um lugar permanente, tudo isso entre um verão e a primavera seguinte? A exibição de hoje devia ter sido uma comemoração daquilo que conquistámos. Ainda pode ser. Dau pode aparecer à hora da ceia, um pouco pálido e trémulo, mas conseguindo fazer um ou dois comentários irónicos e comer qualquer coisa. Poderá estar de volta ao que era amanhã ou no dia a seguir.

– Ouvi dizer que mandaram buscar um curandeiro ao continente – digo, a pensar se o que estou a ver ali ao longe é um dos nossos barcos ou uma embarcação de pesca de outro sítio qualquer.

Os homens não fazem comentários.

– Ele tropeçou numa coisa tão pequena. Apenas uma tira de cordão e um amuleto minúsculo. Não sei como poderia ter causado tantos estragos.

– Ele bateu com a cabeça com muita força. – A voz de Yann é séria. – Estas coisas acontecem, mesmo quando temos cuidado. Simples azar.

– A culpa foi minha. – Obrigo-me a dizê-lo. – Se ele estivesse a usar o elmo não teria ficado tão ferido. Tirou-o porque eu tirei o meu. Para o combate ser justo. E vejam lá o que aconteceu.

– Não te podes culpar – diz Hrothgar. – Isto foi puro acidente. E retirar o elmo foi uma opção de Dau.

Faz-se então um longo silêncio. Desconfio que os dois estão a pen-sar o que eu estou a penpen-sar. Digo-o por fim; é melhor deitá-lo cá para fora agora, com os meus amigos, do que ter de perguntar a Archu ou, pior ainda, a Cionnaola, que é a figura de autoridade máxima na Ilha dos Cisnes.

– E se ele estiver mesmo ferido com muita gravidade? Com tanta gravidade que não possa ficar aqui? O que acontecerá?

– Isso é uma questão para os anciãos, não para nós – retorque Hrothgar.

– As pessoas às vezes ficam após uma lesão – comenta Yann. – Se houver outros trabalhos que possam fazer, qualquer coisa que seja necessária.

É verdade, até certo ponto. Uma pessoa com uma perna aleijada ainda poderá cuidar do armamento, desenhar mapas, conceber estra-tégias, ensinar outras. Um braço estropiado significaria que não have-ria mais combates, mas essa pessoa ainda podehave-ria montar guarda

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noturna ou ajudar a cuidar das ovelhas. Um ferimento na cabeça é mais problemático, mas os códigos da Ilha dos Cisnes, aqueles por que nos regemos todos, significam que a comunidade não abandona os seus feridos e debilitados. Há na ilha um guerreiro chamado Gus, um homem de cerca de quarenta anos que tem ataques de tonturas e con-fusão devido a um golpe na cabeça. É grande e forte, mas já não pode lutar. Podiam ter mandado Gus para casa. Mas a Ilha dos Cisnes fora a sua vida desde que era um jovem da nossa idade e não tinha outra casa, por isso arranjaram-lhe um trabalho. Mora num anexo nas tra-seiras da cabana do druida. Vai buscar as refeições de Criodan, ajuda--o a tratar da sua pequena horta e faz outras coisas úteis como misturar tinta e apanhar penas para escrever. Criodan e ele cuidam um do outro e toda a comunidade cuida dos dois. A Ilha dos Cisnes pode estar cheia de guerreiros ferozes, mas a tolerância e a compaixão encontram-se no topo da sua lista de preceitos. E há trabalho para todos. Ou devia haver. Não consigo pensar em nenhuma tarefa na ilha que seria segura para uma pessoa cega e, a julgar pelas expressões nos rostos dos meus companheiros, deduzo que chegaram à mesma conclusão. Ninguém está a fazer a pergunta mais difícil: E se ele morrer?

– Ele vai melhorar – diz Hrothgar. – Estamos a falar de Dau. É inque-brantável.

– Imparável – afirma Yann. – Não tarda nada, está recuperado. Entretanto, aproveitem a pausa nos seus comentários cortantes.

A hora da ceia chega e continua a não haver notícias. O ambiente no salão é de desalento. Na maioria das noites, temos música após a refeição e às vezes dança; esforçamo-nos, os dias são longos e difí-ceis e é uma boa forma de os terminar. Em geral, a banda consiste de Archu no tamborim bodhrán, eu a cantar e a tocar flauta, uma mulher

chamada Eimear numa segunda flauta e qualquer outra pessoa que sinta vontade de se juntar ao grupo. O meu irmão Brocc é um har-pista qualificado cuja voz podia derreter o mais duro dos corações. Sempre que tocamos sem ele, sinto a sua ausência como uma dor no peito.

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