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A Classificação Lockeana das Idéias: idéias fora do lugar?

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Academic year: 2021

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A CLASSIFICAÇÃO LOCKEANA DAS IDÉIAS: IDÉIAS FORA

DO LUGAR?

JOSÉ ALEXANDRE DURRY GUERZONI

Departamento de Filosofia

Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre, RS

À meu pai (In memoriam)

“[...] it is rational to conclude that our proper employment lies in those inquiries and in that sort of knowledge which is most suited to our natural capacities, and carries in it our greatest interest, i.e. the condition of our eternal estate.” (Ensaio, IV, 12, 11)

Resumo: O presente trabalho procura mostrar alguns elementos de juízo favoráveis à leitura do

Ensaio como a “mera” história natural do entendimento humano, uma arrumação e uma faxina da

consciência humana que, ao introduzir certa ordem e limpeza nesse caótico domínio, facilita o trabalho dos cientistas. De um ponto de vista meramente exegético, essa leitura justifica-se já pela forma extremamente modesta como Locke expõe as suas pretensões “filosóficas”. Aqui se procura mostrar que são insuperáveis as dificuldades para fazer da exposição acerca das origens, tipos e extensão de nossas idéias no Livro II uma como que “gramática raciocinada empirista das idéias”, uma explicação cabal de como todas as idéias que apetrecham a mente humana são ou idéias simples (dos sentidos externos ou do sentido interno, reflexão) ou resultam dessas por meio de operações da mente bem definidas. Explicação que seria exigida pela plena inteligência do conhecimento humano segundo o ponto de vista empirista (i.e., consoante o princípio “nihil

est in intelecto quod no prius in senso fuerit”).

De sorte que a notória insuficiência da explicação do conhecimento humano nos Ensaios não resulta, como pretendem alguns, da papalvice do autor, mas pelo contrário, de sua profunda compreensão da fraqueza e dos limites da vida humana presente; rasos seriam, aos olhos do cristão Locke, os meios que os homens dispõem para compreender sua natureza mortal agora, quando não é dado ao ser humano ver as coisas senão opacamente, como que num espelho, para fazer uso da famosa expressão de São Paulo, autor sagrado da especial predileção de Locke. Aos olhos cristãos daquele que aceita o caráter precário de toda e qualquer empresa humana e que não tem outra pretensão senão a de colaborar com a sua época, a insatisfação com a explicação “histórica plana”

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do entendimento humano, lusco-fusca como soe ser o saber humano na vida presente, e a conseqüente demanda pela plena inteligência não podem parecer senão como descabidas.

O texto se articula em três momentos fundamentais: i) a sugestão de que o Ensaio se situa num registro totalmente outro que o de obras como as Meditações ii) a análise das dificuldades em lê-lo como uma tentativa de demonstrar algo (no caso o empirismo) que obrigaria a reconhecer a sua indigência intelectual e iii) a análise das razões que Locke dispunha e de outras que se pode inventar para se contentar com uma “faxina honesta” que, por não pretender limpar e organizar tudo, não precisa nem esconder poeira debaixo do tapete, nem jogar no lixo aquilo que não for possível dispor ordenadamente.

Palavras-chave: Locke; empirismo; origem das idéias; vã sabedoria.

Abstract: In this paper, we analyse some difficulties of the usual reading of the Locke’s Essay as a

demonstration of the empirical origin of our ideas. In our opinion, a better understanding would be obtained if it is paid more attention to its religious inspiration: in the spirit of the Ecclesiastes, to refrain the main of the send of the vain knowledge.

INTRODUÇÃO

Locke afirma, já na Introdução, que o objetivo de seu tratado é “[...] investigar a origem, certeza a extensão do conhecimento, juntamente com os fundamentos e graus da crença (belief ), opinião e assentimento (assent)”. Na Carta ao Leitor, após fazer as honras ao tema tratado, Locke explicita o que o levara a investigar o entendimento humano. Observa que, por ocasião de uma discusão entre amigos que se mostrava infrutífera, veio-lhe a mente a idéia de que “[...] haviam seguido o curso errado; que, antes de empreender investigações dessa natureza1, era necessário examinar nossas próprias habilidades e averiguar com

quais objetos nosso entendimento está, ou não está, preparado para lidar”. Justifica-se assim a pretensão costumeira de comparar o projeto lockeano no “Um ensaio acerca do entendimento humano” com o de outros autores, em particular, com aquele que Descartes pretende ter executado nas Meditações. Lá como aqui encontram-se expostas doutrinas acerca do entendimento humano e

1Aqui Locke não explicita qual seria o tema da discussão nessa ocasião, observa

apenas que se tratava de um tema muito distante do tema do Ensaio. No entanto, Wolterstorff, citando Cranston, 1957, pp. 140-1, observa que se pode saber, de um notação nas mãos de Tyrrel, que se tratava de uma discussão sobre tema morais e de religião revelada (WOLTERSTORFF, 1994, p. 174).

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das idéias de que ele é guarnecido, suas naturezas e origens, explanações que visam dar inteligibilidade aos atos cognitivos humanos, medi-los em suas pretensões teóricas, expor seus fundamentos de legitimação e lograr uma conseguinte justificação do conhecimento, sopesando as aptidões cognitivas próprias ao ser humano. Ou seja, ainda que lançando mão de uma expressão anacrônica nesse contexto, ambos pretendem oferecer uma “dedução” do conhecimento humano, na acepção que a tradição jurídica do Sacro Império de Nação Germânica emprestava ao termo “dedução”2.

A mera consonância do tema e dos propósitos imediatos, porém, não oferece fundamento suficiente para rivalizar o projeto lockeano aos de outros autores, principalmente, aos de autores mais afeitos a profundas meditações metafísicas ou a intrincados argumentos e distinções transcendentais. Não basta reconhecer que se demanda a melhor inteligência do entendimento humano e a justificativa para suas pretensões cognitivas, é necessário explicitar os termos da demanda. Rivalizar-se num projeto é medir-se com ela também no tocante aos próprios critérios que servirão para avaliar o sucesso ou não da empresa; no caso, é confrontar-se também na arena do que conta como uma conveniente explanação e justificação das aptidões e atividades cognitivas humanas.

A melhor compreensão de empresas como a lockeana não pode prescindir das respostas a questões como: o que cabe esperar de uma investigação sobre temas tão árduos? O que é dado ao homem compreender acerca de sua própria natureza como ser cognoscente? Quanta inteligência e qual gênero de certeza é maximamente razoável esperar de uma investigação sobre as próprias aptidões cognitivas humanas?

Evidentemente a solução plenamente articulada dessas questões não pode ser uma condição lógica prévia à empresa intelectual proposta por textos como o Ensaio. A ninguém ocorreria, por ocasião de um debate sobre o conhecimento, a idéia de que os querelantes haviam seguido o curso errado; que, antes de encetar a investigação, seria necessário examinar suas próprias habilidades e averiguar o que é lhes é dado conhecer acerca da natureza e condição atual do ser humano enquanto ser cognoscente, qual o grau de inteligência e certeza que a matéria

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comporta. Nem se pode simplesmente pressupor respostas convenientes para as questões ora assinaladas, pois isso implicaria na atribuição gratuita de obviedade; a natureza de tais questões não é inteiramente outra que a daquelas que ensejam a própria inquirição, de sorte que a plena articulação de suas respostas não pode emergir senão da própria inquirição que se pretende realizar.

Ainda que por aqui, como de resto em toda investigação filosófica, ronde o fantasma do “círculo vicioso”, não se pode deixar de reconhecer que os próprios critérios de sucesso da empresa dependem de investigação proposta e vice-versa. A inteligência de obras como o Ensaio requer a elucidação das respostas, implícitas ou explícitas, para essas por assim dizer meta-questões3. Ao

leitor atento e indiferente4 compete reconhecer os exatos limites (ou a imensidão)

das ambições teóricas que as animam, a ele cabe apreender a exata métrica (ou, eventualmente, desmesura) que cada autor empresta à sua obra, bem como as justificativas apresentadas para demandar inteligência nessa medida e não em outra, maior ou menor. Sob essa perspectiva, avaliar a obra não é senão aplicar a máxima popular segundo a qual “o peixe morre pela boca”.

As modulações próprias da exposição, o tom que Locke lhe empresta oferecem valiosas indicações das ambições teóricas que a animam, sugerindo os limites impostos aos fins perseguidos. Não há como deixar de notar a modéstia, a falta de afetação, a moderação que Locke empresta a exposição de motivos da investigação, que conferem a seu projeto um matiz peculiar. Já na Carta ao Leitor, após ter candidamente confessado a sua indolência, Locke se apresenta como alguém que não tem outra pretensão senão a de contribuir com sua época, fazendo-se por assim dizer de faxineiro da ciência; em seus próprios termos,

(...) numa época em que são produzidos mestres como o notável Huygenius e o incomparável Newton, e outros da mesma estirpe, consiste em suficiente ambição ser empregado como um trabalhador inferior, que limpa um pouco o terreno e remove parte do entulho que está no caminho do conhecimento.

3Observação que não exclui a hipótese de que a única alternativa seja reconhecer

como carente de sentido tais questões: cortar o nó górdio não deixa de ser uma forma de solucionar a dificuldade.

4Deve-se aqui atentar para significado arcaico do termo inglês “indiference”,

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Na Introdução, salienta que, ao considerar as faculdades de discernimento do ser humano, tais como são aplicadas aos objetos com os quais lidam, espera simplesmente não ter sido vão empregar-se nisso

[...] se, por essa via histórica simples (plain historical method), puder dar algum relato dos modos como nosso entendimento logra atingir aquelas noções das coisas que temos e puder estabelecer algumas medidas da certeza de nosso conhecimento ou os fundamentos daquelas persuasões que são encontradas entre os homens [...] (Introdução, 2)

Consciente de que o superior deve governar o inferior, ele não demanda regras da inquirição da verdade, pelo contrário, toma-as daqueles a quem quer servir e que merecem a sua inteira admiração; assim, pretende recorrer tão somente à experiência e à observação, ainda que não raramente sob a forma peculiar da introspeção, para justificar suas asserções. (Cf. II, 1,1; II,1,5; II, 23,3; II, 11,16) 5.

Indicações que situam o projeto lockeano de investigar o entendimento humano na perspectiva espontânea, natural, dos homens que tomam o razoável como a norma seja na contemplação da verdade, seja na conduta dos negócios humanos, que se regulam por aquele sólido “common sense” do qual os britânicos são proverbiais detentores. Vale dizer, Locke não parece reconhecer uma registro próprio da contemplação da verdade que reclamaria uma forma própria de certeza (a certeza metafísica); seja aqui como na conduta seria suficiente o gênero de certeza a que Descartes dera o nome certeza moral. Pode-se até mesmo indicar a passagem do Ensaio que se apresenta como uma crítica explicita à dúvida

5As citações tomadas do Ensaio acerca do entendimento humano serão indicadas segundo a

convenção seguinte: o primeiro algarismo, romano, indica o livro, o segundo e o terceiro, arábicos, indicam o capítulo e o parágrafo, respectivamente. Aqui, emprega-se a edição de Frasser, reproduzida na Coleção Great Books of the Western Word. Para as demais obras de Locke, utilizou-se diretamente a edição de Frassser (“The Works of John Locke”) de 1823 reimpressa na Alemanha por Scientia Verlag Aalen, em 1963. Ao longo do texto, as obras serão citadas indicando-se apenas o volume em que se encontra a obra, precedido da letra W; em especial, a obra publicada postumamente “An examination of P. Malebrance’s opinion of seeing alll things in God” (W9); os textos da diatribe com Lord Bishop of Worcester (W4) e “The reasonableness of Christianity (W7).

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metódica e radical cartesiana, passagem na qual Locke afirma como vã a recusa do assentimento a uma proposição simplesmente porque “não se pode fazê-la assim tão evidente de sorte a superar toda a menor (eu não direi razão, mas) pretensão de dúvida” (IV, 11, 10).

Também a consideração mais próxima da crítica à tese das idéias inatas, exposta no Livro I do Ensaio, poderia conduzir à percepção de que a investigação lockeana não se encontra no mesmo plano que a cartesiana. Ainda que se deva talvez reconhecer, a bem da verdade histórica que os alvos privilegiados dessa crítica sejam os platônicos de Cambridge e não propriamente Descartes, fica claro que o terreno em que Locke arma o confronto, o de presuntivas evidências empíricas, não é o de Descartes. Não é difícil imaginar como uma análise cuidadosa das críticas lockeanas ao inatismo poderia mostrar que elas não abalam a posição cartesiana na exata medida em que a tese das idéias inatas é tratada não como o resultado de uma complexa e penosa análise metafísica das condições da inteligibilidade, mas como uma tese de uma eventual psicologia empírica; a congenitalidade das idéias, se real, deveria estar franqueada imediatamente à introspeção e à observação do comportamento humano.

Contudo não se deve conceder a essa crítica mais peso que lhe deu seu autor, que explicitamente a alivia da função argumentativa, ao reconhecer que apenas os preconceitos de sua época o obrigam a expor as razões para duvidar da verdade da tese das idéias inatas (cf. I,1,1). De seu próprio ponto de vista, como ele próprio o diz imediatamente antes,

Seria suficiente para convencer os leitores sem preconceito da falsidade desta hipótese [a hipótese acerca das idéias inatas] se pudesse apenas mostrar (o que espero fazer nas outras partes deste tratado) como os homens, simplesmente pelo uso de suas faculdades naturais, podem adquirir todo conhecimento que possuem sem a ajuda de quaisquer impressões inatas e podem alcançar a certeza sem quaisquer destas noções ou princípios originais. (I,1,1).

Evidentemente, tal estratégia não conduz logicamente à refutação de nenhuma tese existencial, e, assim, tampouco à negação da existência de princípios ou idéias inatas. No entanto, se levada a bom termo e a depender de como for conduzida, mais precisamente do significado que for emprestado as

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expressões “uso de suas faculdades naturais” e “impressões inatas”, ela condu-ziria à atribuição de caráter gratuito ao inatismo e, nessa medida, culminaria na refutação da posição cartesiana, bastando que sua execução fosse conforme ao adágio medieval “nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu”6.

Assim, a passagem acima mencionada obriga o leitor, sob pena de escárnio, a enfatizar o restante da obra, a fazer recair o ônus da argumentação a favor da posição empirista em algum (ou, eventualmente, em mais do que um) dos outros três livros que compõem o Ensaio. Ora, é no Livro II que Locke oferece ex professo o que pretende que seja a “verdadeira história dos primórdios do conhecimento humano” (II, 11, 15), delineia as idéias originais das quais todas as demais são derivadas e compostas (II, 21, 75) e considera os atos da mente através dos quais esta exerce seu poder e constitui outras idéias a partir das idéias recebidas dos sentidos (II, 12, 1). Parece, então, razoável procurar aqui as razões que Locke dispõe para favorecer a posição empirista, pelo menos no tocante as idéias, isto é, o locus em que seria mostrado como os homens, simplesmente pelo uso de suas faculdades naturais, e sem ajuda de qualquer impressão inata, podem adquirir todas as idéias de que suas mentes são guarnecidas.

Vale dizer, tomar o sistema de classificação das idéias, cujo núcleo encontra-se exposto no Livro II, não como um mero dispositivo de economia da exposição, mas um importante passo na “longa, muito longa demonstração” da origem e da justificativa empírica do conhecimento, que Bento Prado Neto pretende ler no Ensaio7.

6Certamente, um cartesiano recusaria ab initio a proposta, pois tem por certo que a

idéia de infinito fornece uma contraprova suficiente. O mero reconhecimento da idéia de infinito demonstraria a inexequibilidade da empresa exigida pelo empirismo de retraçar todos os conteúdos da consciência aos que os sentidos lhe apresenta. Pois, como tudo que se apresenta aos sentidos é finito, a idéia de infinito por ser exatamente a idéia de infinito não poderia ser uma idéia sensível (um conteúdo de consciência dado ou como que dado pelos sentidos) e por ser uma idéia positiva, pelo menos assim pretendem os cartesianos, não seria uma idéia derivada de nenhuma outra.

7Aos olhos desse comentador, o segundo passo, uma vez que o primeiro teria sido

dado já no Livro I. Seu refinado e perspicaz comentário não é assim mais uma voz, com seus timbre próprio, a entoar com Ryle uma velha canção:

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Porém, não são poucas, nem fracas as razões que levaram uma plêiade de comentadores a descuidarem do tema da classificação lockeana das idéias, mais ainda, a se sentirem obrigados e autorizados a proceder dessa maneira. Na verdade, elas saltam à vista de qualquer leitor do Ensaio. A multiplicidade dos qualificativos com os quais Locke predicamenta as idéias e o variegado das oposições conceituais em nada facilitam a clareza e a distinção daquela que seria a classificação lockeana das idéias. A consciência dramática das dificuldades em destrinçar essa complexa teia, qualquer leitor pode experimentar por si mesmo, se ousar a elaboração de um quadro sinóptico dos predicamentos que organizariam o vasto domínio das idéias. Ele deparar-se-á então, para citar apenas alguns exemplos, com o fato de que, numa mesma passagem, o termo “complexa” serve para delimitar tanto a totalidade das idéias que são formadas pela mente (isto é, as idéias não simples), como uma classe particular dessas (aquelas que resultam do ato da mente de combinar diferentes idéias em uma única composta), ou, como já assinala um manual de História da Filosofia, com o fato de que as idéias de relação comparecem seja como uma classe autônoma, paralela a das idéias complexas (na acepção de formadas pela combinação de várias idéias numa única composta) e a das idéias gerais (formadas por abstração), seja como uma subdivisão das idéias complexas, ao lado das idéias de substâncias e de modos (II, 12, 1); e. em pelo menos uma outra passagem, o leitor encontra-se com a intrigante observação de as próprias idéias simples seriam um dos tipos de idéias abstratas disponíveis na mente (II, 31, 12). Vale dizer, as diferentes oposições introduzidas ao longo do Ensaio (simples–complexa; recebida–formada, original– derivada, particular–geral) dão lugar a distintos recortes no domínio da consciência de difícil senão impossível integração num sistema uniforme e unitário de classificação das idéias.

[...] I need not say much about Locke’s treatment of the formation of derivative ideas, that is to say, of the operation of mind by which we come to apprehend compound characters and to consider attributes in abstraction from the particular objects which we have found to exemplify them. For in the main his treatment of these topics is an unsatisfactory mixture of an attempt to give a logical classification of the types of general terms which occur in the propositions of the mathematical and natural sciences with a half-hearted attempt to button these subjects up into the strait jacket of his representationist theory of ideas. (RYLE, 1968 , pp. 28-9)

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Ademais, na mesma passagem em que reconhece os limites do primeiro livro e que induz o leitor atento a procurar no segundo livro os fundamentos do “edifício uniforme e consistente”, erigido sem necessidade do apoio em escorras ou arcos (“to shore it up with props and buttresses”) e que não pressiona fundações tomadas por empréstimo ou mendigadas (“leaning on borrowed or begged foundations”), Locke alerta seu leitor para não esperar “demonstrações cogentes inegáveis” e, a fim de ver reconhecida a verdade de suas asserções, apela simplesmente à experiência isenta de preconceitos e à observação dos próprios homens, tendo isso como

[...] suficiente para um homem que professa não mais que expor candidamente e livremente sua próprias conjecturas concernentes a um tema que se situa um tanto quanto na escuridão, sem outro desígnio que não seja o de uma inquirição imparcial da verdade. (I, 3, 26)8

Porém, não seria ingenuidade excessiva, que beira a papalvice, tomar as dificuldades em distinguir por inexistência de uma ordem e, além disso, tomar literalmente fórmulas que talvez não sejam senão recursos retóricos? Não se estaria dando demasiada importância às deficiências de algumas (ainda que muitas) investigações exegéticas, acobertando a incapacidade de detectar com a valorização excessiva do que não seria senão mera estratégia retórica para cativar o leitor que, não sendo um espírito puro, pode ser encaminhando ou descaminhado da senda da verdade por estímulos múltiplos e de diversas naturezas.

Enfim, não apenas para por de lado a intricada questão acerca do papel da retórica na formulação de uma doutrina filosófica, mas particularmente para evitar a acusação de “não querer servir-se dessa candura filosófica, nem pôr em uso as razões, mas atribuir somente às coisas os ouropéis e as cores da retórica” como reclama Descartes de Gassendi nas Respostas às Quintas Objeções, cumpre oferecer razões mais sólidas, de ordem estritamente lógica, para reconhecer que o

8Também conclui a sua apresentação das idéias simples afirmando que “These are my

guesses concerning the means whereby the understanding comes to have and retain simple ideas, and the modes of them with some other operation about them” (II, 11, 17).

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discurso lockeano se situa num registro que não é o da ereção de uma doutrina metafisicamente inconsútil.

Demanda que exige, em primeiro lugar, mostrar que a exposição lockeana da origem e constituição de nossas idéias não é senão uma como que “história natural” do entendimento humano que, ao promover uma certa limpeza e arrumação do caótico domínio da consciência humana, tornaria mais cômoda e eficaz a tarefa dos cientistas. O que se pode mostrar, considerando as dificuldades de ler o Ensaio da perspectiva contrária, que reclama para a certeza o adjetivo ‘metafísica’.

A primeira dificuldade a ser vencida reside já em tornar mais preciso aquilo que se buscaria, adotada tal perspectiva, uma vez que não é claro o sentido que cabe ao termo “demonstração” num eventual emprego da expressão “demons-tração da origem empírica de nossas idéias”. A metáfora que Locke emprega para motivar o chamado composicionalismo sugere uma alternativa. Afirma Locke:

“Não será estranho pensar que essas poucas idéias simples serão suficientes para empregar o mais rápido pensamento ou a mais ampla capacidade, e para fornecer os materiais de toda esta variedade de conhecimentos e das variegadas fantasias e opiniões de todos os homens, se considerarmos quantas palavras são formadas em função das inúmeras composições das vinte e quatro letras [...]” (II, 7, 10)

Metáfora que sugere a atribuição a Locke da pretensão de fornecer como que uma “gramática das idéias”, mais precisamente, supondo que suas pretensões sejam propriamente demonstrativas, uma gramática racional e não meramente “histórica”.

É certo que apenas os matemáticos do século XIX desenvolveram o instrumental necessário para formular precisamente procedimentos lógicos dessa natureza, mas o reclamo era antigo e nada custa, a título de caridade exegética, emprestar-lhe esse instrumental e procurar extrair das observações lockeanas uma definição por recursão das idéias. A posse de uma tal caracterização tornaria viável não apenas a explanação rigorosa da origem de nossas idéias, mas também ofereceria um instrumento valioso para a pretensão de fundamentar a validade de nossas idéias a partir de sua gênese (pois permitiria empregar o método de demonstração conhecido pelo nome de demonstração por indução, que não é

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senão um meio de demonstração que apela para a maneira como um domínio é gerado). O domínio das idéias restaria adequadamente explicado, uma vez determinadas as idéias originais (simples) e caracterizados os procedimentos de geração de idéias mais complexas a partir de idéias mais simples. Correspondentemente, a validade de nossas idéias – portanto, do conhecimento, supondo que este se defina, como quer Locke, pela “conexão e concordância ou discordância e repugnância de quaisquer de nossas idéias” (IV, 1, 1) – ficaria assegurada pela demonstração da validade das idéias simples e da preservação da validade ao longo da geração de idéias mais complexas.

Essa tentativa de apreender claramente o que contaria como uma demonstração da origem empírica de nossas idéias parece não só fazer justiça, mas ser reclamada pela pretensão lockeana de que “todos aqueles sublimes pensamentos que se elevam acima das nuvens e atingem tão alto quanto o próprio céu, tomam impulso e pé” no que é dado pelos sentidos (II,1,24). No entanto, ela obriga a solução de novas e sérias dificuldades.

Em primeiro lugar, como não se trata aqui de matéria de estipulação9,

seria necessário demonstrar que o que foi assim caracterizado é exatamente o domínio das idéias (a correção da definição); ou seja, que qualquer idéia ou é uma idéia simples ou pode ser gerada a partir das simples pelas operações recursivas e, vice-versa, tudo o que puder ser gerado pelos procedimentos recursivos a partir de idéias simples é idéia. Mas o que contaria como uma tal demonstração? Como saber quais são todas as “nossas idéias” a fim de que se possa fundamentar a afirmação de que se considerou todas elas?

Locke recusa explicitamente a idéia de que haja alguma necessidade na delimitação do domínio de idéias, e pede ao Bispo de Worcester a substituição da expressão “idéias necessárias a razão” pela de “idéias de que a razão se utiliza” (W. 4, pp. 11-2). Mas quais são as idéias que “a razão” usa? Como determinar isso senão recorrendo à experiência e à observação dos usos que os homens fizeram

9É razoável assumir que a idéia geral de idéias, juntamente com todas as idéias que

formam a trama de uma doutrina acerca do entendimento humano, não são idéias arquetípicas, como as da Matemática e da Moral, mas ectípicas, como as da filosofia natural.

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ou fazem de suas faculdades cognitivas? Como escapar aqui do método histórico simples, com tudo que ele comporta de contingente e que submete seus resultados a toda sorte de vicissitudes?

O Ensaio não apresenta explicitamente nenhuma outra alternativa, salvo essa; mais precisamente, como não é raro o recurso a uma sorte particular, não compartilhável, de experiência, a introspecção, Locke freqüentemente apela para a própria “sensatez” do interlocutor. No entanto, algumas de suas passagens sugerem uma alternativa, ao indicar traços do comportamento humano e de outros seres vivos como marcas características do “uso da razão”. Nesse caso, poder-se-ia tomar como o domínio das idéias exatamente aquele que se fizesse necessário para oferecer uma explanação adequada daqueles traços comportamentais que se tomam como marcas características de uma classe particular de atos (chamados então de atos de pensamento ou de consciência)10).

As idéias seriam, então, o que o próprio sentido da distinção pressupõe haver no agente/paciente de atos desse tipo peculiar.11

Seja concedido, ainda que apenas para efeitos de argumentação, que alguma estratégia como essa seja bem sucedida para superar o problema da correção. Certo é que Locke salienta duas marcas do pensamento (que ele

10A palavra ‘ato’ deve ser tomada num sentido amplo, que abarca todos os eventos

nos quais é possível discriminar ou um agente ou mesmo um paciente, um sentido análogo ao do uso do termo ‘operação’ em II,1,4.

11Evidentemente, essa estratégia pressupõe a impossibilidade de reduzir o

pensamento aos estados corpóreos que o torna possível de exercício, um pressuposto claramente aceito por Locke, uma vez que pretende analisar o entendimento, fazendo economia de análises que hoje denominaríamos fisiológicas.(as considerações físicas da mente, como ele as denomina) (Introdução, 93). A favor dessa tese, amplamente discutida no século XX, talvez a melhor argumentação do ponto de vista retórico seja a adaptação de um argumento ad homine produzido por um velho sacristão dos confins de Minas Gerais a favor da existência da alma humana; caberia perguntar aquele que não aceita tal tese, se pedras são agentes e/ou pacientes de atos irredutíveis a relações físicas e, face a possível resposta negativa, simplesmente lhe perguntar o que está fazendo que não está na serra, imóvel e silencioso, entre as pedras, deixando o ar passar, pois isso produziria efeitos, em particular, efeitos sonoros, muito mais agradáveis do que aqueles que ele próprio é capaz de produzir com seus foles diminutos.

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identifica com a percepção): a ação que decorre da sensação, observável em todos os animais, não apenas nos homens, mas ausente dos vegetais e dos minerais (cf. II, 9, 11-2) e o uso da linguagem, uma forma de ação peculiar aos homens.

A segunda dificuldade diz respeito a própria determinação das operações e de suas possibilidades combinatórias (de interação). Essas devem ser, como se viu, tais que permitam derivar todas as demais a partir apenas daquelas tidas por absolutamente simples (primitivas, originais) e induzam, assim, uma certa espécie de ordenação do domínio das idéias. Dada a complexidade esperada do domínio, que se manifesta na intrincada teia dos predicamentos que Locke se vê obrigado a introduzir, é de se esperar que essa ordenação também seja extremamente complexa, não se dando diretamente entre elementos do domínio, mas entre suas subclasses. Ou seja, pode-se tomar a descrição dos procedimentos de formação de idéias como assumindo, de maneira genérica, a forma seguinte: dadas idéias de tais e tais gêneros, forma-se idéias de tal outro gênero de tal e tal maneira12. O

que reclama a divisão prévia do domínio das idéias em classes mutuamente exclusivas (o equivalente da divisão lexical em categorias gramaticais). Esse seria o papel da muito citada classificação lockeana das idéias: fornecer as categorias fundamentais dessa “gramática recursiva categorial da consciência”.

A consideração cuidadosa e seletiva de passagens do Ensaio conduz, não sem alguns percalços, a um quadro sinóptico suficientemente claro e distinto que satisfaz as demandas ora em foco. Um tal quadro seria o seguinte. As idéias ou são simples ou são complexas; as primeiras são idéias particulares (I,I,15), que a mente recebe passivamente das impressões produzida ou por objetos externos que afetam os sentidos externos (e, nesse caso, dizem-se idéias de sensação) ou pelas próprias operações mentais (idéias de reflexão). Já as complexas são derivadas das simples pela interação das operações de composição, comparação e abstração e, assim, podem ser tanto particulares, quanto gerais, conforme a

12Provavelmente mais complexa que, por exemplo, a definição de expressão bem

formada nos cálculos lógicos simples (proposicionais) e talvez mais complexa que a de qualquer cálculo lógico, como sugere já a complexidade das gramáticas racionais desenvolvidas no século XX.

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operação de abstração tome ou não parte de sua formação, e podem ser idéias particulares ou gerais de modos, substâncias e relações13.

Não é possível discutir exaustivamente os fundamentos exegéticos de tal quadro sinóptico; o leitor diligente do Ensaio pode encontrá-los por conta própria14. Aqui cabe apenas salientar que, ao situar as idéias abstratas simples na

classe das idéias complexas (derivadas), esse quadro sinóptico pressupõe uma particular compreensão da tese, reiterada no Ensaio, de que a passagem do singular (particular, individual) ao plural (geral, coletivo, universal) se dá pela operação de abstração. Desse modo, toca naqueles que são talvez os temas que

13Em especial, ficam assim conciliados os dois gêneros de idéias relativas: a idéia

(consideração) relativa (respectiva) de algo, por exemplo, de Caio como esposo e a idéia abstrata relativa (da relação, abstração feita de seus relata). Na verdade, a fim de dar conta também dos modos simples é necessário incluir uma quarta operação de geração de idéias que, a semelhança da de abstração, poderia tomar uma única idéia e a alteraria, não a fazendo representante de uma diversidade de particulares, como a abstração, mas de modos assemelhados, como os matizes de uma cor, etc., Locke parece se referir a essa operação, recolhendo-a no bojo da composição, como uma forma de alargamento (II, 11,6), no entanto, nessa passagem, é afirmado que tal operação envolve uma composição de diferentes idéias, ao passo que, ao tratar das idéias complexas de modos simples, cujos exemplos incluem aquele que Locke antes apresentara como resultado do alargamento (os números), frisa a natureza unária da operação que os forma. (II, 13, 1). Mais uma das passagens que a indolência confessa de Locke não teria permitido compatibilizar?

14Para isso pode se valer também dos engenhosos e perspicazes esforços de Bento

Prado Neto em transformar a rapsódia das observações lockeanas numa doutrina articulada e sistemática acerca da origem e formação de nossas idéias, que pretende salvar o chamado composicionalismo lockeano. O presente texto muito deve à leitura dessa esmerada análise; em especial, a ela se devem os esclarecimentos que tornam possível a identificação do receptivo com o simples, a chamada de atenção para a esdrúxula noção lockeana de idéias abstratas simples, bem como a localização daquele que parece ser o tendão de Aquiles do chamado composicionalismo lockeano: tornar compatível a divisão das idéias em simples (recebidas) e complexas (formadas) com a divisão em particulares e gerais. Possivelmente esse autor discordaria da localização das idéias abstratas simples entre as idéias complexas e não entre as meramente simples. Mas se for assim, salva-se o composicionalismo às custas do empirismo, pois como se verá, isso violaria a sua pureza, expressa no adágio medieval “nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu”.

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mais produzem celeuma entre os leitores: as noções lockeanas de abstração e de idéias gerais.

Diversos são os comentários que se detêm longamente apenas no tratamento que Locke empresta à generalidade no que toca à noção de substância e, ainda assim, freqüentemente sem distinguir claramente as várias noções de origem aristotélica. O próprio Locke, que cuida distinguir a idéia geral de substância das idéias complexas de substâncias (W. 4, p. 16-7), parece não se preocupar em deixar claro a distinção entre idéias complexas de substâncias específicas (as substâncias peripatéticas segundas), e presuntivas idéias de substâncias individuais (substâncias peripatéticas primeiras), de sorte que pela expressão ‘idéia de substância particular’ Locke parece estar ora fazendo alusão à idéia (geral) de um tipo específico de substâncias (p. e. a idéia de homem em oposição a de cavalo, etc.), ora a uma presuntiva idéia de uma substância individual (p. e. uma presuntiva idéia de Pedro, em oposição a de Paulo, Maria, Totó, etc.).

A perfeita e plena inteligência da universalidade exige considerar o amplo espectro de idéias gerais que apetrecham a mente humana, sejam tais petrechos idéias de substâncias, de relações ou de modos; em particular, não se deve descurar da generalidade presente já nas idéias de qualidades (sejam essas primárias ou secundárias) que emprestam sentido aos nomes que as designam. E, no caso particular da compreensão do Ensaio, faz-se também necessário situar esse tema no contexto de uma doutrina que pretende resgatar a teoria da abstração sem comprometer-se com as repudiadas noções aristotélico-escolásticas de fantasmas e species15.

A tese que se pretende sustentar aqui é a de que a origem das dificuldades que Locke pretende sanar com a teoria da abstração não reside primariamente nem na recusa, às vezes tida por nominalista, de universalia in

15Para fornecer uma fórmula breve: enquanto Kant teria procurado resgatar uma

conversão não aos fantasmas, mas as aparições, sem que dessa emergisse a abstração, Locke parece procurar uma abstração sem a conversão aos fantasmas, mas às idéias particulares dos sentidos (externo ou interno). Seriam essas últimas um outro gênero de fantasmas?

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rebus, nem no reconhecimento também tido por nominalista de que idéias gerais são criaturas humanas16; ambas posições que um realista e empirista de estrita

observância, por exemplo, um Santo Tomas, pode assumir, ainda que submetendo suas fórmulas a “ligeiras” alteração que afetam “apenas” a expressão. Não se trata, necessariamente, de encontrar um universal independente das mentes, nas próprias coisas, mas sim de encontrar um fundamento in re e não na fantasia produtora de ilusões, para a universalidade das idéias gerais. Ou, para empregar a expressão kantiana, que Guéroult aplica à análise do pensamento cartesiano, trata-se do problema da validade objetiva das idéias (representações) num caso tido como peculiar, o das idéias gerais.

Dificuldade cuja solução requer a análise da origem das idéias. Pois, espera-se que a identificação da idéia como sendo de boa estirpe permita asseverar que o que é apresentado à consciência não é mera ilusão, uma quimera. Com efeito, o que distingue um unicórnio de um mamífero com bico de pato e dentes é que, mesmo que as idéias de cada um deles sejam produtos da engenhosa mente humana, o ser daquele, ao contrário do ser desse, é fruto da fértil imaginação de um povo particular. Pelo menos é isso que se tem hoje por verdadeiro em amplos círculos da civilização ocidental, embora não esteja excluído que pesquisas arqueológicas ou paleontológicas futuras venha a mostrar que os unicórnios não são frutos da imaginação grega clássica, nem tampouco fica excluída que ambos, unicórnios e ornitorrincos, sejam frutos da espontaneidade da mente humana, pelo menos no tocante a suas determinações (quid est), ainda que não quanto a existência (quod est). Considerar essa última alternativa seria impertinente agora, quando da análise de doutrinas que pretendem mostrar que é dado aos seres humanos não apenas reconhecer a realidade, mas aprender algumas de suas determinações, ainda que em

16Essas duas posições são sintetizadas na afirmação “that which is particular in

existence, may be universal in representation, which I take to be all the universal beings we know, or can conceive to be” (W 9, p. 241). E é a essa fórmula que o texto acima faz alusão como podendo ser subscrita por um Santo Tomás, para quem todos os seres humanos podem conceber e, alias, concebem apenas o universal cujas expressões (mentais ou externas) são as palavras (verba).

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profundidades e extensões diversamente limitadas, conforme a doutrina e conforme a matéria.

Importa salientar que uma solução da dificuldade ora em foco, consoante o princípio empirista expresso no adágio medieval antes referido, para ser perfeita, exige a demonstração de como é possível extrair do singular, passiva e involuntariamente recebido pela mente através dos sentidos, os fundamentos das determinações que se apresentam universalizadas nas idéias gerais.

Donde, tão importante quanto destacar as implicações do abandono das formas inteligíveis (sejam elas substanciais ou não) é salientar as conseqüências de excluir, como se fez nos albores da modernidade, os sensíveis próprios (cores, sabores, odores, sons, texturas etc.) do relato dito objetivo da realidade mundana, a redução do mundo ao que se deixa expressar numa linguagem matematicamente perspícua. O empirismo perde assim um valioso recurso, as formas sensíveis, que facultariam reconhecer na sensação um tipo muito peculiar de afeção em que o ser percipiente (animal irracional ou não) recolhe em si, de algum modo, formas sensíveis, semelhanças sensíveis entre coisas. Assim, abandonar a teoria dita escolástica das formas (e conseqüentemente das species), sensíveis e inteligíveis, é comprometer-se a fornecer um outro fundamento para as semelhanças das coisas, percebidas sensível ou intelectualmente, e oferecer uma explanação alternativa melhor para a própria apreensão de tais presuntivas semelhanças, uma vez que fica vedada a explicação a partir das semelhanças apreendidas já nos sentidos (as species sensíveis). É justamente essa explanação que caberia esperar da teoria lockeana da abstração. A demonstração do empirismo nas bases sugeridas no Ensaio exige que sobre a abstração recaia o peso da tarefa de explicar a passagem do singular (particular, individual) ao plural (geral, coletivo, universal) na presuntiva gramática da consciência.

Alguns comentadores muito influentes pretendem explicar a abstração, nos termos de um deles, como “prestar atenção seletiva a uma característica num objeto particular da experiência e ignorar as outras características” (MACKIE, 1976, p. 112); as idéias abstratas são explicadas, nos termos de outro, como consideração parcial (AYER, 1993). Explicações dignas de um personagem de Moliére às avessas.

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Certamente traduzir uma expressão corrente de uma língua viva para uma língua erudita não é satisfazer nenhuma demanda de explanação. Mas o inverso também não é. No caso presente, se a demanda não for disparatada, é indiferente perguntar o que é ter uma idéia e o que é considerar (ou, alternativamente, prestar atenção), bem como, perguntar o que é abstrair e o que é selecionar. E se a pergunta for disparatada, então, um estará ordenhando o bode e o outro aparando com uma peneira, para usar a figura de linguagem de um autor latino que Kant tornou famosa17. Mas seria impertinência considerar

agora essa segunda alternativa. Cabe apenas considerar como a abstração comparece no Ensaio, pelo menos preliminarmente, como devendo desempenhar a tarefa que dela se esperaria no contexto de uma presuntiva demonstração do empirismo.

Como é sobejamente conhecido, Locke reconhece duas fontes originais de idéias: a sensação (os sentidos externos) e a reflexão (que “poderia ser chamada sentido interno, com suficiente propriedade”, II, 1, 4). O que emana dessas fontes é inicialmente caracterizado como as “impressões que são feitas em nossos sentidos por objetos externos, extrínsecos a nossa mente” ou “por suas próprias operações, quando reflete acerca delas” (II, 1, 24). Através dos sentidos, externos e interno, a mente é abastecida das idéias particulares de objetos sensíveis e de suas próprias operações ( II,1,25). Essas são as idéias simples, cada uma delas indiferenciável em si mesma e distinguida de todas demais e constitui uma aparência ou concepção uniforme na mente (II,2, 1).

Nesse contexto, as idéias simples não podem ser senão daquele gênero de idéias que são denominadas particulares em contraste com as idéias gerais. E isso não apenas por óbvias razões sistemáticas, mas por razões exegéticas que saltam aos olhos do leitor “atento e indiferente” do Ensaio. Em especial porque a posse de idéias gerais é explicitamente assumida por Locke como uma exigência do emprego da linguagem, não da consciência, do pensamento (que Locke identifica

17Kant faz referência a essa fórmula em pelo menos duas passagens de suas obras, na

Dissertatio, parágrafo 27, e a famosa ocorrência em B82-3 da Crítica da Razão Pura.

Segundo uma nota da edição de Cambridge da Dissertatio (p. 65, n. 63), esse provérbio encontra-se primeiramente em Polybus, Historia XXXIII, 21 e repete-se em Luciano,

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à percepção). Aos olhos de Locke, além dos seres humanos, alguma outras espécies animais raciocinam, “embora apenas em idéias particulares exatamente como as receberam de seus sentidos” (II, 11, 11) e, portanto, suas mentes são guarnecidas de idéias. Assim, como atribuir idéias a um ser não é lhe atribuir idéias gerais, mas é lhe atribuir o acesso às fontes de idéias, sensação e reflexão, as idéias simples (primitivas, recebidas passivamente) devem ser, pelo menos no que toca às suas origens, idéias particulares.

A passagem do singular, passiva e involuntariamente recebido pelos sentidos ao universal acolhido na mente só pode parecer, no contexto moderno, como extremamente obscura e misteriosa. Na verdade, o termo ‘abstração’ deveria parecer aos olhos de quem recusa as formas (substanciais ou acidentais) tão destituído de significado quanto o discurso escolástico acerca das espécies sensíveis e/ou inteligíveis se mostrava a Hobbes (Leviatã, 1,1).

Com efeito, os relatos que se encontram no Ensaio da origem da idéia geral de branco (II, 11,9) ou da de ser humano (III, 3,7), na medida em que fazem referência explícita apenas à presuntiva operação mental de abstração, parecem ainda mais ingênuos que aquele que Jäsche, costurando reflexões kantianas de épocas distintas, fez circular como kantiano, e que reconhece três atos do entendimento (comparação, reflexão e abstração) como envolvidos na gênese da universalidade.

Qualquer que seja o número de atos, abandonada a doutrina das formas, tais gêneros de relatos não parecerão menos ingênuos que um relato realista, tropicalizado nos termos seguintes:

Abro os olhos, que essa terra ainda há de comer. Olho o pinheiro, olho a gurucaia, olho a paineira. Com os olhos, meço uma, meço outra e assunto: o pinheiro foi a gralha azul que plantou, com a gurucaia faço os moirões da cerca, e das painas da paineira faço o travesseiro sobre o qual repouso a cabeça cansada da lida. E aí fico matutando as suas igualdades e não faço caso do desparelho das folhas e dos troncos. Suspiro e, após lembrar que esse é um mundo velho e sem porteira, me dou conta que Deus, louvado seja Nosso Senhor, é ainda maior de grande: criou todas essas coisas e a cada uma apartada deu um nome, e chamou todas elas de árvores.

Trata-se aqui, evidentemente, de um “causo” de um camponês brasileiro autêntico que, como bom católico, não arvorara para si a capacidade de entender

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a palavra de Deus sem o concurso do magistério e, assim, tornou-se vítima das vicissitudes da Igreja Católica no Brasil; em particular, é evidente que nada lhe foi ensinado acerca da passagem do Gêneses onde é dito que “Iahveh Deus modelou

então, do solo, todas as feras selvagens e todas as aves do céu e as conduziu ao homem para ver como ele as chamaria: cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse. O homem deu nomes a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens [....]”(Gen. 2, 19-20). Porém, disso não se segue que quem a tenha lido, por exemplo, Locke, tenha bem compreendido.

Inspirado nas esmeraldas verzuis de Goodman, pode-se opor aos relatos seja do matuto, seja de Locke ou ainda de Jäsche, um outro, da gênese conceito de arvorinho que, como todos sabem, são criaturas extremamente complexas principalmente porque apresentam dois tipos de apêndices. Os do primeiro tipo, usualmente denominados folhas, apresentam em certos lugares do mundo a curiosa propriedade de se despregarem totalmente numa certa estação do ano e retornarem em outra época. Os do segundo tipo, às vezes denominados de passarinhos, constituem a parte essencial do aspecto sonoro dos arvorinhos, apresentando um comportamento análogo ao das folhas, embora muito mais regular. Todas as manhãs, em todos os lugares do mundo em que eles não sofreram mutações advindas da poluente mão humana, esses apêndices sonoros se despregam do todo e retornam apenas ao por do Sol, tanto a saída quando o retorno é acompanhando de grande alarido que, a depender do humor de quem ouve, provoca grande alegria ou irritação.

O cotejo das noções de árvore e de arvorinho evidencia que a abstração, tomada como abstrair de algo (desconsiderar algo em algo), não é capaz por si só de justificar nem mesmo a passagem de uma idéia menos geral à uma idéia mais geral, uma vez que não ficaria determinado o que cabe e o que não cabe desconsiderar. À primeira vista, apenas o próprio conceito mais geral que responderia pela norma (pela regra) da abstração. Se, partindo das idéias gerais de pinheiro, gurucaia e paineira, chegou-se a idéia mais geral de arvorinhos, foi porque essa idéia mais geral fora encontrada inscrita de algum modo naquelas menos gerais e determinava não se desconsiderar o aspecto sonoro do pinheiro com suas gralhas, da gurucaia com seus sanhaços e das paineiras com seus sabiás.

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Vale dizer, pouco vale mudar a regência do verbo “abstrair”18, do ponto de vista

sistemático; menos ainda do ponto de vista exegético.

Na verdade, Locke parece não considerar a passagem de presuntivas idéias particulares, cuja entrada na mente é forçada pelos objetos dos sentidos (II, 1,25), a idéias gerais de qualidades sensíveis (por exemplo, de tépida, macia e rosada) como merecedora de maiores esclarecimentos. Embora seja frisada a distinção entre a impressão nos órgãos sensórios e a percepção, essa sendo a acolhida daquela na mente (ex professo, em II, 9, 3-4) e as idéias sensíveis sejam apresentadas ora como as percepções produzidas na mente por algo que os sentidos externos transportam dos objetos externos à mente (II, 1, 3), ora como idéias anexadas às impressões (II,1,25), nada é dito acerca do modo como tais idéias são produzidos na mente (ou anexadas às impressões), nem acerca do algo que seria transportado até a mente.

As idéias gerais são apresentadas preliminarmente no Ensaio como uma estratégia da mente para prevenir que estoque de nomes tivesse que ser infinito; assim, a mente “faz com que as idéias particulares, recebidas dos objetos particulares, se tornem gerais, o que é feito considerando-as como elas estão na mente” pois, as idéias gerais são “tais precisas e nuas aparências na mente” (II, 11,9). Uma conversão, das particulares em gerais, que posteriormente será dita exigir algum sofrimento e engenho e que conduz a “algo imperfeito que não pode existir, uma idéia na qual são postas juntas diversas partes de idéias diferentes e inconsistentes entre si” (IV, 7, 9).

Seja pela metáfora empregada para caracterizar as idéias gerais, seja por suas naturezas, seja pelo caráter penoso e parcial de suas realizações, seus objetos lembram os objetos de outra faculdade humana, pelos quais não raramente os homens se perdem na busca daquela que não é “senão todas e nenhuma”. E conveniente, porém, procurar uma significação puramente intelectual para essa nudez, antes que se creia possível que alguém tenha a desfaçatez de comparecer a um Congresso sobre a Filosofia no século XVII simplesmente para denunciar no

18Essa mudança foi proposta por Kant provavelmente nos fins da década de sessenta

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desejo metafísico de penetrar no recôndito da consciência uma conversão, quiçá machista, porque recusa acolher os mistérios do ser.

O significado não literal que caberia atribuir ao adjetivo ‘nua’ na expressão complexa “nua aparência na mente’ não pode ser outro senão o que lhe empresta Bento Prado Neto: a idéia é em si mesma geral, particularizada apenas pelo seu contexto (NETO, 1996, p. 47). E, por via de conseqüência, o uso do adjetivo simples na expressão ‘idéias abstratas simples” deveria ser tomado como categoremático: essas são simples qua idéias (as mais simples dentre todas as idéias) e não apenas qua idéias abstratas (as mais simples dentre as idéias complexas). A operação de abstração, pelo menos no tocante às simples, apenas eliminaria aquilo que lhes seriam supervenientes: as circunstâncias de tempo e lugar, bem como outras idéias anexas.

O empréstimo de uma tal significado à noção de idéias abstratas simples permite, pois, conferir à abstração o sentido claro c preciso de eliminação, mas por isso mesmo, cria uma outra série de dificuldades19. Ao inverter a ordem de

complexidade entre idéias particulares e complexas e quebrar a convertibilidade entre simplicidade e receptividade (passividade e caráter involuntário), torna obscura a origem das idéias gerais, dessas “precisas e nuas aparências” e, simultaneamente, torna suspeita a origem das idéias particulares20. De um lado,

idéias gerais não podem nem terem sido passivamente recebidas pelos sentidos das coisas externas à mente, haja vista a tese de que a universalidade é criatura humana, nem extraídas (atualizadas) daquilo que é passivamente acolhido pela

19E, a depender de estudos filológicos mais acurados, ficaria na penumbra o papel que

o adjetivo ‘prescise’ desempenharia na fórmula lockeana completa “prescise, naked appearances”. Pois, se for possível atribuir a tal adjetivo um significado lógico técnico como designação de um tipo peculiar de abstração (aquela em se prescinde, mas não se exclui), a fórmula torna-se esdrúxula, seria como renunciar ao que nunca se possuiu. Essa talvez seja uma dificuldade de somenos importância, pois se trata de dar conta de expressões, talvez descuidadas do Ensaio.

20A estratégia, eficaz em outros contextos, de distinguir a ordem do apreendido da

ordem da apreensão aqui se mostraria nociva. Uma vez que se lida já com idéias, isto é, aquilo pelo qual se apreende algo, o emprego de tal estratégia exigiria tomar a própria idéia como aquilo que apreendido e assim conduziria a um regresso ao infinito na ordem da explicação.

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mente através dos sentidos, haja vista a recusa da doutrina peripatética das espécies e formas sensíveis e inteligíveis21. E, por outro, o caráter insuspeito de

uma idéia particular dos sentidos (externos ou interno) depende exatamente da acolhida passiva e involuntária pela mente das impressões produzidas nela pelos objetos, recebida como una e indivisível e, em si mesmas não compostas; no entanto, agora elas se aparecem como o resultado da junção de diferentes idéias, uma junção sobre a qual recai não apenas a suspeita de arbitrariedade, como também a de ser ineficaz22.

A necessidade para dar conta tanto da abstração como da origem empírica das idéias de um inusitado reduplicativo (em si mesmas) sugere que a dificuldade tem a sua origem na própria divisão de idéias particulares e idéias gerais23; divisão

que parece mimetizar na mente a distinção de origem scotista que se faz presente,

21Na medida em que se dá por recusada a teorias peripatéticas da percepção sensível e

da apreensão intelectual, pode-se dar razão à observação de Berkeley de que Locke teria feito o melhor que se podia com a teoria da abstração. Mas muito pouco se pode fazer com essa ultima teoria sem o respaldo daquelas.

22Essa compreensão das idéias particulares não apenas torna suas origens suspeitas

como misteriosas. Se a abstração é apenas o desnudar de algo, o que é que aparece e para quem isso se aparece com vestes tão difíceis de despir? Talvez Leibniz tenha herdado do Ensaio a árdua e infinita tarefa de explicar como emergem idéias particulares da complexificação de idéias gerais.

23Essa distinção aparece explicitamente na Lógica de Port Royal, da qual Locke

dispunha de um exemplar em sua biblioteca; como exemplo óbvio de idéia particular os autores fornecem a idéia que cada um faz de si. Face a uma evidência tão palmar, não resta outro recurso retórico que o do discurso em primeiro pessoa, a que Locke freqüentemente recorre: nada posso declarar acerca do que se passa na mente dos outros seres humano. Nas poucas, e felizmente cada vez mais raras ocasiões que me pergunto “quem sou”, as únicas idéias que me vem à mente são idéias gerais (sou professor de Filosofia, ser humano, “ligeiramente” calvo, etc.) associadas ao vago sentimento de estar aqui agora, proferindo uma conferência, embora nem mesmo esse sentimento parece ser peculiar, pois me recordo que antes eu escutava e outro proferia e percebo que todas as expressões nesse discurso que fazem referência a uma pessoa antes que a outra são expressões dêiticas, que adquirem esse sentido preciso não de algo na consciência dos usuários da língua, mas apenas do contexto de seu emprego.

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ainda que não explicitamente, no Ensaio entre essência específica e essência individual (hacceitas).

Não é possível desenvolver aqui a análise de todos esses tópicos com o vagar e cuidado que merecem. No entanto, pode-se rapidamente observar que, no âmbito do Ensaio, o que parece emprestar algum significado à expressão idéia particular é exatamente a tese de que a sensação forneceria como que uma imagem (retrato) do objeto (e, assim, uma representação desse e de nenhum outro objeto)24. E, por outro lado, como bem mostrou Bento Prado Neto, só se

pode emprestar sentido à noção de abstração no âmbito do Ensaio, se as idéias forem tomadas como sendo em si mesmas gerais. Assim, o acirrado debate exegético entre imaginistas e não imaginistas pode ser visto como emergindo da tensão fundamental do Ensaio: a fim de oferecer uma explanação da apreensão empírica, sem comprometer-se com doutrinas peripatéticas arcaicas, Locke necessita da esdrúxula noção de idéia particular e a fim de dar conta do uso da linguagem, Locke reconhece a necessidade de idéias gerais. No entanto, aquilo que empresta sentido à expressão ‘idéia particular’ faz dela um truísmo (e, por via de conseqüência, faz da expressão oposta, ‘idéia geral’, uma contradição in adjecto – pacem Berkeley e Hume), e vice-versa, o que empresta sentido à expressão ‘idéia geral’ a torna um truísmo (e, por conseguinte, faz da expressão oposta ‘idéia particular’ uma contradição in adjecto).

Percebe-se, pois, que o sentido da noção de abstração é salvaguardado às custas da pureza empirista expressa no adágio medieval antes referido e, conseqüentemente, põe em xeque o próprio projeto de demonstrar a origem empírica das idéias. Basta o reconhecimento de idéias que seriam em si mesmas gerais para que se produzam profundas rachaduras no edifício empirista “uniforme e consistente” que se mostraria assim como um castelo no ar25,

porque apoiado não em fundações mendigadas ou emprestadas, mas em nuas

24“First, a child having framed the idea of a man, it is probable that his idea is just like

that picture which the painter makes of the visible appearances joined together; “ (IV, 7 , 16)

25Possibilidade aventada pelo próprio Locke quando se refere à sua pretensão de

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aparências. Ou essas não encontram sua origem nos sentidos ou, se encontram, essa não é explicada no Ensaio (i.e., o modo como a mente acolhe em si, de maneira universal, as impressões singulares produzidas nela pelas coisas singulares ou pelas operações mentais singulares). Das idéias particulares pode-se dizer o que já se disse da noção kantiana de coisa em si: sem elas não se adentra o edifício empirista lockeano, mas com elas é impossível instalar-se nele.26

Desse ponto de vista, ao contrário de uma demonstração do empirismo, o Ensaio seria um longo, demasiadamente longo, exercício de sedução: as idéias revestem-se e se despem de características consoante as conveniências das tarefas a que são chamadas a cada momento da doutrina. Graças aos deslizes semânticos do termo idéia, engendra a impressão de perfeita inteligibilidade das idéias, de suas origens e funções no comportamento de animais (irracionais ou racionais)27.

E porque por demais abruptos, o leitor que o examine com a “atenção e indiferença” reclamada por Locke, não carece da consciência clara e distinta dos

26E pode-se observar, também, que atribuir à abstração o papel apenas de eliminar

aquilo que seria acrescido a uma idéia em si mesma geral coloca sérios problemas para a pretensão de atribuir idéias, mas não idéias gerais, aos animais irracionais, pois a generalidade torna-se condição da consciência e não meramente condição da linguagem. Poder-se-ia procurar salvar a especificidade humana pela introdução de alguma cláusula reduplicativa, por exemplo, afirmando-se que os homens possuem idéias nelas mesmas, embora os demais animais as possuam apenas circunstancialmente e que a generalidade é condição do ter idéia como idéia, mas não do meramente ter idéia. Mas é fácil perceber que esse apelo ao reduplicativo seria de pouca valia. Pois, se a idéia é aquilo pelo qual algo é apreendido, que sentido poderia se emprestar ao reduplicativo, sem envolver um regresso ao infinito?

27Não se pode deixar de observar também os deslizes de significado no termo

‘consciência’ que, no início do Ensaio, porque não implica consciência de si, é atribuído a seres a que não se predicamenta ‘pessoa’, mas em II, 27, 9, o pensamento e a percepção são tomados como inseparáveis da consciência de si e da noção de pessoa. Na verdade, no pano de fundo do Ensaio e, como que exigindo os vários deslizes semânticos, parece se encontrar a tese da uniformidade dos atos de consciência. A própria afirmação lockeana de que usara o termo ‘idéia’ “para expressar o que quer que seja significado por fantasma, noção, species ou o que quer que seja em que a mente se emprega ao pensar” (Introd., 8), ao contrário de indicar a polissemia desse termo, sugere já a pretensão de fornecer uma explicação unitária dos atos de consciência.

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deslizes, para perceber que essa impressão inicial não resiste a uma análise mais profunda.

Na simplicidade característica dos manuais de História da Filosofia, encontra-se já a observação de que “a noção geral [da complexidade] é bastante clara, desde que não entremos em uma análise excessivamente minuciosa”28. Aos

olhos de alguém mais refinado que, além de não se deixar seduzir por deslizes toscos, lembra que em Filosofia peca-se por carência, mas nunca por excesso de zelo analítico, o Ensaio mostraria o quão longe seu autor estaria de ser um “perfeito e sutil filósofo”, para empregar novamente uma expressão tomada por empréstimo das respostas de Descartes a Gassendi.

Esse leitor refinado talvez chegasse até mesmo ao extremo que Aarsleff afirma ter chegado Joseph de Maistre e proclamaria que, em Filosofia o desprezo pelo Ensaio é o início da sabedoria29. Certo é que esse leito pede assumir a atitude

inversa da de Guyer que, embora seja ex professo um comentador de Kant, toma para si as dores de Locke, perguntando-se “O que poderia ser o novo método copernicano de Kant, que o faça tão superior ao de Locke embora forneça tais resultados que são decididamente inferiores?”, para concluir que:

[e]mbora Kant cria dispor de um método para examinar a nossa constituição cognitiva melhor do que “o método histórico simples” de Locke, que ele rejeita tão desdenhosamente como mera fisiologia (AIX) que poderia apenas “sensualizar” todos “conceitos do entendimento” (A271/B327), com seu próprio método revolucionário, Kant expressamente degradou todos os resultados tão penosamente obtidos. (GUYER, 1987, p. 2.)

Eliminado o tom raivoso que Guyer empresta às observações de Kant e que Aarsleff encontra em de Maistre, pode-se ficar com a recomendação de não procurar no Ensaio respostas para questões metafísicas, isto é, aquelas cujas respostas só seria satisfatórias se se fizerem acompanhar da perfeita certeza que contrapões a certeza metafísica à certeza moral.

28Em COPLESTON, 1979, v. 7 pp. 82-3.

29Aarsleff na verdade atribui a Maistre o desprezo por Locke e remete aos Soirées de

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A recusa em oferecer uma análise propriamente conceptual da mente e das idéias de que ela é guarnecida, substituída pelo constante apelo à experiência e a observação, numa demonstração de total subserviência aos cânones da ciência experimental, teriam contaminado toda a análise, seus fundamentos e divisões, com a contingência própria da apreensão meramente empírica: faltam-lhes contornos claros e precisos. Assim, os reveses da Metafísica no século XVIII, que tanto preocuparam Kant, poderiam ser exatamente tributados na conta das insuficiências da defesa lockeana que, embora famosa e influente, nem de longe estaria à altura da Metafísica.

A defesa da Metafísica, bem como a satisfação de suas demandas, se forem possíveis, exigem recursos que mesmo um leitor generoso e hábil, afeito aos expedientes exegéticos, não seria capaz de inventar no Ensaio; um texto por demais raso para a sublime tarefa que a Metafísica pretende realizar, e face a tal desproporção pouco vale a humana caridade dos expedientes exegéticos.

***

Caridade, generosidade ou presunção? O inescrutável uso da miséria alheia como velo de sua própria obriga a suspeita sobre manifestações ostensivas de caridade, mesmo quando não se referem propriamente a ação transitiva no mundo. Convém remontar o curso da investigação que leva ao desprezo pelo Ensaio.

Dois são os fundamentos necessários, considerados antes, para acusar nessa obra uma estratégia de sedução. Em primeiro lugar, atribuir ao texto o papel de expor uma doutrina dotada daquela “clareza e distinção” que caracteriza as obras de “perfeitos e sutis filósofos”. E, em segundo lugar, demonstrar que, por razões que lhe são intrínsecas, a doutrina exposta não pode oferecer a sorte de inteligibilidade exigida para a certeza metafísica.

É razoável crer que demonstrações cabais em História da Filosofia não sejam menos tangíveis que na própria Filosofia. Ademais, o que está em questão é a própria conveniência de perseguí-las, ao invés de se contentar com palpites razoáveis, frutos do trabalho diligente e que permitam a todos encontrarem, continuamente, alegria na inquirição da verdade, “nessa espécie de falcoaria e caça

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em que a própria perseguição constitui uma grande parte do prazer” (Carta ao Leitor).

Assim, na tentativa de livrar o Ensaio da pecha de obra sedutora de leitores incautos, é conveniente retomar o tema inicial, acerca das pretensões explicativas dessa obra, supondo correta a tese de que a platitude das doutrina lockeana deve-se ao próprio método de investigação proposto por Locke e modelado supostamente no método das ciências emergentes na Idade Moderna.30

Na verdade, apenas a falta ou de atenção ou de indiferença, pode levar um leitor a desconsiderar a inspiração cristã do Ensaio, inspiração que não apenas salienta, mas justifica a modéstia das pretensões teóricas de Locke nessa obra. Antes que explanar, o Ensaio pretende morigerar, ainda que do peculiar ponto de vista de uma sociedade cristã.

Já a escolha de uma das epígrafes da Introdução, tomada do Eclesiástico, deveria chamar a atenção do leitor para a pretensão morigerante. Ao apresentar a utilidade do tratado, Locke oferece o que é uma paráfrase da conhecida passagem desse mesmo texto sacro contrária à vã curiosidade (Ecl., 3, 22 ss.). A sua principal motivação é a levar à aprendizagem dos limites daquilo “que podemos alcançar nesse estado” (Introd. 4). A referência ao estado atual do homem é repetida inúmeras vezes ao longo do Ensaio e os contextos deixam suficientemente claro que a referência é ao estado transiente da humanidade: que espera a vida eterna, retida quando da expulsão do paraíso, e prometida com a vinda do Messias.

Não é tarefa exegética simples explicitar a compreensão lockeana acerca da natureza humana após a queda, bem como o papel e natureza que acreditava serem as de Cristo, do Messias31. No entanto, mesmo uma leitura superficial de

30Nessa investigação é conveniente manter no horizonte a máxima, em certa medida

acatada também por Descartes, que apenas um enganador, intencional ou não, pode se deixar enganar.

31Embora Locke reconheça explicitamente em Cristo o Messias e na queda a perda da

imortalidade, não é claro se via em Cristo apenas o filho de Deus ou já o próprio Deus (o Verbo Encarnado como uma das três pessoas da Santíssima Trindade), bem como não é claro se para Locke a única conseqüência da queda seria a perda da imortalidade, ou se ela

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suas obras teológicas e dos textos da diatribe com o Bispo de Worcester, deixa claro que Locke aceitava a Bíblia como texto revelado, inspirado por Deus e, conseqüentemente, ainda que defendesse a tese do livre exame e não acatasse outra autoridade em matéria religiosa salvo a própria Bíblia, Locke vê em Cristo o Messias. A fé, embora usualmente contrastada à razão, não é para Locke senão “o assentimento fundado na mais alta razão” (IV, 16, 14). Instado a oferecer uma prova da imortalidade da alma a partir de seus princípios, Locke remete a uma que o bispo de Worcester procurar oferecer, mas rapidamente adiciona que “se isso não servir a seu propósito, eu lhe contarei um de meus princípios que lho esclarecera e é esse, a revelação da vida e mortalidade de Jesus Cristo, através do Evangelho” (W 4, p. 188).

Não seria uma caricatura demasiadamente infiel, seja a Descartes, seja a Locke, afirmar que o projeto lockeano parte da confiança em Deus e da desconfiança nas capacidades intelectuais humanas, invertendo as mãos do projeto cartesiano, que inicia desconfiando de Deus (a hipótese do Deus Enganador e do Gênio Maligno), mas ainda assim, donde o caráter puramente metódico da dúvida, confiando na capacidade humana de encontrar por si só algo de certo e indubitável, de se dar pontos fixos e seguros a partir do qual construir com absoluta solidez a sua morada cognitiva terrena.

Assim, as notórias e confessas insuficiências da explanação do conhecimento humano oferecidas pelo Ensaio não desqualificariam a doutrina lockeana; suas lacunas e obscuridades podem ser fruto da indigência humana, de todos os seres humanos e não apenas de Locke, que sob esse aspecto, diferiria de alguns outros autores apenas por humildemente reconhecer a limitação dos meios que o homem dispõe, no estado atual, para compreender sua própria natureza e atividades cognitivas. A consciência da “fraqueza de nossas faculdades nesse estado de mediocridade em que estamos nesse mundo” (IV, 12, 10) deve, aos olhos de Locke, servir de alerta para que nos concentremos em nossos próprios negócios e limitemos nossos desejos de conhecer aos que se fazem necessários a esses, entre os quais não se encontra o de “mergulhar no oceano do ser”

acarretou um certo rebaixamento da própria natureza humana, embora seja certo sua recusa às posições extremadas de fundo calvinista. (Cf. W7.)

Referências

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