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Que imprensa é essa? Os jornais negros de Salvador na década de 1980

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(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

RENÊ SANTOS SALOMÃO

QUE IMPRENSA É ESSA? OS JORNAIS NEGROS DE

SALVADOR NA DÉCADA DE 1980

Salvador

2013

(2)

RENÊ SANTOS SALOMÃO

QUE IMPRENSA É ESSA? OS JORNAIS NEGROS DE

SALVADOR NA DÉCADA DE 1980

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado

à Faculdade de Comunicação, Universidade

Federal da Bahia, como requisito para

obtenção

do

grau

de

bacharel

em

Comunicação Social.

Orientador: Prof. Dr. José Roberto Severino

Salvador

2013

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A meu pai Alfeu,

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha mãe Laura e aos meus irmãos.

Ao meu orientador, professor José Roberto Severino.

Aos meus amigos e colegas.

A Paulo Roberto Pereira, presidente do bloco Os Negões.

Aos funcionários da Biblioteca Jorge Calmon, da Associação Baiana de Imprensa, em particular, a Valésia Oliveira e Eduardo Farias.

Aos colegas, professores e funcionários da Faculdade de Comunicação.

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo fazer um panorama da imprensa negra de Salvador na década de 1980, período de mobilização e enfrentamento da população negra contra o racismo. Nesse levantamento trabalhamos com três jornais: Nêgo, Êlemi, Afrobrasil. Este último trata-se de uma experiência comercial dentro da mídia étnica. Em relação ao primeiro e segundo, estariam inseridos na chamada imprensa alternativa e independente. De modo geral, esses periódicos publicavam matérias e informações sobre os diversos assuntos ligados a tradições e culturas negras. Os textos discutiam temas de interesses da população afrodescendente da Bahia, no caso do Nêgo e Êlemi, e do Brasil, em Afrobrasil, como racismo, história, violência policial, trabalho, religiões, entre outros assuntos.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...7

1. UMA BREVE TRAJETÓRIA DA IMPRENSA NEGRA NO BRASIL 1.1 Boletins sediciosos oitocentistas: gênese da imprensa negra ...12

1.2 A imprensa negra no século XIX ...14

1.3 A imprensa negra na primeira metade do século XX ...21

1.4 A retomada da imprensa negra ...26

2. NÊGO (1981-1988) 2.1 “Ufa. Um boletim!”: o jornal do Movimento Negro baiano...34

2.2 “Ecos da democracia racial”: as denúncias de racismo...39

2.3 “Por que não nós?”: dimensão política de Nêgo...46

2.4 “O Brasil de hoje, mas até quando?”: o negro e o mercado de trabalho...50

2.5 “A religião dos negros”: a religiosidade no Nêgo...52

2.6 Memória histórica: resgate de fatos e personalidades negros...55

2.7 A África no jornal do MNU...57

2.8 “Poesias da gente”: literatura negra no jornal negro...59

3. ELÊMI (1985; 1988) 3.1 Grupo Cultural Os Negões: história de editorial...62

3.2 “Frutos da vida”: notícias do Êlemi...65

4. AFROBRASIL (1985) 4.1 “Um jornal de integração e harmonia racial”: experiência de imprensa.comercial.. ...67

CONSIDERAÇÕES FINAIS...73

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INTRODUÇÃO

Falar da imprensa negra na Bahia, especialmente em Salvador, requer algumas considerações. Primeiro, pelas limitações por causa de escassa bibliografia sobre os jornais negros de períodos mais longínquos, como no século XIX, ou até mesmo os mais recentes, das últimas décadas do século passado. Segundo, porque tal classificação demanda um conceito. E a conceituação estabelece limites imanentes. Entendemos aqui imprensa negra como um conjunto de jornais que foram produzidos por negros e direcionados para os negros. Sendo assim, corroboramos com as concepções de Ana Flávia Pinto (2010), José dos Santos (2004) e Gilmar de Carvalho (2009).

Em comparação a de outros estados brasileiros, já conhecemos quais os jornais e editores da imprensa negra, por exemplo, de São Paulo e do Rio de Janeiro no século XX através de Roger Bastide (1973), Miriam Ferrara (1986)e Gilmar de Carvalho (2005). Sobre a imprensa negra abolicionista, recentemente, Ana Flávia de Magalhães Pinto publicou o livro intitulado “Imprensa Negra no Brasil do século XIX”.

Este trabalho será mais uma contribuição para a história da imprensa na Bahia, especialmente para a imprensa negra. Além disso, espera-se que o levantamento desses jornais, nos forneça a dimensão da luta contra a discriminação e preconceito, características dos periódicos da chamada imprensa negra de outros estados, e nos possibilite trilhar caminhos ainda desconhecidos.

Ao conhecermos os jornais negros na Bahia, da década de 1980, teremos uma feição de parte da imprensa negra do século XX. Um estado em que a população se declara majoritariamente negra e parda não pode permitir o desconhecimento de sua história. História esta, escrita também nesses períodos.

Nos dois séculos antecedentes, percebemos a organização de grupos ou indivíduos que atuaram contra a discriminação racial e utilizaram meios de informação como instrumentos de luta. Numa sucinta observação já podemos reconhecer estudos desenvolvidos no Brasil, principalmente nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e

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Porto Alegre1. Na Bahia esta expedição parece ainda tímida. Encontramos apenas Florentina Souza que buscou identificar o conceito de afro-descendência nos Cadernos Negros (publicação literária produzida por negros a partir de 1978) e jornais do Movimento Negro Unificado (MNU).2

O desenvolvimento da imprensa coincide com a expansão do capitalismo. Temos a ascensão da burguesia e a aceleração da arte gráfica.3 A imprensa colonial estava censurada pela corte portuguesa que proibia a produção e circulação de papéis. Em 1808, com a vinda da família real para a colônia põe fim à censura na imprensa. A partir daí começam a surgir os primeiros jornais no país. O primeiro jornal da imprensa negra do Brasil surgiu em 1833 no Rio de Janeiro:

[...] o pasquim O Homem de Cor, surgiu na capital do Império, a 14 de setembro, da Tipografia Fluminense Paula Brito, loja instalada no Largo do Rocio, cuja presença negra era bem marcante. Importava as condições de realização daquelas promessas de liberdade que havia tempos circulavam e ganhavam formas nas mentes de livres e libertos – sem falar dos escravizados.4

Não encontramos registro sobre o primeiro jornal da imprensa negra da Bahia. Nem mesmo Ana Flavia Magalhães Pinto, que trata dos títulos da imprensa negra publicados em cidades e períodos diferentes do século XIX, faz qualquer referência. A autora trabalha com os seguintes jornais: O Homem de Cor ou O Mulato, Brasileiro Pardo, O Cabrito e O Lafuente do Rio de Janeiro (RJ), O Homem: Realidade Constitucional ou Dissolução Social, de Recife (PE), A Pátria – Órgão dos Homens de Cor e O Progreso – Órgão dos Homens de Cor, de São Paulo (SP), e O Exemplo, de Porto Alegre (RS). Ou seja, nenhum jornal da imprensa negra baiana foi analisado pela pesquisadora.

Como já salientamos, definimos imprensa negra como um conjunto de jornais feito por negros, para negros e que veiculam assuntos de interesse da população negra. Esse conceito também é compartilhado por Ana Flávia Pinto (2010), José dos Santos (2004)

1 Ver trabalhos de Roger Bastide (1973), Miriam Ferrara (1986), Ana Flávia Pinto (2006), Gilmar de Carvalho (2009).

2 SOUZA, Florentina da Silva. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

3 SODRÉ, 1999 4

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e Gilmar de Carvalho (2009). Ao falar de uma “imprensa negra”, referimo-nos a uma produção jornalística que é das faces da imprensa brasileira. Entretanto, traz uma perspectiva histórica em que a construção categórica se dá através de seus autores. Ou seja, está relacionada a uma reivindicação identitária de pessoas e organizações sociais preocupadas com a questão racial. A ideia de identidade está imbricada numa rede de relações sociais, históricas e culturais que ultrapassa a classificação de um estilo para mostra-se como categoria. O que torna a imprensa distinta do conjunto das letras nacionais é os diferentes elementos que conferem especificidade à produção literária dos brasileiros descendentes de africanos: 1) temática; 2) autoria; 3) ponto de vista (visão de mundo identificada à história, à cultura, logo a toda problemática inerente à vida desse importante segmento da população.); 4) linguagem; 5) público leitor.

Os termos negro e afrodescendente aparecerão com frequência nesse trabalho. No entanto, daremos a acepção do movimento negro da década de 1980. Antônio Guimarães (2003), por exemplo, ao analisar raça, cultura e identidade na imprensa negra em São Paulo e Rio de Janeiro de 1925 a 1950, fez uma demarcação dos termos “negro”, “preto”, “pardo”, “mulato” e “crioulo”. Para ele, a terminologia variava a depender do tempo e do espaço.5

Apesar da escassez bibliográfica sobre a imprensa negra da Bahia, podemos apontar algumas experiências já mesmo nos séculos XVIII e XIX. Em 1978, eclodiu a Revolta dos Búzios em que boletins sediciosos eram divulgados pela cidade para incitar a população letrada contra o governo português. A partir deste episódio, percebemos a participação dos negros na História da Bahia através da criação de uma rede de comunicação negra6. Tivemos também a experiência da Revolta do Malês, levantes dos africanos islâmicos em 1835, em que materiais de sedição foram espalhados pela cidade da Bahia.7

5 GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Notas sobre raça, cultura e identidade na imprensa de São Paulo e Rio de Janeiro, 1925-1950, Revista Afro-Ásia, 30, pp. 247-269.

6 MATOS, Florisvaldo. A comunicação social na Revolução dos Alfaiates. Academia de Letras da Bahia: Assembleia Legislativa, 1974.

7 REIS, J. J. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

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Com a mudança da Corte para o Brasil, o negociante Silva Serva vislumbrou a possibilidade de negócios na área da impressão. Em 1809 solicitou ao conde dos Arcos, governador da Bahia, a autorização para a instalação de uma tipografia. Em virtude dos tramites burocráticos, além das dificuldades inerentes ao estabelecimento de uma tipografia (prelos e papel), mão de obra especializada, somente em 13 de maio de 1811, começou a circular o jornal Idade d’Ouro do Brasil, primeira gazeta da Bahia. Silva Serva encarava o seu empreendimento, tipográfico e periodístico, como uma atividade benemérita destina à propagação das luzes. Não havia concorrentes por causa do controle. Os editores foram Gonçalo Vicente Portela, padre Inácio José de Macedo, pertencentes à elite da época, professor de gramática latina e professor de filosofia, respectivamente.8

Na Bahia, até a década de 1930, as únicas organizações negras existentes eram as irmandades e as associações operárias e beneficentes. Entretanto, não tinham por finalidade defender as pessoas de cor contra os preconceitos raciais. Em síntese, pode-se dizer que durante a Primeira República não surgiu nenhuma organização negra disposta a romper com a estrutura de acomodação e dominação racial, no sentido de reivindicar por melhores condições para pretos e mestiços na sociedade baiana.

Abdias Nascimento foi um dos expoentes da Frente Negra Brasileira. Nascido em 14 de março de 1914, em São Paulo, era filho de José Ferreira Nascimento e Georgina Ferreira Nascimento e tinha sete irmãos e uma irmã. Sua mãe era cozinheira, doceira e costureira e seu pai sapateiro. Na década de 1930, engaja-se na Frente Negra Brasileira e luta contra a segregação racial. No ano de 1944, funda o Teatro Experimental do Negro, entidade que patrocinou a Convenção Nacional do Negro em 1945 e 1946.

Em 1932 foi criada a Frente Negra Brasileira naBahia, organização de “homens de cor” que além de promover conferências temáticas sobre questões raciais, publicava também um semanário com objetivo divulgar e defender seus interesses. No entanto, não tinha uma posição de enfrentamento diante do preconceito racial. A integração do negro se

8

SILVA, Maria Beatriz Nizza. A primeira gazeta da Bahia: Idade d’Ouro do Brazil. 3. ed. Salvador: EDUFBA, 2011.

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daria através das conquistas individuais e meritórias. Apesar disso, a frentenegrina baiana carece de estudos, como aponta Jeferson Bacelar:

Uma razoável bibliografia tem se ocupado da presença e desenvolvimento da Frente Negra em São Paulo, mas, no resto do país ela é escassa ou quase nula. Na Bahia, excetuando Thales de Azevedo em as Elites de Cor, e breve referência em artigo de Maria de Azevedo Brandão, inexiste qualquer obra tratando da sua organização. 9

Essa lacuna bibliográfica não é uma exclusividade da Frente Negra da Bahia. Percebemos que também ocorre em relação à imprensa negra baiana. Em período mais recente, como o da chamada terceira fase da imprensa negra (1964-2000), encontramos as referências do artigo de Petrônio Domingues, Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos, em que aponta o Nêgo (1981) como um dos principais jornais da Bahia nesse período e do livro de Florentina Souza (2005), referenciado acima, que analisa alguns jornais do Movimento Negro numa perspectiva mais literária.

Utilizamos acima a classificação das fases da imprensa negra denominada pelo próprio Petrônio Domingues, para o período republicano. Na primeira fase (1889-1937), surgiram os jornais da imprensa negra em São Paulo como A Pátria (1889), O Combate (1912) e O Menelick (1915), e em outros estados a Raça (1935), em Minas Gerais, e O Exemplo (1892), no Rio Grande do Sul. A imprensa negra da segunda fase (1945-1964) teve a publicação de jornais como O Alvorada (1945), Notícias do Ébano (1957) e A Voz da Negritude (1952). Nessas duas fases não são citados jornais baianos.

A imprensa negra paulista parece que teve desenvolvimento mais expansivo do que a de outros estados brasileiros por razões de ordens econômica, cultural e social. Daí a representação que teve na construção de identidade racial e cultural, e também como instrumento de luta. Em São Paulo, formou-se uma classe média negra, com acesso à educação formal e aos espaços culturais. De certo modo, encontramos uma explicação para as diferenças em relação à Bahia através de Antônio Guimarães:

9 BACELAR, 1996, p.73

(12)

Na Bahia, ao contrário, a fraca industrialização, a força demográfica dos descendentes africanos, assim como a precariedade do sistema público de ensino, parecem ter servido para manter a opção de muitos negros pela preservação de sua tradição cultural como via de integração.10

Diante da peculiaridade da organização dos negros na Bahia, queremos saber como estava estruturada a imprensa negra das décadas de 1980. Nessas duas décadas surgiram os blocos afros e o Movimento Negro Unificado. Ambas as entidades produziram materiais noticiosos (folhetos e boletins). Pretendemos, justamente, levantar e analisar os jornais negros produzidos nessa época.

O percurso de análise constituído em nossa pesquisa parte da referência de Análise de Conteúdo. De forma bastante sintética, pode-se situar o surgimento da Análise de Conteúdo desde o princípio do século XX nos Estados Unidos. Á época, o material de análise era essencialmente jornalístico e invocava o rigor cientifico baseado na medida. Iniciados pela Escola de Jornalismo da Colúmbia, os estudos quantitativos de jornais se multiplicaram. No entanto, o primeiro referencial foi H. Lasswell, que analisou a imprensa e propaganda e, em 1927, lançou o Propaganda Technique in The Word War. Laurence Bardin (1977) define a análise de conteúdo como:

Um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais subtis em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a “discursos” (conteúdos e continentes) extremamente diversificados. O factor comum destas técnicas múltiplas e multiplicadas – desde o cálculo de frequência que fornecem dados cifrados, até a extracção de estruturas traduzíveis em modelos – é uma hermenêutica controlada, baseada na dedução inferência: inferência. Enquanto esforço de interpretação, a análise de conteúdo oscila entre os dois pólos do rigor da objectividade e da fecundidade da subjectividade.11

Sendo assim, o objetivo principal da análise de conteúdo é o de assinalar de modo objetivo todos os registros existentes na pesquisa. Entretanto, o rigor de execução da pesquisa não implica rigidez. Ao contrário, permite ao pesquisador escolher entre uma gama de técnicas, métodos e operações, justificada pela fundamentação das ações de organização do trabalho.

10 GUIMARÃES, 2003, p. 248

11 BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Tradução de Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro. São Paulo: Martins Fontes, 1977. p.9

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Por fim, podemos constatar que houve uma produção jornalística negra na Bahia, e consequentemente, temos a necessidade de conhecê-la. Saber quem foram seus protagonistas e quais os veículos que a compuseram. Percebemos que as lacunas na história da imprensa são enormes quando se trata das lutas e organizações negras da Bahia, apesar de bibliografia considerável em outras áreas do conhecimento como educação e cultura.

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1. UMA BREVE TRAJETÓRIA DA IMPRENSA NEGRA NO BRASIL

1.1 Boletins sediciosos oitocentistas: gênese da imprensa negra

O historiador Flávio Gomes ressalta que a “chamada ‘imprensa negra’ é a parte mais conhecida e citada da mobilização negra nas primeiras décadas republicanas”12. No entanto, ressalta que as organizações negras não ficaram reduzidas apenas a arte gráfica. Podemos considerar tal observação a partir da concentração de estudos sobre os periódicos editados por negros na fase citada, principalmente, nas décadas de 1910 e 1930, considerada a época áurea da produção dos jornais negros paulistas. Cabe observar também a escassez dessas análises em momentos anteriores e, até mesmo, mais recentes.

Para preencher a lacuna existente sobre os trabalhos da imprensa negra no século XIX, já que as pesquisas existentes concentram-se nas experiências de resistências de africanos e seus descendentes submetidos ao regime de escravidão (Gilroy, 1956; Reis, 1986; Azevedo, 1987), o estudo monográfico de Ana Flávia Pinto, publicado mais tarde em livro, aponta e reconhece a existência de jornais negros nesse período13. Foram analisados um conjunto de oito jornais, de setembro de 1833 a agosto de 1899, de diferentes locais. Os periódicos publicados são os seguintes: O Homem de Cor ou O Mulato, Brasileiro Pardo, O Cabrito e O Lafuente, do Rio de Janeiro (RJ); O Homem: Realidade Constitucional ou Dissolução Social, de Recife (PE); A Pátria – Órgão dos Homens de Cor e O Progresso – Órgão dos Homens de Cor, de São Paulo (SP); e O Exemplo, de Porto Alegre (RS).

Constatada a existência de jornais negros no Brasil novecentista, produzido por um determinado grupo social e voltado para uma coletividade, com o intuito de tornar-se um instrumento de denúncia contra a discriminação e de integração entre aqueles que estavam excluídos do processo, resta-nos indagar se tal iniciativa antecedeu o período citado. A princípio, pode-se observar que existiu uma mobilização através da

12 GOMES, Flávio dos Santos. Negros e Políticas (1888-1937). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p.2.

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comunicação. Em agosto de 1798, foram publicados boletins sediciosos por soldados e alfaiates. A população de Salvador, formada em sua maioria por negros e mestiços, era convocada a rebelar-se contra o Estado português na Bahia, pois, não havia qualquer possibilidade de ascensão para as camadas diferenciadas na cidade.

Comumente atribui-se o surgimento da imprensa negra às primeiras décadas do século XIX. O registro é datado no ano de 1833. Trata-se do pasquim negro chamado O Mulato ou O Homem de Cor, editado por Francisco de Paula Brito e Maurício José de Lafuente, na cidade do Rio de Janeiro. Isso por causa da própria fundação da imprensa brasileira em 1808, quando o príncipe regente D. João VI autorizou o seu funcionamento no Brasil. A partir daí, instaura-se a polêmica entre o Correio Brasiliense e a Gazeta do Rio de Janeiro. Este, escrito por portugueses na Corte; o outro, dirigido e redigido por Hipólito da Costa, em Londres. Para além da controvérsia de pioneirismo, a construção do conceito e do reconhecimento de imprensa14.

A primeira experiência negra em meios impressos apareceu com a Inconfidência Baiana. O movimento político, liderado por homens negros e pobres contrários ao colonialismo português e à sociedade escravista na Bahia, ocorrido em 1798, já é um tema bastante revistado. Porventura pelo fato de que eventos ligados às revoluções ou conspirações, por si só, despertem interesse de análise. Sendo assim, muitas são as interpretações e representações que o transformou em um verdadeiro “campo minado”. A própria denominação – inconfidência, conjuração, revolta, revolução, sedição – apresenta controvérsia. Como já temos versões históricas e sociais suficientes sobre o tema, interessa-nos aqui as abordagens estabelecidas somente na comunicação15.

Por causa do controle imposto por Portugal, o desenvolvimento das comunicações no Brasil colonial estava regido a um sistema institucionalizado de dominação. O bloqueio português tentava asfixiar a produção e propagação do pensamento na colônia. Isso se dava da comunicação à cultura. Entretanto, a falta de meios impressos não dificultou completamente a difusão de ideias. As rigorosas proibições foram quase sempre

14 Idem.

15 ARAUJO, Ubiratan Castro de. A política dos homens de cor no tempo da Independência. Estud. av. [online]. 2004, vol.18, n.50, pp. 253-269.

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esquivadas. No caso da conjuração baiana, sabemos que a literatura revolucionária, que tanto inspirou o movimento, chegava à Bahia desde 1793, através de livros e manuscritos de discursos das convenções francesas.

Em ensaio sobre a comunicação social na Revolução dos Alfaiates, o jornalista Florisvaldo Mattos buscou descrever e analisar os comportamentos comunicacionais no evento político de 1798 na capital da Bahia. Para ele, a ação revolucionária resumiu-se inteiramente em atos de comunicação:

Os boletins sediciosos que se espalharam pela cidade constituíram na mais expressiva forma de comunicação indireta utilizada pelos comunicadores da conjuração, e desempenharam, para a época, o papel de jornal manuscrito pelo qual os revolucionários difundiram suas ideias e projetos para um público indeterminado – o Povo Bahiense16.

Fixados em pontos da cidade de Salvador – esquina da Praça do Palácio; rua de Baixo de São Bento; igreja de São Domingos; casa de Manoel Joaquim Silva, dono da farmácia; e cabana da preta Benedita – e nas sacristias de três igrejas (Sé, Passo e Lapa), os onze manuscritos, denominados depois de “papéis sediciosos”, falavam de revolução, povo e liberdade. Essas palavras encontravam-se intrinsecamente ligada ao próprio discurso da Revolução Francesa. Questionado o entendimento político dessas declarações por parte dos revolucionários17, ressaltamos que a compreensão conceitual fosse menos importante que o evidente desejo de rejeição ao poder absoluto da monarquia portuguesa.

Luís Henrique Dias Tavares foi um dos primeiros historiadores a abordar a Sedição Intentada na Bahia de 1798 sob os aspectos da comunicação, ainda que suas preocupações fossem históricas. Ele transcreveu os dez boletins na ordem da devassa encontrados na seção histórica do Arquivo Público do Estado da Bahia. Desses cinco apresentavam evidentes sinais de cola, deduzindo assim que foram afixados em paredes. No primeiro boletim, os revolucionários apresentam-se ao povo baiano:

16 MATTOS, Florisvaldo. A comunicação social na Revolução dos Alfaiates. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Núcleos de Publicações, 1974. p. 104

17 Com base em Teysseire (1973), Ubiratan de Castro demonstra que os revolucionários populares não entendiam muito bem o significado das palavras: revolução, povo e liberdade.

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Avizo,

Animai-vos Povo Bahiense que está para chegar o tempo felis da nossa Liberdade: o tempo emque todos seremos irmaons: otempo em~q todos seremos iguaes: sabei ~q já seguem opartido da Liberdade os seguintes

Oficiaes de Linha... 34

Oficiaes de Milicias... 54

Homens graduados empostos, ecargos 11

Inferiores de Linha... 46

Soldados de Linha... 107

Homens graduados em Letras... 13

Homens do commum... 20 Homens do comercio... 8 Frades Bentos... 14 Barbadinoz... 3 Therezos... 14 Clerigos... 48 Auxiliares do S.to oficio... 8 ____ Soma tudo... 676

Aqui não se faz menção dos não conhecidos, porém sim daq.les ~q igualm.te se communicão por consequência da Liberd.de

O Povo Bahiense18

De redação imprecisa e confusa, esses boletins não se referiam apenas a itens militares como poderia induzir o “avizo” acima. Referiam-se também a tema religioso, comercial, político, principalmente sobre a Europa, França e Bahia, e dos homens pardos. As ideias de liberdade, república, democracia e igualdades também estavam presentes:

O Povo Bahiense Republicano ordena manda, eq.r q para o futuro seja feita nessa Cid.e eseo termo sua muito memorável revolução. Portanto invoca a todos aq.les q donde perante q.m cada hu emparticular assim militares, homens pardos, epretos sejão constantes aobem commum daliberdade, igualdade; outrosim q.r o Povo que cada hum sold.º tenha de soldo dous tostoens por cada dia alem das suas vantagens q serão relevantes. Os oficiais terão avanço segundo as Diétas.

Cada hu soldado he Cidadão mormente os homens pardos, epretos q vivem escornados, eabandonados, todos serão iguaes não haverá diferença; so haverá liberd.e, iguald.e e fraternid.e aq.le q seoposer aliberdad.e Popular será enforcado, sem mais apelação: assim seja entendido, alias...breve teremos socorro estrangeiro.

Do Povo19.

18 TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Sedição Intentada na Bahia em 1798: “A conspiração dos Alfaiates”. São Paulo: Pioneira; Brasília: INL, 1975. p.22

19

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Em fins do século XVIII, a comunicação no tempo dos alfaiates processava-se por uma rede de contatos interpessoais. Entretanto as formas indiretas, como a escrita, eram também utilizadas. Do ponto de vista social, a cidade de Salvador já tinha um contingente populacional relativamente grande. A superpopulação era uma das principais características das cidades coloniais, principalmente as portuárias. Na pirâmide social, os descendentes de africanos, escravos e livres de cor, compunha a maioria da população urbana, 37,3% e 41,8% respectivamente20. Os negro-mestiços estavam completamente impedidos de qualquer ascensão socioprofissional, cambia apenas o trabalho manual. Na descrição do historiador Ubiratan de Castro, percebe-se que a cidade podia ser considerada uma verdadeira prisão para os negros:

Os escravos e libertos eram estrangeiros e prisioneiros de uma sociedade hostil. Tidos pela população do país. Tidos pela população do país como os mais ferozes dos bárbaros, os mais escravos entre os escravos, foram colocados no escalão mais baixo da sociedade urbana e submetidos aos trabalhos mais fatigantes e humilhantes21.

Já os brancos da terra – escrivães, soldados, negociantes, oficiais, cirurgiões, boticários, pilotos, mestres, capitães, caixeiros, escultores –, diante das dificuldades de ascensão social por causa da burocracia portuguesa, ainda que não se diferenciasse tanto dos portugueses, reivindicavam ascender às altas posições civis, principalmente aos cargos públicos. Ou seja, os brasileiros pobres não gozavam dos privilégios coloniais dados aos portugueses, chamados de reinóis. Desse modo, exerciam uma forte pressão sobre o Estado.

Decerto, as cidades coloniais, especialmente as portuárias, eram consideradas as “lixeiras dos impérios”. Os aventureiros e excluídos do Reino, em busca de ascensão no Brasil, valendo-se da condição social de reinol, portanto superiores aos nascidos na Bahia, e da cor da pele, ocupavam os cargos de empregos públicos e de propriedades da terra através das sesmarias. Além disso, espreitavam também um lugar privilegiado nas atividades comerciais. Por causa da origem nacional, estariam mais bem preparados para assumir tais funções e, ainda, teriam as comissões e concessões do rei.

20 Idem.

21

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Assim, havia um descontentamento dos brancos pobres, negro-mestiços e escravos diante da situação de exclusão. O Estado português era incapaz de criar novas oportunidades e, até se antepunha à criação delas para as camadas diferenciadas da população urbana. Os brasileiros opunham-se também às barreiras administrativas e fiscais e aos privilégios e monopólios concedidos aos portugueses. Desse modo, propuseram a supressão do controle de Portugal ao exercício das profissões.

Apesar de reprimidos pelas forças do governo absolutista português, os revolucionários deixaram como legado no âmbito político e social “propostas concretas de resolução de uma crise urbana crônica que, ao mesmo tempo, configuravam uma avançada política de descolonização e de democratização”22. Em relação à comunicação, os homens de cor utilizaram como “instrumentos para formar um público paras as comunicações revolucionárias, despertando vocações potenciais e reforçando convicções já estabelecidas – isto é: agindo como um verdadeiro veículo de comunicação. Pública. Foram o jornal da revolução”23. Desse modo, são lançadas as bases de produção dos meios impressos chamados mais tarde de imprensa negra.

1.2 A imprensa negra no século XIX

Entre os raros estudos sobre a imprensa negra no Brasil do século XIX, a obra de Ana Flávia Magalhães Pinto desponta como uma referência significativa sobre o assunto. Trata-se, porventura, de um trabalho pioneiro no qual revela a existência de movimentos de resistência no meio impresso marcado pelo contexto da escravidão24. A historiadora reuniu um conjunto de oito periódicos, correspondente ao período de setembro de 1833 a agosto de 1899. Os jornais negros analisados foram os seguintes: O Homem de Cor ou O Mulato, Brasileiro Pardo, O Cabrito e O Lafuente, do Rio de Janeiro (RJ); O Homem: Realidade Constitucional ou Dissolução Social, de Recife (PE); A Pátria – Órgão dos Homens de Cor e O Progresso – Órgão dos Homens de Cor, de São Paulo (SP); e O Exemplo, de Porto Alegre (RS). Ainda que localizados em épocas e locais

22 Idem. p.267 23

Idem.

24 Sob o título “De Pele Escura e Tinta Preta: a imprensa negra do século XIX”, a dissertação de mestrado foi apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Brasília, em setembro de 2006. Em 2010 foi publicada em livro intitulado de “Imprensa Negra do Brasil do Século XIX” pela Coleção Consciência em Debate, da Editora Selo Negro.

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diferentes, esses jornais denunciavam o racismo. Além disso, defendiam a democracia, pois encontravam nos ideais iluministas e liberais, as formas mais adequadas de combate à discriminação racial.

Nota-se também, por meio da literatura sobre a imprensa negra, que a atuação organizada de grupos e indivíduos afro-brasileiros e, até mesmo os meios de informação, estão localizados habitualmente no século XX. A hipótese é a de que os motivos para ausência desses estudos em fases anteriores estão nas opções e nos recortes metodológicos baseados no “reconhecimento alcançado pelos jornais negros paulistas no início da década de 1910; pelas atividades da Frente Negra Brasileira nos anos de 1930; pelo Teatro Experimental do Negro, em sua ação dentro e fora dos palcos, que se inicia em 1944 e se estende nos anos seguintes; pelas produções do Movimento Negro Unificado, potencializadas por sua fundação em 1978”25. Somados aos estudos étnico-raciais oitocentistas, que se concentram nas resistências africanas e de seus descendentes submetidos à escravidão, tais ações não caíram no esquecimento e despertaram o interesse de pesquisadores.

No século XIX, dois episódios foram cruciais na questão nacional: a Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889). A abolição foi um processo lento, que se iniciou pela proibição do tráfico de negreiro e foi abonado pelo serviço braçal do imigrante. Sabe-se que antes da assinatura da Lei Áurea até o começo da Primeira Guerra Mundial foi intensificada a entrada de italianos, espanhóis, portugueses, japoneses e alemães, com subsídio do Estado brasileiro. Como destaca Muniz Sodré (1999), “os imigrantes não vinham agregar-se aos negros, mas tomar-lhes o lugar nas lavouras de café; vinham na verdade acalmar o medo que as elites urbanas e fundiárias tinham do indivíduo de pele escura”. 26

Em relação à imprensa brasileira, sob a perspectiva cronológica, é necessário salientar que só a partir de 24 de julho de 1808 que tivemos, de fato, uma imprensa local. Com a vinda da Corte para o Brasil, D. João VI criou a Imprensa Régia, passando a produzir o jornal Gazeta do Rio de Janeiro. O primeiro periódico era bissemanário e tinha

25 Idem: p.11 26

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característica de órgão oficial. Ou seja, aquilo que pode ser considerado hoje um diário oficial. Entretanto, reconhecemos as várias iniciativas, principalmente no século XVII, que visavam à fundação de tipografias e publicação de periódicos. Assim tentavam manobrar a censura que o governo metropolitano impunha as artes gráficas. Entre elas, podemos citar a primeira experiência negra em meios impressos na Bahia, em 179827.

Antes, no mesmo ano, circulou o Correio Brasiliense, editado em Londres por Hipólito da Costa. Concorrente direto da folha produzida pela Impressão Régia, circulou na sede imperial e nas províncias com frequência até 1822, ainda que não livremente. Enquanto que a Gazeta era um jornal oficial do governo, o periódico de Hipólito da Costa era “noticioso, político, vigoroso, independente”. Mesmo sem um atrativo gráfico, o seu conteúdo enfatizava os problemas do Brasil, analisados de modo atual. De certo modo, já antecipava a independência do Brasil. Foram publicados 175 números divididos em seções sobre política, comércio e arte, literatura e ciências e miscelânia. O Correio Brasiliense tinha viés constitucionalista e defendia os princípios democráticos, posicionando-se contra o obscurantismo e despotismo característicos ao império português28.

Nelson Werneck Sodré (1983) salienta que, a partir da década de 1830, proliferaram-se os pasquins na sede da Corte. A violência na linguagem e a vida efêmera eram as principais características dos pasquins. Em 1833, O Homem de Cor, O Mulato, O Brasileiro Pardo e O Cabrito compunham os impressos produzidos por negros que já denunciavam as injustiças sociais sofridas por causa da cor e da classe. É nesse momento que nasceu, pelo menos de modo oficial, a imprensa negra. Essas publicações se posicionavam contra o governo, considerado conservador, e também se mostravam comprometidos aos princípios democráticos. Como consequência, foram reprimidos com violência pelo poder absoluto português.

27

Em agosto de 1798 foram fixados nos principais pontos da cidade de Salvador, onze manuscritos em que convocava o “povo Bahiense” a se rebelar contra a monarquia portuguesa. O movimento político era composto em sua maioria por homens negros e pobres. As forças do governo reprimiram violentamente os chamados revolucionários baianos. Ver mais: TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Sedição Intentada na Bahia em 1798: “A conspiração dos Alfaiates”. São Paulo: Pioneira; Brasília: INL, 1975. 28 BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica. 3ª ed. São Paulo IBRASA 1972.

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Desse modo, em momentos de incertezas e afirmação, percebe-se então que havia indícios da existência de jornais que foram produzidos por homens negros livres ou até mesmo libertos em que questionavam as condições das promessas de liberdade no período regencial. O que faltava era um exame detido sobre essas publicações onde pudessem revelar as variadas formas de atuações dos grupos negros em diferentes momentos. Nesse caso funcionaram como vetor eficaz de ideias:

Apesar de incipiente, a imprensa no Brasil, naquela época, era o único veículo eficiente de comunicação de comunicação de massa, cumprindo nesse período um importante papel, o que explica também, em parte, a existência desse grande número de publicações29.

Nesse espaço incipiente, em que os periódicos eram aventuras isoladas, dois homens se destacaram na imprensa negra brasileira: Francisco de Paula Brito, tipográfo e jornalista, e Maurício José de Lafuente, redator. O primeiro lançou O Homem de Côr, jornal negro de 1833, depois de adquirido o maquinário necessário para a instalação de sua tipografia. Antes, o jornalista criou o periódico A Mulher do Simplício ou A Fluminense Exaltada. Paula Brito interessou-se pela arte gráfica ainda adolescente, quando foi aprendiz na tipografia Imperial e Nacional, ex-Impressão Régia, na década de 1820. Em seguida, trabalhou também nas tipografias de R. Ogier e Seignot-Plancher, fundador do Jornal do Comércio. Já o segundo, tinha sido cadete da Marinha na capital do Império até se tornar colaborador no pasquim negro. Além disso, havia participado de várias revoltas e disputas políticas nas províncias da Bahia, Espírito Santo e Pernambuco30.

Ainda no jornalismo imperial, sob o regime escravocrata que dificultava a expressão e inserção dos negros nas diferentes esferas sociais, jornalistas como José do Patrocínio e Luís Gama conseguiram se destacar na imprensa brasileira. Na segunda metade do século XIX, com o auspício das leis antiescravistas – Eusébio de Queiroz (1850) e Ventre Livre (1872) –, o ex-escravo Luís Gama destacou-se na vida intelectual brasileira, especialmente no jornalismo. Filho de Luísa Mahin, uma das articuladoras dos levantes de escravos na Bahia, o jornalista negro, também poeta e advogado, teve

29 SCHWARCZ, Lília Moritz. Retrato em Branco e Negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p57

30 Idem.

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participação ativa na luta abolicionista. No período pós-abolição, percebe-se uma presença relativamente maior dos negros no jornalismo, dentre eles, Manuel Raimundo Querino. Nascido em Santo Amaro, região do Recôncavo Baiano, em 1851, Manuel Querino foi um dos primeiros líderes das classes dos artistas e dos operários da Bahia, além de professor e vereador. Escreveu para o jornal Gazeta da Tarde, tratando de questões abolicionistas e operárias. Em 1887 e 1892, fundou A Província e O Trabalho.

Em período de intensa agitação política e popular, no governo provisório instituído após a abdicação do príncipe regente, os pasquins negros passaram a virar notícia. Havia um temor dos “homens de cor”, expressão para classificação dos negros à época. O governo propunha a divisão de classe dos cidadãos de acordo com a tonalidade da pele. Assim, principalmente, a ocupação dos cargos públicos obedeceria a uma distribuição diferenciada e hierarquizada. O objetivo era impedir a ascensão política dos “homens de cor”. Essa questão política estava no cabeçalho dos cinco números de O Homem de Cor, em 1833, em transcrição do parágrafo XIV do artigo 179 da Constituição de 1824: “Todo cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis, políticos e militares, sem outra diferença que não seja a de seus talentos e virtudes”31.

Para reforçar seus argumentos de combate à discriminação racial, os redatores dos pasquins negros reproduziam conteúdo de comunicação oficial que, de certo modo, reiteravam as desigualdades entre os cidadãos brasileiros. Na primeira edição de O Homem de Cor é reproduzido trecho do discurso do presidente da Província de Pernambuco:

O povo do Brasil é composto de Classes heterogêneas, e debalde as Leis intentem misturá-las ou confundi-las, sempre alguma há de procurar, e tentar a separar-se das outras, e eis um motivo a mais para a eleição recair nas classes numerosas32.

Entretanto, a discussão racial não era uma novidade. Muitas foram as manifestações da população negra no inicio de século XIX contra o regime de escravidão. Como exemplo, podemos citar a Revolta dos Malês33. Se os escravizados já tinham essa

31

Idem: p.24 32 Idem: p.24

33 Em 25 de janeiro de 1835, um domingo, aconteceu em Salvador a revolta de escravos africanos. O movimento conhecido como Revolta dos Malês, por serem assim chamados os negros muçulmanos, tinha como objetivo tomar o poder e implantar uma nação islâmica. No entanto, a tentativa dos rebeldes foi

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postura, não poderia se esperar dos livres e libertos uma intimidação por causa do controle do governo. Eles tinham também nas letras mais uma possibilidade de enfrentamento. Sendo assim, os pasquins traziam o debate racial para a arena pública. Pois, em alguns espaços existia forte restrição. No caso do poder militar, a participação dos negros restringia-se aos postos inferiores. Com isso havia por parte dos “homens de cor” o temor pela “reedição e o aprofundamento das divisões e hierarquias militares da Colônia e do Primeiro Reinado, que priorizavam os elementos brancos e portugueses enquanto a ampla mobilização de pretos e pardos fica restrita às patentes inferiores”34

Em meio às coleções de jornais da imprensa negra no século XIX, O Mulato ou O Homem de Cor contou com outras produções do gênero. É preciso destacar que o acréscimo do título do primeiro periódico negro ocorreu a partir do terceiro número. A iniciativa da Fluminense de Brito, ambiente de debate não somente das questões da cidadania e liberdade negra, já que lá ocorriam também as reuniões da Petalógica – sociedade lítero-humorística, ganhou espaço na Corte. Duas outras tipografias surgiram: a Paraguassu e a Miranda e Carneiro. Esta produzia o impresso O Cabrito, a outra, o Brasileiro Pardo e O Lafuente.

Para além da imprensa negra da Corte regencial, constatou-se também uma produção de impressos negros em outras províncias brasileiras. Em janeiro de 1876, surgiu O Homem: Realidade Constitucional ou Dissolução Social. O semanário pernambucano, que produziu 12 números, era impresso na Tipografia Correio. Mesmo sem ter o reconhecimento dos pasquins negros dos anos de 1830, tinham objetivos parecidos com os da capital; dar visibilidade aos problemas enfrentados pelos “homens de cor” e lutar pela cidadania negra. No primeiro número do jornal, as questões políticas e jurídicas têm destaques:

Há tempo de calar e há tempo de falar. O tempo de calar passou, começou o tempo de falar.

A classe dos homens de cor, sem dúvida nenhuma, a mais numerosa e a mais industriosa do Brasil, parece atualmente voltada ao ostracismo pelos

sufocada pelas autoridades. REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil - A história do levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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homens que nos governam, contra toda a justiça, contra a própria lei fundamental do país.

Embora os particulares tratem-nos com as atenções merecidas, (...) todavia os fatos denunciam que o partido (Conservador) que há tempos predomina na província parece manter o propósito desleal de ir apartando dos empregos públicos aqueles nossos que para eles haviam sido nomeados por consideração de seus talentos e virtudes, conforme preceitua a Constituição do Império.35

Em fins do século XIX, depois do fim da escravidão, apareceram em São Paulo os primeiros jornais negros: A Pátria (1889) e O Progresso. Entretanto, tais surgimentos não dependeram desse evento. A tardia implantação da imprensa negra paulista foi reflexo do atraso da própria instalação da imprensa na cidade. Se a imprensa no Brasil foi instalada tardiamente, na capital paulista ela teve que esperar um pouco mais. Isso porque não havia tipografias; e também por causa de problemas financeiros. Os dois periódicos negros tinham simpatia pelo republicanismo e entendiam que dessa forma extinguiram o preconceito racial. Com o tempo vieram as desilusões, pois o regime político recém instaurado não garantiu melhores condições de vida aos cidadãos negros.

No Rio Grande do Sul, mais precisamente em Porto Alegre, tivemos também uma produção jornalística negra. Em 1892, surgia um primeiro jornal negro: O Exemplo. O periódico tratava de inúmeras questões: das queixas de impostos sobre o trabalho das lavadeiras à divulgação de medidas de saneamento público para a prevenção da cólera. Além de traduções e textos literários, educação, saúde, lazer, política, economia e trabalho, eram assuntos que pautavam a publicação. Foram mais de 37 anos de atividade com várias fases. A primeira fase correspondeu aos jornais publicados em 1892 e 1895; a segunda, ao período que vai de 1902 a 1905; a terceira, de 1910 a 1911; e a última de 1916 a 1930. Ao todo, 52 números foram publicados.

Sendo assim, o novo sistema político não alterou as estruturas sociais para os cidadãos negros. Persiste-se o contexto de exclusão político-econômico. A proclamação da República não garantiu nenhum mecanismo de incorporação de ex-escravo ao regime baseado no ideário liberal. Na nova ordem, controlada por oligarquias regionais, a maioria da populacional ficava sistematicamente excluída do processo eleitoral, o que

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eliminava as chances de representatividade política das camadas subalternas, onde predominavam os negros. Desse modo, a imprensa negra surge tendo como característica principal integrar os negros na sociedade global.

1.3 A imprensa negra na primeira metade do século XX

O sociólogo Roger Bastide36 foi um dos pioneiros nos estudos sobre a imprensa negra no Brasil. Na década de 1970, analisou os jornais negros produzidos na primeira metade do século XX, da capital de São Paulo, em três períodos: 1915-1930; 1930-1937; 1937-1945. Todavia, para além de um quadro meramente histórico, buscou-se avaliar o conteúdo desses meios impressos, atentando para a questão racial levantada por eles. Para ele, a imprensa é importante representação das aspirações e sentimentos coletivos. E ainda acrescenta que o exame das representações coletivas é um dos principais objetos de estudo da Sociologia37.

Segundo Bastide (1973), poderiam ser feitas inúmeras críticas a tal iniciativa. A primeira delas é a de que os jornais negros não tinham grandes tiragens. Além disso, viviam precariamente e poucos duravam mais de um ano. Outra crítica seria a de que representavam mais a opinião da classe média que a da massa negra. Entretanto, esses argumentos podem ser minimizados. O fato é que esses jornais eram sustentados pelos negros pobres com enorme dificuldade financeira. Assim, existiam de modo bastante precário. Já em relação ao desaparecimento desses jornais, não estava relacionado necessariamente a oposição entre a opinião do jornal e a opinião da massa, ainda que a massa permanecesse muitas vezes indiferente às campanhas de sua própria imprensa. 38

O domínio da imprensa negra pela classe média não era uma realidade somente do Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, os jornais negros também eram controlados

36

Roger Bastide (1898-1974) chegou ao Brasil em 1938 para lecionar a disciplina de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. Sua contribuição para as Ciências Sociais brasileiras se constituiu no elo estabelecido entre os sociólogos nacionais das décadas de 1940 e 1970. Além disso, tornou-se referência nos estudos sobre as religiões negras no Brasil. Ver mais em: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Roger Bastide, professor da Universidade de São Paulo. Estud. av. [online]. 1994, vol.8, n.22, pp. 215-220.

37 BASTIDE, Roger. A imprensa negra do Estado de São Paulo. In: Estudos Afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1973, p.129-156.

38 Idem.

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pelas classes altas e médias. Aqui, no entanto, a classe média era incipiente, formada principalmente por professores, advogados, jornalistas, revisores de provas tipográficas. A maioria dos emergentes negros ocupava essas posições a pouco tempo. Assim, tomaram consciência da realidade, pois, conheciam bem as dificuldades enfrentadas pelos homens e mulheres de cor.

As características dos jornais negros de São Paulo não são diferentes da imprensa negra brasileira de outras regiões. Em comparação aos Estados Unidos e países da América Latina também não se difere muito. Há preocupações e anseios que são comuns. Roger Bastide faz observações, a partir de suas análises:

Em primeiro lugar, raramente é uma imprensa de informação: o negro letrado lê o jornal do branco; é uma imprensa que só trata de questões raciais e sociais, que só se interessa pela divulgação dos fatos relativos à classe da gente de cor. Os norte-americanos acharam um termo que a define muito bem: é uma imprensa adicional. Esses jornais procuram primeiramente agrupar os homens de cor, dar-lhes o senso de solidariedade, encaminhá-los, educá-los a lutar contra o complexo de inferiormente, superestimando os valores negros, fazendo a apologia dos grandes atletas, músicos, estrelas de cinema de cor. É, pois, um órgão de protesto: isso é verdade tanto na América do Sul como na América do Norte; o preconceito de cor pode tomar formas larvadas, nem por isso deixa de existir e mesmo que não exista, o negro crê senti-lo; terá, pois, que se insurgir e o jornal lhe servirá para fazer ouvir protesto. Outro caráter comum a toda imprensa afro-americana é a importância dada à vida social, às festas, aos bailes, às recepções, aos nascimentos, casamentos e mortes.39

Percebe-se que essas propriedades não eram exclusivas dos afrodescendentes. Esse conjunto de atividades pode ser encontrado em jornais da chamada “imprensa provincial” voltada para a população do interior. O que se deseja exprimir é o status social e sua honorabilidade. O que deve ser levado em consideração é que o jornal era um sinal de ascensão social, e que muitos negros diante dos modos de contenção, principalmente, à educação e ao trabalho, superavam as dificuldades.

Em 1915 surgiu o primeiro jornal negro da capital de São Paulo. Antes, na cidade de Campinas em 1919, apareceu O Bandeirante. Por lá circularam ainda A União (1918), A Protectora (1919) e Getulino (1919). O Menelik definia-se como um “órgão mensal,

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noticioso, literário e crítico dedicado aos homens de cor”; o título foi uma homenagem ao “grande rei de raça preta, Menelik II, falecido em 1913”. Dessa primeira fase da imprensa negra, que compreende o período de 1915 a 1930, tiveram ainda os seguintes periódicos: Princesa do Oeste (1915), O Bandeirante (1918), O Alfinete (1918), A Liberdade (1918), Kosmos (1922), O Clarim da Alvorada (1924), A Tribuna Negra (1928), Quilombo (1929), Xauter (1929). Esses jornais destacavam prioritariamente a política de protesto social.

O segundo período (1930-1937) é considerado de formação, de desenvolvimento e do apogeu da Frente Negra. Nessa fase ocorre “a passagem da reivindicação jornalística à reivindicação política”40. Os jornais negros destacados são O Progresso (1931), Promissão (1932), Cultura, social e esportiva (1934), O Clarim (1935) e A Voz da Raça (1936). Os negros buscam uma participação efetiva na Formação do Estado Novo. Havia um descontentamento dos homens de cor ao verem suas associações servirem de trampolim para políticos brancos.

A entidade paulista Clube Negro de Cultura Social (CNCS), 1932-1938, organização de luta antirracista do início do século XX, publicou dois veículos informativos: a revista Cultura e o jornal O Clarim. Esse grupo tinha como principal bandeira de atuação as reivindicações em relação aos aspectos econômico, social e cultural dos negros (FERNANDES, 1978, p.87). Apesar das poucas referências sobre o CNCS, que pode estar relacionado ao silêncio da historiografia sobre a luta do negro no combate ao racismo. Depois do cinquentenário da Abolição da Escravatura, o CNCS encerrou suas atividades políticas e recreativas. O historiador Petrônio Domingues destaca a importância do Clube Negro:

[...] foi, acima de tudo um pólo de resistência cultural, que teve, entre outros méritos, a preocupação permanente de reforçar os laços de união étnica de um grupo específico , através da aglutinação dos afiliados na sede para se confraternizarem, nos bailes, nos jogos, na prática desportiva, nas apresentações cênicas, nas declamações poéticas, nas refeições coletivas, nas palestras, nas festividades de datas

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comemorativas. (...) contribui para a elevação do nível de consciência política e racial do negro em São Paulo. 41

Em janeiro de 1934, o Clube Negro lançou a primeira revista negra de São Paulo e, provavelmente, a do país. A Cultura foi um importante instrumento de defesa dos interesses da população negra. No início circulava todos os meses; depois, passou a ser bimestral. A publicação adotava uma linha editorial moderada e era dividida em várias seções: página de honra, vida social, música, esportes, páginas literárias e movimento. Depois de cinco volumes, a revista saiu de circulação.

O Clarim da Alvorada foi o principal jornal negro da década de 1930 e fez parte da segunda fase do Clube Negro. O periódico era mensal e dirigido para a “mocidade negra”, como sugeria o subtítulo. Fernando Goes, José de Assis Barbosa, Eunice de Paula, Henrique Cunha e Oscar de Paula Assis foram os colaboradores da publicação. O Clarim também mantinha uma linha editorial conciliadora, defendia que os negros abolissem o ódio e o ressentimento. Entretanto, as denúncias de preconceito racial eram frequentes e revelavam a conflituosa relação social entre negros e brancos em São Paulo. Ao menos, 31 periódicos circularam em São Paulo nessa época.

Devido à projeção alcançada pela Frente Negra42, em 1936, resolveu-se transformá-la em um partido político. Com a interferência do procurador-geral da Justiça, do Tribunal Superior Eleitoral, foi criado o Partido da Frente Negra. Na eleição que teve como candidatos Arlindo Veiga dos Santos e Francisco Lucrécio, o resultado foi um fracasso. Atribuiu-se tal fiasco ao alto índice de analfabetismo entre o negro e também porque as pessoas não estavam preparadas para votar em candidato negro. 43

41 DOMINGUES, Petrônio. “Paladinos da Liberdade”. A experiência do clube Negrode Cultura Social em São Paulo (1932-1938).

42

A Frente Negra Brasileira foi uma das primeiras organizações no século XX a exigir igualdade de direitos e participação dos negros na sociedade do País. Sob a liderança de Arlindo Veiga dos Santos, a organização desenvolvia diversas atividades de caráter político, cultural e educacional para os seus associados. Em 1937, o Estado Novo de Getúlio Vargas fechou os partidos e as associações políticas, aplicando um duro golpe na Frente Negra, que foi obrigada a encerrar suas atividades. Ver mais: FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: no limiar de uma nova era. Vol. 2. São Paulo: Globo, 2008.

43 FERRERA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista (1915-1963). Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 1982.

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Entretanto, o movimento negro da época já apresentava suas divergências. Havia insurgentes contrários à criação de partido político negro. Eram avessos à nova corrente de tendência socialista, que transformou a luta racial em questão de classe. O objetivo seria a união de brancos e negros contra as desigualdades. Porém, muitos integrantes estavam obcecados pelas ideias fascistas, onde defendiam posições de separatismo. Para jornal A Voz da Raça isso seria inadmissível em uma democracia liberal.

Em março de 193744 foi fundado o jornal A Voz da Raça, informativo oficial da Frente Negra que tinha por objetivo divulgar as ideias dos “homens de cor”. Tratava-se de um periódico combativo que, inclusive, chegou a ser divulgado nos Estados Unidos. Era mantido com doações da própria instituição negra e dos anunciantes. Em relação aos redatores, havia uma equipe permanente e também a colaboração de voluntários. Deixou de circular em virtude da repressão do Estado Novo.

Com a supressão dos partidos políticos pelo Estado Novo e o regime de censura à imprensa, extinguiu-se a Frente Negra e, também, os jornais negros. O terceiro período (1937-1945) é de quase ausência de produção jornalística negra. Destacam-se apenas os jornais Alvorada e Senzala. A possível apologia à ditadura cede espaço para discursos mais democráticos: “em vez de República autoritária do Zambi e Palmares, é a República, fraternal cooperativa, liberal”45. Entretanto, a luta contra o racismo não se arrefeceu:

Vê-se que politica do negro tem variados, conforme as grandes correntes gerais da politica nacional e que a imprensa tem refletido essas variações. Mas, não obstante, e é isso que nos interessa, não se trava, na realidade, senão de estratégia. As reivindicações permanecem sempre as mesmas através do tempo e é, pois, possível descobrir nesses jornais um certo número de representações coletivas que reaparecem incessantemente, em todas as épocas, e que, por conseguinte, definem a psicologia do afro-brasileiro.

44 O ano de fundação do jornal A Voz da Raça não é consensual entre os autores Roger Bastide e Miriam Ferrara.

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Depois de 1945, quando Getúlio Vargas é deposto pelo militares e acontece a abertura democrática, surgiram novos periódicos negros. Em 1946, teve a revista Senzala, dirigida por Geraldo Campos de Oliveira, que circulou três exemplares mas exerceu forte influencia no meio negro. De 1946 a 1954, circulou o jornal O Novo Horizonte, dirigido por Arnaldo de Camargo e Aristides Barbosa, voltado para as atividades culturais. Em 1958, a Associação Cultural de Negro lançava o jornal Multirão. O último jornal de período foi o Correio d’Ébano. Em 1963, a imprensa negra teve outra paralisação, ressurgindo novamente por volta dos anos 1970.

Apesar da concentração de periódicos negros em São Paulo, este não foi o único centro da imprensa negra no Brasil. Em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, circulou o jornal O Exemplo (1892-1930). Já em Pelotas, o periódico A Alvorada (1907-1965) aconselhava homens e mulheres a se comportarem em público para evitar punições e ter chance no mercado de trabalho. Segundo Freitas (2009), os jornais negros tinham as mesmas linhas dos primeiros impressos da imprensa negra, eram veículos de formação e educação:

Em relação ao ambiente social e ao ambiente de trabalho, os artigos do jornal indicavam procedimentos para que o negro encontrasse trabalho e também se livrasse da perseguição policial comum para a maioria deles, devido ao preconceito e à discriminação, cujo julgamento considerava o desemprego um desvio de conduta, um crime a ser severamente punido. Os artigos do jornal recomendavam aos negros que não ingerissem bebidas em excesso e que se afastassem das aglomerações frequentemente redundavam em confusões. 46

Em 1964 a produção de jornais negros tem uma nova interrupção, desta vez por causa da ditadura dos militares. A imprensa negra vai ressurgir novamente a partir da década de 1980. Os pequenos jornais, a exemplo do Nêgo, na Bahia, refletiam as linhas ideológicas do movimento negro. Segundo Sodré (1998), esses periódicos pretendiam desconstruir o mito da democracia racial e estabelecer uma estratégia antirracista. Se na primeira fase da imprensa negra brasileira (1915-1923) prevaleceu o caráter associativo e integrativo, que a partir de 1923 assumiu uma postura mais reivindicativa, foi no período da redemocratização que a denúncia contra preconceito racial teve vigor no jornalismo dos homens e mulheres negros.

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1.4 A retomada da imprensa negra no Brasil

A publicação da revista Tição (1976-1980), em Porto Alegre, marcou o retorno das atividades jornalísticas negras no Brasil. Com a ditadura militar, a luta política do negro foi desarticulada. A discussão pública da questão racial quase desapareceu e as lideranças negras foram desmobilizadas. Isso não significa dizer que foi extinta qualquer forma de mobilização da comunidade negra. Ao contrário, entre os anos de 1964 e 1985, houve uma efervescência política principalmente nos núcleos negros dos partidos de oposição. Em São Paulo, por exemplo, estudantes e artistas formaram o Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN). Ainda que timidamente, a imprensa negra também conseguiu produzir alguns periódicos como Árvores das Palavras (1974), O Quadro (1974), Biluga (1974) e Nagô (1975).

Em meio às turbulências políticas da época, os periódicos da década de 1970 abordavam as questões internacionais, as lutas de libertação dos povos africanos, pois, vivia-se um momento de intensas guerras civis, e, basicamente as denúncias do preconceito de cor, da discriminação racial e da desigualdade social que atingem o negro inspiram as pautas da imprensa. Os textos jornalísticos, sobre a história do colonialismo e escravatura, essas publicações exibem uma notável diferença em relação ao conteúdo das matérias publicadas pelos jornais da imprensa negra que circularam do início até metade do século XX.

Na terceira fase do Movimento Negro47, concomitantemente com a reorganização das entidades negras, marcada pela ascensão dos movimentos populares, sindical e estudantil, a imprensa negra retoma as suas atividades com as seguintes publicações: SINBA (1977), Africus (1982), Nizinga (1984), no Rio de Janeiro; Jornegro (1978), O Saci (1978), Abertura (1978), Vissungo (1979), em São Paulo; Pixaim (1979), em São José dos Campos/SP; Quilombo (1980), em Piracicaba/SP; Nêgo (1981), em

47 Em Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos, Petrônio Domingues aponta as características das três fases do movimento negro: primeira fase (1889-1937) prevalece-se um discurso racial moderado no qual a estratégia cultural é mais assimilacionista e os princípios ideológicos e políticos estão calcados no nacionalismo e na defesa política de direita dos anos de 1930; segunda fase (1945-1969) predomina um discurso racial também moderado e estratégia cultural integracionista com ideologia nacionalista e posição política de “centro” e “direita” nos anos de 1940 e 1950; terceira fase (1978-2000) tem-se um discurso racial contundente e posição politico-ideológica da esquerda marxista nos anos de 1970 e 1980.

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Salvador/BA; Tição (1977), no Rio Grande do Sul, além da revista Ébano (1980), em São Paulo.

A partir da década de 1980, os jornais negros surgiram por toda a parte e refletiam, de certo modo, as linhas ideológicas do Movimento Negro Unificado (MNU), que tinham como finalidade desconstruir o mito da igualdade racial brasileira e estabelecer estratégias antirracistas. Sodré (1999) salienta que:

Esvanecem-se os discursos reivindicativos e pedagógicos, as preocupações com ordenamento familiar e formação profissional, dando lugar a enunciados de denúncias de cor, a análises da consciência discriminatória, a informações históricas sobre colonialismo e escravatura, a esparsos juízos afirmativos da identidade negra que procura resgatar os valores políticos das lutas anticoloniais na África. Ao mesmo tempo, fundam-se em universidades e fora delas centro de estudos em torno da categoria “cultura negra”, que abrange os cultos, os costumes e os jogos afro-brasileiros.48

Em meados da década de 1990, duas publicações dirigidas ao leitor negro, enfocadas no universo afrodescendente, têm relevância para a imprensa negra: a revista Raça Brasil e o jornal Ìrohìn. Este lançado em 1996, editado como boletim informativo, cujo objetivo incluía em “articular as organizações do movimento negro para o acompanhamento de políticas governamentais de promoção da comunidade afro-brasileira por meio de capacitação de lideranças negras para esse acompanhamento” (Írohín, 2009). A partir do ano de 2000, foi inaugurada uma nova fase. Em formato de tabloide, o jornal negro aparecia com o compromisso de informar os assuntos do cotidiano dos negros brasileiros não abordados pela grande imprensa49.

Por sua vez, a dissertação O negro representado na revista Raça Brasil: a estratégia de identidade da mídia étnica, de João Batista Nascimento dos Santos, mostra que o leitor da revista Raça Brasil é uma pequena parcela dos afrodescendentes que conseguem

48 SODRÈ, Muniz. Claros e escuros: identidade negra, povo e mídia no Brasil. Petropólis, RJ: Vozes, 1999. p. 242.

49 LIMA JÚNIOR, Ariovaldo. Jornal Ìrohìn: estudo de caso sobre a relevância educativa do papel da imprensa negra no combate ao racismo. São Paulo: 2009.

Referências

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