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Luiz Henrique de Araújo Dutra O CAMPO DA MENTE. Introdução Crítica à Filosofia da Mente

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Academic year: 2021

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Luiz Henrique de Araújo Dutra

O CAMPO

DA MENTE

Introdução Crítica

à Filosofia da Mente

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LUIZ HENRIQUE DE ARAÚJO DUTRA

O Campo da Mente

Introdução Crítica à Filosofia da Mente

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Da linguagem emerge o campo da mente. ...o campo da mente deve ser coextensivo com o campo do processo social da

expe-riência e comportamento e incluir todos os componentes deste, isto é, a matriz de relações sociais e interações entre os indi-víduos que é pressuposta por ele e da qual

ele surge ou ganha existência.

— George Mead, 1934.1

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© 2017, Luiz Henrique de Araújo Dutra. Todos os direitos reservados.

Este e-book é de uso exclusivo nas disciplinas de Filosofia da Mente do Curso de Graduação em Filosofia

e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade Federal de Santa Catarina,

e do Curso de Doutorado em Filosofia da Universidade de Brasília.

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SUMÁRIO

Apresentação 7

Parte I – O campo já explorado 11

1. Filosofia da mente, psicologia e ontologia

13

2. Dualismo e mentalismo

31

3. Erros e acertos categoriais

49

4. Intencionalidade

69

5. Materialismo, fisicalismo e funcionalismo

91

Parte II – O campo a ser descoberto 107

6. Superveniência e emergência

109

7. Determinação descendente e controle

129

8. Corporificacionismo, cognição distribuída

e mente estendida 149

9. Consciência e pessoalidade

167

10. O lugar da mente na natureza e na sociedade

187

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(8)

APRESENTAÇÃO

O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu corpo? E mais, o que pen-saria se lhe dissessem que ela não está em parte alguma, dife-rentemente de seu corpo, que está em uma porção do espaço-tempo? — Pensaria que quem afirma essas coisas está brin-cando.

Não estamos brincando e é isso mesmo que vamos ar-gumentar. A mente é uma estrutura complexa que tem como condições de base aquilo que está em nossas cabeças, em nos-sos corpos e, além disso, no ambiente em que vivemos. Cada um de nós participa de sua mente, mas não a possui no sentido em que talvez possa dizer que possui a própria cabeça e o pró-prio corpo. Cada um de nós participa de sua própria mente de uma forma mais íntima, é claro, do que os outros podem fazer e do que cada um de nós tem de proximidade com os elemen-tos ambientais, especialmente os sociais, que também são condições de base para possuirmos uma mente. Por isso po-demos dizer que a mente de cada um de nós não está em parte alguma, mas, ao mesmo tempo, está distribuída por diversos elementos e se realiza através deles, inclusive nosso corpo e as situações naturais e sociais das quais somos parte.

Se essas ideias ainda parecem estranhas, este livro deve então procurar torná-las compreensíveis, mesmo que, por fim, não sejam aceitas. Assim sendo, vamos procurar explicar o que existe no campo da mente, que é onde, metaforicamente fa-lando, podemos dizer que ela está, ou pelo menos por onde está distribuída, onde podemos encontrar sinais de sua exis-tência. Ela é uma dessas coisas que existem sem estarem em parte alguma, coisas das quais os filósofos falam.

Este livro não é um livro introdutório do tipo mais

co-mum. Ele não contém apresentações detalhadas — e, na

medi-da do que é apropriado, simplificamedi-das — das teorias e posições

dos autores importantes na filosofia da mente, embora faça referência a elas. Além disso, ele apresenta também diversas noções menos comuns às filosofias da mente mais conhecidas

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e mesmo mais prestigiadas dos dias de hoje e do passado. E, contudo, este livro pode ser utilizado como uma introdução crítica à filosofia da mente ou, mais especificamente, ao que preferimos chamar de psicologia filosófica. O que entendemos por essa expressão é explicado no capítulo 1, a seguir.

A concepção da mente humana que desejamos apresen-tar depende de diversas concepções conhecidas e das ideias de autores importantes não apenas no domínio específico da filo-sofia da mente, mas também de outras áreas, como a psicolo-gia científica, a antropolopsicolo-gia, a sociolopsicolo-gia, a neurofisiolopsicolo-gia e a biologia evolutiva. Ela se inscreve na tradição emergentista e, dizendo o mais resumidamente possível, encara a mente hu-mana como um sistema complexo, como uma das complexida-des emergentes no mundo, uma das complexidacomplexida-des estudadas pelas ciências da vida, do comportamento humano e da socie-dade.

Uma exposição mais detalhada, extensa e aprofundada dessa teoria foi apresentada em nosso livro Autômatos

geni-ais,2 em relação ao qual o presente livro é uma versão mais

concisa, mas não um resumo, pois leva em conta relações com a própria história da filosofia da mente e a forma de encami-nhamento das discussões que julgamos pertinentes sobre o mentalismo humano é diferente aqui. Algumas das questões principais da filosofia da mente são tratadas de maneira mais direta. E assim como a leitura de algumas partes daquele livro pode ajudar no aprofundamento de algumas questões tratadas aqui, por sua vez, a leitura deste livro funciona como introdu-ção àquele outro.

De certa forma, os capítulos da Parte I possuem um ca-ráter mais introdutório, de fato, uma vez que recapitulam uma boa porção das doutrinas importantes na filosofia da mente desde os pensadores modernos, a partir de René Descartes. Nesses capítulos encontram-se discussões críticas sobre o dua-lismo e o mentadua-lismo tradicionais e sobre as formas analíticas e cientificistas de crítica a essa maneira de encarar a mente humana que perdurou entre os séculos XVII e XIX. As

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pais oposições ao mentalismo dualista tradicional se consoli-daram em posições hoje muito conhecidas na filosofia, como os materialismos reducionista e eliminativista, o funcionalis-mo, a abordagem intencional e a abordagem da superveniên-cia, além do eliminativismo analítico de Gilbert Ryle, autor que representa um ponto de inflexão na psicologia filosófica.

Discutimos a noção de superveniência juntamente com aquela de emergência a partir do capítulo 6, que inicia a Parte II do livro e que não traz recapitulações de teorias da mente mais conhecidas, mas se dedica mais diretamente à exposição da concepção que desejamos defender. Há uma relação estrei-ta entre as duas noções — superveniência e emergência —, de maneira que muitas vezes elas são ou confundidas uma com a outra, ou deliberadamente identificadas. Contudo, a posição dos defensores da superveniência ainda é parte das concepções mais comuns que, embora tenham dado contribuições concei-tuais importantes às discussões sobre o mentalismo humano, a nosso ver, deixam de lado um aspecto essencial, que é o cará-ter complexo da mente humana.

Há hoje muitas teorias da complexidade e também não é o caso de fazermos uma revisão delas. O tipo de complexida-de específica a que nos referimos em relação ao mentalismo humano é aquele no qual a mente humana ganha lugar no mundo como parte de uma estruturação que surgiu evolutiva-mente e que envolve, de um lado, nosso aparato neurofisioló-gico e, de outro, as realidades sociais, unicamente dentro das quais encontramos o ser humano comum e sua mente em fun-cionamento. É para uma caracterização do mentalismo huma-no nesses termos que aquelas disciplinas acima mencionadas dão contribuições mais relevantes que a própria filosofia da mente padrão, digamos assim. E é para um entendimento ade-quado dessa complexidade que consideramos a posição emer-gentista adequada.

Nessa parte do livro, além da noção de emergência e da noção correlativa que vamos apresentar, de mútua dependên-cia entre o mental, o neurofisiológico e o sodependên-cial, vamos discutir algumas das teorias que também são alternativas atuais à filo-sofia da mente tradicional e cujas ideias convergem com aque-las que desejamos defender, especificamente, o

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corporificacio-nismo, a teoria da mente estendida e a teoria da cognição dis-tribuída. Em parte, nossa concepção do mentalismo humano se baseia também nessas posições, mas pretende ir além delas. Um dos aspectos nos quais pretendemos isso é aquele tratado no penúltimo capítulo, que recoloca a noção de consci-ência reflexiva nesse quadro da complexidade da mente hu-mana. O outro, de especial interesse e que será objeto do últi-mo capítulo, é o papel da linguagem verbal em virtude da co-nexão que ela permite entre o domínio psicológico — no

senti-do das capacidades mentais individuais — e o domínio social

— no sentido das realidades compartilhadas entre os seres humanos, especialmente as instituições.

Para aproveitarmos a metáfora de Mead, é nessa com-plexidade, que dá lugar tanto às capacidades mentais indivi-duais quanto àquelas que compartilhamos socialmente, que emerge o que esse autor denominou o campo da mente. A nos-so ver, essa é outra forma de expressão daquilo a que no livro

Autômatos geniais nos referimos como os espaços linguístico

e cultural. Para a forma de encarar o mentalismo humano que desejamos delinear neste livro, a linguagem é o elemento mais essencial, de fato, e como ela é (neste planeta pelo menos) ex-clusividade dos seres humanos, o tipo de mente que desejamos discutir também é uma exclusividade dos seres humanos. A linguagem e a sociedade na qual vivemos fazem toda a diferen-ça para o tipo de mente que possuímos ou, talvez melhor di-zendo, da qual participamos.

Em resumo, a concepção de mente aqui discutida é também naturalista e evolutiva, e não vê uma descontinuidade entre o mentalismo humano e aquele de outras espécies ani-mais. Mas há diferenças que não podem ser desconsideradas e que tornam nossos estados mentais e as realidades no mundo às quais eles estão conectados coisas decorrentes do fato ex-clusivamente humano de falarmos e de organizarmos a convi-vência entre nós da forma como o fazemos.

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PARTE I

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1

FILOSOFIA DA MENTE, PSICOLOGIA E ONTOLOGIA

A filosofia da mente se tornou nas últimas décadas uma das áreas filosóficas mais ativas e produtivas. Há hoje uma varie-dade bastante grande de abordagens, teorias e modelos volta-dos para o entendimento do mentalismo humano. Há também a interação com áreas científicas de ponta, como a ciência cog-nitiva, a neurofisiologia e as ciências da computação, sem falar nas disciplinas mais tradicionais, digamos, que também se ocupam do mentalismo humano, como a biologia evolutiva. O assunto já aparece no próprio livro de Darwin The Descent of

Man.3 O filósofo da mente se vê na necessidade de tomar em

consideração os resultados mais relevantes dessas áreas cientí-ficas antes de se aventurar em análises conceituais e discus-sões de caráter ontológico. Ele se vê na obrigação de dialogar com os profissionais dessas outras áreas e de ser levado a sério também por eles, e não só por seus pares filósofos. Além disso, esse filósofo da mente de hoje muitas vezes se surpreende mui-to próximo do psicólogo e esse último, por sua vez, assim como o filósofo, sente a necessidade de dialogar com os demais pro-fissionais que procuram entender o funcionamento do menta-lismo humano. Afinal, todos eles estão falando da mesma mente humana. Então é de se esperar que em algum momento eles descubram que o que um diz é relevante para aquilo que o outro pensa.

Isso dito assim, abstratamente, está muito bem, mas, de fato, em todas essas áreas mencionadas que se dedicam ao estudo da mente humana há certa dificuldade de ter clareza sobre sua própria identidade intelectual. Cada uma parece sempre tender a avançar sobre o domínio das outras e não apenas depender delas. Em termos bem simples e diretos,

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demos então perguntar: o que o filósofo da mente pode fazer que o psicólogo não poderia? E o que esses dois, que geralmen-te estão muito próximos em abordagens e no emprego de de-terminados conceitos, podem fazer que os demais pesquisado-res — biólogos, cientistas cognitivos, profissionais da informá-tica e neurofisiologistas, para ficarmos apenas com os já men-cionados — não poderiam fazer? Alguns autores — em geral,

filósofos, obviamente, mas não apenas eles — às vezes falam de

uma psicologia filosófica. Essa disciplina é a própria filosofia da mente? Ou ela é uma versão não empírica, mas mais con-ceitual, da própria psicologia?

A psicologia filosófica pode ser entendida como uma espécie de psicologia mais abstrata, aquela que se dedicaria ao estudo dos conceitos mais fundamentais empregados nos pro-gramas empíricos de pesquisa em psicologia.4 E a filosofia da

mente, da parte do entendimento mais comum dos filósofos, não seria apenas isso, mas também o exame direto de questões que têm mais relevância para a própria tradição filosófica des-de os pensadores gregos clássicos, como Platão e Aristóteles. E mesmo os pensadores da época moderna, que hoje são reco-nhecidos como pioneiros ou precursores da filosofia da mente contemporânea em alguma medida, como Descartes, Spinoza e Leibniz, abordam algumas questões que o filósofo de hoje res-ponde de forma diferente, mas que ainda considera relevantes, como a natureza do mental e a distinção entre corpo e mente. E essas são questões sobre o mentalismo humano que talvez interesse menos (ou mesmo muito menos) aos outros profissi-onais antes mencionados, inclusive o psicólogo.

Uma solução de conciliação para dar alguma significa-ção especial e aceitável à expressão “psicologia filosófica” pode ser aquela de entender a disciplina correspondente como um projeto de colaboração entre o filósofo e o psicólogo, resultan-do numa combinação equilibrada entre o esturesultan-do resultan-dos funda-mentos da psicologia empírica e a discussão de questões onto-lógicas que estão envolvidas no entendimento de quaisquer

4 Cf., por exemplo, MARTIN; SUGARMAN; SLANEY, 2015, e

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pesquisas sobre a mente humana e, em última análise, sobre qualquer tipo de mente, presumindo que há mentes diferentes da nossa, como as que seriam relativas às mais diversas espé-cies animais com um sistema nervoso suficientemente sofisti-cado. Esse seria o caso não apenas dos grandes primatas, mas provavelmente dos mamíferos em geral. Essa solução não é meramente terminológica porque parece contemplar o que muitos profissionais de renome no domínio da filosofia da mente fazem hoje. Essa psicologia filosófica, assim entendida, todavia, continua se vendo na necessidade de dialogar com as demais áreas que se dedicam ao estudo do mentalismo huma-no. E deverá dizer algo distinto do que se diz nessas áreas para conviver com elas.

Vamos ver um exemplo que ilustra bem isso. Se ne-garmos o dualismo tradicional, que é identificado como uma posição que remonta pelo menos a Descartes, e afirmarmos que não existe qualquer substância mental, ou qualquer prin-cípio mental que não seja de mesma natureza que o resto do mundo estudado pelas mais diversas ciências naturais, como poderíamos sustentar que, mesmo assim, falar de um estado mental não é a mesma coisa que falar de um estado neurofisio-lógico de nosso cérebro? Como veremos num dos próximos capítulos, há aqueles filósofos que afirmam exatamente que não há, por isso, qualquer diferença a não ser do vocabulário utilizado que possa distinguir um estado mental de um estado neurofisiológico. E esse filósofo se vê em consonância com muitos profissionais das outras áreas mencionadas. Sua posi-ção, contudo, não só não é pacífica, como nem mesmo é majo-ritária na tradição filosófica. Mesmo sustentando o que costu-mamos chamar de monismo de substância, alguns defendem que ainda podemos sustentar um dualismo de propriedades entre o físico e o mental, ou pelo menos um dualismo concei-tual.

Nesse último caso, alguns sustentam, por exemplo, que o vocabulário mentalista que utilizamos para descrever os es-tados mentais humanos não é redutível ao vocabulário fisica-lista que é utilizado na descrição de estados ou processos neu-rofisiológicos e físicos em geral. E isso não deixa de implicar que a mesma realidade no mundo possa ser vista de duas

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ma-neiras completamente distintas e mesmo irreconciliáveis. Co-mo isso seria cientificamente sustentável, justificável? A filoso-fia da mente ou a psicologia filosófica devem então mostrar ou que sim, ou que não. De seu ponto de vista, a questão não pode ficar sem resposta.

Com isso já avançamos para um dos temas polêmicos com os quais vamos lidar nos próximos capítulos. Voltemos então um instante aos temas mais gerais, de caráter talvez mais metodológico que envolvem as pesquisas e elaborações conceituais que são necessárias para entendermos o menta-lismo humano.

O conceito de mente já é para o filósofo um tema a ser debatido. O autor cuja obra em meados do século XX fez reno-var o interesse dos filósofos pelo mentalismo humano, Gilbert Ryle, deu a seu livro que surtiu esse efeito exatamente o título

de The Concept of Mind.5 Essa obra, além de dirigir uma

críti-ca contundente e bem fundamentada ao dualismo críti-cartesiano, discute um dos problemas que já preocupavam os próprios psicólogos, a saber, estudar a mente humana é estudar exata-mente o quê? Hoje, em virtude da divulgação dos estudos de caráter neurofisiológico, computacional e cognitivo, costuma-mos ter uma ideia inicial segundo a qual a mente humana é uma espécie de computador natural, um sistema sofisticado de processamento de informação e controle tanto das funções orgânicas quanto do comportamento. O próprio jargão das ciências da computação é muitas vezes empregado metafori-camente na descrição dos processos mentais. Não estamos sugerindo com esse comentário que o cérebro humano não possa ser encarado por meio desse tipo de comparação, mas a questão é: o que explica o cérebro automaticamente explica a mente?

Antes da influência da neurofisiologia e das ciências da computação sobre os filósofos da mente, o que eles pretendiam era entender a mente humana ou como aquilo que controla a ação, ou como a própria ação. Nesse último caso, tanto na psi-cologia quanto na filosofia da mente daquele tipo proposto por

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Ryle, a ação era encarada como o comportamento manifesto dos indivíduos humanos. Para essa abordagem, entender a mente humana é entender o que os seres humanos fazem e como fazem, não necessariamente por que o fazem, se essa busca pelos porquês for entendida como a referência a fatores não aparentes no próprio contexto em que o comportamento humano ocorre. Em suma, nesse caso, entender a mente é en-tender o comportamento humano de uma forma observacio-nal. Qualquer referência a fatores não observáveis, sob cujo controle estaria o comportamento humano, é encarada nesse caso como até mesmo um erro categorial, que é a postura ex-plicitamente adotada por Ryle. E muitos dos psicólogos analis-tas do comportamento na tradição behaviorista, tal como B. F.

Skinner, sustentam o mesmo, em última instância.6

Entendida dessa maneira, a filosofia da mente — ou

es-sa psicologia filosófica — está muito próxima da filosofia da ação. Nessa área, uma discussão comum é aquela a respeito dos critérios para identificarmos uma ação racional. Um mo-delo bastante divulgado do que é a ação racional de um indiví-duo humano é aquele que identifica agir racionalmente com agir em função de razões ou, mais especificamente, crenças, opiniões, conceitos, valores, objetivos preestabelecidos criteri-osamente, adaptação deliberada dos meios aos fins, e assim por diante. Em contraste com a ação racional, assim entendi-da, estariam aquelas coisas que as pessoas fazem em virtude de causas ou naturais, ou sociais, ou mesmo psíquicas. Esse seria o caso do indivíduo que não adapta os meios aos fins que supostamente pretende alcançar, ou é levado por impulsos de natureza psíquica, ou fisiológica, ou simplesmente para satis-fazer necessidades básicas das quais ele se vê obrigado a se ocupar em virtude de sua condição social. Outra possibilidade ainda é que o indivíduo aja por estar na dependência de algu-ma ideologia, ou política, ou religiosa etc. Então, se afastarmos todas essas formas de determinação e pudermos identificar uma ocasião em que o indivíduo humano age apenas motivado por razões, aí temos o exemplo claro de ação em oposição aos

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seus comportamentos determinados pelos fatores ou ambien-tais, externos, ou internos, neurofisiológicos e psíquicos. Em suma, a mente humana nesse caso é vista como algo muito próximo da noção tradicional de razão humana.

A diferença fundamental entre uma tal concepção e aquela defendida, por exemplo, por Descartes, é que a razão (ou a mente) não é identificada com uma substância não

mate-rial.7 Mas há aqui, de qualquer modo, um dualismo, que pode

ser entendido como um dualismo apenas de linguagem, con-ceitual, nesse sentido exato. A forma de linguagem que descre-ve a ação ou o comportamento racional é uma forma que em-prega conceitos que não são traduzíveis em conceitos que permitam descrever aqueles fatores sociais ou psíquicos que determinam as formas não racionais do comportamento. Mas a explicação para esse dualismo ainda pode ser, do ponto de vista ontológico, um pouco mais comprometedora, digamos. Pois ela pode ser aquela segundo a qual os seres humanos ad-quirem propriedades mentais, além de suas propriedades neu-rofisiológicas, por exemplo. Desse modo, ser racional não é uma capacidade neurofisiológica dos indivíduos humanos, mas mental, embora tenha de pressupor a existência de pro-priedades neurofisiológicas em nossos cérebros.

Esse tipo de dualismo, ao contrário daquele de caráter meramente linguístico, não tem como não envolver então uma explicação sobre como se relacionam as instâncias mental e neurofisiológica. Se as propriedades mentais — e, portanto,

nossos estados mentais que delas decorrem — não são de

cará-ter apenas nominal, mas substancial ou real, é preciso que te-nham algum tipo de relação com aquelas propriedades e esta-dos neurofisiológicos do cérebro. Essa é uma problemática que tem sido enfrentada pelos defensores da superveniência do mental sobre o físico (ou neurofisiológico) e pelos defensores

7 Essa concepção é defendida por Descartes particularmente em três

de suas obras, a saber: o Discurso do método, as Meditações e as

Paixões da alma; cf. DESCARTES, 1953, para todas elas, que

tam-bém se encontram em diversas edições e traduções em diversas lín-guas.

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da emergência do mental. Os dois grupos às vezes se confun-dem, mas às vezes se distinguem claramente. A polêmica entre eles, nesse caso, é se os estados ou processos mentais possuem algum poder de determinação sobre os estados ou processos no âmbito neurofisiológico. Em termos mais simples, a ques-tão é se o mental é de natureza ou caráter meramente epife-nomenal ou se, ao contrário, o mental traz consequências para a realidade ou a ordem do mundo.

Esse tipo de questão costuma ser levantado especifica-mente a respeito de nossos estados de consciência ou, mais especificamente, de consciência reflexiva, que seriam aqueles estados nossos nos quais não apenas nos damos conta de al-guma coisa, mas também nos damos conta de nos darmos con-ta daquilo. Se essa distinção entre uma forma básica de consci-ência e uma forma superior for feita, então é possível argu-mentar que a primeira é essencial para o comportamento hu-mano e animal, mas a segunda não. Isto é, de um ponto de vista naturalista, só fazemos certas coisas porque entre o estí-mulo ambiental e nossa resposta há um estado (ou processo) interno de consciência. Sem ele, a resposta apropriada ao es-tímulo não seria possível. Nesse caso, estamos falando não de atos reflexos, mas de ações ou comportamentos que requerem certa discriminação. Um organismo (animal ou humano) pode retirar seu membro das proximidades de certos estímulos aversivos ou se aproximar de certos estímulos premiadores, por exemplo, mediante a ocorrência de um estado de consci-ência básica, como a dor ou o prazer. No caso humano, isso é na maior parte das vezes acompanhado de um estado de cons-ciência superior ou reflexiva. Ou seja, o indivíduo humano se dá conta de sentir dor ou prazer. Mas esse estado de consciên-cia superior não parece necessário para que haja a resposta apropriada da parte do organismo. Essa consciência reflexiva é que seria então meramente epifenomenal.

Quando questões desse tipo são tratadas pela filosofia da mente, ela se especializa numa espécie de filosofia da cons-ciência. Essa tem sido uma das subáreas mais produtivas e prestigiadas da filosofia da mente nas últimas décadas. Mas tem sido também aquela que mais tem se mostrado dependen-te das pesquisas na neurofisiologia. Quando essas pesquisas

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não são (muito) levadas em conta, surgem teorias relativamen-te bizarras sobre o mentalismo humano, como aquela que con-sidera a possibilidade dos chamados zumbis (zombies, em

in-glês).8 Esses seriam seres (certamente não humanos, devemos

dizer, se puderem existir, apesar das aparências) que poderiam fazer tudo exatamente como fazemos, mas que não teriam qualquer consciência reflexiva, que nunca se dariam conta de fazerem o que fazem. E, contudo, eles fariam tudo o que é pre-ciso fazer para que o mundo natural e social humano funcio-nasse adequadamente. É claro que não pode haver uma hipó-tese mais absurda sobre o mentalismo humano e mesmo sobre o mentalismo animal. Do ponto de vista evolutivo, trata-se de uma hipótese contrária a todos os princípios da biologia. Algo tão extraordinário como a consciência reflexiva não deve haver no mundo para não ter nenhuma serventia. Não é preciso ser um especialista em filosofia da mente para se dar conta disso. Há, todavia, filósofos muito prestigiados que tomam a sério uma hipótese como essa.

A consciência reflexiva deve ser estudada pela filosofia da mente tendo em conta sua funcionalidade central nos negó-cios humanos. Sem ela, toda a ordem social seria impossível. E a sociedade tem um papel decisivo não apenas no desenvolvi-mento da mente humana, mas, devemos dizer, em seu próprio surgimento tanto no plano ontogenético quanto no plano filo-genético. A consciência reflexiva não é um bônus inútil que a evolução nos legou. Ela pode não ser responsável por uma par-te de nosso comportamento, mas certamenpar-te é responsável por outra. As relações entre a mente e, mais especificamente, a consciência superior e a ordem social devem também ser obje-to de estudo do filósofo da mente. Mas essa é uma temática para a qual só agora, bem recentemente, o profissional dessa área tem despertado.

8 O assunto é discutido seriamente por diversos filósofos da

consci-ência da atualidade. Pode-se consultar, por exemplo, CHALMERS, 1996 e 2010, que é um dos filósofos representativos dessa especiali-dade.

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A situação não é diferente na psicologia, pelo menos na análise experimental do comportamento, para a qual, tradicio-nalmente, os processos conscientes não eram encarados como variáveis relevantes na explicação do comportamento. Por exemplo, para o behaviorismo radical de Skinner, apenas vari-áveis ambientais de caráter natural contam para o comporta-mento animal e humano. Por meio de sua noção de compor-tamento encoberto, Skinner reconhece que os seres humanos (mas talvez não os outros animais) são capazes de internalizar certos comportamentos ou, ao contrário, de antecipar episó-dios de ação. Mas esses episóepisó-dios de comportamento encober-to continuam sob o controle das mesmas variáveis ambientais. E essas estão relacionadas com necessidades básicas relativas à sobrevivência, como comida, abrigo e sexo. As possíveis vari-áveis de caráter social aparecem apenas como substitutos de variáveis naturais. No mundo humano, o dinheiro e o prestígio social, por exemplo, são fatores determinantes do comporta-mento, mas apenas porque eles podem ser trocados por itens básicos, como os acima citados.

Contudo, é claro que para muitas outras escolas de psi-cologia não é assim. Nossa natureza animal nos leva a valorizar tudo aquilo que é necessário para a sobrevivência e a reprodu-ção, mas a emergência da consciência superior e das realidades sociais que ela possibilita muda o cenário humano radicalmen-te. Passamos a ter novas necessidades e a viver em função de-las, necessidades que os seres sem consciência reflexiva real-mente não podem ter. É muito difícil reduzir noções como aquelas de amor próprio, orgulho, vergonha e mesmo do eu a noções meramente naturalistas ou fisicalistas. E devemos re-conhecer que essas são variáveis determinantes do comporta-mento humano tanto quanto aquelas de caráter natural ou mais básico.

Assim, a ontologia adequada para uma boa psicologia filosófica dos seres humanos deve incluir realidades sociais. Uma explicação do que somos e do que fazemos deve levar em conta variáveis ambientais, mas também variáveis sociais e psíquicas irredutíveis. Orgulho e vergonha, por exemplo, são noções cuja origem é claramente social. Mas amor próprio não, embora só possa surgir em determinadas condições

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soci-ais. O amor próprio está ligado à personalidade de um indiví-duo, e a personalidade de uma pessoa é também determinante de muito do que ela faz, para além de todas as determinações naturais e sociais que há sobre ela. Essa personalidade não saiu do nada e foi formada em condições sociais e neurofisio-lógicas específicas, mas ela é uma realidade mental ou psíquica cuja presença no mundo faz diferença não apenas para o pró-prio indivíduo, para o modo como ele encara as coisas, mas para os outros, já que sua ação traz consequências sociais.

Esses são aspectos do mentalismo humano levados em conta na psicologia, mas raramente na filosofia da mente. Mas eles são inevitáveis numa boa psicologia filosófica, naquela disciplina que pode tornar a filosofia da mente um domínio respeitável do ponto de vista dos outros profissionais que se dedicam ao estudo do mentalismo humano. Isso não quer di-zer que o filósofo da mente não traga para as discussões sobre o mentalismo humano noções importantes e, por que não di-zermos, essenciais mesmo para seu entendimento. De escopo mais amplo do que o conceito de racionalidade, que já menci-onamos, é aquele de intencionalidade.

Entre os filósofos que, no século XX, mais insistiram na noção de intencionalidade ou, para utilizarmos a forma de ex-pressão de um deles, os que mais insistiram na abordagem intencional aos fenômenos mentais estão Davidson, Searle e

Dennett.9 Segundo esse último, a abordagem ou postura

inten-cional é aquela que adotamos quando explicamos a ação com base em crenças, desejos, propósitos etc. do agente. A aborda-gem intencional, segundo Dennett, pode ser aplicada até mesmo no entendimento de estruturas não vivas às quais, es-tritamente falando, não atribuímos uma mente, como os com-putadores de grande porte, capazes de, por exemplo, jogar xadrez com um grande mestre (humano) e ganhar dele. Mas é claro que, nesse caso, essa atribuição de intencionalidade não

9 Cf. respectivamente DAVIDSON, 1980, SEARLE, 1983; 1992 e

1999, e DENNETT, 1981; 1987 e 1996. De Brentano, citado a seguir,

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deixa de ser um tanto artificial, digamos, uma espécie de

faz-de-conta explicativo.

Para Searle, ao contrário, a intencionalidade é uma propriedade da mente humana, propriedade essa que se em-presta à linguagem e, por meio dessa, da qual dependem as realidades sociais, se empresta também a essas últimas. Essa intencionalidade derivada da ação humana tem sua origem na intencionalidade primitiva da mente, que é uma questão bioló-gica, diz o autor. Para Davidson, por sua vez, a intencionalida-de é a noção a ser empregada no entendimento da ação huma-na, mas por meio da distinção entre duas formas de lingua-gem. Os estados mentais são descritos por meio de expressões intencionais primitivas e não redutíveis a expressões não in-tencionais, que são aquelas que utilizamos para descrever os eventos físicos.

Esses autores e outros adotam a noção de intencionali-dade sustentada por Franz Brentano, mas interpretando-a, como vimos, de diferentes maneiras. Para Brentano, a intenci-onalidade ou relaciintenci-onalidade é a marca do mental, é o fato de que um evento mental sempre faz referência a um objeto. As expressões de atitude proposicional, como “gostar de”, “saber que”, “ter a intenção de” etc., mostram claramente esse caráter essencialmente relacional dos fenômenos mentais. Essas ex-pressões são algumas que pertencem àquele vocabulário es-sencialmente intencional de que Davidson fala.

Para Brentano a intencionalidade é a característica ex-clusiva do mental; mas a nosso ver, não é assim. As realidades culturais são também caracteristicamente intencionais. Mas, mesmo assim, segundo Searle, trata-se de uma intencionalida-de intencionalida-derivada, emprestada da intencionalidaintencionalida-de primitiva do mental. Com isso também não estamos de acordo. Veremos nos próximos capítulos que, do ponto de vista emergentista, as realidades sociais são também primitivamente intencionais. Contudo, mesmo não sendo encarada como a marca exclusiva do mental, a intencionalidade é uma característica essencial do mentalismo humano (e animal). De qualquer forma, trata-se de um assunto que a filosofia da mente não pode deixar de discutir.

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Se o que desejamos é uma visão ampla e informativa da mente humana, na medida do possível, atualizada em relação às realizações científicas recentes e bem refletida quanto a seus conceitos e suas relações, então a filosofia da mente deve nos apresentar uma imagem do mentalismo humano que exiba pelo menos as características acima mencionadas, como: cons-ciência reflexiva, intencionalidade e racionalidade, além da relação dos eventos mentais com suas condições de base neu-rofisiológicas e ambientais, naturais e sociais. E nesse quadro não poderia faltar a linguagem ou, para sermos mais específi-cos, a linguagem verbal ou simbólica, tal como temos nas lín-guas naturais.

Tem sido um tema de grande controvérsia entre os filó-sofos a relação entre linguagem e pensamento. Definir a pri-meira é bem mais fácil do que o segundo. Num certo sentido

do verbo “pensar”, podemos dizer que muitas outras espécies

animais também pensam. Um cão ou um gato que hesitam entre um pote de comida e um de água, olhando ora para um, ora para outro, até que se dirige para um deles, podem ter seu comportamento interpretado como aquele de raciocinar e de-cidir, de pensar, portanto. Mas esses animais não falam, não possuem uma forma de linguagem simbólica como a nossa. Mesmo que eles pensem, diremos que eles não pensam

propo-sicionalmente, isto é, eles não pensam por meio de palavras e

orações. Se o pensamento é isso, então apenas os seres huma-nos pensam.

Todavia, para a filosofia da mente, a questão crucial não é essa, mas aquela que diz respeito à relação entre a lin-guagem verbal e a consciência reflexiva. As pesquisas em neu-rofisiologia e comportamento animal sugerem hoje que apenas os seres humanos possuem uma forma plenamente desenvol-vida de consciência superior ou reflexiva. Os grandes primatas, como chimpanzés e gorilas, por exemplo, parecem possuir apenas uma espécie rudimentar de consciência desse tipo. E a hipótese de diversos autores, inclusive neurofisiologistas,

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co-mo Gerald Edelman,10 é que a emergência da consciência

su-perior depende da posse da linguagem verbal. Mas, de fato, também se pode argumentar que, inversamente, a linguagem verbal depende da consciência reflexiva. Então, o mais prová-vel, se essas hipóteses são plausíveis, é que ambas linguagem e consciência superior tenham surgido em nossa espécie conjun-tamente e que elas sejam mutuamente dependentes uma da outra. Essa é a ideia de Terrence Deacon, por exemplo, que sustenta a tese da coevolução em sentido darwinista entre lin-guagem e mente e, de modo mais radical ainda, entre lingua-gem e cérebro.

De qualquer forma, uma teoria da mente humana deve tratar também da linguagem. A nosso ver, nem todo processo racional necessita da linguagem verbal, como certos processos de cognição distribuída que ultrapassam os limites do indiví-duo humano tomado isoladamente, permitindo falarmos então de uma mente estendida, uma mente que envolve além do su-jeito humano determinados dispositivos ambientais. Mas, mesmo assim, aqueles processos cognitivos racionais e inter-nos do sujeito humano requerem uma forma de linguagem simbólica. E, mais ainda, grande parte dos sistemas de cogni-ção distribuída que possuem interações entre indivíduos hu-manos como partes suas requerem também o uso da lingua-gem verbal.

Uma visão da mente humana dessa maneira, ao contrá-rio do isolamento em que era retratada pelo dualismo cartesi-ano e por outras formas do mentalismo tradicional, no qual podemos incluir também certas teorias cognitivas atuais, colo-ca a mente no seio da natureza e da sociedade humana. Trata-se de uma mente inTrata-separável de Trata-seu corpo, como defendem os autores ligados à postura corporificacionista. A nosso ver, tra-ta-se também de uma mente inseparável de sua sociedade. Assim, a psicologia filosófica adequada nos parece ser uma psicologia social, e não apenas uma psicologia naturalizada. A mente humana é parte da natureza e é parte também da

10 Cf. EDELMAN, 1990 e 2004, e sobre Terrence Deacon, autor a

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dade humana que, por sua vez, também é parte da natureza justamente por via do mentalismo humano.

As considerações que estivemos fazendo neste capítulo antecipam muitas das discussões que virão nos próximos, de forma mais pormenorizada e aprofundada. Nossa intenção é mais de despertar a curiosidade intelectual do leitor para os próximos capítulos. Ainda de caráter mais geral, há dois as-suntos que gostaríamos de comentar aqui. O primeiro é aquele da relação entre a mente e os critérios de pessoalidade (vamos traduzir assim o termo inglês “personhood”), que é algo com-pletamente diferente de personalidade. Essa última noção é eminentemente psicológica, enquanto que a noção de pessoa-lidade é ontológica. Ou seja, trata-se da questão sobre os crité-rios que utilizamos para decidir quando estamos diante de uma pessoa humana.

É claro que, em primeiro lugar, aqueles indivíduos que vamos considerar pessoas são os que pertencem à mesma es-pécie biológica que nós mesmos. Mas isso não é suficiente para resolver todos os casos. Para o dualismo cartesiano, a pessoa, propriamente falando, era sua mente, ainda que o ser humano em geral fosse visto por Descartes como a união substancial entre o corpo e a alma. Mas era o espírito, alma, mente ou ra-zão o que identificava cada indivíduo humano. Essa ideia ain-da está presente nos critérios atuais de pessoaliain-dade. Se um de nós perder completamente a memória, não reconhecendo mais seus familiares e amigos, não se lembrando de suas habilida-des, do conhecimento que adquiriu, esse indivíduo vai estar completamente inabilitado para o convívio social nas mesmas circunstâncias de antes. Em casos assim, que parcialmente ocorrem em decorrência de algumas doenças neurológicas, intuitivamente, costumamos dizer que ali não está mais a mesma pessoa. E mesmo em casos mais simples, que não en-volvem qualquer patologia, como naquele de uma pessoa que conhecemos mas que, depois de algum tempo, exibe formas de comportamento completamente diferentes daquelas com as quais a identificávamos, vamos também dizer que ela parece ser outra pessoa.

Há desse modo uma tendência para identificarmos aquilo que um indivíduo pensa e como ele age, que são

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atribu-tos mentais seus, com sua pessoa. E, portanto, a pessoa parece ser uma parte de sua mente. De fato, o conceito de mente é mais amplo, sobretudo se tomarmos o termo também no sen-tido em que os corporificacionistas e defensores da noção de mente estendida o fazem. Assim como não podemos identificar a mente apenas com as ideias ou representações internas do indivíduo, com suas memórias, portanto, no sentido geral, não podemos identificar a mente com sua personalidade, ou seu caráter, ou com suas formas de agir, com seus comportamen-tos etc. Nem, por outro lado, podemos identificar a mente com o cérebro, ou o sistema nervoso central, ou o sistema nervoso como um todo. E o mesmo vale para a noção de pessoa.

Assim, de fato, tanto a noção de pessoa quanto a noção de mente são mais abstratas, embora as duas estejam intima-mente relacionadas e, por sua vez, cada uma esteja também intimamente relacionada com aqueles demais aspectos que enumeramos acima. E, a rigor, devemos reconhecer que a no-ção de pessoa é mais abstrata do que aquela de mente, como veremos no penúltimo capítulo. Mas, por ora, para terminar este capítulo, vamos discutir esse ponto, isto é, o fato de que, aparentemente, ao lidarmos com as noções de pessoa e de mente, estamos lidando com realidades abstratas.

À primeira vista, talvez nada nos pareça a cada um de nós mais concreto do que nossa mente, isto é, concreto no sen-tido de ser uma realidade acessível e inegável. Ainda que acei-temos a noção freudiana de inconsciente, ou de subconsciente, que são noções que passaram para o vocabulário comum da psicologia, embora menos da filosofia da mente, pelo menos uma parte de nossa vida mental é acessível a cada um de nós e, logo, algo indubitável. Nem por isso é concreto no sentido ontológico mais geral desse termo. Personalidade também é uma noção abstrata, mas parece que, ao contrário, mente não seria. A pessoa, da qual faz parte a personalidade do indivíduo, parece poder ser tomada como algo abstrato, mas não a mente.

Abstrato em oposição a concreto, segundo a maneira em que esses termos são empregados em geral na ontologia, é aquilo que não pode ser localizado no espaço e no tempo, aqui-lo, portanto, que não é tangível, que não possui propriedades físicas. Os corpos materiais são o exemplo típico de coisas

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con-cretas, enquanto que as entidades matemáticas, como núme-ros e figuras geométricas, são os exemplos típicos de coisas abstratas. Uma coleção é algo abstrato. Há também termos coletivos, gramaticalmente falando, e são coletivos os termos para espécies naturais e para tipos de coisas fabricadas; esses são termos genéricos. Eles denotam entidades abstratas. Po-demos em alguns casos indicar os indivíduos concretos que fazem parte de uma coleção, como aquela dos filósofos da mente vivos hoje, mas a coleção é algo abstrato.

O problema da maneira na qual as coisas abstratas existem não é um problema fácil para a filosofia desde Platão. Os filósofos profissionais ainda se ocupam dele na ontologia ou, para utilizarmos o termo mais tradicional, na metafísica. Quando indicamos aquelas realidades que são de natureza

mental, como nossas representações internas, nossas ações,

emoções etc., estamos enumerando aquelas coisas ou estados nossos que agrupamos na coleção denominada mente. Assim, se rejeitarmos a noção metafísica tradicional segundo a qual a própria mente é uma substância diferente das coisas físicas, então não há como não reconhecermos que a mente é algo abstrato. A nosso ver, a mente encarada de forma não substan-cial é mais semelhante a um sistema, em vez de ser propria-mente uma coleção. Pois as coleções não possuem um arranjo ou estrutura interna; a mente sim. Desse modo, como vamos ainda discutir no último capítulo, assim como nosso próprio organismo é um tipo de sistema orgânico, formado de outros sistemas, nossa mente também é uma realidade sistemática nesse sentido.

Por isso podemos dizer, como fizemos acima, na Apre-sentação deste livro, que a mente é uma dessas coisas que não estão em parte alguma. Mas, mesmo assim, não é uma ficção; ela é real. E sabemos que ela é real porque sua presença no mundo faz alguma diferença na ordem das coisas. A mente humana tem poder de determinação sobre uma parte da reali-dade. Assim, ela é uma dentre outras realidades, embora,

dife-rentemente de muitas delas — as que consideramos concretas

—, a mente seja uma realidade abstrata. Nisso ela é semelhante a determinadas realidades sociais, como as instituições, que também são coisas reais, mas que, igualmente, estritamente

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falando, não estão em parte alguma. E, mesmo assim, as insti-tuições também são conhecidas por seus efeitos sobre outras partes da realidade.

*

Questões para revisão

1. De que maneira podemos caracterizar a filosofia da mente como psicologia filosófica, destacando suas rela-ções com a neurofisiologia e a psicologia científica?

2. Por que um monismo materialista de substância é

compatível com um dualismo de propriedades (ou con-ceitos)?

3. Por que, do ponto de vista evolutivo, a consciência

re-flexiva parece ser algo necessário para a ação e não um mero epifenômeno?

4. Por que, dentre outras propriedades da mente, a

inten-cionalidade parece ser uma das principais?

5. Qual é a relação entre a noção de mente humana e a noção de pessoa?

Leitura adicional recomendada

No sentido de compreender a mente humana no quadro geral dos acontecimentos naturais, é interessante a leitura do texto

de John Searle “Como nos encaixamos no universo: A mente

como fenômeno biológico”, capítulo 2 de seu livro Mente,

lin-guagem e sociedade (SEARLE, 2000).

Atividade complementar

Depois da leitura do texto de Searle, discuta a afirmação desse autor de que as questões sobre o mentalismo humano são, em última instância, questões de caráter biológico.

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2

DUALISMO E MENTALISMO

Os acontecimentos que presenciamos no mundo são relações entre objetos e esses, por sua vez, possuem propriedades que lhes permitem entrar nas relações que presenciamos entre eles. Assim, de um modo intuitivo, podemos dizer que um evento é feito de coisas em relação. Mas quando voltamos nos-sa atenção para uma desnos-sas coinos-sas e observamos algumas de suas propriedades, nos perguntamos também de que são feitas essas coisas. A resposta que a ciência da natureza nos dá tradi-cionalmente é que os corpos, por exemplo, que são aquelas coisas que primeiro chamam nossa atenção ao olharmos para a paisagem do mundo, são feitos de matéria. Mas a física con-temporânea, a microfísica, nos diz que os corpos macroscópi-cos que interagem com nossos sentidos são feitos de partículas microscópicas, e que essas últimas possuem propriedades muito diferentes daquelas que nos parecem ser as dos corpos. De que são feitas essas partículas? Essa é uma questão cujas respostas hoje no domínio da física são bastante controverti-das. Mas, voltando a falar dos corpos e entendendo por

maté-ria a aparência que as partículas cmaté-riam em nossos sentidos

quando se organizam de forma a constituir esses corpos, de qualquer forma, temos uma resposta para a pergunta: de que são feitos os corpos?

Para a pergunta “de que são feitas as mentes?” não

te-mos uma resposta disponível equivalente, nem respostas mais plausíveis dentre uma multiplicidade delas hoje encontradas nas ciências que se ocupam do mentalismo humano, nem na filosofia da mente. A dificuldade é tal que não são incomuns abordagens que presumem que as mentes não são coisas no mesmo sentido em que os corpos são coisas; isto é, no caso das mentes, parece mais difícil encontrar uma coleção estável de características ou propriedades que permitiriam identificar qualquer uma delas. A principal dificuldade do ponto de vista

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ontológico é que as mentes não são diretamente observáveis, ao contrário dos corpos. Mesmo que digamos que as mentes são subestruturas neurofisiológicas dentro de nossas cabeças, elas não são observáveis, não da mesma forma que um corpo fora de nós é observável. Podemos observar os neurônios, por exemplo, e as redes neuronais que eles formam, e podemos ver que há atividade nessas redes ao mesmo tempo que há da par-te de um sujeito alguma atividade de consciência, por exemplo. Mas não há uma correlação direta entre determinado estado de consciência específico e a atividade neuronal em uma parte do cérebro. As observações provocadas por testes com o cére-bro humano não nos dão evidências claras desse tipo de corre-lação.11 Elas são suficientes apenas para reafirmarmos a

con-vicção da ciência contemporânea de que nossas mentes estão intimamente ligadas à atividade cerebral, mas nada mais que isso. Assim, mesmo que digamos que nossas mentes são feitas de redes neuronais, a resposta não é tão clara e convincente quanto dizermos que os corpos fora de nós são feitos de maté-ria, ou então de partículas. Pode ser que a neurofisiologia do futuro nos dê essas respostas convincentes, mas por ora temos de procurar outras maneiras de discutir a natureza da mente.

Mesmo para o dualismo tradicional — vamos presumir que ele remonte a Descartes naquelas suas obras já citadas no

capítulo anterior — essa correlação entre mente e cérebro era

pacífica.12 Nem por isso esse autor, assim como outros de sua

época e muitos depois dele, acharam que seria possível identi-ficar a mente com o cérebro ou, de forma mais ampla, com o sistema nervoso central. A principal razão é a grande dispari-dade entre as propriedispari-dades da mente e as propriedispari-dades dos

11 É possível localizarmos mais ou menos em certas partes do sistema

nervoso central algumas funções mentais, mas não de maneira tão exata como gostaríamos. Em geral, foram lesões cerebrais acidentais que levaram a tais constatações e deram ocasião a pesquisas sistemá-ticas. Sobre isso, cf. o interessante livro de Antônio Damásio (1994; 2012).

12 Cf. as obras já citadas desse autor in DESCARTES, 1953, ou em

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corpos. Para Descartes, que possuía uma teoria física do mun-do bem elaborada, os corpos se caracterizam sobretumun-do pela extensão, isto é, por ocuparem uma porção do espaço e, com isso, por estarem sujeitos a processos mecânicos, como resis-tência, choques, movimento etc., enfim, todos aqueles fenô-menos estudados na ciência da mecânica. E eles possuem tam-bém determinadas características secundárias, como aquelas que apreendemos por meio de nossos sentidos, como cor, sa-bor, cheiro etc. Para Descartes, a essência dos corpos é a ex-tensão, enquanto que essas outras propriedades são aciden-tais. Um corpo pode perder todas elas, mas continuará sendo um corpo enquanto conservar a extensão. Por isso mesmo Descartes indica pela expressão “res extensa” (coisa extensa) a matéria. Essa é a natureza do mundo material.

Na cosmologia geral de Descartes há também dois ou-tros tipos de substância: a res divina e a res cogitans (a coisa pensante). Ao contrário da matéria, essas duas últimas não se localizam no espaço. A primeira dessas duas realidades não físicas é Deus, para Descartes, e não se localiza também no tempo. A segunda que ele identifica com a alma humana se localiza no tempo de algum modo, já que podemos observar sua duração, pelo menos enquanto ela estiver unida ao corpo. Como a própria expressão utilizada pelo autor sugere, a natu-reza da alma ou espírito humano é o pensamento. Mas esse, por sua vez, é também uma coisa, no sentido metafísico, ou seja, uma substância, algo que existe por si e que permanece enquanto tal, podendo ser aniquilada apenas por Deus, assim como é também o caso da matéria.

A união entre o corpo humano que, para Descartes, é uma máquina hidráulica assim como os corpos dos outros animais, e a alma humana é denominada por ele de união

substancial, que não é uma noção metafisicamente muito fácil

de entender, já que corpo e alma são duas substâncias distin-tas. Mas era assim que Descartes pensava. Os outros animais, que não possuem almas, são apenas máquinas hidráulicas, não possuindo as propriedades da coisa pensante, como razão e sentimento.

A interação entre o corpo e a alma nos seres humanos é algo bastante complicado, que Descartes procura explicar na

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obra As paixões da alma. De fato, o autor elabora uma compli-cada teoria fisiológica (ou, poderíamos dizer, neurofisiológica, antes mesmo que a noção de neurônio ou célula nervosa exis-tisse), introduzindo a noção de espíritos animais, que são cor-púsculos que circulam pelo organismo através dos nervos, permitindo a comunicação entre a periferia do corpo e o cére-bro. A glândula pineal, ou epífise neural, que se encontra abai-xo dos hemisférios cerebrais, foi identificada por Descartes como o lugar de comunicação entre o corpo e a alma, de onde partem os espíritos animais para levar informação para os membros e para onde voltam, trazendo informação à alma. Por mais bizarra que essa teoria de Descartes possa nos parecer hoje, ela permitiu, contudo, fazer descobertas importantes. Descartes foi o primeiro autor a descrever o mecanismo dos nossos reflexos.

Contudo, a grande dificuldade da teoria residia propri-amente em seus pressupostos metafísicos, isto é, no fato de que sendo corpo e alma participantes de duas substâncias dis-tintas, era muito difícil explicar sua interação, mesmo que por meio da teoria resumida acima. Pois os fenômenos físicos do corpo, para Descartes, são fundamentalmente fenômenos do movimento, provocados por choques entre os corpos. Mas a alma não possui qualquer propriedade que lhe permita ser afetada por esse tipo de acontecimento mecânico. Quando nos voltamos para a alma, para Descartes, o que observamos são ideias, pensamentos, sentimentos, coisas desse tipo que pare-cem exibir propriedades completamente distintas das proprie-dades primárias e secundárias dos corpos.

Apesar da dificuldade que a metafísica de Descartes cria para sua teoria da mente, não é sem razão que esse autor ocupa um lugar de destaque nas reflexões sobre o mentalismo humano até hoje. Pois, de uma forma descritiva, ele aborda os eventos mentais também com precisão, como a mesma obra citada acima, As paixões da alma, também demonstra. Embo-ra essa psicologia filosófica de Descartes também seja ultEmbo-ra- ultra-passada, tanto quanto sua fisiologia, ela não deixa de ser histo-ricamente um grande feito, um passo importante para abrir novos domínios de pesquisa.

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Hoje em dia, muito poucos autores ousam defender um dualismo de substância comparável àquele de Descartes, mas muitos defendem o chamado dualismo de propriedades, se-gundo o qual as propriedades ou características de nossas mentes são completamente outras e irredutíveis àquelas pro-priedades das coisas físicas. Essa postura que podemos deno-minar ainda de mentalismo enfrenta, por sua vez, uma dificul-dade teórica equivalente àquela que Descartes enfrentou em sua obra. Pois o dualismo de propriedades deve procurar mos-trar como um mundo cuja natureza básica é física ou material pode dar lugar a propriedades não físicas.

O mentalismo contemporâneo, nos termos acima indi-cados, no plano metafísico é uma forma de monismo, isto é, sustenta que tudo no mundo é feito de matéria e, por conse-guinte, daquilo de que a matéria é feita, tal como comentamos

no início deste capítulo. O termo “substância” é o mais

tradici-onal na metafísica, e por isso essa forma de monismo é deno-minada de monismo de substância, sendo associado então a

um dualismo de propriedades. O termo “estofo” em português

não tem a mesma significação de “stuff” em inglês, mas se aceitarmos a introdução de um anglicismo, podemos dizer que o referido monismo do mentalismo contemporâneo é um

mo-nismo de estofo. Isto é, tudo no mundo é feito do mesmo

esto-fo, mas nem tudo no mundo exibe as mesmas propriedades dos corpos. Isso conduz a problemas ontológicos também difí-ceis, alguns dos quais serão discutidos nos próximos capítulos. Na época de Descartes, sua postura dualista era certa-mente adotada pela maioria dos filósofos, mas não por todos eles. Inserindo-se na mesma tradição que remonta aos atomis-tas gregos e latinos, como Leucipo, Demócrito e Lucrécio, ha-via alguns autores que também sustentavam um monismo de estofo ou substância, entre eles Thomas Hobbes, que foi con-temporâneo e crítico de Descartes. Nos primeiros capítulos de sua obra mais conhecida, o Leviatã,13 Hobbes apresenta uma

13 Cf. HOBBES, 1994 [1651]. Assim como de outros autores

consa-grados na história da filosofia, as obras de Hobbes existem em diver-sas edições e traduções, inclusive em português, sendo que o mesmo

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teoria monista da mente humana, segundo a qual também os eventos mentais são fenômenos do movimento, mas do movi-mento que começa fora de nossos corpos e que neles penetra, movendo então as partes do sistema nervoso e, assim, ocasio-nando nossa atividade mental.

Além disso, mesmo autores mais próximos de Descar-tes no sentido de pertencerem à mesma tradição do raciona-lismo continental europeu, como Spinoza e Leibniz, apresenta-ram teorias alternativas àquela de Descartes. E ambos esses autores são monistas em certo sentido. Spinoza é um monista radical, afirmando na Ética que tudo o que há é uma única realidade, uma única substância, sendo que extensão e

pensa-mento são atributos seus.14 Esse monismo spinozano é radical

não apenas por sustentar que há apenas uma substância, mas também porque essa única substância é, na verdade, um único indivíduo. Os indivíduos que conhecemos em nossa experiên-cia comum são apenas modos da única substânexperiên-cia.

Leibniz, por sua vez, sustenta que há uma pluralidade de indivíduos, que são as mônadas, que para ele são átomos

metafísicos.15 Mas elas são de uma única natureza, que é

aque-la de serem representativas. Por isso ele sustenta também uma forma de monismo. As mônadas são unidades fechadas e que não se comunicam. Mas elas todas possuem uma representa-ção de todas as outras. E como a mônada divina, que criou as demais, providenciou que elas estejam desde sempre em acor-do umas com as outras, havenacor-do entre todas uma harmonia preestabelecida, há a aparência de comunicação entre as mô-nadas. Nesse caso, como naquele de Spinoza, não há problema da relação entre corpo e alma. O problema nem sequer pode ser levantado naqueles termos em que Descartes o fez.

Ainda que para o pensamento filosófico contemporâ-neo o dualismo cartesiano seja algo implausível, as metafísicas de Spinoza e Leibniz são mais ainda. O dualismo de

vale para os autores que serão adiante mencionados, a saber, Spino-za, Leibniz e Aristóteles.

14 Cf. SPINOZA, 1994 [1677]. 15 Cf. LEIBNIZ, 1695 e 1990 [1714].

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dades, que hoje é algo bastante comum entre os filósofos da mente, como veremos em alguns dos próximos capítulos, con-serva o problema da relação entre o físico e o mental, embora em termos diferentes daqueles em que o problema existia na filosofia de Descartes. Assim, podemos dizer que o dualismo de propriedades é o legado que o pensamento cartesiano dei-xou para a filosofia da mente. Quando empregarmos o termo “mentalismo” no restante deste livro, estaremos nos referindo a essa posição que não coincide com o dualismo de estofo, mas que, ao contrário, sustenta uma metafísica monista, que

assu-me o dualismo de propriedades.16 Veremos nos próximos

capí-tulos também que esse próprio mentalismo é negado por al-gumas filosofias da mente, de diferentes maneiras, com argu-mentos e princípios bem distintos.

O mentalismo que provém do dualismo tradicional, de qualquer forma, é a postura segundo a qual a mente pode e deve ser estudada por si mesma. As teorias que argumentam radicalmente contra o mentalismo são, em última instância, como veremos nos casos da filosofia de Ryle e das formas do materialismo eliminativista, teorias eliminativas do mental. Não é esse o caso de outras modalidades do monismo de esto-fo, como o supervenientismo e o monismo anômalo de David-son, de um lado, e do emergentismo, de outro, para citarmos alguns que também veremos nos próximos capítulos.

A nosso ver, apesar da importância indiscutível das obras de alguns dos eliminativistas, como o próprio Ryle, e da influência que o pensamento de alguns desses autores têm na filosofia da mente contemporânea, imprimindo uma tendência crítica que é salutar nesse campo de pesquisa, o mentalismo é a própria base da psicologia filosófica, assim como da psicolo-gia empírica. Ou seja, devemos tomar a mente como uma rea-lidade, por mais difícil que se apresente o problema de

16 Tal como já utilizado no capítulo anterior e acima neste capítulo, o

termo “mentalismo” neste livro também se refere às características, ou constituição, ou natureza da mente, traduzindo o termo inglês “mentality”, que não quer dizer mentalidade (em português), mas, diferentemente, o caráter do mental.

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mos a natureza dessa realidade. Voltemos então a alguns dos pontos por onde começamos este capítulo.

Pode ser o caso que a mente seja o tipo de realidade sobre a qual não caberia perguntar de que ela é feita. Essa é uma lição que devemos aprender do eliminativismo de Ryle, que veremos no próximo capítulo. Podemos perguntar de que são feitos os corpos, como vimos acima, e as ciências nos darão boas respostas. Podemos também, de forma mais ordinária, perguntar de que são feitas mesas, livros, automóveis etc. Mas não parece ter cabimento, em analogia com tais perguntas, perguntarmos também: de que são feitas as mentes dos seres humanos? De que são feitas as mentes dos gatos, dos cães, dos golfinhos etc.? Como vimos, a resposta aparentemente óbvia, de dizer que elas todas são feitas de neurônios, não tem cabi-mento. Seus cérebros são feitos de neurônios, mas não suas mentes.

Uma mente pode, além disso, ser encarada como uma coleção de eventos. Talvez devamos então falar apenas de

eventos mentais, e não de mentes, como se fossem coisas. Se,

por exemplo, perguntarmos de que são feitos os acidentes de automóveis, não é pertinente que se responda que eles são feitos de automóveis. Eles apenas envolvem automóveis. Mas, enquanto eventos, eles são outro tipo de realidade. E talvez o mesmo se deva dizer da mente ou, mais precisamente, dos eventos mentais. Essa seria uma possibilidade, mas, de fato, acreditamos que as coisas na filosofia na mente não são tão simples assim. De qualquer forma, falar de eventos mentais ainda é sustentar o mentalismo, ainda é se afastar das posições eliminativistas ou deflacionárias na filosofia da mente, como se diz às vezes.

Um tipo de teoria deflacionária do mental, também contrário ao mentalismo, consistiria, por exemplo, em afirmar algo parecido com o materialismo reducionista, que também vamos comentar num dos próximos capítulos. Desse ponto de vista, podem-se conservar alguns termos mentalistas, mas apenas na medida em que eles ainda não foram reduzidos a termos fisicalistas, na medida em que determinados eventos supostamente mentais ainda não foram explicados como a aparência criada por eventos neurofisiológicos. Assim, o

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men-talismo implica também sustentar que há eventos genuina-mente mentais, que devem ser entendidos por meio de concei-tos eminentemente mentalistas, expressos em um vocabulário mentalista irredutível ao vocabulário fisicalista da neurofisio-logia ou de quaisquer outras disciplinas às quais os problemas da psicologia seriam reconduzidos.

Voltemos um instante àquela questão sobre aquilo de que seriam feitas as mentes. Vamos comparar essa questão com outra que hoje não se faz, mas que era comum até meados do século XIX, a saber: de que são feitos os seres vivos? Colo-cada assim, a questão é meio redundante mesmo então, pois lembremos que o próprio Descartes, dois séculos antes, já sus-tentava de um modo cientificamente aceitável para a época que os seres vivos são feitos de matéria. A questão mais perti-nente, já levantada mesmo na antiguidade pelos filósofos gre-gos, era sobre aquilo que anima os seres vivos, aquilo que faz com que eles se movam mesmo sem sofrerem ação externa. Aristóteles, por exemplo, distinguia entre uma alma vegetati-va, uma alma sensitiva e uma alma racional, princípios dife-rentes presentes em diversos seres vivos, mas sendo que ape-nas nos seres humanos os três estão presentes ao mesmo tem-po.17

Se o termo “alma” parecer inconveniente em virtude de

sua associação com determinadas doutrinas religiosas, pode-mos substituí-lo pelo termo “princípio” ou por qualquer termo que indique uma capacidade ou propriedade que não precise ser identificada com uma substância, com algum estofo. Do ponto de vista do próprio comportamento manifesto dos mais diversos seres vivos, começando pelas plantas, pelos vegetais, podemos dizer, grosso modo, que a diferença entre uma planta e um corpo inanimado qualquer, uma pedra, por exemplo, é que o vegetal possui alguma capacidade de conservação, repa-ração e reprodução que um corpo inanimado não possui. E isso corresponderia a tal princípio vegetativo da filosofia aris-totélica. Mas as plantas não sentem, e os animais sim. Nesse caso, temos um princípio sensitivo. E, por fim, tal como ainda

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