A piscicultura brasileira teve uma primeira fase áurea no Nordeste bra-sileiro, quando Rodolfo von Ihering desenvolveu a técnica de “hipofisa-ção”: uso de extrato dos hormônios da hipófise para a indução da maturação final de peixes de pirace-ma. Até então, essas espécies, mes-mo que desenvolvessem suas gôna-das (ovários e testículos) em cativei-ro, não chegavam a desovar. Naque-la época, com o objetivo de suprir as necessidades de proteína animal da população da região, o Depar tamen-to Nacional de Obras Contra a Seca (Dnocs) incentivou o grande avanço no conhecimento sobre a biologia e
Peixamento: benefícios e controvérsias
de uma técnica de manejo
Carlos Bernardo Mascarenhas Alves Biólogo, Mestre em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre,
Consultor na área de ictiofauna; Coordenador do Subprojeto S.O.S. Rio das Velhas (Projeto Manuelzão - UFMG), Biólogo do Nuvelhas (Núcleo Transdisciplinar e Transinstitucional de
Revitalização da Bacia do Rio das Velhas). curimata@netuno.lcc.ufmg.br
voamento está diretamente ligada aos objetivos iniciais traçados.
3 - Outro aspecto a ser avaliado são os impactos decorrentes do pró-prio programa. É importante avaliar se a soltura de alevinos em determina-do corpo d´água não irá agravar im-pactos ecológicos ligados à dinâmi-ca da comunidade ictiofaunístidinâmi-ca daquele ecossistema. Um dos impac-tos mais comuns é a depleção gené-tica de determinada população de peixes devido ao cruzamento com alevinos de menor variabilidade ge-nética provenientes de estações de piscicultura. Devem ser realizadas avaliações da diversidade genética dos peixes nativos no ambiente de realização do repovoamento e a de-terminação do programa de manejo genético específico para cada espé-cie e bacia hidrográfica em que são realizadas as solturas.
Referências bibliográficas
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4 – Por fim, é impor tante se ter em mente que apenas um programa de repovoamento não é suficiente para a conser vação da ictiofauna. A con-ser vação e restauração de qualquer habitat crítico, o plantio e a conser-vação de mata ciliares ao longo de rios e reser vatórios, a construção de sistemas de transposição de peixes onde forem necessários, o controle do lançamento de poluentes e maté-ria orgânica na bacia hidrográfica e a realização de programas de educa-ção ambiental e gerenciamento da pesca na região são fundamentais para o sucesso do programa.
Neste contexto, percebemos que o foco de gerenciamento pesqueiro deve ser na pesquisa, com geração e aplicação de conhecimentos em programas cada vez mais eficientes. Somente com esforços conjuntos de empresas, universidades, órgãos
fiscalizadores e da sociedade pode-remos garantir programas de repovoa-mento e conser vação ictiofaunísticas eficientes e geradores de ganhos ambientais reais.
O
pinião debate
Vista geral de uma estação de piscicultura
a reprodução em cativeiro de várias espécies de peixes.
Novo impulso a essa atividade foi dado em 1967, com a promulgação do Decreto-Lei 221/67, regulamentado
pela Portaria 0046/71 da extinta Supe-rintendência de Desenvolvimento da Pesca (Sudepe), posteriormente revoga-da e atualizarevoga-da pela Portaria 001/77. Por meio dela, ficava facultada a
insta-O
pinião debate
lação de estações de piscicultura junto a usinas hidrelétricas como compensa-ção aos impactos causados pelo blo-queio de rotas migratórias de espécies de piracema. Furnas, Cemig e Codevasf construíram estações nas usinas de Furnas, Volta Grande e Três Marias, res-pectivamente. Nesta fase, foi desenvol-vida grande parte das tecnologias para a propagação de espécies migradoras na região Sudeste do Brasil, em espe-cial dos gêneros Salminus (dourados),
Pseudoplatystoma (surubim, pintado e
cachara), Prochilodus (curimatás),
Leporinus (piaus), Brycon (matrinchã,
piracanjuba, pirapitinga) e Piaractus (pacu-caranha).
Atualmente, em uma terceira fase, a atividade de piscicultura ex-perimenta novo estímulo, em função da crescente demanda por proteína animal com baixos teores de gordu-ra, do fornecimento para pesque-e-pague e da necessidade de
produ-ção em escala para abastecimento dos mercados interno e externo. Mas alguns equívocos continuam acontecendo.
Iniciativas recentes têm consoli-dado a piscicultura em Minas Gerais. Uma delas é o Programa Estadual de Incentivo à Piscicultura, de 2004, que promove a proteção, a pesqui-sa e o desenvolvimento da ictio-fauna das bacias hidrográficas, em especial do surubim, visando ao repovoamento do rio São Francisco. Outra ação é o Programa de Ges-tão Tecnológica de Recursos Hí-dricos, para a implantação de par-ques aqüícolas nos lagos das usi-nas hidrelétricas de Furusi-nas e Três Marias, e que está sendo executa-do pela Secretaria de Estaexecuta-do de Ci-ência e Tecnologia e Ensino Superi-or (Sectes) de Minas Gerais e pela Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República.
Nas duas primeiras fases, porém, alguns erros foram cometidos, como a introdução de espécies em bacias hidrográficas das quais não eram ori-ginárias - as chamadas “espécies exóticas”. Os impactos já são bem conhecidos e incluem a extinção lo-cal de peixes nativos.
Atualmente, apesar do maior co-nhecimento sobre os danos causados sobre a fauna nativa, do rigor da le-gislação e dos aparatos de fiscaliza-ção, as espécies exóticas continuam sendo propagadas em corpos d’água naturais (rios e lagos) ou artificiais (re-servatórios e açudes). Grande parte desses peixes consegue se estabe-lecer, ou seja, manter populações vi-áveis nos novos ambientes, o que implica em uso dos recursos antes utilizados somente pelas espécies nativas. Entende-se por “recurso” não só o alimento, mas também os sítios de desova, reprodução e
to, locais de refúgio contra predação, áreas utilizadas como berçários, etc.
Outros fatores de impacto sobre as espécies nativas são o aumento da competição por recurso alimentar co-mum e a própria predação, quando a introduzida é piscívora - alimenta-se de outros peixes. Como os recursos são limitados (finitos) nos ambientes, sem-pre haverá uma estabilização das po-pulações em níveis diferentes anteri-ormente, com grande chance de pre-juízo para as espécies nativas.
Erros e conseqüências Em Minas Gerais, existem registros de 63 espécies introduzidas, a maio-ria estabelecida. Esse número colo-ca o estado entre as regiões do mun-do mais infestadas por espécies exó-ticas, sejam elas de outros países ou continentes, ou mesmo das demais bacias brasileiras. O agravante é que o assunto não tem recebido a devida atenção, já que se consegue comprar alevinos de peixes de produtores es-palhados pelo Brasil e entregá-los em qualquer lugar, sem que haja fiscali-zação. A disseminação recente de um híbrido de pintado e cachara é o me-lhor exemplo desta situação: alevinos comprados no Centro-oeste do Brasil já foram detectados nas bacias dos rios Paraíba do Sul, Doce, Jequi-tinhonha e São Francisco.
Escapes acidentais de criatórios par ticulares, de açudes e lagos de fazendas também são comuns. No final de 1996 e início de 1997, uma grande cheia no Sudeste fez com que os rios ficassem excessivamen-te acima de seus níveis naturais. O rio Paraopeba, por exemplo, na pon-te que liga a BR-040 à cidade de Pompéu, estava 14 metros acima do nível. Em trabalhos de campo poste-riores, foi verificado o primeiro regis-tro oficial do bagre-africano Clarias
gariepinus em três das maiores
baci-as hidrográficbaci-as do estado: São Fran-cisco, Doce e Paraíba do Sul.
Outro exemplo que merece desta-que é a maciça invasão de espécies de peixes ornamentais na região de Muriaé (MG). Banhada por rios
per-tencentes à bacia do Paraíba do Sul, a área é impor tante pólo de pro-dução para aquariofilia. Mas a total falta de cuidado com a segurança dos criatórios permite registrar es-pécies de vários continentes e ba-cias brasileiras nos cursos d’água naturais. Por exemplo, até 2005, na região do rio Glória, afluente do rio Muriaé, foram identificadas 42 es-pécies exóticas contra 39 nativas.
Além desses impactos, há tam-bém a questão da sanidade dos pei-xes trazidos de outros lugares ou de estações de piscicultura. As possibi-lidades de introdução de novos pa-rasitas e disseminação de doenças também são reais: junto com a car-pa, por exemplo, veio o parasita
Lernaea cyprinacea, que já infestou
espécies nativas. Recentemente, na revista Nature, um ar tigo aler tou so-bre a introdução de parasitas - pro-venientes de estações de piscicultu-ra - que estão colocando em risco de extinção espécies de salmões selva-gens na natureza.
Sobre as espécies nativas produ-zidas em cativeiro, a preocupação é se os indivíduos utilizados em peixa-mentos - nos rios onde populações selvagens ainda existem - estão co-laborando ou não para a manuten-ção da variabilidade e qualidade ge-nética. Isso porque, na natureza, os mais aptos são selecionados, mas no tanque de piscicultura, em que a se-leção é menos rigorosa, exemplares que eventualmente não vingariam nos rios podem sobreviver. Assim, a
O
pinião debate
soltura de milhares de alevinos pro-duzidos em cativeiro pode afetar a integridade genética das populações silvestres.
Reflexões sobre o futuro Todas essas dúvidas e ressalvas já poderiam ter sido solucionadas se hou-vesse o monitoramento da eficiência dos peixamentos realizados. Porém, a regra é produzir alevinos e liberar no ambiente. Os aspectos genéticos são sistematicamente negligenciados e evitam-se apenas os endocr uza-mentos. A própria formação de plantéis de reprodutores não é rigorosa e é comum a busca de matrizes em áreas distantes dos futuros locais de soltu-ra. Não há respostas para perguntas simples como: os alevinos atingiram a fase adulta? Se tiverem alcançado a maturidade sexual, chegaram a se re-produzir? O peixamento foi positivo no desembarque pesqueiro? Houve refle-xos sociais na qualidade de vida da população local?
Diante das incer tezas, será que a utilização dos peixamentos como ins-trumento de educação ambiental é uma atividade adequada? Digo isto porque vemos com freqüência a libe-ração de alevinos por alunos de es-colas próximas às áreas de soltura. Estamos ensinando a essas crian-ças, por tanto, que a solução para a falta de peixe nos rios é a soltura de alevinos. Quando crescerem, esses cidadãos poderão manter a prática achando que estão fazendo o bem para os rios, mas, na verdade, esta-rão trazendo novas espécies exóti-cas, parasitas, doenças ou alevinos de má qualidade genética. Ao invés de ajudar, por tanto, estarão prejudi-cando ainda mais as populações sil-vestres remanescentes.
Um ponto de reflexão é: se a quan-tidade de peixes nos nossos rios vem diminuindo ao longo do tempo, a solu-ção é soltar mais peixes ou minimizar os fatores que causaram esse declí-nio? Rios ricos em peixes no passado hoje recebem esgotos industriais e domésticos não tratados; agrotóxicos e fertilizantes da agricultura; têm suas
Alevinos comprados
no Centro-Oeste do
Brasil já foram
detectados nas bacias
dos rios Paraíba do
Sul, Doce,
Jequitinhonha e São
Francisco
Referências bibliográficas
Agostinho, A.A. & Júlio Jr., H.F. 1996. Ameaça ecológica: peixes de outras águas. Ciência Hoje, 21(124):36-44. Alves, C.B.M., Vono, V. & Vieira, F. 1999. Presence of the walking catfish
Clarias gariepinus (Burchell)
(Silurifor-mes, Clariidae) in Minas Gerais state hydrographic basins, Brazil. Revista Bra-sileira de Zoologia 16: 259-263. Alves, C.B.M., Vieira, F. Magalhães, A.L.B. & Brito, M.F.G. 2007. Impacts of non-native fish species in Minas Ge-rais, Brazil: present situation and prospects. In: Theresa M. Ber t. (Org.). Ecological and Genetic Implications of Aquaculture Activities. Dordrecht, The Netherlands: Springer, p. 291-314. Brasil, 1967. Decreto-Lei nº. 221, de 28 de fevereiro de 1967 (Lei da Pes-ca), regulamentado pela Por taria SUDEPE Nº. 001/77, que dispõe sobre a conser vação da ictiofauna em reser-vatórios, impondo às empresas hidrelé-tricas a instalação de pisciculturas, e às entidades possuidoras de barragens a executar o reflorestamento ciliar com espécies vegetais indicadas à conser-vação da fauna.
Minas Gerais, 2004. Decreto 43854: Altera o decreto Nº 43.713, de 14 de Janeiro de 2004 que regulamenta a lei nº 14.181, de 17 de Janeiro de 2002, que dispõe sobre a política de proteção à fauna e à flora aquática e de desen-volvimento da pesca da aqüicultura no estado e dá outras providências. Rosenberg, A.A. 2008. The price of lice. Nature, 451:23-24.
Vieira, F. & Pompeu, P.S. 2001. Peixamentos: uma ferramenta para con-ser vação da ictiofauna nativa? Ciência Hoje, 30(175):28-33.
matas ciliares eliminadas ou reduzidas a pequenas faixas de ár vores; são bloqueados por barragens; recebem rejeitos de minerações; são infesta-dos por espécies exóticas, etc. Nes-sas condições, obviamente, é impos-sível que os rios tenham a produtivi-dade e diversiprodutivi-dade registradas no passado.
Em algumas situações, a recupe-ração pode se dar naturalmente, sem a inter venção humana, como no rio das Velhas. A possibilidade de recu-peração natural (sem a necessidade de peixamentos) é plausível porque o rio ainda tem conectividade entre áreas vitais para as populações, que ainda não perderam espécies. É o que se espera no rio das Velhas que, apesar de for temente poluído, não conta com barragens no seu leito principal. Neste caso, ele está natu-ralmente ligado ao rio São Francisco e aos seus afluentes, que se encon-tram em melhores condições ambien-tais, nos quais a maioria das espéci-es espéci-está prespéci-eser vada. Nos afluentespéci-es, foram registrados 75% de todas as espécies localizadas para esta sub-bacia do São Francisco.
Por tudo isso, considero a propa-gação ar tificial de espécies de pei-xes, principalmente as migradoras (as mais afetadas pelas barragens e im-por tantes na pesca), mais uma téc-nica de manejo e não uma solução em si, podendo funcionar como uma ferramenta complementar aos esfor-ços de conser vação da ictiofauna. A sua utilização deve vir acompanha-da de outras ações que propiciem, em conjunto, uma maior
capacidade-supor te do ambiente, sempre consi-derando que a condição não é mais natural. Se bem utilizada, a técnica pode ajudar a manutenção de popu-lações prejudicadas pelas atividades antrópicas. Tudo isso deve ser inexoravelmente monitorado para medir se houve o efeito desejado.
A simples soltura de peixes nos rios e reser vatórios não implica em recuperar populações em declínio. O domínio das técnicas de propagação de várias espécies pode ser fator positivo na manutenção da diversida-de. Há locais onde espécies utiliza-das em peixamentos ocorrem em baixas densidades ou mesmo não são registradas - é o caso da ma-trinchã no rio Paraopeba. A espécie já foi utilizada em programas de peixamentos, mas a péssima condi-ção da água a impede de se resta-belecer. Enfim, o simples uso de peixamentos não garante que as es-pécies se mantenham ao longo do tempo nos nossos rios.
Por outro lado, em ambientes onde houve a extinção local de peixes, caso outras inter venções não tornem possível a manutenção da população registrada no passado, a propagação em cativeiro e a reintrodução podem ser usadas. Temos ainda as espéci-es ameaçadas de extinção que po-dem ser produzidas para manutenção do estoque genético para futuras ações conser vacionistas. Em conjun-to com outras ações e com o devido cuidado, o peixamento pode ser uma ferramenta a mais para evitar o declínio da pesca e a extinção de espécies.
Tucunaré (Cichla sp.)