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Comunidades de Resistência e Libertação: a Influência da Teologia (feminista) da Libertação no Movimento de Mulheres Camponesas

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Academic year: 2021

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Sandra Lassak**

Resumo: este artigo é resultado de uma tese doutoral em Teologia sobre a influência da

Teologia da Libertação, também a feminista, para a constituição do Movimento de Mulheres Camponesas no Brasil. De uma fase inicial estreitamente ligada às Igrejas, este movimento de mulheres caminhou para uma autonomia em relação a elas, inclusive criando formas próprias de expressão espiritual. Se por um lado houve uma certa individualização e despolitização das crenças, por outro lado a influência da Teologia (feminista) da Libertação ainda permanece forte na atuação e na mística do Movimento. O desafio atual para a Teologia Femi-nista consiste em apoiar os processos de libertação das mulheres no campo, tanto na esfera privada como em termos de mudança socioeconômica, sem que se percam as origens cristãs do movimento.

Palavras-chave: Teologia Feminista. Teologia da Libertação. Movimento de mulheres. MST.

A

situação da mulher nas regiões rurais do Brasil é caracterizada por extremo des-favorecimento e desigualdade. Entre a população rural, as mulheres são aque-las que mais estão expostas às mais variadas formas de estruturas de opressão. Assim, grande parte delas é atingida pela pobreza não apenas pelo fato de pertencer à população agrária, mas experiência discriminação e desfavoreci-mento simplesmente em razão de seu sexo. Uma complexa interação dos mais diversos mecanismos de ordem cultural, estrutural e institucional justificam a

COMUNIDADES DE RESISTÊNCIA E LIBERTAÇÃO –

A INFLUÊNCIA DA TEOLOGIA (FEMINISTA) DA IBERTAÇÃO NO MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS*

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* Recebido em: 12.06.2011. Aprovado em: 02.03.2012.

** Teóloga e militante dos movimentos sociais, membro do Institut für Theologie und Politik de Münster, Alemanha; trabalha atualmente como voluntária e professora de teologia na diocese de Huancayo, Peru.

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perpetuação de estruturas machistas e patriarcais no campo que se manifestam tanto dentro das famílias, como na esfera das leis e direitos, em uma divisão de trabalho segundo o gênero e no acesso desigual a recursos. Não suportando estas múltiplas experiências de opressão, as mulheres começaram, a partir da metade da década de 80, a insurgir-se de forma organizada. Expressão disso é a fundação de movimentos regionais autônomos de mulheres camponesas, ou seja, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR), que, pos-teriormente, em 2004, tornou-se movimento nacional, o Movimento de Mu-lheres Camponesas (MMC). Nesse movimento, todas as muMu-lheres estão orga-nizadas, realizando os mais diversos tipos de trabalhos agrícolas; o denomi-nador comum é a produção de alimentos. O MMC é, para inúmeras mulheres camponesas desfavorecidas, um lugar onde elas experienciam a libertação de estruturas opressoras e o tornar-se sujeitas. No MMC, pretende-se desencadear processos de formação da consciência das mulheres, a começar por uma con-frontação autorreflexiva com a própria situação de opressão, especialmente o desfavorecimento em razão de seu gênero, que elas sofrem, até a confrontação com contextos sociais, macroeconômicos e globais, estimulando-as, através disso, a engajar-se politicamente.

Isso porque também movimentos sociais (mistos) como, por exemplo, os Sindicatos Ru-rais e o Movimento dos Trabalhadores RuRu-rais Sem Terra (MST) – que se enten-dem como emancipatórios – continuam com estruturas e tendências patriarcais e sexistas. As mulheres começaram a organizar-se a fim de dar mais peso às suas exigências e de articular-se mais para fora. A organização aconteceu tanto dentro de movimentos sociais já existentes, através da fundação de grupos de mulheres e atividades específicas, como na formação de organizações e movimentos de mulheres autônomos. As mulheres reivindicam, em primeiro lugar, que a ques-tão da igualdade de direitos seja tratada de forma séria e que se tome consciência das relações desiguais entre os gêneros no contexto atual, assim como querem a mudança dessa situação. Devido a modelos sobre os papéis sociais e de gênero, a organização política e a participação das mulheres na esfera pública é reduzida, ou não é levada em consideração, ou é ocultada.

Assim como em todos os movimentos sociais do Brasil, a Igreja, ou, mais especifica-mente, alguns setores mais progressivos dela que seguem a orientação da Teo-logia da Libertação, exerceram um papel central na organização das mulheres camponesas brasileiras. Destes setores, do seu engajamento em movimentos so-ciais, da estreita ligação entre pastoral e lutas soso-ciais, originaram-se importantes impulsos para a fundação de movimentos sociais e agentes pastorais apoiaram o processo de fundação, seja através do trabalho de formação, seja através de aspectos organizativos bem concretos e práticos. Com o passar do tempo, po-rém, à medida que os movimentos conquistavam uma maior autonomia e que,

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no interior da Igreja, certas mudanças foram ocorrendo, houve uma mudança clara também na relação entre ambos. O presente artigo investigará como essas mudanças tomam forma e quais são os desafios que surgem, a partir delas, para uma teologia libertadora. Além disso, a reflexão feminista-teológica da prática resistente das mulheres camponesas brasileiras realiza-se sob a pergunta acerca do significado da religiosidade e da Tradição cristã na luta das mulheres. Essa questão é especialmente interessante diante do plano de fundo dos desenvol-vimentos políticos da Igreja dos últimos anos. Depois de quase duas décadas dos inícios da Teologia da Libertação e das mudanças ocorridas no interior da Igreja latino-americana entre o final dos anos 60 e a metade dos anos 80, o que se percebe é um crescente distanciamento e mesmo ausência de partes da Igreja tradicional nos movimentos sociais, provocados, especialmente, pelo processo de restauração incitado pela hierarquia romana. Disso, resultam duas questões: primeiramente, a questão do lugar social da Igreja que, por sua vez, está sempre ligada a umacompreensão da própria Igreja; em seguida, deve-se considerar que influência esses processos exerceram tanto na fé das mulheres como em sua prática religiosa e, consequentemente, que significado assume a espiritualidade e a religiosidade nas lutas atuais das mulheres. Até que ponto a práxis do MMC e dos outros movimentos rurais, é a radical implementação e continuação das preocupações da Teologia da Libertação? Em que medida a sua organização co-letiva, o seu protesto e resistência e a sua espiritualidade podem ser entendidos como um novo jeito de formar Igreja?

As considerações a respeito das questões acima levantadas pretendem também examinar, criticamente, a tese da “secularização da identidade dos movimentos sociais”, apresentada, entre outros/as, por Peter Houtzager.

As considerações a seguir embasam-se nos resultados de um estudo realizado por mim entre 2005 e 2008 em diferentes regiões do Brasil. Inúmeras entrevistas reali-zadas com participantes do Movimento de Mulheres Camponesas, bem como a participação em diversas de suas ações e eventos, esclareceram-me a respeito. FUNDAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES DE MULHERES NO CAMPO

Tanto na fundação como nos desenvolvimentos posteriores do movimento, diversas fo-ram as influências políticas e sociais bem como os grupos e suas respectivas orientações que exerceram papel muito importante. Entre os elementos que in-fluenciaram a organização, que contribuíram na formação da identidade coletiva e que marcaram os conteúdos, posições e o trabalho político do MMC, pode-se citar o feminismo, o engajamento da Igreja Católica, a Teologia da Libertação, as discussões sobre a questão das classes, o papel das esquerdas, bem como a questão das relações tradicionais e patriarcais entre os gêneros no campo.

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Como já se mencionou no início, o grande descontentamento devido à falta de conside-ração em relação às questões das mulheres nas organizações já existentes e a dificuldade em fazer um enfrentamento sério das relações de gênero, deram o impulso inicial para que as mulheres mesmas começassem a se organizar. Além disso, através da participação em outros movimentos sociais e lutas, as mulheres já haviam acumulado experiências semelhantes de mobilização política e de or-ganização. Grande foi também o apoio que as mulheres receberam de religiosos/ as engajados/as e agentes de pastoral da Comissão Pastoral da Terra. A organi-zação autônoma significou, para as mulheres, não apenas a condição de possibi-lidade para a mudança de sua situação, mas com isso elas reivindicaram para si o direito de organização no sentido da igualdade entre os gêneros, tornando-se importantes atoras políticas na luta por mudanças na sociedade.

Nos primeiros anos de organização, as exigências concentravam-se, sobretudo, na mudança das condições de trabalho, o que revela o fato de que muitas mulheres provinham de ambientes marcados pela luta política e sindical. Junto com isso, tratava-se, em primeiro lugar, de conquistar o reconhecimento profissional do trabalho rural feminino e dos direitos sociais a ele vinculados (auxílio saúde, licença materni-dade, aposentadoria etc.). Iniciou-se inclusive uma campanha em nível nacional. Era necessário tornar visível o trabalho produtivo das mulheres e mostrar que o seu trabalho rural não pode ser reduzido a um aumento de trabalho doméstico não remunerado, mas, deve ser reconhecido com o mesmo valor e, consequentemente, com a mesma medida que o trabalho produtivo do homem. Com isso, iniciou-se uma mudança de paradigma na compreensão do trabalho rural, que provocou, por sua vez, uma mudança positiva na autocompreensão e na identidade das mulheres. Através do reconhecimento da identidade social e profissional das mulheres como trabalhadoras rurais, as mulheres obtiveram uma nova consciência de si mesmas e começaram a confrontar-se com os mecanismos de opressão e subordinação internalizados há séculos. Através de sua ativa participação política, as mulheres criaram seus próprios espaços de ação política e descobriram que também elas podiam tornar-se sujeitas ativas. No início dos anos 90, começaram os primeiros esforços para unificar os grupos de mulheres camponesas das diferentes partes do país e suas organizações numa rede nacional, a fim de alcançar maior alcance e força política. Formou-se assim, em 1995, a Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR). A sede da coordenação estabeleceu-se em Passo Fundo, no Estado do Rio Grande do Sul. A ANMTR foi formada por mulheres provenientes dos MMTRs de cada Estado, pelas mulheres do Movimento dos Pe-quenos Agricultores (MPA), do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Pertenciam igual-mente ao movimento, mulheres dos sindicatos rurais e diversos outros grupos, como por exemplo, mulheres indígenas, pescadoras e quebradeiras de coco

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baba-çu. A fundação da ANMTR deveu-se especialmente ao engajamento das mulheres do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).

Internacionalmente a ANMTR é membro da organização camponesa Via Campesina e da Coordinadora Latino-americana de Organizaciones del Campo (CLOC). Como exemplos de ações políticas da ANMTR, pode-se citar as mobilizações em nível nacional, em datas historicamente significativas para o movimento. A referência às lutas históricas das mulheres, no sentido de uma reconstrução de histórias esquecidas, mas remetendo também às lutas atuais, foi e continua sendo um elemento essencial do movimento. Pertencem a estas datas de memória e ação política o dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, e o dia 12 de agosto, dia do assassinato de Margarida Maria Alves, a primeira presidenta eleita de uma organização sindical de trabalhadores/as rurais (SCHUMAHER; VITAL BRA-ZIL, 2000, p. 361-2)1. Devido ao seu grande engajamento em favor da reforma agrária, ela tornou-se um símbolo para a luta das mulheres camponesas. No iní-cio, realizavam-se anualmente atividades e encontros regionais em sua memória e como forma de protesto contra a violência no campo. No ano 2000, organizada por trabalhadoras rurais dos sindicatos CONTAG, FETAGs2 e STRs3, realizou-se a primeira Marcha das Margaridas, em homenagem ao seu nome. Contando com a presença de 20.000 mulheres, que se dirigiram à Capital, Brasília, e manifes-taram o seu protesto contra as relações de violência no campo, esta foi até então a maior marcha de mulheres da história do Brasil (CONTAG, 2002, p. 43-9). As confrontações em torno da questão do trabalho rural de mulheres manifestou-se também em inúmeras ações correspondentes. A primeira ação de nível nacional da rede ANMTR foi uma grande campanha para conseguir documentos pessoais para as mulheres camponesas, a qual obteve resultado positivo.

Através de diversos tipos de eventos, demonstrações, marchas, campanhas e da participa-ção em discussões abertas, as mulheres almejam trazer para o público tanto a sua situação como as suas reivindicações. Dentre essas ações, não se pode deixar de citar os acampamentos de protesto de vários dias que vêm-se realizando desde o ano 2000 em inúmeros Estados no Dia Internacional da Mulher. Os acampa-mentos oferecem, internamente, uma possibilidade de intercâmbio, debates e discussões (2000, p. 6) e manifestam, externamente, através do bloqueio de ruas e das demonstrações, um sinal visível da luta, da coragem e da resistência das mulheres camponesas contra o domínio neoliberal.

DA ARTICULAÇÃO AO MOVIMENTO FEMINISTA

A bem sucedida mobilização e a participação de um número sempre maior de mulhe-res ocasionou a fundação de um movimento nacional de mulhemulhe-res camponesas (MMC), ocorrido durante um congresso realizado de 5 a 8 de março de 2004 por

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ocasião do Dia Internacional da Mulher. Com isso, deu-se mais um importante passo qualitativo.

De uma articulação que principalmente cooperava em ações pontuais e campanhas, era preciso dar um passo rumo a um movimento que fosse comparável aos outros movimentos rurais nacionais. O objetivo era “... unificar e fortalecer a luta dos movimentos de mulheres trabalhadoras rurais em todo o Brasil”.4 Dever-se-ia, em primeiro lugar, fortalecer interiormente uma identidade comum e congregar forças e, ao mesmo tempo, alcançar exteriormente grande visibilidade e possibilidades de intervenção política. Pois um movimento de caráter unificador, entendido como um sujeito coletivo que possui uma identidade comum, é muito mais forte do que uma simples rede nacional. As mulheres queriam expressar, também, atra-vés da mudança do nome, seu caráter de movimento, sua autocompreensão e o seu posicionamento ideológico. No lugar de trabalhadoras rurais irrompeu o conceito de camponesa. O termo “mulher camponesa” é mais inclusivo e refere-se àquela que, de uma ou de outra maneira, produz o alimento e garante a subsistência da família (a pequena agricultora, a pescadora artesanal, a que-bradeira de coco, as extrativistas, arrendatárias, meeiras, ribeirinhas, posseiras, boias-frias, diaristas,parceiras, sem terra, acampadas e assentadas, assalariadas rurais e indígenas).

Além disso, esse termo revela o contraste entre a economia de subsistência rural familiar e a compreensão capitalista de força de trabalho, que deve estar à disposição do mercado e que, na perspectiva das mulheres, está implícita no conceito “traba-lhadora rural”. Também a partir da perspectiva histórica, o conceito “trabalhado-ra ru“trabalhado-ral” deve ser empregado criticamente, uma vez que ele surgiu em um con-texto colonial e em relações de trabalho capitalistas e, por esta razão, segundo a opinião das mulheres, está também vinculado a condições históricas concretas. O conceito camponês, em contrapartida, faz referência a uma agricultura orien-tada para a economia de subsistência, isto é, o fundamento do sustento humano, que deve ser entendida, portanto, como uma constante básica da vida social. Frente a esses significados, é preciso que se faça atenção ao significado social da mulher como produtora de alimentos. A questão das condições da produção de alimentos e da soberania alimentar formam o centro das lutas das mulheres. Esse é também o significado do lema criado no congresso de fundação: “Fortalecendo a luta em defesa da vida”.

Trata-se, ademais, da reabilitação de conhecimentos tradicionais no cultivo e no uso de diferentes sementes para a produção da maior variedade possível de víveres. A proteção das sementes e das condições para uma agricultura ecológica é uma das lutas centrais das mulheres camponesas. Para garantir uma segurança alimentar autônoma e, com isso, possibilidades de sobrevivência para a população dos pe-quenos produtores rurais, faz-se necessário um modo de produção agrária

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alter-nativo, que inclua a sabedoria tradicional na utilização de sementes e possibilite o cruzamento de sementes para a diversificação da produção:

O outro modelo é o da Agricultura camponesa, que busca a autonomia das camponesas e cam-poneses, a produção agroecológica, o uso das sementes crioulas, a produção diversificada e de alimentos saudáveis para todos e a garantia da soberania alimentar, bem como, a busca pela autonomia e o empoderamento das mulheres (ANMTR-RS, 2007, p. 13).

Neste contexto, existe desde 2007 uma campanha nacional em favor da soberania ali-mentar e da agricultura ecológica dos pequenos produtores rurais, cujo lema é: “Produzir alimentos saudáveis, cuidar da vida e da natureza”.

Participando da luta pela soberania alimentar e por uma agricultura de pequeno porte, o MMC situa a realidade das mulheres camponesas brasileiras e da população rural como um todo no contexto do desenvolvimento mundial e, por ser mem-bro da organização Via Campesina, o movimento vê as lutas concretas e locais das mulheres camponesas brasileiras como parte da resistência camponesa in-ternacional. Diante desta exigência para a luta por uma mudança abrangente na sociedade, o próprio movimento caracteriza-se como feminista, socialista e consciente das classes sociais.

Nas lutas por melhores condições de vida e de trabalho no campo é fundamental que haja mudanças também nas relações de gênero. A construção de um projeto agrário no sentido de um projeto social alternativo não pode, portanto, prescindir da perspectiva feminista. A integração de uma perspectiva feminista se expressa claramente na exigência de um “projeto de agricultura camponesa desde a ótica da mulher”. É possível dizer, em forma de síntese, que o engajamento das mu-lheres orienta-se para a construção de um modelo agrário solidário e sustentável no qual a família inteira é reconhecida, de forma igual, como protagonista, vi-sando à mudança das relações sociais existentes. Isso significa que é preciso ir muito além da simples exigência por condições e possibilidades de uma econo-mia agroecológica. Pretende-se assim, que direitos sociais, econômicos e políti-cos sejam iguais tanto para homens como para mulheres e, com isso, haja uma mudança nas relações sociais tanto dentro do contexto social e familiar como na sociedade como um todo. Isso supõe a luta por uma reestruturação das relações de poder e posse no campo, melhores condições de vida e de trabalho para a população camponesa e mudanças tanto na relação homem-natureza como na relação entre os gêneros. O Movimento de Mulheres Camponesas inclui-se entre os/as que defendem a opinião de que mudanças sociais radicais devem incluir a perspectiva feminista, tal como aparece no slogan de muitos movimentos femi-nistas populares, e que vai ao cerne da questão: “sem feminismo não há socia-lismo”. Partindo desta exigência, o movimento caracteriza-se a si mesmo como feminista, consciente das classes sociais e movimento socialista de base.

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O MMC celebrou em 2009 os 20 de existência das organizações de mulheres camponesas. Ao longo desses 20 anos de história da organização autônoma das mulheres do campo no Brasilos temas e discursos foram mudando; mesmo algumas posições que marcam a auto compreensão feminista atual foram influenciadas. O trabalho de formação do MMC visa, essencialmente, impelir processos de aprendizagem e conscientização entre as mulheres que as esclareçam a respeito das relações sociais e das estruturas de poder, servindo, assim, como instrumento para a li-bertação e legitimação individual e coletiva. Nestas duas décadas de contínua organização e mobilização, o MMC conseguiu tornar-se uma força política, cuja capacidade de ação reflete-se tanto nas conquistas passadas como no atual poten-cial de mobilização. A autonomia que o movimento alcançou com o decorrer do tempo lança a pergunta sobre o vínculo em relação às raízes ideológicas originá-rias, que são, como já se mencionou no início, os outros movimentos de mulheres, os sindicatos e, sobretudo, as correntes impregnadas pela Teologia da Libertação. A HERANÇA DA TEOLOGIA DE LIBERTAÇÃO

A Igreja e a Teologia da Libertação exerceram, sob dois aspectos, um papel central durante a fase de fundação do movimento das mulheres camponesas. Em primeiro lugar, representantes da Igreja, religiosos/as, pastores/as e leigos participaram do seu surgimento, apoiaram e mobilizaram as mulheres camponesas para a fundação de um movimento próprio. Em segundo lugar, as próprias mulheres provinham de um passado e de uma experiência de socialização que, incitada pela Igreja, marcou fortemente o período que vai do início dos anos 60 até a metade dos anos 80. Assim, os primeiros cursos de formação da consciência crítica para mulheres foram iniciados, sobretudo, por religiosas, pastoras ou agentes pastorais e foram realizados em salas da Igreja, salões comunitários, seminários e casas de religio-sos/as. Esse trabalho foi marcado por uma compreensão de Igreja orientada para as comunidades de base. Segundo essa compreensão, a comunidade é entendida como movimento sociopolítico, como uma

comunidade de vida e de ação onde se tenta, em conjunto, superar o isolamento dos indivíduos e, através de ações solidárias comuns, nas quais se torna possível a autodeterminação, encontrar sentido e esperança para a vida de cada um (HARTMANN, 1980, p. 66).

Autodeterminação, autonomia e participação caracterizam esse novo modo de vida cristã e são parte da compreensão de uma Igreja modificada. Através da leitura bíblica na ótica da libertação e dos métodos da “pedagogia do oprimido” de Paulo Freire, entregou-se às mulheres um novo instrumental. Com ele, elas puderam interpretar a sua realidade de vida de maneira nova e deveriam aprender a tornar-se sujeitas de ação. As experiências dessa Igreja diacônica e profética, na forma

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decomu-nidades de base, que são espaços de formação e participação, refletem-se, entre as mulheres, em uma relação pessoal claramente positiva para com o contexto eclesial. Segundo Fernando Castillo, “as comunidades de base exerceram como sujeitos sociais um papel chave, uma vez que elas possibilitaram o encontro entre as práticas dos movimentos sociais e das iniciativas cristãs (CASTILLO, 2000, p. 45). Por isso, muitas mulheres que vivenciaram este tempo consideram esse engajamento eclesial como sendo a raiz de sua participação política e social. O movimento das Comunidades Eclesiais de Base e a sua abordagem sociopas-toral manifestam-se em opções e posições por uma clara tomada de partido em favor dos pobres e marginalizados. As CEBs surgiram nas periferias das cidades ou no campo. A Igreja formou, especialmente no mundo rural, um ponto central da vida social como um todo e foi, para as populações que ali viviam, um lugar importante de encontro com Deus, “um lugar que lhes dá força a fim de vencer as dificuldades do dia a dia” (BETTO, 1984, p. 23). Desta forma, a Igreja, como importante instância social, tornou-se um espaço apropriado de alfabetização política no qual se ensinava a integrar lutas sociais e espiritualidade, resistência e fé. Essas atitudes internalizadas afluem nas lutas sociais e no ativismo político das mulheres (militância).

As mudanças na política da Igreja – ou seja, o processo de restauração – que começaram já no fim dos anos 80 e que foram aceleradas a partir do início dos anos 90, tiveram efeitos muito claros nas Comunidades Eclesiais de Base. Esse processo de res-tauração conservadora da Igreja, que se concentrou na consolidação das relações verticais de poder e na manutenção das estruturas vigentes, enfraqueceu prática e ideologicamente o apoio para as lutas sociais. Salas de instituições eclesiais que anteriormente eram usadas pelos movimentos sociais não estavam mais à dispo-sição, cessou ou diminuiu o apoio à mobilização. Foram fechadas as portas dos espaços de uma práxis libertadora para os cristãos/ãs engajados (p. ex., salões co-munitários, casas de formação da Igreja, antigos locais de reunião etc.). Ao invés de criar estruturas participativas, procurava-se fortalecer e assegurar o poder das autoridades eclesiais. A preocupação com a automanutenção e o apego às estru-turas do poder levaram a um processo de isolamento; houve um afastamento das questões sociais e políticas, da realidade da vida das pessoas e, consequentemen-te, também afastamento dos movimentos sociais. As mulheres dos movimentos, marcadas pela Igreja participativa das Comunidades de Base e pelas experiências ali realizadas, encontravam nas igrejas sempre menos espaço para o seu engaja-mento. O trabalho pastoral comprometido sócio e politicamente, que se havia ocu-pado com as questões e necessidades concretas das pessoas, que havia suscitado processos de auto-organização e ajudado as pessoas a se tornarem sujeitos/as, foi substituído por um cuidado pastoral que colocava no centro da Pastoral a própria Igreja, a celebração litúrgica e a catequese. A crescente perda de opções sociais

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e políticas por parte da Igreja, o fortalecimento do clericalismo, as sempre mais limitadas possibilidades de participação, a falta de apoio da Igreja nas lutas so-ciais (e a consequente mudança de seu lugar social), tudo isso tornou-seperceptível em nível local e mundial. Vozes proféticas que representavam os interesses dos grupos mais pobres da população e se posicionavam criticamente em relação à sociedade passaram a tornar-se, no contexto eclesial, secundárias. Além disso, outro fator que no contexto dos movimentos feministas estimulou o distancia-mento das mulheres da igreja, foi a discriminação estrutural contra as mulheres na Igreja Católica. Durante a evolução do posicionamento das mulheres, que se tornava sempre mais explicitamente feminista, a imagem de mulher defendida pela Igreja perdia, entre elas, sempre mais aceitação e plausibilidade. Para mui-tas mulheres, a Igreja era sobretudo uma instituição hierárquica que teima em ortodoxia e dogmatismo e que está bem longe da realidade de vida das mulheres; ela contrapõe-se às lutas por libertação das mulheres, porque mantém relações desiguais de gênero e poder no seu próprio interior. Assim, as mulheres não fize-ram apenas a experiência de não gozar das mesmas possibilidades de ação que os homens dentro dos movimentos sociais existentes, mas elas não encontraram na Igreja tampouco um lugar apropriado para tematizar suas preocupações e reivin-dicações ou ter possibilidades de participação.

A falta de confrontação com as questões sociais urgentes foi acompanhada por uma espi-ritualidade que impede a resistência e paralisa as lutas sociais. Esse afastamento das igrejas tradicionais de sua base social entre a população pobre e das preocu-pações desta população, criou um vácuo que as novas correntes religiosas e as diferentes denominações conseguiram aproveitar. A retirada dos movimentos so-ciais, chegando, inclusive, a uma atitude de oposição a eles, levou a uma ruptura entre a Igreja e uma grande parte de sua base social, os grupos pobres da popu-lação. Essas mudanças no processo de crescente autonomia e independência dos movimentos foram alguns dos fatores que aceleraram a independentização em relação às igrejas. Faz-se mister notar, neste ponto, que isso não é um desenvol-vimento peculiar do MMC, mas um processo ocorrido em todos os modesenvol-vimentos sociais em meio às transformação sociais e políticas a partir do fim dos anos 80. O processo de emancipação e autonomia em relação às raízes eclesiais, no entanto, pode ser interpretado positivamente, como uma nova fase ou como um segundo nascimento dos movimentos sociais. Este é um sinal do grau de autono-mia e independência alcançado pelo movimento, o qual mesmo após a ausência de uma importante coluna de sua organização, não se dissolveu. Desta forma, esse processo pode ser interpretado como resultado e implementação eficaz da preocupação pedagógica e da Teologia da Libertação de promover processos de empoderamento, autonomia e capacidade de ação. A organização autônoma das mulheres demonstra que elas mesmas tornaram-se “sujeitas de sua própria

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história” e se insurgem contra as injustiças existentes. Moreira (2011) chega, por isso, à conclusão de que os movimentos sociais são, hoje, os lugares e as vozes de uma Igreja profética.

OS MOVIMENTOS SOCIAIS E O CAMPO DE RELIGIOSIDADE DIVERSIFICADA

A partir desta perspectiva, mais do que enfatizar o deficit do comprometimento da Igreja, dever-se-ia, seguindo essa interpretação positiva, voltar o foco para o movimento como sendo um novo lugar de práxis libertadora e de uma possível continuação das tradições da Teologia da Libertação. A mudança da Igreja, a relação modi-ficada entre Igreja e movimentos sociais, bem como a expansão de novas cor-rentes evangélicas e agrupamentos influenciaram a religiosidade das mulheres do campo e fizeram com que o panorama religioso, que antes era fortemente marcado pelo catolicismo, se tornasse mais plural e heterogêneo. Ao longo deste fenômeno de pluralização, a religiosidade e a prática religiosa e eclesial foram, por assim dizer, agregadas à “vida privada” das mulheres, mas sem que se lhes fosse dada no movimento relevância alguma. Consequentemente, interrompe-se nos movimentos sociais uma transmissão explícita dos conteúdos da Teologia da Libertação. Como resultado, diferencia-se o espectro da prática religiosa entre as mulheres – a começar por aquelas que, devido à sua socialização e politização nas Comunidades de Base, integraram em sua prática de fé pessoal elementos da Teologia da Libertação, até aquelas que não possuem nenhum tipo de formação religiosa e eclesial ou que desenvolveram, com o decorrer do tempo, uma atitude religiosa de indiferença. A este último grupo pertencem, majoritariamente, as mulheres mais jovens.

Como consequência, foram-se desenvolvendo individualmente diferentes religiosidades e práticas de fé. A variedade de práticas religiosas das mulheres, o desligamento dessas práticas religiosas do engajamento político nos movimentos sociais, que ao mesmo tempo ainda recebem influências isoladas da Teologia da Libertação, e o significado desse processo para o movimento das mulheres, tudo isso repre-senta atualmente para a Teologia (feminista) da Libertação um grande desafio. Esta teologia feminista da libertação recebe, ao mesmo tempo, a tarefa de re-fletir, sistemática e teologicamente, os processos de mudança e de desenvolver perspectivas teológicas libertadoras. Nesse sentido é central a pergunta: em que medida os movimentos sociais podem ser entendidos como novos lugares e for-mas de comunidades eclesiais para além das comunidades tradicionais da Igreja? O movimento passou com o decorrer do tempo de um forte apoio inicial da Igreja, que as-segurava institucionalmente p. ex., as comunidades da Igreja ou a CPT, para uma crescente autonomia em relação às Igrejas – ainda que este apoio inicial esteja

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vinculado a um ganho em auto-organização e radicalização do movimento. Es-sas mudanças expressaram-se não apenas no aspecto organizativo, mas tiveram efeitos também sobre a prática religiosa dentro do movimento e suscitaram uma gênese de novas formas de expressão espirituais próprias do movimento.

Porém, mesmo que os fatores e influências acima citados tenham mudado o panorama religioso, a relação entre Igreja e movimentos sociais e, com isso, também a re-lação com as tradições libertadoras, a sua origem, impregnada pela Teologia da Libertação, mostra até hoje a sua eficácia. De acordo com uma pesquisa de Alie van der Schaaf sobre a organização das mulheres camponesas, duas são as ca-racterísticas essenciais no trabalho do movimento “que podem ser consideradas como ‘heranças’ da Igreja progressista e da Teologia de Libertação: a primeira é a grande quantidade de material para leitura e a importância da fala; a segunda refere-se ao frequente uso de símbolos e à ênfase na “mística” como algo próprio das trabalhadoras rurais” (SCHAAF, 2001, p. 167).

MÍSTICA DA LUTA E DA VIDA

Mesmo que a presença de uma pastoral orientada para a libertação e o apoio de ins-tituições e da Igreja tenham diminuído e que o movimento tenha-se afastado dos espaços eclesiais, é possível observar que isso não levou a uma perda de significado da religiosidade e da espiritualidade em si, mas, antes a uma mu-dança nas formas de expressão espiritual. Novas formas de espiritualidade tem surgido, para além de uma tradição explicitamente cristã e eclesial. Dentro de um processo de promoção da identidade coletiva e da formação de comunidade, motivações comuns e convicções éticas possuem um papel central. E essa for-ça geradora de unidade que mantém o movimento coeso em resistência recebe o nome de mística. A Mística, no contexto do movimento, não é entendida no sentido tradicional de mística, como uma união com o divino, um fugado mundo e, sobretudo, como privilégio de alguns poucos/as. Trata-se, antes, de uma força interior, de uma energia vital que torna capaz de suportar com perseverança as confrontações cotidianas e as lutas pela sobrevivência. Uma tal mística deve ser entendida, segundo Gebara (1989, p. 916), como

... uma espécie de energia vital que leva a agir a partir de uma motivação fundamental, a partir de um certo número de valores dos quais não se pode abrir mão sem o risco de perder a própria vida. Não tem necessariamente caráter institucional, não tem escola nem mestre e nem discípulo eleito. Expressa a transcendência da vida, existencialmente e independentemente da pressão dos conceitos.

Embora mística seja entendida como uma dimensão central que perpassa a vida inteira, ela é articulada também em momentos explícitos de celebração e de memória,

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como por exemplo, no início de um encontro, de uma reunião, em uma demons-tração etc.. No que concerne aos conteúdos, as místicas são marcadas por temas que brotam do contexto de vida das mulheres. No centro dessa mística feminista, definida pelas mulheres, encontram-se as mulheres na sua relação para com a natureza, os recursos naturais, o básico para a vida, e a agricultura. Trata-se de tornar visível o relacionamento das mulheres camponesas para com a terra, o seu trato para com a natureza e a sua compreensão do trabalho rural daí resultante. Diferente da subjugação e da utilização, segundo a lógica capitalista, a relação das mulheres para com a terra expressa-se através do cuidado e da atenção. Textos, canções e símbolos, característicos para o contexto de vida e de traba-lho das mulheres, tais como sementes, plantas, frutas, instrumentos de trabatraba-lho agrícola etc., materializam e tornam visível a temática enfocada em cada mís-tica. Diferentes rituais religiosos e atividades que fazem referência a tradições rurais querem, nestes momentos místicos, dar expressão à identidade das mu-lheres camponesas e valorizá-las. Em textos, poesias e canções, articulam-se igualmente essas tradições, a cultura rural e as lutas das mulheres camponesas. As místicas são um elemento integrador e possuem um caráter central de geração da comunidade. É por essa razão que a mística é muito mais do que alguns rituais espirituais explícitos de abertura e encerramento nas diversas atividades.

Mística, em uma perspectiva libertadora, é antes de tudo um elemento que perpassa a prática cotidiana e ela própria, é produzida por sua vez a partir dessa práxis. A mística está presente nas lutas e na busca por direito e democracia, mas está igual-mente presente no trabalho cotidiano e no cuidado dos pequenos/as agricultores/ as, no seu cuidado para com as pessoas e para com a natureza. A mística tem a sua origem nas lutas sociais dos movimentos e é, ao mesmo tempo, motor e força nas lutas sociais e na confrontação com os conflitos do dia a dia. Ela é o coração que mantém o movimento unido. Ela é o estímulo e o impulso para o fazer e para o agir do movimento e possui, e tem por isso um caráter de geração da unida-de. Nela, convicções, esperanças e a prática cotidiana confluem juntas. Assim, atribui-se a ela o caráter conectivo, sem, contudo, exigir um consenso vinculativo no que se refere aos conteúdos de fé. A mística é considerada o ponto de refe-rência comum, é o momento de geração de identidade e de unidade. O objetivo não é estabelecer determinadas convicções religiosas como elementos de vin-culação, mas encontrar formas de expressão que, para além de religiosidades e confissões, representem todas as mulheres. Ela é a fonte que garante motivações comuns e a consciência das próprias capacidades e possibilidades de ação. Como fonte motivadora das membras, ela encoraja e suscita firmeza e persistência nas lutas sociais. Mística e experiências cotidianas estão, portanto, entre si em uma relação de influência recíproca. A mística influencia o olhar para o mundo, o pensar e o agir, o modo com que se vê a vida e, da mesma forma, inversamente, as

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experiências cotidianas marcam a mística. As mulheres descobrem em si mesmas o mistério da vida, o qual se expressa em múltiplas experiências cotidianas, sejam elas a amizade, o sofrimento, a festa ou a ação política, em protestos, conflitos e discussões.

As suas formas concretas de expressão brotam das lutas e preocupações do movimento, da base. Elas resultam da reciprocidade entre resistência política e espiritualida-de e repercutem, inversamente, no fazer e agir das mulheres, impregnam atituespiritualida-des e posições. Devido a este estreito vínculo e reciprocidade entre mística e luta política, ela pode também ser interpretada como uma espiritualidade da luta.

Mística como sendo a força que mantém o movimento unido, apontando a direção para

a práxis, a qual inclui igualmente valores e convicções como símbolos, permite um grande âmbito de interpretação e significado, que as mulheres, conforme seus próprios acentos pessoais, sentem de formas variadas. Neste sentido, a mís-tica inclui toda uma gama de experiências de vida das mulheres, inclusive as ações não explicitamente políticas, como, por exemplo, o trabalho doméstico, o cuidado e a educação dos filhos, o trabalho na lavoura etc.. Das convicções e atitudes (espirituais) vividas e partilhadas em conjunto são derivadas diretrizes éticas orientadas para a vida humana para uma práxis cotidiana coerente. Faz parte do jeito das mulheres entrar em contato com a vida, seja isso com a famí-lia, com as pessoas de seu meio próximo ou distante ou com a terra. Isso toma expressão no modo com que as mulheres realizam o seu trabalho rural, na forma como elas cultivam o solo, semeiam e plantam. Por isso, o Movimento de Mu-lheres Camponesas enfatiza como característica toda especial de sua mística a inter-relacionalidade com todos os seres vivos e a natureza.

A mística envolve toda a realidade de vida das mulheres e, por esta razão, não pode ser con-siderada uma área espiritual especial. Trata-se muito mais de uma espiritualidade imanente e de experiências espirituais realizadas em meio às lutas de sobrevi-vência diárias, em protesto e resistência, na organização conjunta.

O MMC COMO LUGAR DE FORMAÇÃO

DE UMA COMUNIDADE SOLIDÁRIA (ECLESIAL) E DE UMA TEOLOGIA DE LIBERTAÇÃO

Embora a prática religiosa tenha-se diferenciado muito entre as mulheres camponesas e exista, sobretudo entre as mulheres mais jovens, uma falta de formação eclesial sempre maior, a categoria “religião” e religiosidade não pode ser deixada de fora da análise de movimentos sociais (rurais). Isso se deve ao fato de que a religiosi-dade, de diferentes formas – semelhante aos inícios da organização das mulheres camponesas –, está presente até hoje e continua sendo um caminho de acesso atra-vés do qual temas políticos e relacionados à realidade diária das mulheres são

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me-diados e refletidos. Isso se reflete também, entre outros aspectos, na forte presença de teólogas, pastoras e religiosas no trabalho político-pedagógico. A religiosidade pessoal das mulheres também exerce um papel decisivo em relação às lutas so-ciais, uma vez que a fé é uma importante fonte de força, a qual mantém a resistên-cia e implica um potenresistên-cial de esperança que impele a aguentar firme e a persistir. Diante dessas observações, não procede, segundo a minha perspectiva, a tese da

“secula-rização da identidade dos movimentos sociais”, tal como é apresentada por Peter Houtzager em sua confrontação com o Movimento dos Sem Terra (MST) (HOUT-ZAGER, 2004, p. 156). Mesmo que no decorrer desse processo tenha-se chegado a uma “deseclesia lização” dos movimentos sociais em relação às igrejas tradi-cionais, isso não pode ser equiparado a uma perda da espiritualidade. Faz-se ne-cessário, ao invés disso, analisar o processo de emancipação do movimento social tendo-se presente a distinção entre “religião”, “eclesialidade” e “espiritualidade”. Justamente diante deste boom de espiritualidades e da crescente pluralização da religião e das práticas religiosas, tornam-se imprescindíveis critérios claramente definidos para a avaliação das novas espiritualidades e práticas espirituais, que diferentes grupos reivindicam para si.

Embora a mística perpasse a vida no seu todo, não se pode deixar de levar em conta uma confrontação crítica da relação entre Igreja e movimento social, da situação re-ligiosa alterada e das influências rere-ligiosas nos movimentos sociais. Mesmo que se dê destaque ao caráter de totalidade da mística, não parece apropriado, na minha perspectiva, que a religiosidade das mulheres (ancorada na experiência eclesial) seja desconsiderada e separada das lutas sociais do movimento. Dentro de um projeto emancipatório e libertador em favor das mulheres, é necessária uma confrontação com todas as áreas que perpassam a vida das mulheres, in-clusive a religiosa. No que concerne às mudanças no campo da religião e da religiosidade, pode-se observar que, de um lado, ela é deixada a critério de cada um na sua esfera privada, mas que, por outro lado, criam-se novos contextos geradores de comunidade com seus sinais e símbolos identificadores. A esta al-tura, na minha opinião, parece necessário que se faça uma outra reflexão: em que medida o movimento assume funções que antes eram desempenhadas pela Igreja, especialmente as Comunidades Eclesiais de Base, e em que medida isso é entendido como uma nova forma de formação de comunidade eclesial? Além disso, parece-me fundamental que, no contexto de um projeto de libertação, formulem-se critérios para uma espiritualidade que, para além das preferências religiosas individuais, orientem-se para a libertação e para a opção pelos pobres e, consequentemente, assumam uma função crítica em relação à sociedade e às formas de domínio, também em relação às instituições religiosas.

À teologia feminista, cuja meta é a libertação, compete a tarefa de examinar, diferencia-damente esta relação entre Igreja e movimentos sociais, entre a resistência

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femi-nista e a espiritualidade e refletir, criticamente, as novas formas de expressão es-piritual, tal como as místicas, no que diz respeito ao seu potencial libertador. Isso significa levantar a questão: em que medida a mística das mulheres, no MMC, representa um espaço para uma espiritualidade autodeterminada, que proporcio-ne a possibilidade de libertação tanto de uma religiosidade experimentada como repressiva, como das próprias instituições religiosas, desconstruindo os seus res-pectivos sistemas simbólicos? E ainda: se esta espiritualidade, cujo lugar é em meio à resistência das mulheres, apresenta características de libertação. Ou se, por meio disso, cria-se apenas um sistema paralelo que através da não-confronta-ção com a prática religiosa e/ou eclesial das mulheres fora do movimento social, não leva em consideração que justamente a religião foi e continua sendo, na vida das mulheres, um elemento central de legitimação da sua opressão.

Por isso, ofereço a seguir alguns impulsos para uma leitura teológica feminista e liberta-dora da mística do Movimento das Mulheres camponesas; também serão formu-lados alguns desafios e tarefas para a Teologia Feminista da Libertação.

PERSPECTIVAS E DESAFIOS TEOLÓGICO-FEMINISTAS

Embora a mística possa ser entendida como uma forma de desenvolvimento independen-te e autodeindependen-terminado da espiritualidade, ela é parindependen-te de um processo inindependen-tegral de geração de identidade dentro de um projeto de libertação das mulheres, o qual abarca todas as dimensões da existência humana, no qual as mulheres fazem a experiência de serem sujeitas capazes de ação. Na celebração de uma mística, os assuntos e preocupações das mulheres são tematizados e abre-se, com isso, a possibilidade de se desenvolver uma identidade espiritual própria e autodefi-nida, tomando-se uma distância crítica em relação à espiritualidade definida e monopolizada masculinamente nas instituições religiosas. A crítica implícita às instituições religiosas inclui também a Teologia da Libertação, pois mesmo nela não são consideradas, suficientemente, experiências específicas das mulheres. Embora ela tenha desenvolvido, através da sua proximidade para com o povo, uma espiritualidade enraizada na vida das pessoas, ela continuou operando, pos-teriormente, com categorias religiosas patriarcais, sem confrontar-se com expe-riências específicas das mulheres pobres.

A partir da vida, das experiências cotidianas concretas das mulheres e através de sua prática política, surgem novas espiritualidades. Nelas, há espaço para a sua experiência pessoal com Deus, através de suas formas de expressão, de suas tradições, cul-turas e condições políticas. No caso do movimento de mulheres camponesas, a

mística pode ser considerada um exemplo de como essa descoberta e

apropria-ção da espiritualidade poderia ser. A solidariedade entre as mulheres e as espe-ranças que elas partilham entre si demonstram, como tradições cristãs e eclesiais

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tem dado e continuam dando o impulso para a organização a partir de baixo e continuam em uma prática político-espiritual. Tendo-se presente o que se apre-sentou anteriormente, a espiritualidade encontra o seu lugar essencialmente nas lutas sociais, no protesto e na resistência das mulheres. Por isso, a mística pra-ticada no MMC foi descrita também como espiritualidade da luta. Ela não é, no entanto, uma espiritualidade que apenas impele à participação nas lutas sociais, mas é, ao mesmo tempo, também uma espiritualidade de esperança e ressurrei-ção. No levante das mulheres, isto é, na sua insurreição contra as injustiças exis-tentes, na solidariedade recíproca, nos protestos coletivos, na busca de formas de implementação de alternativas como, por exemplo, formas de trabalho coletivo e formas de economia, tornam-se claramente visíveis esperanças e experiências de ressurreição. Apesar de uma realidade aparentemente dura e sem perspectivas, não se perde a esperança em mudanças. A mística das mulheres camponesas não é, portanto, apenas lembrança perigosa, mas contém também um elemento profé-tico. Na esperança de possíveis mudanças, não é feita, simplesmente, uma crítica às injustiças sociais, mas se remete a alternativas concretas e utopias. A partir dessa esperança, desenvolve-se uma prática solidária, para fazer frente às rela-ções dominadoras injustas. À medida que experiências oprimidas ou esquecidas de resistência e libertação de mulheres tornam-se visíveis, cria-se um espaço não apenas para laços solidários com as mulheres do passado, mas este espaço oferece também a possibilidade de formar associações entre mulheres de dife-rentes grupos e movimentos que lutam por uma sociedade justa (em relação aos gêneros), e torna-os/as capazes de se expressar. Surge, desta forma, um “novo ecumenismo real” (MOREIRA, 2011, p. 26), formado por alianças entre pessoas e grupos que se vão reunindo atraídos pela meta sonhadora de uma sociedade mais justa.

Nestas novas formas de comunhão ecumênica, que ultrapassam os limites eclesiais e confessionais, a Igreja continua sendo vivida de maneira nova em múltiplas formas. Frente ao fato de que as instituições eclesiais atuais não oferecem mais espaços para processos de libertação política, os processos de gênese eclesial encontram-se, antes, para além ou mesmo fora das instituições eclesiais existen-tes, isto é, lá onde as pessoas lutam pela libertação da opressão e desenvolvem práticas políticas concretas para a justiça. No entanto, essa retirada dos espaços eclesiais lança a pergunta sobre a transmissão da boa nova cristã de libertação. Embora a retirada das instituições patriarcais abra possibilidades de se criarem novos espaços de autodeterminação, não se pode negar que isso tudo esteja, ao mesmo tempo, ligado ao perigo da perda dessas tradições. Por isso, mesmo que surjam formas múltiplas de espiritualidade com seus respectivos modos de expressão, a ligação às origens ou a referência às tradições bíblicas e cristãs li-bertadoras fica, como foi demonstrado, bem de fora. Similarmente, não foi ainda

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suficientemente trabalhada a problematização e reflexão sobre as mudanças no campo religioso e as influências que estas exerceram sobre os movimentos so-ciais. No confronto com essa relação, essa ambivalência é posta a descoberto. Assim, por um lado, a confluência de diferentes tradições culturais e religiosas levou, no movimento, a uma “deseclesialização” e desprendimento das origens cristãs do movimento. Por outro lado, no entanto, as igrejas continuam sendo, para muitas mulheres, lugares de engajamento e participação.

Diante dessa problemática e das ambivalências e contradições a ela vinculadas, cabe à Teologia Feminista da Libertação a tarefa de levantar a questão se e onde ainda são relevantes e continuam sendo transmitidas as tradições libertadoras da Bí-blia, quando espiritualidades que renunciam a elementos explícitos das tradições cristãs e dos textos bíblicos surgirem.

O confronto com o significado da mística, no contexto dos movimentos sociais é, por isso, imprescindível, uma vez que, conforme a sua própria reivindicação, a mística é uma dimensão fundamental da vida e essencial para o movimento. Dentro do pro-jeto emancipatório e libertador das mulheres, esse confronto crítico com todas as esferas que perpassam a vida das mulheres, incluindo a religiosa, é indispensável, pois esta assume uma função central tanto na formação de ideologias, como na prática política. Assim, são justamente essas ambivalências ou contradições acima demonstradas que põem a teologia libertadora frente a novos desafios e tarefas. Isso significa concretamente perguntar se as práticas religiosas e a ligação existen-tes entre as mulheres podem ser utilizadas para desenvolver uma espiritualidade vinculativa, de resistência e libertadora em conexão com as tradições libertadoras cristãs através do acompanhamento pastoral, teológico e formador da consciência. Isso poderia consistir em descobrir, de maneira nova, tradições cristãs libertadoras como,

por exemplo, histórias bíblicas, apropriando-se delas a partir das próprias expe-riências, continuar trabalhando na consciência já existente e, através disso, ca-pacitar as mulheres para uma (auto)libertação. De uma tal atitude, pode também surgir uma espiritualidade radical que se orienta, como procura de Deus em co-munidade, para a opção pelos pobres e para a sua libertação. Uma tal espiritua-lidade radical, que está ligada à sua herança cristã libertadora, poderia também estabelecer reflexões críticas em relação às ideologias.

Ao invés de transferir a religiosidade e os vínculos eclesiais para a esfera privada de cada indivíduo, e considerá-los irrelevantes para o trabalho político, seria necessário um confronto crítico tanto em relação à própria história de separação como em relação às mudanças no campo religioso. Crítico não significa apenas ver a Igreja Católica como uma instituição opressora e inimiga das mulheres, mas é indispen-sável que se faça também um confronto crítico com as sempre mais fortes corren-tes evangélicas no que diz respeito às suas tendências ao individualismo e des-politização e à sua capacidade de adaptação ao projeto neoliberal. Desafio para

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uma Teologia Feminista da Libertação seria, neste sentido, refletir os elementos religiosos em seu potencial para o desenvolvimento de uma espiritualidade de resistência. Demanda-se uma Teologia Feminista da Libertação que retome as raízes cristãs do movimento, apoiando e acompanhando, tanto pedagógica como pastoralmente, os processos de libertação das mulheres no campo. A Teologia Feminista da Libertação encontra-se diante de um duplo desafio e tarefa: como parte dos movimentos feministas, ela ocupa-se com a superação de estruturas de dominação injusta, especialmente a partir da perspectiva das mulheres. Mas, além disso, e estreitamente vinculado a isso, trata-se também da mudança das relações objetivas, isto é, das estruturas sociais, políticas e econômicas. É uma questão de tornar alternativas viáveis, colocar supostas construções de identidade “natural” e relações sociais em questão, criticando-as e colaborando em estratégias concretas, em caminhos para mudanças e para a construção de um outro mundo possível. RESISTANCE AND LIBERATION COMMUNITIES – THE INFLUENCE OF (FEMINIST) LIBERATION THEOLOGY ON THE PEASANT

WOMEN´S MOVEMENT

Abstract: this articleis the result ofa doctoral thesisin theologyon the influenceof

Libera-tion Theology, alsothefeminist, to formthe Movementof Peasant Womenin Brazil. From anearly stageclosely linkedto the Churches, this women’s movementwalked to greater autonomytoward them, including creatingtheir own forms ofspiritual expression. If there was on the one hand a certainindividualism anddepolitici-sationof beliefs, on the other handthe influence of (feminist) Liberation The-ologyremainsstrong inperforman ceandmystique of the Movement. The current challengetofeminist theologyis to supportthe liberation process ofwomenin rural areas, both in private as in terms ofsocio-economic change, without losingthe Christian originsof the movement.

Keywords: Feminist Theology. Liberation Theology. Womens movement. MST.

Notas

1 Sobre a Marcha das Margaridas, cf. <http://marchamargaridas.contag.org.br>. Acesso em:

24 nov. 2007.

2 Federação dos Trabalhadores na Agricultura: sindicato rural organizado estadualmente. 3 Sindicato de Trabalhadores Rurais: designação para sindicatos rurais tanto locais como regionais. 4 Cf. <http://www.landaction.org/display.php?article=192>. Acesso em: 27 nov. 2007.

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