Capela de Sant’Aninha:
Patrimônio e fé na colina Boa Vista
*Verônica Nunes1 *Sayonara Viana2
Resumo: Este artigo apresenta um olhar patrimonial sobre a capela da Sant’Aninha, destacando-a como um espaço de sociabilidade para as representações religiosas da família Ribeiro Guimarães.
Palavras-chave: Laranjeiras, capela, patrimônio, religiosidade privada. ABSTRACT:
Abstract: This article presents a patrimonial look about the chapel of
Sant'Aninha, highlighting as a space of sociability for the religious
representations of the family Ribeiro Guimarães.
Key words: Laranjeiras, chapel, heritage, private religiosity.
1
Verônica M. M. Nunes. Licenciada em História/UFS. Mestre em Memória Social e Documento/Uni-RIO. Docente do Núcleo de Museologia/UFS. Membro do Grupo de Pesquisa Culturas, Identidades e Religiosidades(GPCIR-DHI).E- mail:nunes.campuslar@gmail.com
2
Sayonara Viana. Licenciada em História/UNIT. Bacharelanda em Museologia/UFS. Especialista em Educação e Patrimônio Cultural de Sergipe/Faculdade Atlântico. E-mail: sayviana@hotmail.com
Este é um estudo sobre um bem cultural localizado no município de Laranjeiras e tem como objetivo destacar esse lugar como um espaço de sociabilidade cujos símbolos, ainda presentes na edificação, permitem uma leitura sobre o fausto do passado vivenciado pela família Ribeiro Guimarães. Fragmentos da memória social que evidenciam o papel da capela de N.S. da Conceição, conhecida com Sant’Aninha e como esse bem particular devocional, hoje cultural, foi incorporado ao imaginário da população. Este trabalho se apoiou em fontes judiciárias, como inventário e testamento integrantes do Cartório de Laranjeiras existentes no Arquivo Geral do
Judiciário, que proporcionaram a tessitura de fios que permitiram a construção social de aspectos da religiosidade da citada família.
A capela é considerada bem cultural, parte do patrimônio cultural material da cidade de Laranjeiras, entretanto não é tombada individualmente nos âmbitos federal e estadual, mas integra a área do conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico tombado tanto pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), como pelo Governo do Estado de Sergipe através do decreto número 2.048, de 12 de março de 1971. Ressaltamos que a capela se constitui em um exemplo de como as famílias laranjeirenses enriquecidas com a atividade agro-industrial, apoiada na cana-de-açúcar, e comercial investiam parte dos seus bens nos aspectos da religiosidade, da devoção e da fé.
2. A capela de Sant’Aninha na paisagem cultural laranjeirense
Nos oitocentos, a vila de Laranjeiras era o centro econômico da Província de Sergipe, em razão do desenvolvimento da agroindústria da cana de açúcar que propiciou a atividade comercial e a intensa movimentação no seu porto. A circulação do capital possibilitou que as famílias enriquecidas com a atividade açucareira tivessem condições de investir para erguer edifícios – residências, capelas, seguindo as normas estabelecidas pelos códigos de postura aprovados pela Câmara Municipal. Tal investimento favoreceu a transformação urbana com construções marcadas pelo estilo neoclássico, embora que predominassem os hábitos barrocos nas práticas religiosas e em algumas construções ainda possam ser verificados alguns elementos deste estilo.
Nesse processo de embelezamento destacamos a propriedade da família Ribeiro Guimarães, localizada no sítio Boa Vista.
O Padre Philadelpho Oliveira assim a descreve:
“Lá, bem longe, no meio do florido bosque, assinalada por esguias palmeiras, que gemem e soluçam impulsionadas pelo vento, destacava-se na Colina Boavista a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, vulgarmente chamada Sant’Aninha” (OLIVEIRA, 2005: 145).
É sobre esse bem cultural que trataremos nos próximos itens.
Fig.1: Capela de Sant’Aninha
Autor: Jorge Cézar
2.1. A Capela e a sua história
A capela e a casa contígua foram construídas por Agostinho Ribeiro Guimarães, que se estabeleceu na Vila de Laranjeiras, em Sergipe, a qual despontava como o centro da agroindústria açucareira da Província, com
inúmeros engenhos. Agostinho Ribeiro casou-se com a laranjeirense Maria Firmiana Soares do Nascimento, por volta de 1835, com quem teve quatorze filhos, sendo que apenas oito atingiram a idade adulta.
A obra foi iniciada em 1860, era para funcionar como um depósito de inflamáveis, mas como era vontade de Agostinho Ribeiro Guimarães, com o seu falecimento, foi transformada em capela e necrópole em 1874.
Para o funcionamento da Capela, foi solicitada por Antônio Agostinho Ribeiro Guimarães uma Provisão em 09/01/1878 ao Arcebispo da Bahia, Dom Joaquim Gonçalves de Azevedo (1814-1879). A Provisão concedia licença para a celebração do Santo Sacrifício da Missa aos domingos e dias santos, autorizava a realização de batismos e casamentos para pessoas da família e moradores da circunvizinhança do sítio, exceto batismos dos filhos de mulher escrava que deviam ser realizados de acordo com outras normas da Arquidiocese da Bahia.
A capela, dedicada à invocação de Nossa Senhora da Conceição, ficou conhecida com a denominação de Sant’Aninha. Essa denominação decorre do fato de que a capela foi edificada para que a filha de Agostinho Ribeiro Guimarães, Maria de Sant’Ana Soares Guimarães (1839-1917) (Figura 02) cumprisse em casa com a sua devoção ao invés de ir para o convento como era do seu desejo.
Fig. 02: Maria de Sant’Ana
2.2. A Capela e suas funções:
Como em Portugal, cerimônias e rituais públicos faziam parte integrante da cultura religiosa era natural que no Brasil, sua colônia americana, esse hábito permanecesse.
“Toda semana em Portugal seiscentista os fieis deveriam passar horas
seguidas reunidos nas igrejas, capelas ou ermidas, rezando, cantando, ouvindo sermões ou assistindo a representações religiosas, como presépios, autos de fé, lausperenes, vias-sacras etc., não apenas em sua própria vila ou cidade, mas também nas terras circunvizinhas” (MOTT, 2002: 160).
A vida religiosa privada, mesmo quando legítima e aprovada pela igreja incrementou-se, devido às grandes dificuldades da cristalização de uma religiosidade pública e eclesial e fatores diversos tais como as grandes distâncias territoriais, o difícil acesso às igrejas, os perigos do transporte interno e dos animais, o reduzido número de ministros, templos e da própria comunidade cristã. Tais aspectos fizeram com que as celebrações religiosas fossem abolidas ou fossem transferidas para dentro dos templos e residências, com destaque para estas últimas. O reduzido número de ministros explica-se em face do alto custo de manutenção que fazia com que os leigos pudessem intervir na administração do sagrado. Estes não estavam preocupados em seguir os dogmas estabelecidos ou as determinações canônicas decidindo então, sobre as devoções, as festas, o padroeiro e as celebrações religiosas. Desse modo, segundo Torres- Londoño (1997: 48), tornou-se comum a construção de capelas em associação à manifestação da Virgem. Os símbolos dessa devoção podem ser observados na capela de Sant’Aninha, em cuja porta de entrada o arco ostenta as iniciais “C de M”
Fig. 3: Inscrição porta de entrada da capela
.
Autor: Jorge CézarEm muitas propriedades rurais mais abastadas era fato bastante comum serem erguidas capelas próximas as casas grandes, “era uma questão de
status e de cumprimento das obrigações religiosas” (TORRES-
LONDOÑO, 1997, p.168). Entendemos que os senhores de engenho necessitavam afirmar seu status através de sua participação em rituais religiosos e “as capelas podiam também materializar sentimentos e
promessas de seus idealizadores ou nascer de circunstâncias fortuitas e imprevistas” (TORRES-LONDOÑO, 1997, p.46).
A capela, além das funções religiosas, era ponto de reunião social. Ali se celebravam casamentos, batizados, primeiras comunhões e servia também de cemitério aos membros da família. (Fotos 04 e 05). Enfim, um espaço de sociabilidade vivenciado pela família Ribeiro Guimarães.
As funções da capela foram alcançadas, segundo relata Oliveira:
...este duplo fim foi alcançado inaugurando-se a capela no dia 12 de janeiro de 1878 com o batizado de Maria Adelaide Guimarães e a necrópole com os restos mortais do Major Agostinho, os quais foram sepultados em 28 de maio de 1874 no Cemitério da Misericórdia, de lá foram transladados e depositados na Igreja da família em 1878.
Fig. 4: Túmulo de Agostinho José Ribeiro Guimarães
Fig. 5: Túmulo de Pedro Paulo Valverde
Foto: Jorge Cézar
2.3. A Capela e o Neoclássico:
O neoclássico se instala na América portuguesa a partir das lições trazidas pelos artistas franceses chegados ao Rio de Janeiro pelos idos de 1816. A partir daí esse é o novo paradigma artístico que terá na Academia Imperial de Belas Artes, modelo a ser seguido.
A influência neoclássica representava o retorno às formas da antiguidade clássica grego-romana, difundindo o retorno às formas estéticas, de
tratamento linear e em superfície.
No Brasil, é na Corte que o estilo se apresenta com um nível de maior complexidade. Como observa Reis Filho:
“Apenas alguns elementos construtivos como cornijas e platibandas eram explorados como recursos formais. Em geral, as linhas básicas da composição eram marcadas por pilastras, sobre as quais, nas platibandas dispunham-se objetos de louça do Porto, como compoteiras ou figuras representando as quatro estações do ano, os continentes, as virtudes etc.” (REIS FILHO, 2000, p. 117)
Fig. 06: Vaso em porcelana, detalhe dos elementos decorativos
E nas Províncias ocorrerá uma transformação superficial, pois, muitos elementos barrocos permaneceram na construção adaptando-se à realidade local. Como podemos observar no frontão da Sant’Aninha, onde são mantidas as características barrocas.
Fig 7: Frontão com voluta
Fig. 8: Arco pleno, porta principal da capela
Autor: Jorge Cézar
Autor: Fabio Alexandre
2.4. A Capela e os elementos arquitetônicos:
A capela é de nave única, com altar-mor, como pode ser observado na planta que segue.
Legenda: 1. Retábulo
2. Túmulo de Agostinho José Ribeiro Guimarães
3. Túmulo de Pedro Paulo Valverde
Fig. 10: Planta da Capela de Sant’Aninha Desenho: Arquiteto Murilo Lacerda/ 2007
A cúpula da capela com 6m de altura é o elemento de maior destaque da sua arquitetura com o seu zimbório que lembra o da Basílica de São Pedro, em Roma e se destaca na paisagem.
Fig. 11: Parte externa da cúpula
Autor: Jorge Cézar Fig. 12: Zimbório
Foto: Jorge Cézar
2.5. A Capela e o seu acervo
Na maioria dos casos, as capelas ficavam separadas das residências, mas há exemplos de capelas edificadas contiguamente às casas-grande, como por exemplo, a de Sant’Aninha, que foi construída no sítio Boa Vista.
Segundo Valadares (1983), as imagens que existiam na capela, a exemplo, da “Madona e o Menino” (foto 13), eram de excelente qualidade,
atualmente as mesmas não estão nos seus altares originais.
Outra imagem referenciada na história da capela é a do Menino Deus, que se apresentava com diadema, alpercatas de ouro e anéis de brilhante,
sentado em cadeira de prata e que teria sido oferecida à capela pelo frei Salvador Maria de Nápoles. Sobre essa imagem Araújo afirma: “Contava
minha avó Grasiela Ribeiro Teles, que o frade teria doado a imagem em gratidão pelo fato de Sant’Aninha ter cuidado dele uma vez quando esteve enfermo” (ARAÚJO, 2010, p.77).
Fig. 13: Nicho lateral com a “Madona e o Menino”.
Fonte: VALADARES, Clarival do Prado. Nordeste Histórico e Monumental, 1983.
Em 1897, o arcebispo da Bahia, D. Jerônimo Tomé da Silva (1849-1924), quando de sua visita pastoral à cidade de Laranjeiras elogiou a conservação da capela. Nessa época, o local já era uma referência na arte religiosa e ressaltemos que hodiernamente alguns fragmentos desse passado ainda podem ser apreciados lá.
18
Fig. 14: Altar-mor, estilo neoclássico
Autor: Fabio Alexandre Fig. 15: Vasos Vieux-Paris.
19
2.6. A Capela e o seu estado de conservação na atualidade:
Gravuras com representações do Coração de Jesus, Santa Ceia, da Anunciação, Nossa Senhora do Rosário e a litogravura que faz parte da Via Sacra com o tema “The Christi to the Reed de la cana” existentes atualmente no interior da capela encontram-se em péssimo estado de conservação.
Fig. 16: “Coração de Maria”
Autor: Fábio Alexandre
22
Fig.18: “Coração de Jesus”
Destaque da sua arquitetura, a cúpula (Foto 20), encontra-se em processo de degradação
biológica e estrutural, com infiltrações devido à umidade. Falta-lhe manutenção nas
estruturas e a cada ano sofre com a ação do tempo. Seu interior que perdeu a pintura
original apresenta em vários locais um processo semelhante.
Fig. 20: parte interna da cúpula
Autor: Sayonara Viana
Fig. 21: umidade das paredes
Foto: Sayonara Viana
Fig 22: Lateral da capela e da casa contígua
Apesar da situação em que se encontra o bem cultural, o mesmo necessita passar por um
processo de intervenção, não para retornar a sua condição original, mas a fim de seja
evidenciado como espaço de memória. A urdidura elaborada da interação entre as fontes
patrimoniais e documentais nos permitiu compreender as construções sociais da família
Ribeiro Guimarães. No presente, tendo como base os símbolos dessa capela torna-se
possível o uso educativo por meio de uma leitura de elementos do estilo neoclássico, do
estilo barroco e das representações religiosas dessa área no intento de tornar esse espaço
religioso conhecido para a comunidade do ponto de vista histórico e não dos mitos
construídos em torno da figura da Sant’Aninha.
Outrossim, podemos afirmar que o entrelaçamento realizado trouxe à luz a construção
social de aspectos da religiosidade da referida família, bem como acrescentou
informações a serem utilizadas para a restauração desse monumento.
Essa apropriação pela comunidade evidencia a importância desse bem cultural que
necessita ser preservado e tornar-se uma narrativa edificada das representações religiosas
da família Ribeiro Guimarães.
FONTES: 1) AJES
Ação Sumária do Cartório de Laranjeiras. 1º Oficio. Inventário de Agostinho Ribeiro Guimarães. Cx. 10/ 222.
LOCAIS DE PESQUISA Arquivo Judiciário de Sergipe
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANDRADE, Mário de. A arte religiosa no Brasil. São Paulo: Experimento; Giordano, 1993. ARANTES, Antonio Augusto, org. Produzindo o passado. Estratégias de construção do
patrimônio cultural. São Paulo: Brasiliense, 1984.
ARAÚJO, Ricardo Teles. Genealogia sergipana. Aracaju: Typografia Editorial, 2010, v.1. CAMPIGLIA, G. O. Igrejas do Brasil: fontes para a história da Igreja no Brasil. São Paulo: Melhoramentos, s/d.
CARVALHO, Ana Conceição Sobral de e ROCHA, Rosina Fonseca, org. Monumentos
Sergipanos: Bens protegidos por lei e tombamentos através de Decreto do Governo do Estado.
Aracaju: Sercore, 2006.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Tradução Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2001.
DAMASCENO, Sueli. Igrejas Mineiras: glossário de bens móveis. Ouro Preto: Instituto de Artes e Cultura / UFOP, 1987.
FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; Sergipe: Governo do Estado de Sergipe, 1977.
LEMOS, Carlos A.C. O que é Patrimônio Histórico. São Paulo: Brasiliense, 2004.
LOUREIRO, Kátia Afonso S. Arquitetura Sergipana do Açúcar. Aracaju: FUNDESC, 1986. MAGALHÃES, Walter (Mons.). Pastores da Bahia. Salvador: s/e, 2001.
MEC/ SPHAN/ PRÓ-MEMORIA. Proteção e revitalização do patrimônio cultural no Brasil:
uma trajetória. Publicações da SPHAN. Brasília, 1980.
MELLO, Zélia Maria Cardoso de. Metamorfose da riqueza. São Paulo (1845-1895). 2ª ed. São Paulo: Ed. Hucitec. 2ª ed, 1990.
MELO, Maria Andrelina de. Aspectos históricos culturais de Laranjeiras. Edição da Subsecretaria de Cultura do Estado de Sergipe, 1981.
MOTT, Luiz R. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986. NASCIMENTO, José Anderson. Sergipe e Seus Monumentos. Aracaju: J. Andrade, 1981. NUNES, Verônica Maria Meneses. Laranjeiras: de cidade histórica a encontro cultural. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1993. OLIVEIRA, Vigário Philadelpho Jonathas de. Registros de fatos históricos de Laranjeiras. 2ª edição: Subsecretaria de Cultura e Educação do Estado de Sergipe, 1981.
PERUZZO, Alberto. Dicionário do Antiquariato. Editore, Milão. Itália; 1968.
Plano Urbanístico de Laranjeiras. Salvador: UFBA: GRAU, 1975.
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. 9ª. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. Tradução: Laura Teixeira Mota – Cia. das Letras: São Paulo, 1999.
SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Preservação do patrimônio cultural em cidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
TORRES - LONDOÑO, Fernando (org.). Paróquia e comunidade no Brasil. São Paulo: Paulus, 1997.
VALADARES, Clarival do Prado. Nordeste Histórico e Monumental. Ed. Danubio. Salvador, 1983.