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A responsabilidade civil da pessoa com deficiência intelectual a partir da Lei n° 13.146/2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO

DEPARTAMENTO DE DIREITO PRIVADO

LILIANA BARBOZA CUNHA

A RESPONSABILIDADE CIVIL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL A PARTIR DA LEI N° 13.146/2015

FORTALEZA 2020

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A RESPONSABILIDADE CIVIL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL A PARTIR DA LEI N° 13.146/2015

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito à obtenção do Título de Bacharela em Direito. Área de concentração: Direito Civil.

Orientadora: Profa. Dra. Joyceane Bezerra de Menezes.

FORTALEZA 2020

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Biblioteca Universitária

Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a) C978r Cunha, Liliana Barboza.

A responsabilidade civil da pessoa com deficiência intelectual a partir da Lei n° 13.146/2015 / Liliana Barboza Cunha. – 2020.

75 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2020.

Orientação: Profa. Dra. Joyceane Bezerra de Menezes.

1. Direitos da pessoa com deficiência . 2. Pessoa com deficiência intelectual . 3. Capacidade civil. 4. Responsabilidade civil. I. Título.

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A RESPONSABILIDADE CIVIL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL A PARTIR DA LEI N° 13.146/2015

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito à obtenção do Título de Bacharela em Direito. Área de concentração: Direito Civil.

Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________ Profa. Dra. Joyceane Bezerra de Menezes (Orientadora)

Universidade Federal do Ceará (UFC) _________________________________________

Prof. Dr. William Paiva Marques Júnior Universidade Federal do Ceará (UFC) _________________________________________

Msc. Vanessa de Lima Marques Santiago Sousa Universidade Federal do Ceará (UFC)

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A Deus, porque é meu eterno consolo e real motivação de todos os meus passos, sejam espirituais ou pessoais. Aos meus pais, por investirem durante a vida toda em mim, muito mais do que dinheiro: esperança, fé, valores. Ao meu irmão, por aliviar minhas tensões com seu senso de humor e inteligência incomparáveis. Ao meu noivo, por lutar minhas batalhas como se fossem suas e cuidar mais de mim do que eu mesma. À Comunidade Católica Novo Éden, por ter me proporcionado momentos de verdadeiro refúgio diante das minhas dificuldades de vida. Aos meus irmãos, amigos, professores e colegas de trabalho pelas valiosas lições e aprendizados. À Universidade Federal do Ceará, casa que me acolheu por cinco anos, por todas as oportunidades e alegrias que me proporcionou.

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responsabilidade.”

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Os reflexos da Lei n° 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) – que reiterou a alteração do regime das incapacidades já veiculada na Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência – atingiram diversas áreas do Direito Civil, inclusive a responsabilidade civil. Atualmente, pessoas com deficiência intelectual possuem capacidade jurídica, e tal exercício de direitos gera o risco concreto de produção de danos. Nesse jaez, busca-se analisar, no presente trabalho monográfico, a medida de sua responsabilidade civil, bem como os fundamentos da reparação do dano por ela eventualmente causado, além da possibilidade de responsabilização indireta de terceiros participantes do sistema de apoio trazido pela nova lei. Por meio do estudo exploratório da doutrina sobre o tema e com a utilização do método dedutivo, se examinará a natureza dessa responsabilidade, bem como se deve ocorrer de igual maneira para pessoas com deficiência e sem deficiência. Serão investigados, nesse aspecto, os tipos de responsabilidade existentes no Código Civil brasileiro e qual seria a fundamentação jurídica mais adequada à pessoa com deficiência. Exemplificações com base na jurisprudência nacional serão utilizadas a fim de investigar como os magistrados têm decidido questões concretas sobre a responsabilidade de indenizar da pessoa com deficiência, se ela efetivamente existe, de que modo e em que grau. Por fim, se concluirá pela efetiva existência, para tais pessoas, da responsabilidade de indenizar o dano, nos moldes do art. 927, de forma direta, regra geral. Entretanto, considerando sua especial situação de vulnerabilidade, a reparação deve também atender ao disposto no parágrafo único do art. 928, de modo que não a prive do necessário para sobreviver. Ainda, em certos casos, a depender do nível de autonomia que possua e da utilização do sistema de apoio, há a possibilidade de responsabilidade indireta de terceiro pela pessoa com deficiência intelectual.

Palavras-chave: Direitos da pessoa com deficiência. Pessoa com deficiência intelectual.

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The effects of Law No. 13.146/2015 (Statute of the Person with Disability) – which reiterated the change in the regime of disabilities already conveyed in the Convention on the Rights of Persons with Disabilities – have reached several areas of civil law, including civil liability. Currently, people with intellectual disabilities have legal capacity for acts of civil life, and such exercise of rights generates the concrete risk of producing damages. In this monographic work, we seek to analyze the extent of their civil liability, as well as the grounds for repairing the damage they may have caused, in addition to the possibility of indirect liability of third parties participating in the support system brought about by the new law. By means of an exploratory study of the doctrine on the subject and with the use of the deductive method, the nature of such liability will be examined, as well as whether it should occur in the same manner for people with disabilities and without disabilities. In this regard, the types of liability existing in the Brazilian Civil Code will be investigated and what would be the most appropriate legal grounds for the person with disability. Examples based on national jurisprudence will be used in order to investigate how magistrates have decided concrete questions on the responsibility to indemnify the person with disability, whether it actually exists, how and to what degree. Finally, it will be concluded that such people are effectively responsible for compensating the damage, art. 927, in a direct manner, as a general rule. However, considering their special situation of vulnerability, the compensation must also comply with the provisions of the sole paragraph of art. 928, so that the handicapped person is not deprived of what is necessary to survive. Still, in certain cases, depending on the level of autonomy and the use of the support system, there is the possibility of indirect third-party responsibility for the people with intellectual disabilities.

Keywords: Disabled person rights. Intellectual disabled person. Legal capacity. Civil

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Art. Artigo CC Código Civil

CDPD Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência CF Constituição Federal

Des. Desembargador

EPD Estatuto da Pessoa com Deficiência N° Número

ONU Organização das Nações Unidas PCD Pessoa com deficiência

Rel. Relator

TDA Tomada de Decisão Apoiada TJ Tribunal de Justiça

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1 INTRODUÇÃO...10

2 EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELO DANO CAUSADO...13

2.1 Conceito e funções da responsabilidade civil...13

2.2 Estrutura: os tipos e os pressupostos da responsabilidade civil...15

2.2.1 Pressupostos comuns à responsabilidade subjetiva e objetiva: dano e nexo causal....15

2.2.2 Responsabilidade subjetiva: da investigação psicológica da culpa à violação objetiva de standards de conduta...18

2.2.3 Responsabilidade objetiva: a desnecessidade de análise do aspecto subjetivo...24

3 DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E REGIME JURÍDICO DAS INCAPACIDADES. 28 3.1 Deficiência intelectual: aspectos conceituais...29

3.2 A Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência e o reconhecimento de capacidade jurídica às PCD...35

3.3 Realidade brasileira antes da Lei n° 13.146/15: PCD como absolutamente incapaz..37

3.4 Realidade brasileira após a Lei n° 13.146/15: atribuição de capacidade plena à PCD ...40

3.4.1 Sistema de apoio: Da tomada de decisão apoiada e da curatela...43

4 DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E RESPONSABILIDADE CIVIL...46

4.1 Responsabilidade da PCD intelectual plenamente capaz...47

4.2 Responsabilidade da PCD intelectual relativamente incapaz...52

4.3 Responsabilidade do curador ou apoiador por dano causado pela PCD intelectual..54

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...66

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1 INTRODUÇÃO

Desde a entrada em vigor da Lei n° 13.146/2015, o Código Civil (CC) brasileiro cercou-se de diversas mudanças decorrentes de seus efeitos, cujo centro cinge-se na atribuição de capacidade jurídica a pessoas com deficiência (PCD). Hodiernamente, tais são capazes em igualdade de condições com as demais, via de regra.

Contudo, tal reconhecimento de dignidade humana para as PCD já havia sido proporcionado pela Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD), de 30 de março de 2007, cuja incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro ocorreu em 2008, por meio do Decreto Legislativo n° 186/2008. Embora a incorporação tenha ocorrido com status de emenda constitucional, a problematização da mudança só foi acentuada após a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD).

Nesse contexto insere-se a pessoa com deficiência intelectual, a qual figurava, antes, como agente passivo de um modelo de substituição de vontade geral justificado pela “falta de discernimento” para reger a própria vida. Em outras palavras, um terceiro era designado para a função de decidir a respeito dos interesses da PCD intelectual, até mesmo para questões existenciais, enquanto o indivíduo diretamente interessado não era capaz de fazer as próprias escolhas, ainda que seu grau de discernimento sobre essas decisões, a depender da deficiência intelectual e das oportunidades de evolução pessoal, fosse mais elevado.

As mudanças no regime das incapacidades acabaram por modificar também uma área do Direito Civil essencial às atuais relações humanas: a responsabilidade civil. Nesse sentido, pergunta-se: se a PCD intelectual, considerada concretamente sua vulnerabilidade, passa a figurar como agente capaz, pode-se dizer que se torna também responsável e obrigada a reparar civilmente eventual dano que causar a terceiro? Qual deve ser a proporção dessa responsabilidade? Atualmente ainda subsiste a possibilidade de terceiros responderem por atos da pessoa com deficiência intelectual?

Com base nesses questionamentos – a obtenção de suas respostas são o objetivo deste trabalho – nota-se que investigar os fundamentos da responsabilidade civil da pessoa com deficiência intelectual é, também, fomentar sua participação na vida em sociedade, onde praticará atos e possivelmente produzirá danos, de forma que essa reparação deve atender não

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apenas à indenização que deve ter a vítima do dano, mas também à situação concreta de vulnerabilidade da PCD causadora do prejuízo.

Nesse sentido, a presente análise dos aspectos do EPD, com enfoque na responsabilidade civil, contribuirá para a construção de um entendimento do ordenamento jurídico pautado na dignidade humana e na equidade, de forma que as indagações acerca da responsabilização da PCD intelectual sejam, no maior grau possível, solucionadas, pretendendo assim a autora contribuir para a divulgação de um novo espírito da capacidade e da responsabilidade civil trazidos ao Código Civil a partir da vigência da Lei n° 13.146/2015.

Para isso, o trabalho utiliza-se do estudo exploratório da doutrina sobre o tema e do método dedutivo, além da pesquisa bibliográfica, da revisão de literatura (livros, artigos, periódicos e trabalhos científicos) e da pesquisa documental (textos legais e decisões judiciais).

Com o fim de alcançar os objetivos já delineados, a monografia divide-se em quatro capítulos: após esta introdução, no segundo serão delineadas as funções e tipos de responsabilidade civil, bem como se analisará a sua evolução, com ênfase na objetivação da culpa; no terceiro capítulo se abordarão os aspectos conceituais relativos a deficiência intelectual, além das garantias trazidas pela CDPD, bem como o regime jurídico das incapacidades segundo o Código Civil brasileiro, antes e depois da vigência do EPD; e finalmente, no quarto capítulo serão analisados os fundamentos justificantes da sua responsabilidade civil da pessoa com deficiência intelectual, bem como de terceiros que participam do sistema de apoio, com exemplificações de recentes julgados de tribunais, a fim de apontar como a prática forense tem se adaptado às mudanças trazidas pela lei, além de fazer conjecturas e identificar possíveis caminhos para a jurisprudência dos próximos anos.

Por fim, se concluirá pela existência – em regra – da responsabilidade da PCD intelectual de indenizar danos por ela causados, nos moldes do art. 927, de forma direta. Entretanto, considerando sua especial situação de vulnerabilidade, o montante da reparação deve atender ao disposto no parágrafo único do art. 928, de forma equitativa. Em caso de PCD que seja relativamente incapaz (art. 4°, III), como se verá, a responsabilidade deve ser subsidiária, com fundamento no caput do art. 928. Ainda, em certos casos, a depender do nível de autonomia que possua e da utilização do sistema de apoio, terceiros poderão também responder pelo dano, de forma indireta. Nesses casos, conforme se demonstrará, os curadores

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devem responder de forma objetiva pelos danos causados no âmbito patrimonial e negocial (art. 932, II), enquanto os apoiadores devem responder subjetivamente (art. 927), apenas se agirem culposamente no exercício de sua obrigação de informar corretamente a PCD intelectual apoiada.

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2 EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELO DANO CAUSADO

Para se discutir o problema central deste trabalho monográfico, devem ser expostos, primeiramente, algumas bases conceituais, que fundamentarão as teses ao final defendidas. Assim, antes de discutir-se a responsabilidade da pessoa com deficiência intelectual, deve-se definir o que é responsabilidade e quais as suas funções, o que se passa a explanar a seguir.

2.1 Conceito e funções da responsabilidade civil

O conceito de responsabilidade no Direito Civil pode ser delineado como a obrigação que tem o sujeito causador de um dano, ou prejuízo, de repará-lo, ou de assim fazê-lo por determinação legal, mesmo que não o tenha causado, como nas hipóteses de responsabilidade civil indireta.

Nesse raciocínio, todos os seres estariam submetidos, pela própria vivência em sociedade, a duas obrigações básicas: a de agir em obediência à lei e a de reparar o dano causado pelo descumprimento da primeira obrigação – embora, atualmente, essa reparação tenha se desprendido da violação à lei, cabendo mesmo quando decorrente de condutas lícitas. Para Farias, Rosenvald e Braga Neto, ser “responsável” implica não só no reconhecimento, pelo indivíduo, das consequências de seus próprios atos, como também no dos outros, quando estão sob seus cuidados. A responsabilidade seria ligada, portanto, a uma obrigação de fazer que ultrapassa a simples reparação.1

Embora haja diferentes nomenclaturas e classificações, na civilística pátria, atualmente, costuma-se falar em três funções principais da responsabilidade civil: a) a punitiva; b) a reparatória; c) a preventiva.2 Apesar disso, sabe-se que a evolução da

1FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETO, Felipe Peixoto. Curso de Direito

Civil: Responsabilidade Civil. - 4. ed. rev. e atual. - Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 34.

2FARIAS, ROSENVALD e BRAGA NETO não chegam a considerar a função preventiva: “Certamente há uma função preventiva subjacente às três anteriores, porém consideramos a prevenção um princípio do direito de danos e não propriamente uma quarta função. A prevenção detém inegável plasticidade e abertura semântica, consistindo em uma necessária consequência da incidência das três funções anteriores. Isso não impede que se manifeste com autonomia, aliás, objetivo primordial da responsabilidade civil contemporânea”. Op. cit., p. 62.

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responsabilidade civil fez crescer o prestígio de algumas funções em detrimento de outras, que passam a assumir certo papel secundário.

A função punitiva, por exemplo, entendida em um contexto de desestímulo a condutas moralmente reprováveis, teve seu ápice no Estado Liberal, por meio do entendimento de que se o indivíduo usasse de sua liberdade de maneira inadequada deveria ser civilmente punido.3

Assim, a responsabilidade civil surgiu atrelada a essa função, como instrumento de punição do ofensor, ator principal nesse cenário, enquanto a vítima ocupava apenas papel acessório e a indenização era mera consequência lógica da sanção imposta. Em outras palavras, a responsabilidade civil tinha mais o objetivo de moralizar as condutas individuais do que de garantir à vítima a reparação do prejuízo.4

A função reparatória, por sua vez, relaciona-se a um repasse – financeiro ou não5 – do ofensor à vítima, como forma de retorno à situação anterior ao dano, tanto quanto possível. Dessa forma, há uma certa mudança de enfoque com relação à função anterior: o objetivo passa a ser a plena reparação do prejuízo da vítima, e não a punição de seu causador, invertendo-se os papéis do que é principal e do que é acessório. No Brasil, os princípios constitucionais da dignidade humana e da solidariedade6 foram a base para o assentamento desse novo foco da responsabilidade civil, por meio do entendimento de que mereceria

3DE SIQUEIRA, Fernando; GONDIM, Glenda Gonçalves. Uma análise do instituto da responsabilidade civil

e as suas reinterpretações: das novas formulações do instituto e as repercussões para o século XXI, p. 305.

In: XXIII Encontro Nacional do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito. 2014. Florianópolis. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=9c773fbdb174e096. Acesso em 20 mar. 2020.

4MULHOLLAND, Caitlin. A responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas

relações privadas. 2 ed. Rio de Janeiro: Processo, 2019, v. 1, p. 704.

5Nesse sentido, não há no Código Civil norma que imponha a indenização pecuniária como meio exclusivo para reparação do dano. Por essa razão, o Enunciado n° 589 da VII Jornada de Direito Civil dispõe: “A compensação pecuniária não é o único modo de reparar o dano extrapatrimonial, sendo admitida a reparação in natura, na forma de retratação pública ou outro meio”. Faz-se essa diferenciação porque no dano patrimonial o que se perde tem valor pecuniário, enquanto no dano moral não. BRASIL. Conselho da Justiça Federal - Enunciados. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/834. Acesso em: 05 jul. 2020.

6O art. 1°, III da Constituição Federal de 1988 assim dispõe: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana”. O art. 3°, por sua vez, preceitua: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária (...)”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

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reparação toda lesão à personalidade ou dignidade de outrem, como também a seus interesses.7

Com relação à função preventiva, verifica-se que objetiva evitar atividades que tenham o potencial de gerar prejuízos. Trata-se de difícil tarefa na sociedade contemporânea, considerando que toda atividade, atualmente, oferece riscos e é potencialmente causadora de danos – como se verá a seguir, condutas lícitas também podem gerar lesões passíveis de ressarcimento. Por essa razão, tal função sofre certa mitigação com a ascensão do chamado “direito de danos”, sobre o qual se discorrerá no capítulo seguinte.

Portanto, a responsabilidade civil é tão dinâmica quanto o é a vida em comunidade, e seus fundamentos devem ser atualizados conforme a realidade social, haja vista o Direito não ser um fim em si mesmo, mas um meio para a pacificação social. Dessa forma, faz-se necessário expor os tipos de responsabilidade civil e seus pressupostos, e nesse contexto explicitar a erosão do antigo conceito de culpa, considerando a tutela da vítima e o dano por ela suportado, hoje entendido como uma ofensa a seus direitos ou interesses.

2.2 Estrutura: os tipos e os pressupostos da responsabilidade civil

Neste trabalho monográfico, a fim de evitar maiores digressões, serão explanadas as teorias subjetiva e objetiva da responsabilidade civil extracontratual em seus principais aspectos. Considerando que o que as diferencia é, essencialmente, o elemento culposo, primeiramente serão expostos seus pressupostos em comum – dano e nexo causal – para, em seguida, explicar aquilo que as distingue – a culpa/ato ilícito, na responsabilidade subjetiva; e o risco, na objetiva.

2.2.1 Pressupostos comuns à responsabilidade subjetiva e objetiva: dano e nexo causal

7MORAES, Maria Celina Bodin. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. Revista Direito, Estado e Sociedade - n. 29 (2006), p. 238-241. Disponível em: https://revistades.jur.puc-rio.br/index.php/revistades/article/view/295. Acesso em: 16 jun. 2020.

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Para haver responsabilidade, pressupõe-se o elemento dano. Esse prejuízo, que pode se dar pela prática de um ato ilícito – responsabilidade subjetiva – ou por uma atividade de risco exercida habitualmente pelo lesante – responsabilidade objetiva8 – é inerente à ideia de indenização. De fato, não se pode cogitar de reparação onde não há o que se reparar.

O dano, portanto, configura-se como uma lesão indesejada por quem a sofreu. Esse prejuízo pode ser de ordem material ou imaterial, e direcionado a quaisquer interesses e direitos da vítima: sua causação não depende, necessariamente, de um ato ilícito. As condutas lícitas também podem gerar prejuízos, e estes devem ser reparados.

Conforme se verá a seguir, atualmente fala-se na existência de uma teoria do risco, na qual a reparação do dano é valorizada a partir de princípios constitucionais. Diante das contemporâneas relações sociais, bem como do incremento dos perigos que seu progresso trouxe, busca-se garantir indenização às vítimas por parte de quem exerce atividade de alta probabilidade de dano, dispensando-se a análise da culpa. Na mesma esteira, na responsabilidade decorrente de ato ilícito – imprudência, negligência ou imperícia – apesar de existir a necessidade de análise da culpa, essa passa a ocorrer, hoje, de forma objetiva, destacando ainda mais a ascensão do dano em comparação aos demais elementos da responsabilidade civil.

Seja na modalidade subjetiva, seja na objetiva, o dano tem sofrido notável crescimento diante das recentes modificações sociais desde a Revolução Industrial. Em verdade, o objetivo da responsabilidade civil é justamente recolocar em situação de equilíbrio a situação que existia antes do prejuízo, por meio de uma obrigação de fazer que pode resultar em indenização financeira ou não, como sinalizado no capítulo anterior.

Com o atual entendimento da responsabilidade civil como ambiente de tutela da pessoa lesada pelo prejuízo, o dano é essencial para a reparação, não havendo que se falar em indenização caso um ato ilícito ou atividade de risco não cause dano – apenas se repercutir em

8“(...) Poder-se-ia acreditar que o fato gerador das responsabilidades negocial e civil seria a prática de um ato ilícito. Na ampla acepção do ilícito, o inadimplemento obrigacional no âmbito de um negócio jurídico perfaz um "ilícito relativo" - transgressão a um preceito negocíalmente concebido -, ao contrário do que se dá na responsabilidade civil, na qual a expressão "ilícito absoluto" consubstancia uma violação ao neminem laedere. · Todavia, a prática de um ilícito só será pressuposto de responsabilidade civil na teoria subjetiva. Na teoria objetiva, de modo diverso, o nexo de imputação será delimitado. pelo risco da atividade ou pelo legislador, independente da constatação da antijuridicidade do comportamento do agente”. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. - 4. ed. rev. e atual. - Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 86.

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lesão a interesses patrimoniais ou existenciais da vítima.9 O art. 944 do Código Civil, destaque-se, define o dano como medida da indenização.10

Entendido esse aspecto, deve-se definir o que é o nexo causal, outro elemento comum às duas teorias da responsabilidade civil – subjetiva e objetiva. A relação de causalidade, ou nexo causal, tem importante papel na reparação cível, pois a um só tempo determina se a causa do dano foi realmente uma conduta ilícita ou atividade de risco do possível lesante, mas também qual foi a extensão do dano e, portanto, a já comentada medida da indenização.11

Nesse sentido, o nexo causal é a ligação entre a conduta ilícita danosa, ou ainda a atividade de risco exercida pelo lesante – a depender do tipo de responsabilidade – e o prejuízo em si. É a ponte que explicita o que causou o dano, e deve necessariamente estar presente para se cogitar de indenização. A partir da investigação dessa ligação nasce a obrigação de reparar o dano, de forma proporcional ao seu tamanho, podendo o magistrado adequá-la conforme o caso concreto, como dispõe o parágrafo único do art. 944.

Sobre isso, saliente-se que algumas vezes o responsável não é, exatamente, aquele que praticou a conduta danosa, como nos casos de responsabilidade objetiva indireta. Em tais hipóteses, o dever de indenizar nasce pela obrigação legal que lhe é imposta, a exemplo da responsabilidade dos pais pelos danos causados pelos filhos menores (art. 932, I do CC).12 Portanto, acima de uma causalidade física, há uma primazia da causalidade jurídica ou normativa, a fim de dar azo a proteção da vítima frente ao prejuízo que sofreu.13 Assim, a causalidade jurídica seria a “ponte” de ligação entre conduta e dano criada não pela situação

9Op. Cit., p. 87.

10Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano. Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização. BRASIL. Lei n°

10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

11FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETO, Felipe Peixoto. Curso de Direito

Civil: Responsabilidade Civil. - 4. ed. rev. e atual. - Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 405.

12Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia; II - o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições; III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; IV - os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos; V - os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia. Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos. BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). 13FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETO, Felipe Peixoto. Curso de Direito

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fática, mas pela legislação, que obriga alguém a indenizar pelo dever de cuidado que tinha na época da ocorrência do prejuízo.

Ainda que haja essa “elasticidade” dada pela lei, chamada de causalidade jurídica, o acontecimento que tenha rompido o nexo causal – legal ou fático – figura como excludente deste, dirimindo por consequência a responsabilidade civil.

São as chamadas excludentes de causalidade, traduzidas no caso fortuito ou força maior14 (acontecimento inteiramente inevitável e distante da atuação das partes, podendo ser fato da natureza, como a destruição de um objeto pessoal por ação de chuvas), na culpa exclusiva da vítima (nesse aspecto, a causa do dano foi propriamente a atuação da vítima, não devendo outrem ser responsabilizado), ou ainda na sua culpa concorrente (ainda que a conduta de outrem tenha contribuído para o dano, a da vítima também foi responsável por ocasioná-lo, por isso há redução da indenização), bem como no fato de terceiro (quando outrem causou o dano, diferente daquele que se acusa como responsável)15.

Esses dois elementos em comum – dano e nexo de causalidade – entretanto, a depender do tipo de responsabilidade civil, aliam-se a outros fatores, que devem ser igualmente investigados para implementar-se qualquer indenização.

2.2.2 Responsabilidade subjetiva: da investigação psicológica da culpa à violação objetiva de standards de conduta

A responsabilidade civil, tradicionalmente, mostrava-se apenas em seu viés subjetivo, e possuía três pressupostos, chamados por Anderson Schreiber de “filtros da reparação”16: a) a prática de um ato ilícito, e nela inclusa a culpa; b) o dano, ou seja, um prejuízo experimentado; e c) o nexo causal, entendido como a relação entre o dano e a conduta que o ocasionou. Tais elementos foram assim chamados pelo autor porque

14Aparentemente não há consenso na doutrina sobre a diferenciação entre caso fortuito e força maior. Para FARIAS, ROSENVALD e BRAGA NETO, o CC brasileiro “acena para a identidade entre os modelos”. Op. Cit, p. 421. De fato, o art. 393 dispõe: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”. BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de

2002 (Código Civil).

15FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETO, Felipe Peixoto. Curso de Direito

Civil: Responsabilidade Civil. - 4. ed. rev. e atual. - Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 419.

16SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015. P. 11.

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funcionavam como um limite que indicava quais pedidos de indenização deveriam ser judicialmente deferidos. Considerando que os dois últimos aspectos já foram tratados, passa-se a analisar a responsabilidade subjetiva sob o enfoque do elemento do ato ilícito e principalmente da culpa – atrelada à imputabilidade – bem como de sua transformação.

No conceito clássico da responsabilidade civil, o ato ilícito era indispensável para qualquer indenização, e conceituado como uma conduta de contrariedade ao Direito que causasse prejuízo, ou uma violação ao padrão de conduta do “homem médio”. O comportamento reprovável, aqui, traduz-se na prática de um ato que viole a lei, seja por imprudência, se a conduta é comissiva; por negligência, se omissiva; ou por imperícia, se por meio da conduta se pratique ato para o qual não se possui expertise técnica.17

Os elementos imputabilidade e culpa eram necessariamente analisados junto ao ato ilícito. A culpa, por sua vez, possuía um forte traço psicológico, e poderia ser antes definida como a violação de um dever preexistente, aliado ao elemento subjetivo, ou seja, a consciência dessa infração (reprovabilidade social) e a previsibilidade do desfecho danoso.18

Desses conceitos tradicionais já torna-se notável que a imputabilidade, isto é, a capacidade de reconhecimento do erro de conduta, associada ao grau de maturidade, discernimento e autodeterminação do agente, era fundamental para a formação da culpa civil, que era essencialmente intimista. Com a erosão desse antigo conceito de culpa, a imputabilidade foi perdendo sua importância, podendo-se atribuir hoje responsabilidade civil mesmo para agentes inimputáveis, conforme se verá a seguir.

Tradicionalmente, a responsabilidade subjetiva entrelaçava-se à já mencionada função punitiva. Por essa razão, inclusive, a prática do ato ilícito – concernente em praticar o que a lei proibia – gerava uma investigação do ânimo do agente, a fim de se verificar o grau de consciência que possuía quando da causação do dano, bem como sua intenção de ocasioná-lo. Nesse sentido, a análise do ato ilícito ocorria fundamentada em um aspecto psicológico, da culpa e da imputabilidade no íntimo do lesante. Em outras palavras, essa análise demonstraria quem seria “culpado” e, por isso mesmo, teria o dever de reparar o prejuízo.

17MORAES, Maria Celina Bodin. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. Revista Direito, Estado e Sociedade - n. 29 (2006), p. 241. Disponível em: https://revistades.jur.puc-rio.br/index.php/revistades/article/view/295. Acesso em: 16 jun. 2020.

18MULHOLLAND, Caitlin. A responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de. (Org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas

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Como se percebe, a culpa era associada a certo senso moral, e relacionada ao grau de liberdade do indivíduo – quem fizesse mau uso de sua liberdade, seria consequentemente responsável.19 Por essa razão fala-se em uma culpa psicológica característica da concepção clássica de responsabilidade civil subjetiva.

A responsabilidade subjetivaencontrou largo espaço no antigo Código Civil, de 1916, que em seu art. 159 condicionava a responsabilização de alguém à demonstração de sua culpa psicológica.20 Contudo, esse conceito foi sendo aos poucos modificado, pois a tarefa de provar a culpa subjetiva do ofensor – suas intenções e pensamentos – foi tornando-se um ônus excessivo à vítima, o que inviabilizaria ou dificultaria ao extremo a reparação dos novos danos que passaram a ficar cada vez mais comuns.21

No contexto mundial, após a Revolução Industrial surgiram novos prejuízos que demandavam indenização, enquanto a necessidade de análise do elemento íntimo impedia a ação ressarcitória. Riscos e prejuízos em potencial passaram a ser não apenas frequentes, mas também esperados em diversas atividades coletivas, e nem sempre se podia comprovar o ânimo psicológico do causador do ato ilícito – a culpa subjetiva transformou-se em verdadeira “prova diabólica”, de modo que a vítima não conseguia arcar com o ônus de demonstrá-la, tampouco o magistrado era capaz de investigá-la.22

Além disso, a culpa psicológica possuía como parâmetro o “homem médio” – ou seja, um padrão de conduta diligente da “pessoa comum”, espelho de como se deveria agir em sociedade – aspecto que não raras vezes era de difícil elucidação, tanto pela falta de critérios objetivos aptos a indicar o ânimo e a consciência do ofensor, quanto pela questionabilidade de como seria o comportamento do desse homem ideal.

19Op. Cit., p. 16.

20O art. 156 do revogado dispositivo assim dispunha: “O menor, entre dezesseis e vinte e um anos, equipara-se ao maior quanto às obrigações resultantes de atos ilícitos, em que for culpado”. BRASIL. Lei n. 3.071, de 01 de

janeiro de 1916 (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil).

21MENEZES, Joyceane Bezerra de; LIMA, Martonio Mont'Alverne Barreto; COSTA, Adriano Pessoa da. Análise epistemológica da responsabilidade civil na contemporaneidade. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 21, p. 27, 2019. Disponível em: https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/463/306. Acesso em 22 mar. 2020.

22“Em sua versão de falta de moral, vinculada aos impulsos anímicos do sujeito e à previsibilidade dos resultados de sua conduta, a culpa mostrava-se um elemento de dificílima comprovação. Sua aferição impunha aos juízes tarefa extremamente árdua, representada por exercícios de previsibilidade do dano e análises psicológicas incompatíveis com os limites naturais da atividade judiciária, a exigir do magistrado quase uma capacidade divina (...)”. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015. P. 17-19.

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Por isso, diante do desproporcional encargo imposto à vítima, incompatível com a necessidade de reparação dos vários danos surgidos com as mudanças tecnológicas, passou-se a caminhar para uma tendência de objetivação da responsabilidade civil.23 O que se busca, a partir de então, é a tutela da pessoa com todas as indenizações dos danos que possa experimentar.24 A obrigação de indenizar passou a ter o objetivo de reconduzir o sujeito lesado ao estado em que se encontrava antes da ocorrência do dano, no maior grau possível, em detrimento do viés punitivista que anteriormente vigorava.25

De fato, com a multiplicação das possibilidades de perigo, o fator dano cresceu e ganhou posição de destaque se comparado aos demais elementos da responsabilidade civil, justificando a nomenclatura desta como “direito dos danos”, demonstrando a preocupação constitucionalmente motivada com a reparação cível e deixando a esfera punitiva para o Direito Penal.26 Pode-se dizer, inclusive, que vigora hoje um princípio “pro damnato”, em favor do prejudicado na tutela de sua integridade física, segundo o qual todo prejuízo deve ser indenizado27, evidenciando o surgimento de um sistema que busca a indenização em 23DE SIQUEIRA, Fernando; GONDIM, Glenda Gonçalves. Uma análise do instituto da responsabilidade civil

e as suas reinterpretações: das novas formulações do instituto e as repercussões para o século XXI, p. 306.

In: XXIII Encontro Nacional do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito. 2014. Florianópolis. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=9c773fbdb174e096. Acesso em 20 mar. 2020.

24DIEZ-PICAZO, Luis. La responsabilidad civil hoy. Articulo. Fundación Dialnet. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/1980401.pdf. P. 734. Acesso em 23 jun. 2020.

25“A obrigação de indenizar sempre foi associada à existência de um ato ilícito, que era seu fundamento primário e sua razão de ser. O ato ilícito, conceituado como toda conduta culposa contrária ao direito que gera um dano a outrem, possuía um forte traço moralista, no sentido de que os danos causados por quem tenha agido contra o direito devem ser devidamente ressarcidos, desde que ao ofensor possam ser imputadas tais consequências. Nota-se aí que o foco de atenção era o ofensor, isto é, a reparação do dano causado tem o objetivo de sancionar a conduta culposa do ofensor, quase que como uma punição pelo desequilíbrio sócio-patrimonial que gerou com sua atuação contrária ao direito. Este panorama, contudo, muda integralmente quando se retira o foco ou o objetivo da responsabilidade civil deste participante ativo e passa-se a analisar o resultado gerado, e não a conduta propriamente. Em outras palavras, a conduta ofensiva perde relevância ante o dano sofrido. Esta inversão traz como consequência a alteração da perspectiva da responsabilidade civil do ofensor para a ótica da vítima”. MULHOLLAND, Caitlin. A responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual.

In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas. 2 ed. Rio de Janeiro: Processo, 2019, v. 1, p. 705.

26Schreiber destaca, inclusive, que a regra de responsabilidade disposta no art. 927 do CC demonstra a diferença da disciplina cível para a penal. O mencionado artigo não tipifica todas as condutas, considerando que toda atividade humana gera risco de dano e é, portanto, passível de indenização. De outra banda, no Direito Penal todas as condutas ilícitas devem estar explicitamente dispostas em lei, sendo relevante a gradação de culpa do agente, que é absolutamente dispensável para a responsabilidade civil. SCHREIBER, Anderson. Novos

paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 6. ed. São

Paulo: Atlas, 2015. P. 23.

27“La evolución experimentada por la jurisprudencia en el curso de los últimos años, hace más claro ese nuevo sistema de la responsabilidad civil, que hoy, lejos de buscar una moralización de la conducta, trata de asegurar la reparación de los perjuizios de las víctimas. Es lo que hemos llamado el principio pro damnato o la idea de que por regla general todos los perjuicios y riesgos que la vida social ocasiona, deben dar lugar a resarcimiento, salvo que una razón excepcional obligue a dejar al dañado solo frente al daño”. DIEZ-PICAZO, Luis. La

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detrimento da moralização de condutas. Diez-Picazo lidera o nicho da doutrina que passa a tratar da responsabilidade civil como sinônimo atual de direito dos danos28, o qual abrange mais do que a transferência de patrimônio do lesante para o lesado, estendendo-se à análise dos elementos culpa e causalidade e contemplando assim os diversos aspectos da responsabilidade civil.

Portanto, a culpabilidade passa a considerar o erro de comportamento em detrimento das intenções pessoais do causador do prejuízo, em uma comparação objetiva com certos modelos de conduta.29 Assim, pode-se dizer que a análise da culpa permanece em vigor na responsabilidade subjetiva, mas evoluiu para um conceito objetivo: a comprovação do elemento culposo passou a ocorrer a partir de uma análise – separada da moral – entre a conduta danosa e o padrão de comportamento esperado socialmente, prescindindo de qualquer investigação do pensamento do agente. Passa a ser absolutamente desnecessário investigar se estava consciente do prejuízo, ou se tinha o ânimo de assim agir. Saliente-se que essa análise objetiva difere da responsabilidade objetiva em si, porque esta não considera qualquer culpa.

Nessa perspectiva, tomando como premissa a inadequação da culpa psicológica para a responsabilidade civil – em maior ou menor grau todos estão cercados pelo risco de causação de danos, e tal complexidade deve ser considerada sob um enfoque mais objetivo30 também passa a ser inadequada a utilização, como parâmetro, do modo de agir do “homem médio”. Assim, em vez de se tomar como modelo um standard generalizado de conduta, fala-se hoje em standards variados, modelos múltiplos de comportamento, considerando “não as características individuais do sujeito, mas fatores atinentes à sua formação socioeconômica que, muitas vezes, se vinculam indissociavelmente à situação analisada”.31

Trata-se de alternativa pertinente diante, em primeiro lugar, da inconveniência de se retornar ao campo da reprovabilidade moral e, em segundo lugar, da impossibilidade

responsabilidad civil hoy. Articulo. Fundación Dialnet. Disponível em:

https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/1980401.pdf. P. 734. Acesso em 23 jun. 2020. 28DÍEZ-PICAZO, Luis. Derecho de Daños. Primera edición. Madrid: 1999.

29SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015. P. 34-35.

30MENEZES, Joyceane Bezerra de; MONT’ALVERNE BARRETO LIMA, Martonio; PESSOA DA COSTA, Adriano. Análise epistemológica da responsabilidade civil na contemporaneidade. Revista Brasileira de Direito

Civil, v. 21, p. 18, 2019. Disponível em: https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/463/306. Acesso em 22

mar. 2020.

31SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015. P. 42.

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concreta de se tomarem standards individuais e específicos para cada indivíduo que cause um dano. Dessa forma, não se abandona a análise abstrata do comportamento, mas se adéquam os parâmetros para a investigação do cometimento do ato ilícito.

O atual Código Civil espelhou essa renovada função, adotando como regra de responsabilidade o formato subjetivo, enquanto sua análise deve ser feita de forma objetiva. Abandonando a culpa psicológica e passando a adotar a normativa, a interpretação dos arts. 186, 187 e 927 do CC é clara no sentido de que condutas culposas por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência que causem danos e violem interesses, ou cometam abuso de direito – praticando portanto ato ilícito – geram responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar.32

Assim, se alguém pratica ato ilícito gerando dano, no contexto brasileiro, a investigação dessa conduta culposa será feita pelo magistrado de forma objetiva, contrapondo o ato danoso aos standards de conduta social esperados dos cidadãos que fazem parte do mesmo contexto cultural e socioeconômico do ofensor, advindo daí a reparação do dano. Ainda, hodiernamente entende-se que o ato ilícito não compreende apenas uma violação ao texto expresso da lei, mas também a princípios e valores de Direito.33 Por isso é que são passíveis de indenização as lesões aos interesses e direitos que, ainda que não estejam expressamente tipificados na lei, encontram-se implícitos no diploma legal.

Sobre isso, destaque-se a irrelevância da gradação dos níveis de culpa, ou de sua diferenciação para o dolo: no conceito de culpa objetiva ou normativa, basta a violação aos modelos esperados de comportamento, que prescinde da apuração da controversa culpa levíssima, leve ou grave, cujo âmbito de significado restringe-se ao Direito Penal.34 Se ocorre um dano decorrente de ato ilícito, deve ocorrer a reparação, pois a culpa é uma noção social, não se busca mais um “culpado” propriamente, mas sim a necessária indenização à vítima.35

32O atual Código Civil não aboliu a responsabilidade pela prática culposa de ato ilícito, embora hodiernamente haja um maior âmbito de incidência do dever de indenizar, ainda que por condutas lícitas, e mesmo sem análise da culpa, desde que gerem lesão aos interesses de outrem. BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

33“Existe obligación de resarcimiento, aun cuando el acto fuera inicialmente justo y aunque se ejercitara un derecho, si el derecho se extralimitó o se ejercitó abusivamente”. DIEZ-PICAZO, Luis. La responsabilidad civil hoy. Articulo. Fundación Dialnet. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/1980401.pdf. P. 735. Acesso em 23 jun. 2020.

34SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015. P. 44.

35MULHOLLAND, Caitlin. A responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas

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Concluindo, se na modernidade da culpa tradicional a vítima deveria demonstrar o comportamento culposo e consciente do agente causador do dano, e só assim seria possível pleitear sua reparação36, na contemporaneidade da sociedade de riscos a alteração dos parâmetros do que era o “homem médio” permitiu maior equidade ao garantir ao lesado a indenização, mesmo sem a comprovação da culpa intimista, da violação consciente a um dever moral, que acabara por transformar-se em óbice à reparação cível.37

2.2.3 Responsabilidade objetiva: a desnecessidade de análise do aspecto subjetivo

A partir dessa mudança substancial, que resultou no enfoque da responsabilidade civil sobre o fator dano, demonstrou-se cada vez mais necessária a busca por avaliações objetivas das condutas. Nessa esteira, a noção de risco delineada no tópico anterior fundamentou a filiação de ordenamentos jurídicos, como o do Brasil, a uma modalidade de responsabilidade objetiva.38

Diferentemente da análise objetiva da culpa, presente na responsabilidade civil subjetiva atual, nessa modalidade de responsabilidade tal elemento é totalmente prescindível. Não há que se falar em culpa, ainda que normativa: o que justifica o dever de indenizar é pura e simplesmente o prejuízo, aliado ao nexo causal entre a provocação desse e a atividade normalmente desenvolvida pelo lesante.

Assim, ao tempo em que a culpa, na responsabilidade subjetiva, torna-se normativa e a imputabilidade cede espaço à análise objetiva dos standards de conduta, a responsabilidade objetiva surge como forma de proteção contra os riscos da sociedade

relações privadas. 2 ed. Rio de Janeiro: Processo, 2019, v. 1, p. 724-725.

36DE SIQUEIRA, Fernando; GONDIM, Glenda Gonçalves. Uma análise do instituto da responsabilidade civil

e as suas reinterpretações: das novas formulações do instituto e as repercussões para o século XXI, p. 305.

In: XXIII Encontro Nacional do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito. 2014. Florianópolis. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=9c773fbdb174e096. Acesso em 20 mar. 2020.

37SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015. P. 16.

38No Brasil, os decretos que tratavam das estradas de ferro e das atividades nucleares, por exemplo, foram responsáveis por introduzir esse tipo de responsabilidade. O Código Civil de 1916 já tratava, timidamente, da modalidade, mas sua interpretação só passou a ser deveras objetiva após a vigencia daqueles decretos. Op. Cit, p. 20.

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industrial, o que mais uma vez ressalta a função reparatória à vítima do atual direito dos danos.39

Enquanto o art. 927 do CC atual estabelece a regra de responsabilidade subjetiva, seu parágrafo único dispõe que existe também a obrigação de reparar o dano, sem análise de culpa, quando a atividade desenvolvida pelo autor do prejuízo implique, pela própria natureza, risco para direitos alheios, além de outros casos especificados por lei. O art. 932, por sua vez, também privilegia a modalidade objetiva de responsabilidade: os pais são responsáveis pelos atos dos filhos, o tutor e o curador pelos pupilos e curatelados, o empregador por seus empregados, dentre outros exemplos.40

Assim, o ato ilícito não é, aqui, ponto central na apuração da responsabilidade, na medida em que mesmo condutas lícitas, desde que gerem prejuízo, são passíveis de indenização. O próprio nexo de causalidade revela outras nuances na teoria objetiva, pois em muitos exemplos o que gera a obrigação de indenizar é uma conduta advinda de outra pessoa, pela qual a lei atribui a um terceiro a responsabilidade, como no caso dos empregadores, que são responsáveis pelos atos dos empregados. Prevalece, nesses casos, uma causalidade jurídica em detrimento da causalidade estritamente física.

No CC brasileiro, nota-se que são hoje passíveis de responsabilização objetiva as atividades que antes pertenciam ao campo da “culpa presumida”41, a exemplo da responsabilidade por fato de terceiro e por fato de animais. As presunções de culpa eram frequentes no Direito Civil brasileiro antes do CC/02: em vez de se dispensar tal elemento, a responsabilidade subjetiva era apurada com o ônus da prova invertido em benefício da vítima, o que se justificava também pela necessidade de reparação do prejuízo e pela dificuldade em se comprovar a culpa psicológica. Nesse sentido era o Enunciado n° 341 do Supremo Tribunal Federal, ao dispor que era “presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto”.42

39Para Schreiber, a tendência de objetivação ocorreu muito mais pela necessidade de se garantir reparação dos danos do que pela existência de uma responsabilidade pelo risco. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas

da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

P. 30.

40BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

41Tratadas por Schreiber como aquelas situações em que a culpa do ofensor era pressuposta, e o ônus de prová-la não pertencia à vítima. No caso, o lesante é que deveria provar a ausência de culpa. SCHREIBER, Anderson.

Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 6. ed.

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Hodiernamente, entretanto, abandonou-se essa tendência de presunção para a efetiva responsabilização objetiva: não há necessidade de comprovação do elemento culposo. Trata-se de modalidade excepcional de reparação do dano, e por isso deve estar prevista expressamente em lei: a responsabilidade subjetiva é a regra geral.

Sobre a responsabilização indireta de forma objetiva, tal como consta no art. 932, faz-se necessário ressaltar que, caso aqueles imputados como responsáveis não tenham meios suficientes para indenizar o dano, o incapaz (inciso I) deve responder pelos prejuízos que causar, de acordo com a redação do art. 928 do CC. Essa responsabilidade, como já se ressaltou, é hoje apartada do conceito de imputabilidade tradicional, pois o incapaz – em tese, inimputável – pode responder pelos próprios atos, ainda que excepcionalmente, e de forma equitativa, como preceitua ainda o parágrafo único do dispositivo legal.43

Além das hipóteses do art. 932, a cláusula geral do já mencionado parágrafo único do art. 927 permite que o magistrado defina, nos casos concretos, o âmbito de incidência do mencionado dispositivo. A redação do artigo dá a entender que qualquer atividade humana que tenha grande probabilidade de causar prejuízo, ou grandes chances de gerar dano, será passível de sua aplicação – sendo atividade profissional ou não.

Dessa forma, práticas que ofereçam perigo incremental, concreto e de cuja probabilidade de prejuízo seja acentuada podem fazer parte do espectro da responsabilização objetiva. No Código de Defesa do Consumidor também há exemplificação: a responsabilidade do fornecedor ocorre independentemente de culpa pelo fato do produto ou do serviço.44

Nesse jaez, passa a ser responsável todo aquele que proporciona risco de dano, conforme os princípios da solidariedade social e da dignidade humana, constitucionalmente assegurados.45 Em lugar de tutelar objetos, o Direito Civil hoje tutela as relações entre sujeitos

42BRASIL. Supremo Tribunal Federal: Jurisprudência. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=2478. Acesso em 09 jul. 2020. 43Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem. BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

44Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. BRASIL. Lei n° 8.078, de de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor). 45“Afasta-se do âmbito tutelado pelo direito civil aquilo que representava a sua identidade – a proteção do indivíduo frente ao Estado – e transfere-se esta tutela para a Constituição Federal, modificando-se a função

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de direitos, bem como os impactos que esses relacionamentos podem ocasionar na sociedade, visto que todos necessitam de proteção frente aos prejuízos experimentados na contemporaneidade. Essa noção trazida para a civilística atrela-se à constitucionalização do Direito Civil, ou seja, a irradiação, pelo Direito Constitucional, de princípios para a regulação da civilística brasileira.46

Sobre esse ponto, é interessante destacar que a própria CF/88 traz em seu texto hipóteses de aplicação da responsabilidade objetiva para os danos decorrentes de atividades nucleares (art. 21, XXIII, “d”) e por prejuízo causado por agentes públicos no exercício da função, por exemplo (art. 37, § 6°).47

Por fim, é importante salientar que na atual conjuntura jurídica brasileira as modalidades subjetiva e objetiva convivem e complementam-se, mas, como visto, a primeira não corresponde à culpa intimista como antes, mas entendida como um desvio de conduta do comportamento socialmente esperado.

É nessa perspectiva renovada do direito dos danos que se inserem os questionamentos deste trabalho monográfico acerca da responsabilidade civil da PCD intelectual, haja vista a atribuição de capacidade legal pelo EPD. Indaga-se se a atribuição da obrigação de indenizar da pessoa com deficiência intelectual deve ocorrer com base no art. 927 ou 928 do Código Civil, considerando que, apesar de capaz, a PCD intelectual é concretamente vulnerável.

originária do direito civil. A busca da reparação do dano sofrido injustamente pela vítima justifica-se, desta maneira, por dois fundamentos constitucionais: a proteção da dignidade da pessoa humana e o princípio da solidariedade social, justificadores da tutela preferencial do ofendido”. MULHOLLAND, Caitlin. A responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas. 2 ed. Rio de Janeiro: Processo, 2019, v. 1, p. 706.

46MORAES, Maria Celina Bodin. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. Revista Direito, Estado e Sociedade - n. 29 (2006), p. 250-251. Disponível em: https://revistades.jur.puc-rio.br/index.php/revistades/article/view/295. Acesso em: 16 jun. 2020.

47Art. 21, XXIII, d) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa. Art. 37, § 6°: § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

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3 DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E REGIME JURÍDICO DAS INCAPACIDADES

Para investigar a responsabilidade civil da pessoa com deficiência intelectual, faz-se necessário entender sua situação jurídica no ordenamento brasileiro, considerando as mudanças trazidas pela Lei n° 13.146/15 ao regime das incapacidades. Além disso, é preciso expor os aspectos conceituais relativos a deficiência, vulnerabilidade, discernimento e autonomia, o que se fará no subtópico a seguir, a fim de se analisar a medida de eventual responsabilização cível.

Prosseguindo, portanto, sobre o aspecto relativo ao regime das incapacidades, a civilística clássica brasileira atrela ao seu estudo três conceitos essenciais, quais sejam: a) a personalidade jurídica, atributo que embora não se confunda com capacidade, liga-se à sua análise; b) a capacidade de direito (ou de gozo); e c) a capacidade de fato (ou de exercício).

Quanto à personalidade jurídica, todo ser humano a possui, e a adquire com o início da vida, pois constitui a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações.48 A capacidade surge como medida dessa personalidade, sendo certo que todo ser que nasce e, portanto, adquire personalidade jurídica, possui a capacidade de direito ou de gozo, pois passa a poder ser titular daqueles direitos e obrigações, ainda que assistido ou representado. Em verdade, a capacidade de direito não pode ser recusada ao indivíduo, do contrário lhe seriam tolhidos os atributos da personalidade.49 Quanto à capacidade de fato, só a possui quem pode praticar os retromencionados atos pessoalmente, isto é, por si mesmo, sem necessitar da representação ou assistência de terceiro. A junção da capacidade de direito com a de fato importa em capacidade plena à pessoa que as possui.

No Direito Civil brasileiro, em regra os incapazes só possuem capacidade de direito50, posto que é adquirida com o nascimento. Isso porque não podem exercer pessoalmente os atos da vida civil (não têm capacidade de fato), dependendo para esse

48O artigo 1° do atual Código Civil brasileiro assim dispõe: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. O art. 2º, por sua vez, traduz que “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

49PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil - 24. cd. - Rio de Janeiro, Editora Forense, 2011, p. 221 e 222.

50Há certos atos da vida civil que o relativamente incapaz pode praticar diretamente, como ser testemunha, fazer

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desiderato de assistente, no caso dos relativamente incapazes; ou de representante, no caso dos absolutamente incapazes.

Em verdade, personalidade e capacidade são conceitos autorreferentes, na perspectiva de Caio Mário, de nada vale o primeiro sem o segundo. É assim que sustenta a impossibilidade de restrição à capacidade, ou seja, na medida em que se possui aptidão para adquirir direitos, deve-se gozá-los e exercê-los, sozinho ou por via de representação. Nessa linha é que conclui que a total privação da capacidade significaria o comprometimento da própria personalidade.51

Nessa toada, estudar e compreender o regime jurídico das incapacidades é discernir em que medida, atualmente, se permite o exercício da personalidade pelos indivíduos, mormente com a atual interpretação civil-constitucional em favor de uma “abordagem mais humanista e mais solidária das relações jurídicas”.52

As mudanças trazidas à tal disciplina no Direito Civil pelo EPD impactaram em diversos aspectos, inclusive na responsabilidade civil. Por essa razão, passa-se a estudar os aspectos conceituais sobre deficiência intelectual, para depois expor-se o panorama das incapacidades antes e após a vigência do Estatuto e passar-se ao ponto central deste trabalho, qual seja, o exame da obrigação de indenizar dano causado pela PCD intelectual.

3.1 Deficiência intelectual: aspectos conceituais

O art. 2° do EPD, inspirado na CDPD, define deficiência como um impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir a participação da pessoa que a possui de forma plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas.

A deficiência intelectual, especificamente, era antigamente denominada como retardo mental: a mudança do termo consagra uma tentativa de tornar menos excludente o contexto das PCD. Santos e Morato, inclusive, advogam a mudança do termo deficiência

51PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil - 24. cd. - Rio de Janeiro, Editora Forense, 2011, p. 221.

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intelectual para “dificuldade intelectual e desenvolvimental (DID)”.53 Definida como a presença, em alguém, de limitações no funcionamento intelectual e em habilidades conceituais, sociais e práticas manifestadas antes dos 18 anos54, atualmente, é compreendida não mais como impossibilidade de crescimento pessoal, mas como um desafio possível de enfrentamento a quem o possui. Trata-se, assim, não de doença mental, mas de uma limitação que se agrava pela interação dos impedimentos naturais com as barreiras sociais.55

A deficiência intelectual compreende uma série de dificuldades na aprendizagem, nas relações interpessoais, na resolução de problemas. Segundo sua conceituação médica, caracteriza-se por “déficits em capacidades mentais genéricas, como raciocínio, solução de problemas, planejamento, pensamento abstrato, juízo, aprendizagem acadêmica e aprendizagem pela experiência”.56 Essas dificuldades podem resultar em prejuízos na comunicação e na participação social, em maior ou menor grau, dependendo dos estímulos e oportunidades com que a PCD tenha contato.

Esse tipo de deficiência não pode ser confundido com transtornos mentais ou psíquicos, embora possam coexistir. Nestes, as habilidades acima mencionadas são desenvolvidas conforme o padrão de idade esperado, mas podem sofrer comprometimentos de acordo com os fenômenos psíquicos que podem ocorrer, tais como as psicoses em indivíduos que passam pelo espectro da esquizofrenia.57

Ainda, a deficiência intelectual, comparada com as deficiências física e sensorial, encontra-se em especial situação, tendo em vista tanto a invisibilidade comumente

53“Apesar de qualquer terminologia 'correr o risco de rotulação' ou submeter-se a sua inadequação mais cedo ou mais tarde, com a renomeação da nomenclatura poderia haver uma mudança atitudinal da sociedade em geral face às pessoas com DID; deve-se falar em Dificuldade Intelectual e não em Deficiência Mental”. SANTOS, Sofia; MORATO, Pedro. Acertando o passo! Falar de deficiência mental é um erro: deve falar-se de dificuldade intelectual e desenvolvimental (DID). Por quê?. Rev. bras. educ. espec., v. 18, n. 1, p. 14, Mar. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbee/v18n1/a02v18n1.pdf. Acesso em 01 abr. 2020.

54VELTRONE, Aline Aparecida; MENDES, Enicéia Gonçalves. Impacto da mudança de nomenclatura de deficiência mental para deficiência intelectual. Educação em Perspectiva, v. 3, n. 2, 7 fev. 2013, P. 362 Disponível em: https://periodicos.ufv.br/educacaoemperspectiva/article/view/6537/2686. Acesso em 01 abr. 2020.

55MENEZES, Joyceane Bezerra de. O direito protetivo no Brasil após a Convenção sobre a Proteção da Pessoa com Deficiência: impactos do novo CPC e do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Civilistica.com - Revista Eletrônica de Direito Civil, v. 4, p. 05, 2015. Disponível em: http://civilistica.com/wp-content/uploads/2016/01/ Menezes-civilistica.com-a.4.n.1.2015.pdf. Acesso em 12 set. 2019.

56AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (recurso eletrônico): DSM-5.Tradução: Maria Inês Corrêa Nascimento. Revisão técnica: Aristides Volpato Cordioli. 5. ed. – Dados eletrônicos. – Porto Alegr : Artmed, 2014. P. 31. Disponível em: http://www.clinicajorgejaber.com.br/2015/estudo_supervisionado/dsm.pdf . Acesso em 01 jul. 2020.

Referências

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