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Belo, sublime e grotesco: a linguagem estética e o sujeito da psicanálise

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JOÃO GABRIEL NEVES DE SOUSA

BELO, SUBLIME E GROTESCO:

A LINGUAGEM ESTÉTICA E O SUJEITO DA PSICANÁLISE

Florianópolis 2018

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JOÃO GABRIEL NEVES DE SOUSA

BELO, SUBLIME E GROTESCO:

A LINGUAGEM ESTÉTICA E O SUJEITO DA PSICANÁLISE

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina como requisito à obtenção do título de Mestre em Ciências da Linguagem.

Prof. Dr. Maurício Eugênio Maliska (Orientador)

Florianópolis 2018

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Aos meus pais, que me ofereceram suporte imensurável neste processo, assim como o fazem em tudo aquilo que reconhecem minha implicação.

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AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina por este processo de constituição e aprendizado.

Aos meus pais e irmão pelo apoio e contribuições que estão para além de onde a palavra alcança.

À Letícia Lopes pelo suporte, paciência e parceria nesta jornada.

Ao orientador, Maurício Maliska, pela escuta e auxílio que foram fundamentais para o desenvolvimento deste trabalho.

Aos professores Antônio Carlos Gonçalves dos Santos, Ana Carolina Cernicchiaro e Nádia Régia Maffi Neckel, pela disponibilidade e pelas conversas que deixaram marcas neste texto.

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“Não há utilidade evidente na beleza, nem se nota uma clara necessidade cultural para ela; no entanto a civilização não poderia dispensá-la” (Freud).

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RESUMO

Este texto propõe uma pesquisa que articula teoria estética e psicanálise. Especificamente, no recorte proposto, nos ocupamos das teorizações sobre as categorias estéticas do belo, do sublime e do grotesco, como discursividades a serem analisadas para tratar das relações que o sujeito estabelece com a arte. Reconhecendo, para além da validade desses conceitos, um caráter mitológico dessas formas de conceber os objetos artísticos, as categorias estéticas serão relacionadas com o sujeito da psicanálise. Dessa forma, procuramos desenvolver um argumento teórico que reconhece no belo, no sublime e no grotesco, formas de relação específicas do sujeito com sua condição faltosa.

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ABSTRACT

This text proposes a research that articulates aesthetic theory and psychoanalysis. Specifically, in the proposed approach, we deal with the theorizations about the aesthetic categories of the beautiful, the sublime and the grotesque, as discursivities to be analyzed to deal with the relations that the subject establishes with art. Recognizing, beyond the validity of these concepts, a mythological character of these ways of conceiving the artistic objects, the aesthetic categories will be related to the subject of psychoanalysis. In this way, we try to develop a theoretical argument that recognizes in the beautiful, the sublime and the grotesque, specific forms of relation of the subject with his faulty condition.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - O êxtase de Santa Teresa – Gian Lorenzo Bernini ... 49

Figura 2 - A Storm - Joseph Mallord William Turner ... 63

Figura 3– Madame Récamier - Jacques-Louis David ... 92

Figura 4– Releitura de René Magritte, Perspectiva I: Madame Récamier ... 93

Figura 5– Gárgulas pertencentes à arquitetura da Notre-Dame de Paris ... 98

Figura 6– Balli di Sfessania – Jacques Callot ... 98

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO... 11

2 PERCURSO METODOLÓGICO ... 15

3 A ARTE E O SUJEITO ... 17

3.1 UMA PRIMEIRA VISÃO DA ARTE EM FREUD ... 18

3.2 O SUJEITO DA PSICANÁLISE... 21

3.3 UM PERCURSO SOBRE A PERSPECTIVA FREUDIANA ... 32

3.4 PARA ALÉM DA CONCILIAÇÃO ... 41

3.5 A ARTE ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO ... 45

4 O SUBLIME ... 54

5 O BELO ... 72

6 O GROTESCO... 95

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 119

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1 INTRODUÇÃO

Neste texto, tratamos da relação entre os estudos de psicanálise e arte. A problemática deste estudo decorre da antevisão de um possível diálogo entre a teoria estética e a psicanálise. A relação prevista é estabelecida através da percepção de que os objetos artísticos e os discursos da estética sobre os afetos dizem algo do sujeito psicanalítico e da forma pela qual esse se relaciona com a arte e com a vida.

A psicanálise foi constituída no final do século XIX, por Sigmund Freud (1856-1939), como uma nova forma de discursividade sobre o sujeito. Enquanto os estudos sobre as questões do humano se ocupavam da consciência, Freud aborda o inconsciente como um elemento central da subjetividade humana, tal perspectiva implicou em uma nova percepção sobre a razão, as doenças mentais, a sexualidade e outros temas. Sendo assim, para além do desenvolvimento da psicanálise, as descobertas freudianas não deixaram de gerar questões para diversos campos do conhecimento.

Através da leitura dos textos de Freud, é possível percebermos que o autor realiza estudos vastos, também se relacionando com esses diferentes campos. Entre essas temáticas, das quais se ocupa Freud, encontramos também as questões relacionadas ao campo artístico. Ao mesmo tempo, não podemos afirmar que há em Freud uma discussão profunda da arte, sendo que ele se deteve a explorar poucas facetas deste vasto campo. Sendo assim, apesar dos estudos diversos que Freud realiza, devemos considerar que ele se ocupou desses temas enquanto possibilidades de estabelecer relações com seu tema central, o sujeito do inconsciente. A arte é, então, um tema a ser estudado por Freud na medida em que diz algo sobre o sujeito.

É sobre esse enfoque que Freud também se interessa pelos mitos, pois, não se tratam de verdades sobre o mundo, mas dizem respeito às experiências subjetivas dos sujeitos. Os mitos gregos já não produzem um efeito de uma verdade sobre a realidade como tiveram na Grécia antiga; sendo assim, podemos considerar hoje um caráter ficcional destas formas de explicar o mundo. Todavia, a psicanálise se interessa por essas mitologias, pois considera que o ficcional é relevante na experiência subjetiva, inclusive, a própria subjetividade tem certo caráter de ficção.

Podemos reconhecer esse caráter ficcional também no campo artístico, se não consideramos a arte como uma verdade sobre a natureza e a realidade, também não deixamos de considerar o valor desta em relação aos sujeitos. Inclusive, foi através das artes dramáticas

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que se apresentavam as narrativas mitológicas. Os mitos gregos foram observados por Aristóteles no contexto cênico da tragédia grega, sendo que a palavra tragédia passou também a designar um gênero artístico.

Além de Aristóteles, outros teóricos, sendo alguns destacados nesse texto, como Emmanuel Kant (1724-1804) e Victor Hugo (1802-1885), também trataram da arte, mas, com foco em suas especificidades. Assim como foi indicado o nome trágico como gênero artístico, esses autores também propõem nomenclaturas e teorias para a construção de discursos inteligíveis sobre o campo da arte. Além disso, não é difícil perceber nesses autores mais do que uma proposta de análise da arte, há também uma valoração do que é ou deve ser considerado como tal. Entre essas construções teóricas, as “categorias estéticas”, como o belo, o sublime e o grotesco, são apresentadas como arranjos que reúnem e qualificam conjuntos caraterísticos de manifestações artísticas.

O termo “categoria estética” não é utilizado por todos os autores que trabalham conceitos estéticos como, por exemplo, o belo. Porém, neste texto, o termo é utilizado para se referir aos conceitos que visaram dividir e definir o campo estético em categorias específicas. As categorias seriam, então, conceitos de agrupamento de expressões estéticas de acordo com sua organização interna de elementos, suas escolhas temáticas e os afetos produzidos pela experiência estética. Esses aspectos são por vezes sobrepostos ou considerados como mais ou menos relevantes de acordo com os autores e as teorias que articulam essas conceituações.

Como todos os recursos teóricos, as categorias estéticas são limitadas e controversas. Essas procuram tratar do vasto campo da arte através de categorizações que podem ser lidas como simplistas. Em certas situações e momentos específicos, essas categorias foram consideradas eficientes para tratar de questões próprias ao campo da arte. Se já na Grécia antiga se falava sobre a categoria do belo, no século XVIII e XIX ainda encontramos vastos discursos sobre as categorias estéticas.

Porém, essas formas de organização da arte também são, por vezes, criticadas ou ignoradas por não corresponderem às novas abordagens nos estudos da estética. Independente da assertividade dessas categorias, há um conteúdo cultural e ficcional em sua concepção e desenvolvimento. Assim, percebemos o valor da categoria estética no contexto da cultura por seu valor mítico, o qual revela alguns aspectos da condição do sujeito que é do interesse específico da psicanálise.

Diante disso, abordamos nos estudos realizados a partir deste projeto o potencial mítico das categorias estéticas, sendo que essas não são propostas para tratar da arte em geral, afirmando o que essa é ou deve ser. O objetivo é pensar algumas possibilidades de relações

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específicas do sujeito com a arte, em uma relação dividida entre aspectos imaginários e reais. Para isso, pensamos alguns conjuntos de manifestações artísticas ou obras de arte, às quais são reunidas em uma categoria estética.

Os conceitos de Imaginário e Real foram desenvolvidos por Lacan para pensar os registros psíquicos. Consideramos que o Real é aquilo que não é inteligível, algo da dimensão do impossível, que não se pode simbolizar e não possui representação, porém, toma o sujeito por seus efeitos. Partindo dessa concepção, consideramos que a arte tem a capacidade de tocar algo do Real, de mobilizar os sujeitos em um lugar do indizível.

Ao mesmo tempo, a arte não faz isso sem jogar com um campo de expressão, através de formas, sentidos, volumes, sons, ficções. O imaginário lacaniano é o campo do fantasma, ou seja, das fantasias inconscientes que sustentam uma ilusão de completude na relação sujeito e objeto, assim como, é o campo da percepção das presenças, das imagens e das unidades. Em ambos os casos, o que há de comum no imaginário é uma fascinação alienante, seja pela ilusão fantasmática de completude ou pela percepção das presenças, pois esse registro encobre o sujeito do inconsciente e não comporta a falta constitutiva do sujeito.

Essa falta referida é, na concepção psicanalítica, um mal-estar constituinte da condição humana, que está marcada por uma experiência subjetiva de insuficiência e de inquietação diante dessa. A arte é pensada nesse texto como um campo que não se mantém na superfície imaginária, essa nos fascina e nos intriga na medida em que desperta algo para além da obviedade de suas expressões manifestas. De certa forma, a arte sempre trata da falta, desse vazio constituinte, de forma que, aquilo que podemos dizer como uma relação estética é algo que põe esse vazio em questão.

Nessa direção, podemos considerar a frase do psicanalista Antonio Quinet (2002, p. 178), afirmando que “o espelho vela e o quadro mostra”. Ou seja, a imagem do espelho está constantemente em uma dimensão predominantemente imaginária, velando o sujeito do inconsciente, enquanto o quadro parece, ao contrário, desvelá-lo por traz da imagem especular. A psicanálise se ocupou e valorizou a arte precisamente em relação a esse aspecto, na medida em que essa é capaz de revelar algo do sujeito. Enquanto Freud se interessava por aquilo que encontramos na arte para além do conteúdo manifesto, Lacan expõe a relação determinante da arte com a falta.

Apesar dessa concepção, não temos dificuldade de perceber, nas primeiras declarações freudianas sobre a arte, uma relação dividida entre a mostração e velamento no campo artístico, por vezes, afirmando uma certa condição de dependência de um caráter atenuante presente nas expressões artísticas para que ocorra a fruição estética. Procuraremos

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constituir durante o primeiro capítulo, que essa ideia freudiana, apesar de atritar com posteriores discursos sobre a arte, inclusive na própria teoria psicanalítica, não corresponde, de todo, a um erro.

Podemos tentar olhar essa ideia freudiana como uma resposta às formas tradicionais das teorias estéticas, que se ocuparam, por tantas vezes, com os aspectos imaginários da obra de arte. Dessa forma, as categorias estéticas ocupam nos capítulos posteriores, os conceitos pelos qual pensamos essas perspectivas tradicionais, assim como nos direcionamos para além dessas. Podemos reconhecer nas categorias a possibilidade de tratar dessa dobradiça que leva do Imaginário ao Real na arte.

Cada uma das categorias aqui abordadas pode ser lida como designando um tipo específico de constituição de aspectos imaginários e de articulação do sujeito com a falta. Não afirmamos aqui determinadas obras como pertencentes a uma categoria estética, mas sim formas de leitura, relacionadas as categorias, que modificam a posição do sujeito frente à obra. É necessário analisar essas relações e perceber o que essas implicam para as questões centrais do sujeito.

Então, para tratar dessa questão, propomos neste texto o desenvolvimento de um argumento teórico relacionando especificamente às categorias estéticas do belo, sublime e grotesco, com posturas específicas que o sujeito assume em relação a sua condição faltosa, sendo que, essa pode ser simultaneamente velada e desvelada na dobradiça entre o Real e o Imaginário nas obras artísticas.

Esse gesto não intenciona provar um argumento teórico, esgotando sua discussão. Se implica antes em abrir uma forma de diálogo entre arte e psicanálise, dissertando e discutindo alguns aspectos da arte através dos discursos sobre as categorias estéticas. Assim, temos de reconhecer a impossibilidade de se apreender ou se esgotar teoricamente esses dois campos infindáveis, da arte e do sujeito.

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2 PERCURSO METODOLÓGICO

Propomos aqui uma pesquisa exploratória e bibliográfica, trabalhando majoritariamente sobre questões conceituais. Para realização da pesquisa é necessária a utilização de autores diversos, porém, estes incluem principalmente autores dos campos de estudos estéticos e psicanalíticos. Para o trabalho com a psicanálise são utilizadas, em sua maioria, obras de Freud. Os escritos desse autor têm um papel fundamental na constituição deste trabalho, pois, partimos de um questionamento sobre a visão freudiana da arte.

São realizadas seleções de recortes específicos das obras freudianas relevantes para a discussão prevista. Neste trabalho não intencionamos tratar de toda a obra de Freud, assim como não pretendemos apresentar toda a história e as diferentes perspectivas das categorias estéticas. Sobre esta seleção, buscamos fazer uma leitura dos recortes, articulando conceitos específicos para a constituição do argumento teórico proposto.

Além de Freud, algumas obras de Lacan também são utilizadas. Entre essas, podemos destacar o Seminário 7: A ética da psicanálise (2008/1960). Esta é uma das obras em que Lacan se ocupa de questões da arte, nela podemos encontrar temas como a sublimação, a criação e o belo, que são essenciais para a presente pesquisa. São também considerados outros autores da psicanálise, que trabalham sobre as mesmas questões dos textos freudianos e lacanianos que nos ocupamos aqui.

Quanto aos estudos estéticos, cada categoria é trabalhada através de escolhas de autores específicos para cada uma. Os autores não compõem, entre si, visões congruentes e coerentes dos mesmos conceitos, os quais são analisados em conjunto de acordo com as relações previstas neste estudo. Isso se aplica também aos próprios termos: “belo”, “sublime” e “grotesco”, porque, na maioria das vezes, esses não são discutidos em conjunto pelos autores selecionados. Porém, as três categorias foram escolhidas pela percepção geral de que essas são básicas e contrastantes entre si.

Na discussão do sublime, quase exclusivamente, são utilizados os textos de Kant (1764; 1790), Observações sobre o sentimento do belo e do sublime; Ensaio sobre as doenças mentais e Crítica da faculdade do juízo. O pensamento de Kant também está presente na discussão do belo, juntamente com a formulação de Aristóteles sobre o belo, na Poética. Além disso, todas as discussões presentes sobre essas categorias contam com autores da psicanálise. Porém, no caso do belo, no Seminário 7, Lacan se ocupa diretamente dessa categoria. Sobre a discussão do grotesco, podemos destacar o prefácio de Victor Hugo para o

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livro Cromwell (1827), o livro O grotesco, de Wolfgang Kayser (1957) e os estudos de Bakhtin em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1965).

Quanto à utilização das categorias estética como objetos de análise, não as consideramos inerentes a determinados elementos da obra de arte, como se esses encontrassem sentido e valor a priori. Por exemplo, é possível considerar a ideia de Descartes, que concebia que o belo é o verdadeiro (BAYER, 1995). De sua parte, a psicanálise trata, muitas vezes, das verdades que o sujeito recalca justamente por serem repulsivas, em que nada de belo encontra-se aí. Percebemos assim, que não cabe aqui afirmar, como Descartes, que o verdadeiro é belo, mas questionar o que há de beleza em perceber algo como verdadeiro. Talvez, mais astutamente, questionar o que uma percepção humana otimista em relação a sua capacidade de conhecer produz de satisfação para o Ideal do Eu.

Dessa forma, é possível pensar essas categorias de modo diferente, em que as expressões artísticas atuariam dentro de uma ou outra categoria estética, justamente pelo lugar em que o sujeito se posiciona. Estas expressões estariam sujeitas a serem percebidas em diferentes categorias de acordo com mudanças culturais, sociais, políticas e de sujeito a sujeito que aprecia a arte. Todavia, o que procuramos são as formas pelas quais o sujeito se articula com o Real do sintoma na arte através da dimensão imaginária dessas categorias.

O exercício consiste, então, em lançarmos um olhar aos ditos sobre as categorias estéticas. Há, por exemplo, uma crença presente nas teorias primordiais da estética, de acreditar que o efeito produzido pelo objeto da arte encontrava-se em algo essencial do objeto ou da alma humana. Contudo, quando pensamos justamente o sujeito em uma realidade psíquica, do inconsciente e da linguagem, essas percepções, que eram atribuídas ao objeto ou a algo universal do humano, ganham um caráter mítico. Essas concepções têm, por vezes, mais valor para pensar os sujeitos do que os aspectos formais e técnicos da arte.

Há nesta proposta de pesquisa a possibilidade de analisar algumas obras de arte e questões culturais, na medida em que essas se relacionam com as categorias estéticas estudadas. Porém, reconhecemos que não se trata de um exercício classificatório das obras, e sim de uma afirmação de possibilidades de leituras e de formas de se relacionar com a arte. Isso é relevante porque que essas leituras implicam em uma posição subjetiva específica.

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3 A ARTE E O SUJEITO

Para que se possa criar um campo de intersecção entre arte e psicanálise é necessário que partamos da ideia de que a arte não é um produto cultural alheio às questões subjetivas. Sendo assim, temos que considerar que a arte mobiliza, de alguma forma, os afetos, angústias e desejos de seus criadores e espectadores. Essa concepção é favorecida ao pensar o espaço ocupado pela arte na civilização, uma vez que os objetos artísticos não encontram uma função cotidiana prático-utilitária tão clara quanto outros produtos culturais. Parece se tratar, inclusive, do contrário. Geralmente é quando retiramos os objetos de sua função e lugar cotidianos que estes podem ser percebidos como obras de arte.

Marcel Duchamp (1887-1968), pintor, escultor e poeta francês, em A Fonte (1927), realizou o gesto de colocar como obra um objeto industrial, um urinol. Ao retirar esse objeto de seu lugar comum, o artista, priva o urinol de suas funções cotidianas, ao mesmo tempo em que priva os sujeitos do alívio imediato das necessidades que estariam vinculadas a utilização prática desse objeto. Todavia, ele também oferece ao objeto a possibilidade de ser visto fora do lugar comum e de produzir efeitos ao colocá-lo em relação com os sujeitos como algo a ser visto.

Sendo assim, não é difícil constatar que a arte existe para que nos relacionemos com ela e que, se essa relação não objetiva nenhuma função prática imediata, ela intenciona uma mobilização dos sentidos e dos afetos. O campo da estética, dentro da filosofia, ocupa-se justamente dos efeitos e afetos produzidos através do sensível. Entre os objetos de estudo desse campo encontram-se de forma privilegiada os objetos artísticos, justamente por seu lugar cultural capaz de incitar relações estéticas.

A concepção de Mukarovsky sobre a função estética faz pensar os objetos artísticos em sua relação com os sujeitos. Nessa perspectiva, a função estética seria produzida através de uma atitude em relação aos objetos, um gesto do sujeito em olhá-los de um lugar diferente. É possível pensar em um objeto que convoca para uma relação estética, como na arte [...] “que é criada diretamente com o objetivo de provocar a atitude estética no observador” (1993, p.123). Porém, a noção de atitude diz de um gesto ativo do sujeito, não necessariamente consciente, em se relacionar de uma forma específica com os objetos de arte. Sendo assim, nenhuma criação artística é um objeto estético em si, este se configura dessa forma somente em um lugar de relação.

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Essa perspectiva pode ser simplista, pois Mukarovsky (1993) divide atitudes específicas para certas formas de relação. Porém, o autor oferece um lugar central ao olhar do sujeito mesmo sem descartar uma realidade do objeto. É sobre esse aspecto que nos é relevante, devemos justamente colocar para ser pensado esse lugar do “entre” na arte, de uma relação estética que ocorre em um entremeio do sujeito e do objeto artístico. Um “entre” que não está bem localizado, tal como na banda de Moebius, em que não é possível identificar de forma clara um dentro e fora.

Sobre as teorizações do limite da arte, as discussões sobre o que pode ser considerado como arte ou o que constitui um valor artístico relevante, essas não nos fazem muita questão aqui. Não se desconsidera o fato desse estatuto do artístico ser constituído justamente de um lugar de reconhecimento social. Pelo contrário, esse é necessário para que a arte seja relevante ao sujeito. Mas trata-se, antes de tudo, de um olhar para os sujeitos através dessa atitude estética. Sendo assim, podemos pensar, como Tania Rivera, em um gesto mais próximo à psicanálise: “Talvez mais do que o tipo de abordagem de obras artísticas a ser adotado, importa para a psicanálise o processo de criação [tal como de apreciação], na medida em que ele convoca e põe em questão a própria concepção psicanalítica do funcionamento psíquico” (2002, p.30).

3.1 UMA PRIMEIRA VISÃO DA ARTE EM FREUD

Ao procurar entender a maneira pela qual a psicanálise se aproxima do campo artístico, percebemos que não é possível chegar a uma resposta única e final em relação ao pensamento de Freud sobre a arte. Poucos textos freudianos se ocupam desse tema por mais do que um único comentário e, entre essas poucas exceções, ainda seria difícil afirmar que alguma seja conclusiva em relação a posição psicanalítica sobre as articulações do sujeito com a arte. Tentaremos primeiramente olhar para algumas afirmações contidas nas obras de Freud, de forma que, posteriormente, possamos pensar aquilo que parece ficar como questionamento na relação entre essas afirmações com outros momentos do próprio discurso freudiano.

Para pensarmos uma primeira formulação psicanalítica sobre a arte, é possível dizer que a afirmação de Freud sobre a beleza traduz o lugar social dos objetos artísticos: “Não há utilidade evidente na beleza, nem se nota uma clara necessidade cultural para ela; no

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entanto, a civilização não poderia dispensá-la” (FREUD, 2010/1930, p.40). A frase freudiana se estrutura de maneira paradoxal. Por um lado, marca uma aparente inutilidade da beleza, ao mesmo tempo, como se não fosse necessária uma justificativa, afirma-a como indispensável. A arte, de maneira mais ampla, encontra-se nesse mesmo lugar, apesar de não responder às demandas materiais do sujeito, essa parece ser desejável justamente no que diz ao sujeito e suas demandas.

É sobre esse interesse do humano pela arte que concerne o primeiro questionamento a ser feito. Que satisfação a arte poderia proporcionar aos sujeitos para que se torne indispensável? Sobre isto, podemos encontrar, no mesmo texto em que Freud se refere à beleza, a afirmação de que a arte seria como uma ilusão reconhecida: “[...] a satisfação é obtida de ilusões que a pessoa reconhece como tais, sem que a discrepância entre elas e a realidade lhe perturbe a fruição” (FREUD, 2010/1930, p.37).

Primeiramente, tentemos nos aproximar da frase anterior abordando o conceito de “ilusão”. No texto O futuro de uma ilusão (1927), Freud trata das questões referentes às práticas religiosas. Tal como no questionamento presente aqui sobre a arte, Freud se questiona quais seriam os benefícios dessas práticas que fazem com que os sujeitos organizem suas vidas através delas. Nessa análise, a religião aparece como uma forma de lidar com o sofrimento da condição humana, sendo que: “Assim como para o conjunto da humanidade, também para o indivíduo é difícil suportar a existência” (FREUD, 2014/1927, p.247). Para as questões existenciais mais angustiantes, as práticas religiosas ofereceriam soluções, seja na adoção de um sentido para a vida ou na eliminação da morte.

Elimina-se a morte na medida em que o falecimento do corpo não representaria, através do dogma religioso, a morte da alma. Em algumas concepções o fim de uma vivência corporal acarretaria em uma outra forma de existência: “[...] a vida após a morte, que dá continuidade à nossa vida terrena, tal como a parte invisível do espectro se acrescenta a visível, traz toda a perfeição de que podemos ter sentido falta aqui” (FREUD, 2014/1927, p.252).

Tais percepções religiosas, quando tomadas como verdadeiras, são capazes de oferecer grande conforto aos sujeitos que não precisam mais se deparar com o trágico das questões humanas. Apesar disso, entra em questão a sustentação dessas ideias, as quais parecem não procurar na realidade os fundamentos de sua crença, funcionando como um exercício de fé.

É sobre a questão da fé que recai o caráter ilusório da religião, sendo que, a principal sustentação do saber religioso como verdadeiro está no desejo de que este seja.

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Podemos entender, então, a ideia freudiana sobre ilusão. Essa se difere de um simples erro, inclusive não precisa se tratar necessariamente de uma crença falsa, porém, “[...] chamamos uma crença de ilusão quando em sua motivação prevalece a realização de um desejo [...]” (FREUD, 2014/1927, p.268). Dessa forma, através do desejo uma crença ilusória pode se sustentar apesar de ser atacada constantemente pelo laço com a realidade.

Voltemos então a ideia de Freud sobre a arte. Se a arte é uma ilusão, esta diz do desejo dos sujeitos. Ao mesmo tempo, considerá-la como uma “ilusão reconhecida como tal”, seria dizer que o sujeito não duvida de que esta seja sustentada somente pelo seu desejo. Ele reconhece o caráter ficcional e abandona um laço rígido com a realidade para vivenciar o objeto artístico. Nesse cenário da teoria freudiana, a arte se difere da religião pelo nível de consciência sobre seu caráter ilusório. A vivência religiosa parece propor um modo de vida que abdica de certas comprovações da realidade para uma “vida de fé”. A arte, por sua vez, convoca o sujeito para que momentaneamente abandone a vida cotidiana e adentre essa “vida da fantasia”.

É possível, assim, prosseguir na afirmação de Freud apresentada anteriormente. Após tratar da satisfação da arte como uma ilusão, ele afirma: “O âmbito de que se originam tais ilusões é aquele da vida da fantasia” (2010/1930, p.37). É a denominação “fantasia” que as obras freudianas utilizam majoritariamente quando tratam da arte. Como conceito esse se mostra mais relevante do que a ilusão, pois justamente trata-se da capacidade do sujeito de criar, inclusive ilusões, reconhecidas ou não como tal.

A fantasia será posteriormente teorizada por Lacan como parte constituinte do registro Imaginário. Para Freud, o fantasiar é a instância produtora da obra de arte, ela mobiliza a criatividade em direção a realização do desejo: “Desejos insatisfeitos são as forças impulsionadoras das fantasias, e toda fantasia individual é uma realização de desejo, uma correção da realidade insatisfatória” (FREUD, 2015/1908, p.57). Nesse sentido, a fantasia se ocupa da criação do novo sobre o cotidiano de uma existência limitadora. É justamente na possibilidade de se diferir da realidade que a fantasia mobiliza o sujeito, pois onde a realidade não determina desponta a lógica subjetiva na criação da obra.

Encontramos também a fantasia presente nos sonhos que, na perspectiva psicanalítica, também são obras da realização do desejo (FREUD, 2014/1916). Sendo assim, não é estranho encontrar uma congruência de expressão entre produtos artísticos e produtos oníricos. A própria definição usual de onírico já desliza entre algo referente ao sonho, à fantasia e ao “mundo irreal”. Alguns representantes do movimento artístico surrealista apresentam um interesse especial tanto pelos sonhos quanto pela psicanálise. É possível supor

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que há nesse interesse certo reconhecimento de que os sonhos e a arte podem ser movidos pelos mesmos objetivos.

A fantasia pode ser tanto consciente quanto inconsciente. Há aquilo que se expressa na obra e que o sujeito reconhece como uma ficção em seu conteúdo manifesto. Ao mesmo tempo, Freud reconhece que a arte mobiliza o sujeito para além do que ele percebe conscientemente como presente em sua relação com a obra, sendo que a percepção estética não é um exercício racional de compreensão dos elementos da arte.

O fantasiar no trabalho do artista é feito como um sonho acordado. Podemos pensar também, que esse mesmo processo ocorre nas brincadeiras infantis, a criança produz um mundo que mais a interessa. “O poeta faz algo semelhante à criança que brinca; ele cria um mundo de fantasia que leva a sério, ou seja, um mundo formado por grande mobilização afetiva, na medida em que se distingue rigidamente da realidade” (FREUD, 2015/1908, p.54).

Digamos então, que isso constitui uma resposta parcial, da visão freudiana, ao questionamento da satisfação na arte, ela mobiliza o desejo do sujeito em um distanciamento da realidade. Ainda assim, não chegamos próximos da complexidade da relação entre o sujeito e o campo artístico. Essa visão nos deixa uma série de questionamentos, ao mesmo tempo em que não diz da totalidade da teorização freudiana sobre esse assunto. Podemos encontrar alguns outros discursos sobre a arte que não se mantém nessa definição. Para ir além dessa e abordar o jogo que a arte propõe, é necessário adentrar realmente o sujeito da psicanálise em sua dimensão de conflito.

3.2 O SUJEITO DA PSICANÁLISE

Partamos da passagem freudiana referente ao papel do artista:

[...] a partir da irrealidade do mundo poético, se seguem importantes consequências para a técnica artística, pois muitas coisas que não poderiam causar gozo como reais podem fazê-lo no jogo da fantasia e muitas moções que em si são desagradáveis podem se tornar para o ouvinte ou espectador do poeta fonte de prazer (FREUD, 2015/1908, p.54).

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A ideia apresentada por Freud indica a perspectiva do sujeito da psicanálise e revela como esse possui uma relação conflituosa com seu próprio desejo. O sujeito da psicanálise é o sujeito dividido, nesse sentido se opõe ao conceito de indivíduo (lat. individuum – indivisível). Ao contrário de uma tradição filosófica de um sujeito do conhecimento, capaz de se relacionar com a verdade através da razão, a perspectiva psicanalítica põe em cheque de maneira enfática a posição absoluta do sujeito (FOUCAULT, 2002). Sendo assim, há na psicanálise a dimensão de um não saber, de uma divisão constituinte.

A divisão do sujeito ocorre entre coisas que ele percebe conscientemente como próprias, em contraposição a outras às quais ele rejeita, não reconhece e procura velar. Sobre as últimas, essas são rechaçadas para um local específico, que constitui a conceituação central da teoria freudiana, o inconsciente. “A diferenciação do psíquico em consciente e inconsciente é a premissa básica da psicanálise [...]” (FREUD 2011/1923, p.15). Enquanto a filosofia e a psicologia se ocupavam com os estudos da consciência, Freud toma como objeto principal de sua investigação o inconsciente.

Existem, então, nos sujeitos, conteúdos que não somente estão desprovidos de lugar na realidade e no âmbito social, mas são também rechaçados de sua própria consciência. Essa ideia nos é muito relevante aqui, não somente para a compreensão do sujeito psicanalítico, mas especificamente para pensarmos o papel da arte. Há algo que fala no sujeito fora de seu controle, que faz aparecer o que sua consciência procura constantemente evitar.

As ideias e memórias do sujeito são majoritariamente inconscientes, sendo que somente uma mínima parte desses conteúdos são trabalhados pela consciência de cada vez. Porém, nem tudo aquilo que está inconsciente é totalmente inacessível, através de formações do inconsciente como sonhos, atos falhos, chistes e sintomas, esses conteúdos que escapam à consciência encontram formas de expressão derivadas.

Há por outro lado, aquelas que ele não conseguirá acessar, que se configuram como um não sabido. Algo que não está à disposição de se tornar consciente justamente por um ato de repressão do sujeito, uma forma de não se deparar com aquilo que não pode ser reconhecido como próprio, pelo seu caráter repulsivo, inapreensível, proibido ou insuportável.

Essa divisão entre coisas adotadas e rechaçadas coloca o sujeito na dimensão de um conflito. Dentro da relação entre o consciente e o inconsciente, a repressão é uma construção teórica freudiana que trata desse processo de recalcamento do que é insuportável para o sujeito. A repressão pode ser definida como a força que faz com que os conteúdos sejam rechaçados para o inconsciente ou impedidos de tornarem-se conscientes (FREUD,

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2010/1915). Mesmo passando pelo processo de repressão não podemos dizer que o conteúdo inconsciente se encontra inativo, este pode permanecer significativo e com grande implicação do sujeito. Dessa forma, atuaria uma força pulsional para que este se torne consciente e possa advir para uma atividade em relação com a realidade.

Essa força pulsional é a pressão exercida pelo conteúdo que se articula com a pulsão. Para a psicanálise, a pulsão é um campo de intermédio entre o somático e o psíquico que mobiliza o sujeito em seu lugar de desejante. Trata-se de uma porção de atividade, algo que busca uma realização de uma meta através dos objetos aos quais se articula.

Os objetos da pulsão são sempre parciais, sendo que as relações com estes não cessam a força pulsional. O objeto é somente contornado e a pulsão relança essa força para outro lugar. É sobre esse aspecto que o conceito de pulsão se diferencia do conceito biológico de necessidade. Os objetos da necessidade instintual animal têm um objeto fixo e são satisfeitos especificamente por esses objetos, sem deslizamentos na linguagem. Já o campo pulsional é atravessado pela linguagem e é através dessa marca que podemos falar de um sujeito, pois esse não constitui uma condição inata.

A pulsão, ao se articular com um objeto, pode colocá-lo como objeto de desejo para o sujeito. Esse pode ser um representante consciente, todavia, a pulsão em si nunca pode ser representada e não encontra lugar na consciência. Sendo assim, o que é do campo pulsional “[...] não pode jamais se tornar objeto da consciência, apenas a ideia que o representa” (FREUD, 2010/1915, p.114). A força que a pulsão é capaz de exercer atua também sobre ideias recalcadas, de forma que essas não deixam de aplicar uma força para se tornarem conscientes e acabam por produzir no sujeito formações do inconsciente.

Percebemos, assim, que mesmo com a manutenção de conteúdos no inconsciente, a psicanálise reconhece que esses não deixam de produzir seus efeitos e procurarem formas de expressão. As formações do inconsciente citadas por Freud são os atos falhos, chistes, sonhos e sintomas. Esses seriam as formas pelas quais se pode pensar a existência do inconsciente, pois se a repressão fosse de fato totalmente efetiva, nada saberíamos sobre esse. As formações permitem que o conteúdo original, quando investido de força pulsional, encontre algum nível de satisfação através das derivações dessas ideias.

Se por um lado essas formações são maneiras pelas quais o sujeito pode reconhecer seu inconsciente, por outro, se expressam, muitas vezes, como um enigma, como algo pelo qual os sujeitos não têm domínio e não veem sentido. Por isso, há algo de angustiante na relação do sujeito com essas formações. Ao mesmo tempo, enquanto o representante da força pulsional não encontrar nenhuma representação consciente, esse estará

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em forma de pura angústia para o sujeito. Sendo assim, esses produtos do inconsciente são também formações de compromisso, entre a força pulsional que procura se expressar nessa derivação e a força de resistência que procura manter o conteúdo original inconsciente.

Inserido nesse conflito, é necessário pensar uma construção do sujeito, a parte que nos referimos até agora como aquilo que ele adota como próprio. Devemos pensá-lo como uma ficção do que o sujeito afirma ser, essa que ele invoca quando diz a palavra “eu”. Uma vez que consideramos a existência do inconsciente, já nos é compreensível a afirmação lacaniana de que “O núcleo de nosso ser não coincide com o eu” (LACAN, 1985/1955, p.62). Sendo assim, o sujeito existe para além do que afirma ser.

Apesar do sujeito ser divido e assujeitado por um inconsciente, é essa outra parte que ele irá reconhecer como própria e considerar como si mesmo. O Eu se relaciona diretamente com o mundo, ele responde, de alguma maneira, às demandas da realidade e da cultura, procurando rejeitar aquilo que não seria possível ou suportável na articulação com essas. Enquanto a força pulsional oferece condição de movimento para o sujeito, o Eu tem o controle da atividade motora e do planejamento consciente, estes mediam no sujeito a relação entre a realidade e os conteúdos inconscientes que o assujeitam.

Os processos da repressão fazem parte desse Eu construído pelo sujeito. Em uma metáfora freudiana, o Eu aparece como um cavaleiro que controla seu cavalo. O cavalo é aquilo que o move, seria a parte referente à satisfação pulsional, também denominado por Freud como o id (Isso). Entendemos pela dimensão conflituosa, entre essas partes, que não se trata de um cavalo manso e que nem sempre o leva nas direções que a consciência intenciona. O Eu procura ter controle sobre essa outra instância, porém sem abdicar totalmente de satisfazê-la, pois, não podemos tomar o Isso e o Eu somente na oposição de um com o outro. O Eu é uma parte originada do Isso que se organizou de acordo com as demandas da realidade (FREUD, 2014/1926). Sendo assim, essa organização procura satisfazer as pulsões, já que são justamente estas que mobilizam o sujeito. Ao mesmo tempo, o Eu não deixa de reprimir as expressões pulsionais que seriam desagradáveis em contato com a realidade e a censura moral.

Por sua vez, aquilo que é inconsciente parece resistir às tentativas do Eu de domá-lo, constituindo essa tarefa de repressão sempre como falha. Nunca é possível privar-se das satisfações pulsionais. Então, onde esse Eu falha em se alienar do sujeito do inconsciente, encontra-se a angústia, pois esta é a afirmação da presença do inconsciente. Assim, podemos encontrar em Freud a angústia como “[...] um sinal emitido pelo Eu” (2014/1926, p.82).

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Posteriormente, Lacan se ocupa do tema da angústia no Seminário 10 (2005/1963) e acrescenta ao pensamento freudiano:

Se isso [o sinal da angústia] se ascende, no nível do eu, é para que o sujeito seja avisado de alguma coisa, a saber, de um desejo, isto é, de uma demanda que não concerne a necessidade alguma, que não concerne à outra coisa senão meu próprio ser, isto é, que me questiona. Digamos que ele me anula. Em princípio, não se dirige a mim como presente, dirige-se a mim, se vocês quiserem, como esperado, e muito mais ainda, como perdido. Ele solicita minha perda, para que o Outro se encontre aí. Isso é que é a angústia. (p.169)

Então, se há angústia no Eu, é sinal de que este não constitui a totalidade do sujeito, assim como, também é sinal de que o sujeito em si não constitui uma totalidade. Há algo que falha e que falta nesse sujeito e, é através dessa falta, que ele pode se constituir como um sujeito desejante.

Apesar dessa tarefa de controle, sempre precário, por parte do Eu, é costume sustentarmos uma crença na razão, sendo que temos cotidianamente certa fé em nosso bom senso e autocontrole. Descartes foi capaz de resumir esse sentimento de uma forma precisa, e quase humorística, em suas primeiras palavras do Discurso do método (2001/1637, p.5): “O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo; pois cada um pensa estar tão bem provido dele, que mesmo aqueles mais difíceis de se satisfazerem com qualquer outra coisa não costumam desejar mais bom senso do que tem”.

Nessa direção, o Eu acredita em sua capacidade de organizar-se e domar seus desejos pela razão. Situado em seu momento histórico, o estudo psicanalítico contribuiu com a quebra de uma percepção do sujeito racional e com a discussão sobre os limites desta razão. Compreensivelmente a teoria freudiana sofreu, e sofre, forte resistência dos que gostariam de acreditar que a razão falha somente para outros sujeitos. Esses outros que constituem os objetos de interesse da psiquiatria, colocados em instituições de isolamento por aquilo que falham em sua contenção.

Não por acaso, as caraterísticas relacionadas à capacidade do autocontrole pela razão são fortemente encorajadas culturalmente, sendo que dizem das virtudes do humano mais produtivas ao coletivo em contraposição aos seus desejos egoístas individuais (FREUD, 2010/1930). Sobre isso, já que chegamos a abordar a religião, podemos perceber o quanto esta cobra um preço de privação dos desejos mundanos em troca da promessa de uma vida plena após a morte. As formas de controle social estão vinculadas tanto aos métodos diretamente coercitivos quanto a um exercício de linguagem e de crença que oferece os sentidos desejados para essa organização.

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Nas exigências relacionadas a esse lugar de potência e controle do Eu encontramos o que é descrito na teoria psicanalítica como um Ideal do Eu. Se por um lado o Eu se relaciona com a realidade e se depara com sua a insuficiência nas relações, por outro ele é convocado para dar conta dessa realidade e dos desejos, para estar em um lugar de autossuficiência e de potência. A isso se refere o termo Supereu, esse é a instância psíquica que atua como um imperativo que exige que o Eu realize o impossível, atinja um ideal de Eu que se direciona para a perfeição. Na discrepância, entre a percepção do Eu ao se deparar com a realidade e esse Ideal do Eu, encontramos o sentimento de culpa tão explorado pelas formas de organização social.

Assim como o Eu, mobilizado por um ideal, crê na possibilidade de organização individual pela razão, também se implica na organização do mundo pelo sentido. No conflito com as coisas do mundo que interrogam e aterrorizam em sua complexidade e imprevisibilidade, o sentido viria ordenar a relação desse sujeito com o mundo hostil.

Lacan realizou uma teorização sobre o sujeito baseada em três registros psíquicos, Imaginário, Simbólico e Real. Nesta construção, o sentido se encontra em um lugar de intersecção entre o Imaginário e o Simbólico Está excluído desta relação a instância que ele conceitua como Real, que consiste justamente no inalcançável, no sem sentido.

A pulsão, como vimos, não encontra lugar na consciência. Dessa forma, podemos falar de um sentido encontrado para representar a pulsão, enquanto essa se articula com um representante. Porém, a força pulsional, por nunca se tornar consciente, apresenta-se como um Real, um vazio de sentido que não pode ser alcançado. Sobre esse aspecto, temos a angústia também enquanto presença de um Real. Ao se deparar com um sem sentido o sujeito se implica na tarefa de recobrir esse vazio, justamente na medida em que o angustia. É essa tarefa infinita e impossível que faz com que Lacan defina o Real como aquilo que não cessa de não se escrever (1985/1973).

Então ao se deparar com o inapreensível do Real, o sujeito tenta, de forma falha, conformá-lo nos outros registros, do Imaginário e do Simbólico. O registro do Simbólico é o campo da linguagem, ele é constituído desse jogo linguístico de presenças e ausências. Sobre a implicação da instância do Simbólico em preencher de sentido o Real encontramos mais uma faceta dessa dimensão de conflito do sujeito.

Trata-se somente de uma faceta da mesma questão, pois, como podemos observar, as funções do sentido no recobrimento do Real dizem diretamente da relação entre o Eu e o conteúdo reprimido. Trata-se de uma relação precária de controle sobre aquilo que o escapa,

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sendo que, assim como é para o Eu, “a função simbólica constitui um universo no interior do qual tudo que é humano tem de ordenar-se (LACAN, 1985/1955, p.44).

Sendo assim, a partir da concepção do Real, o sentido também não é capaz de domar de forma eficiente as questões do sujeito e do mundo, havendo sempre aquilo que escapa a simbolização e configura-se como um impossível, um lugar onde o sentido não alcança e produz angústia. Porém, o trabalho do Eu sobre esse sem sentido é de uma infindável tentativa de domá-lo de simbolizá-lo e na medida do possível não se deparar com ele.

Entre as falhas, da consciência sobre os desejos e do sentido sobre o não simbolizável, o Eu implica-se em sua tarefa de alcançar um ideal numa condição precária. Onde a razão e o sentido falham há o sujeito do inconsciente e esse perturba o Eu. Com as inúmeras frustrações que a realidade e o inconsciente oferecem à tentativa de ordenação por um ideal, seria possível especularmos que o caráter de divisão do sujeito seria facilmente reconhecido conscientemente por ele.

Estaríamos enganados em pensar dessa maneira, justamente pela relação com o que já discutimos sobre o conceito de ilusão. A maior sustentação da suposta potência do Eu está no fato de que essa crença organiza o sujeito e seria desejável que este fosse como tal. Sendo assim, apesar de constituir-se como um sujeito dividido, vive no sujeito uma ilusão, a ilusão da unidade do Eu.

Para discutir a constituição da ilusória unidade do Eu, devemos falar desse terceiro registro ainda não explicitado, o Imaginário. Para isso, precisamos pensar um momento mítico da história do sujeito, um tempo lógico específico conceituado por Lacan como estádio do espelho. Seria um momento mítico pois diz de um tempo anterior à linguagem, antes que essa restitua ao infans sua função de sujeito (LACAN, 1998), logo, fora de um registro possível como memória ou como fato linguageiro. Nesse momento primitivo de uma constituição do sujeito, o infans se mostra capaz de perceber-se como um ser delimitado, através da presença de outro.

Este é o momento onde o bebê pode olhar para o espelho e perceber o reflexo como próprio. Trata-se, então, de uma transformação que ocorre no sujeito ao assumir uma imagem (LACAN, 1998), ou seja, identificar-se com a imagem refletida no espelho e perceber as margens do corpo. A percepção das bordas delimita o espaço corpóreo e o espaço do exterior, formando assim um inteiro definido, tal como um estádio, com uma área interna cercada por muralhas. O Eu se constitui no contato com a imagem e oferece uma unidade

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visual a esse corpo que estaria anteriormente marcado por uma experiência motora dispersa e precária.

No processo de identificação com a imagem constitui-se o Eu juntamente com o registro Imaginário, campo da percepção de unidades e, como já apresentado, responsável pelas fantasias. Nas palavras do psicanalista Antonio Quinet (2002, p. 127) “O imaginário é o registro da consciência e do sentido que faz com que o homem se julgue um eu”. Dessa forma, o imaginário é capaz de sustentar unidades visuais, pois não existe imagem da falta, o campo das imagens é o campo das presenças, dos volumes, dando a ilusão de espaços demarcados, de unidades independentes.

O Eu se constitui e se organiza pelos efeitos dessa imagem, logo, ele partilha dessa crença da unidade e da autonomia. No campo do simbólico a linguagem tenta conformar o Real, esgotá-lo em um jogo incessante de significações que não podem nunca o alcançar. Já o imaginário está marcado por uma relação de alienação diante do Real, pois se o sujeito crê ser idêntico ao seu Eu, supostamente nada estaria nesse campo inapreensível, ele seria pura consciência. Assim, o imaginário em Lacan é o registro do engodo, pois encobre o sujeito do inconsciente (RIVERA, 2014).

De qualquer forma, a angústia, como sinal, vem fazer furo nesse imaginário, frustra essa tentativa revelando sua precariedade. Sendo assim, o próprio Eu é entendido como uma identificação que possui caráter ilusório, enquanto procura se alienar de sua incompletude e divisão para a adoção de uma imagem de unidade. Apesar da conceituação de imaginário ser lacaniana, ela avança em relação direta com a conceituação do Eu freudiana:

Este Eu nos aparece como autônomo, unitário, bem demarcado de tudo o mais. Que esta aparência é enganosa, que o Eu na verdade se prolonga para dentro, sem fronteira nítida, numa entidade psíquica inconsciente a que denominamos Id, à qual ele serve como espécie de fachada – isto aprendemos somente com a pesquisa psicanalítica (...) (FREUD, 2010/1930, p.16)

É sobre esse aspecto que a instância do Eu é capaz de alienar, ali onde acredita formar uma unidade completa. Enquanto o sujeito se configura como desejante, incompleto e dividido, o Eu, através daquilo que vê na superfície, acredita em sua unidade imaginária. Essa crença nas unidades do visual está sustentada naquilo que Didi-Huberman (2010) descreve como um exercício tautológico do ver. Trata-se da crença de que aquilo que vemos é o que é, da forma que vemos. Assim, como a imagem do Eu é composta de bordas formando uma unidade, ela tautologicamente implicaria em um indivíduo (indivisível). Na imagem narcísica do Eu não se concebe a falta, ele tenta ser completo.

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Discutimos anteriormente como esse Eu realiza uma tarefa falha de domar o sujeito e o mundo através da consciência e do sentido. Sendo assim, aquilo que expõe a precariedade desse Eu, em relação a seu ideal, põe em questão também sua autossuficiência e sua unidade. Não é estranho pensarmos que esse exercício tautológico da visão também se faz de forma precária. A obviedade do campo do visível se mantém cotidianamente na percepção das unidades e dos volumes, porém é constantemente perturbada por um olhar que está sempre atravessado pelo sujeito. Esse olhar implica na dimensão pulsional que faz furo nesses objetos escópicos e revelam um vazio do sujeito.

Podemos considerar essa questão justamente em relação aos objetos artísticos. No Seminário 11 (1988/1964, p.106), Lacan pensa a questão do quadro afirmando que é esse que nos olha: “No campo escópico, tudo se articula entre dois termos que funcionam de maneira antinômica - do lado das coisas há o olhar, quer dizer, as coisas têm a ver comigo, elas me olham, e contudo eu as vejo”. A afirmação expõe um caráter dividido do olhar, a visão se dá no campo imaginário da percepção, mas, na medida em que vemos os objetos, algo é inquietado para além dessa superfície, esses nos olham no Real do sujeito.

Pautado nesse pensamento, Didi-Huberman formula seu livro O que vemos e o que nos olha (2010). O livro aborda a arte minimalista e questiona a possibilidade de um objeto ser visto somente em seu volume, em um exercício tautológico. Nesse questionamento o autor apresenta como exemplo um túmulo. É possível que o sujeito lance um olhar indiferente para esse objeto em sua forma e que insista que ali há somente aquilo que se vê, um volume e nada mais. Porém, o túmulo inquieta nossa possibilidade de vê-lo de forma simples, esse teima em mostrar a morte, teima em sair da obviedade visual do objeto para a inevitabilidade da falta do sujeito:

[...] há aquilo que, direi novamente, que me olha: e o que me olha em tal situação que não tem mais nada de evidente, uma vez que se trata ao contrário de uma espécie de esvaziamento. Um esvaziamento que de modo nenhum concerne mais ao mundo do simulacro, um esvaziamento que aí, diante de mim, diz respeito ao inevitável por excelência, a saber: o destino do corpo semelhante ao meu, esvaziado de sua vida, de sua fala, de seus movimentos, esvaziado de seu poder de levantar os olhos para mim. E que no entanto me olha num certo sentido – o sentido inelutável da perda posto aqui a trabalhar. (p.37)

Então, o vazio do túmulo, que serve de receptáculo para o corpo, acaba por refletir o próprio vazio do sujeito. Compreendemos, assim, como o túmulo é capaz de afetar o sujeito e angustiá-lo, sendo possível então que se procure evitar a imagem do túmulo ou implicar-se no difícil, se não impossível, exercício de uma visão tautológica sobre esse objeto. Essa

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tentativa diz do próprio funcionamento dos processos conscientes do sujeito, pois, nele procura-se uma ordenação pela razão e pelo sentido na tentativa de suturar a angústia: “[...] acreditar preencher o vazio pondo cada termo da cisão num espaço fechado, limpo e bem guardado pela razão – uma razão miserável, convém dizer” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p.38). Didi-Huberman constrói como conceito um hipotético homem da tautologia, que realiza embargos em forma de falsas vitórias sobre a inquietação do vazio. Cabe pensar que este ser hipotético não representa simplesmente um tipo de caráter específico de alguns indivíduos, mas ao próprio funcionamento do Eu na totalidade dos sujeitos que só se constituem e são capazes de se organizar através de algum nível de recalque, de verdades rasas e de exercícios tautológicos.

Entendamos então o que se configura aqui. Afirmamos que o Eu procura se ordenar pela razão, mas está sujeito à falha nessa tentativa. Também, que busca uma ordenação do mundo pelo sentido, mas se depara com o sem sentido do Real. Ainda dissemos, que existem diversas relações desse sujeito com o mundo que o revelam em sua limitação e que perturbam a possibilidade de se alienar através de verdades superficiais. Temos nesse panorama uma dimensão de conflito, uma luta entre um Ideal do Eu e uma condição de falta do sujeito que não pode ser esgotada. Porém, não devemos parar aí.

Há outro elemento nesse conflito que diz da relação entre sujeito e desejo. Este outro elemento coloca o conflito com o desejo para além daqueles que são recalcados ao serem considerados proibidos pela repressão. Trata-se da questão de que o próprio desejo coloca o sujeito em uma posição de insuficiência, faz o vazio presente como algo constante. Em uma unidade completa do Eu, autossuficiente, não está reconhecida a dimensão do desejo. As coisas que inquietam o desejo para movimentar o sujeito também dão a ver o vazio de sua condição, a falta.

A psicanálise frequentemente se ocupa dos temas obscuros e evitados socialmente, entre eles cita-se especialmente o sexo e a morte. Nesse ponto não teremos mais dificuldade em entender o que esses dois temas têm em comum. Seja nas limitações que a realidade oferece ao sujeito, seja no próprio desejo que o habita, a falta está em questão. O sujeito se movimenta por aquilo que o Eu procura não reconhecer. Agora sim encontramos o conflito da forma paradoxal como ele se apresenta ao sujeito, onde o sofrimento da falta também é a possibilidade do prazer do desejo, onde a dor da privação é o motor da criação e onde a limitação da morte também é a possibilidade de vida.

Lacan localiza essa dimensão paradoxal através de suas formulações complexas sobre das Ding, um conceito que ele aborda através de poucas aparições na obra freudiana. O

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termo em alemão refere-se à “Coisa”, a uma suposta completude do sujeito que está perdida. Das Ding é o objeto perdido que constitui o vazio do sujeito, que constitui o próprio sujeito em sua falta e o mobiliza na busca do objeto. É sobre esse vazio da completude perdida que se estrutura o sujeito, “É em torno desse das Ding que roda todo esse processo adaptativo, tão particular no homem visto que o processo simbólico mostra-se aí inextricavelmente tramado” (LACAN, 2008/1960, p.74).

Toda vez que o sujeito se interessa e investe libido em algo ele invoca nesse objeto a relação com a Coisa. Não se trata de fato de um objeto da Coisa enquanto existente, das Ding é a possibilidade mítica desse reencontro, no vazio deixado por essa suposta perda, que dá direções para onde o desejo deve se encaminhar. “Não é ele que reencontramos, mas sim suas coordenadas de prazer [...]” (LACAN, 2008/1960, p.68) Sendo assim, é uma satisfação originária, um objeto que não existe em si, está sempre já perdido, tendo de ser buscado e constituído na realidade. Essa Coisa só estaria lá, mas nunca está, quando todas as condições e anseios forem preenchidos.

Sendo assim, das Ding é um objeto que implica o sujeito na tarefa de atingi-lo, mas é um objeto vazio que revela o vazio constituinte do sujeito sobre qual desliza o desejo. Logo, a Coisa “[...] será sempre representada por um vazio, precisamente pelo fato de ela não poder ser representada por outra coisa – ou, mais exatamente, de ela não poder ser representada senão por outra coisa” (LACAN, 2008/1960, p.158). Sendo assim, essa relação com o vazio da Coisa configura-se como o Real do sujeito, é somente através do que se cria sobre esse vazio que algo pode se constituir no campo do desejo como objeto. É sobre o vazio de das Ding que as satisfações pulsionais irão se organizar na procura de satisfação.

Esse conceito diz diretamente sobre o que foi exposto até agora na dimensão do desejo, porém, esse também nos coloca mais próximos dessa perspectiva de conflito, de que o desejo expõe o vazio do sujeito. Sendo assim, são as coordenadas que das Ding indica que levam os sujeitos em articulações simbólicas e imaginárias para que os objetos ofereçam satisfação pulsional. Porém, o contato com o vazio de das Ding é em si uma exposição ao Real do sem sentido, traz algo de uma angústia mortífera.

Pela complexidade dessa dimensão de conflito constituída, já parecemos esbarrar em algumas limitações dos pensamentos freudianos apresentados sobre a arte. Principalmente se tratando dos momentos em que esses discursos localizam o papel das expressões artísticas predominantemente na lógica da fantasia e da ilusão. Nos ditos de Lacan e no exemplo explicitado por Didi-Huberman, encontramos uma dimensão dos objetos que nos olham e que botam em questão o conflito do sujeito para além da tautologia sustentada pelo Eu. Nessa

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direção, não é preciso descartar esse discurso freudiano, mas podemos, a seguir, mostrar suas limitações e procurar ir além dessas afirmações.

3.3 UM PERCURSO SOBRE A PERSPECTIVA FREUDIANA

Todo esse percurso, até o momento, serve para nos mostrar, primeiramente, o quanto a concepção de arte, enquanto uma aproximação do desejo e um distanciamento da realidade ainda nos é muito superficial. Quando Freud afirma que o artista consegue fazer com que os desejos desagradáveis em si se tornem fontes de prazer, ele parece apontar para a ideia de que o artista pode auxiliar no conflito entre os conteúdos reprimidos e a repressão. Porém, ao se tratar da amplitude da dimensão conflituosa do desejo, entendemos que a arte, ao caminhar em direção desse, pode proporcionar o encontro com o Real do vazio. Pois, seja na imagem do túmulo ou no âmago do desejo, o vazio nos olha.

Então, retomemos o tema da arte na psicanálise para pensar alguns questionamentos que devem ser feitos à perspectiva freudiana descrita. Podemos pensar o quanto essa visão apresentada, utilizando os termos fantasia ou ilusão, acaba articulando a arte em um registro predominante Imaginário. Ao mesmo tempo, podemos também encontrar momentos da obra freudiana em que o olhar do autor se dirige a outros aspectos e afetos produzidos pela arte. Sendo assim, há uma discussão a ser feita sobre essa perspectiva, que não se mostra como uma posição única e definida dentro da psicanálise.

Sobre essas questões, cabe aqui pensar que o campo artístico é sempre um campo de estudo complexo. Justamente, porque o fazer artístico, seja no gesto criativo ou interpretativo, parece jogar com as possibilidades desta complexidade. Enquanto determinados produtos culturais são criados e estabelecidos socialmente para atuarem como signos partilhados, no campo arte, por sua vez, temos de reconhecer que constantemente constituímos e lidamos com suas expressões de forma intencionalmente aberta e polissêmica.

Percebemos que na história do fazer artístico não encontramos somente diferentes expressões da arte, mas também diferentes formas pelas quais o conceito e a prática artística foram pensados e lidos. Nas diversas percepções sobre os objetos artísticos, podemos encontrar diferentes discursos que podem, por exemplo, afirmar a arte como uma constituição de belos objetos com a função de agradar. Assim como, também podemos encontrar

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perspectivas que rejeitam a exclusividade das expressões agradáveis e privilegiam diversas outras expressões disformes, horripilantes e até monstruosas dentro do campo artístico.

Há também, discursos que durante a história da estética afirmaram a arte como um fazer capaz de elevar o ser humano, fazendo-o entrar em contato com suas mais nobres virtudes. A despeito dessa possibilidade, certas perspectivas consideram que as expressões artísticas possibilitam o encontro com o mais baixo, ou mesmo, atribuem à arte a função denunciar algo para além da nobre mascara humana.

Não necessitamos nos estender nessa variedade de percepções. Somente devemos reconhecer que as diferentes visões revelam como os objetos artísticos, ou seja, todo esse conjunto de expressões que destinamos ao lugar de serem vistas, consistem em objetos opacos. Isso significa que não podemos defini-los ou apreendê-los de uma única forma, pois tratam-se de objetos passíveis de serem interpretados de diferentes maneiras.

Partindo desse pressuposto, Rancière discute em seu livro A partilha do sensível (2009) os acontecimentos da passagem da arte acadêmica para a arte dita moderna de acordo com que ele denomina como regimes de visibilidade da arte. O autor se refere a um regime da arte, justamente porquê, antes de pensar essa passagem como uma mudança específica de expressões desse campo, Rancière acredita que as modificações acontecem principalmente nas formas de visibilidade e pensabilidade do campo estético, inclusive na forma pela qual se olha para a arte do passado. Sendo assim, um regime das artes seria “[...] um tipo específico de ligação entre modos de produção das obras ou das práticas, formas de visibilidade dessas práticas e modos de conceituação destas ou daquelas” (p.28)

O autor se refere ao regime poético para designar o regime centrado majoritariamente na arte acadêmica: “Ele se desenvolve em formas de normatividade que definem as condições segundo as quais as imitações podem ser reconhecidas como pertencendo propriamente a uma arte e apreciadas, nos limites dessa arte, como boas ou ruins, adequadas ou inadequadas” (RANCIÈRE, 2009, p.31).

Não cabe aqui falar diretamente sobre as produções artísticas vinculadas a este regime, pois essas, como acabamos de explicitar, podem ser lidas de diferentes formas. Todavia, podemos pensar que, inserido nesse regime, as exigências acadêmicas sobre a arte produziam determinados discursos e gestos de leitura sobre o fazer artístico. As academias exigiam e avaliavam a arte de acordo com uma hierarquização de temas, privilegiando temas nobres em uma estética pautada no belo clássico e organizada na lógica da mímeses.

Sendo assim, das diferentes concepções possíveis sobre a arte, os discursos vinculados a esse regime são, muitas vezes, aqueles que prezam por temáticas artísticas que

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tenham dignidade de acordo com valores morais, estéticos e culturais específicos. Trata-se de discursos que se repetem ainda hoje, por vezes, exigindo o retorno da valorização exclusiva do belo clássico, a utilização de critérios estéticos específicos para avaliação da qualidade da arte e a exclusão de temas obscenos e supostamente indignos do olhar do público.

Com a transição, para o que Rancière denominou como o regime estético das artes, encontramos um número maior de expressões, leituras e critérios de valorização da arte como algo desviante das exigências higienizadas do fazer acadêmico. “O regime estético das artes é aquele que propriamente identifica a arte no singular e desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas, de gêneros e artes” (RANCIÈRE, 2009, p.34). Da mesma forma, podemos perceber atualmente, mais discursos que prezam pelo caráter transgressor, inquietante e inovador da arte, discursos que se contrapõem diretamente às perspectivas que prezam pela tradição e pela elevação moral da figura humana.

Essa multiplicidade de possibilidades discursivas no campo da arte, assim como o marco da passagem de regimes do século XIX para o século XX se mostram fundamentais para pensarmos a conceituação do fazer artístico na psicanálise. Pois, essas diferentes formas de concepção do conceito de arte não deixaram de produzir seus efeitos nas obras freudianas, essas que, não por acaso, foram produzidas nessa passagem para o século XX.

Seria quase impossível que a psicanálise concebesse a arte tal como um campo higienizado, mobilizado pelas mais nobres virtudes morais humanas. A psicanálise constantemente revela que os mais elevados produtos culturais são provenientes das mesmas forças pulsionais que, por vezes, a cultura atribui como aquilo que há de mais “baixo”. Nas palavras de Freud:

Impulsos instintuais [pulsionais] que só podem ser caraterizados como sexuais, seja no sentido restrito ou no sentido mais amplo do termo, desempenham papel extraordinariamente grande – e ainda hoje não avaliado a contento – como causadores de doenças dos nervos e da mente. E mais do que isso: que esses mesmos impulsos sexuais contribuíram em não pouca medida para as mais elevadas criações culturais, artísticas e sociais do espírito humano (2014/1916, p.29).

Cabe dizer sobre isso, que aquilo que a arte proporciona, que poderíamos chamar de fruição estética, não é outra coisa senão algo que acontece em uma dimensão pulsional. É algo que ocorre antes de tudo no corpo e não teríamos dificuldade de chamar o campo estético, como um campo de sensações que produzem afetos, de um campo de sexualidade, no sentido amplo tal como a psicanálise nos propõe.

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