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Em contraposição às visões freudianas apresentadas até esse momento, Freud parece também perceber a existência de algumas expressões da arte que acabam direcionando suas reflexões para outras questões. O autor se ocupa delas no único texto freudiano que pode ser considerado como diretamente referente às questões da filosofia da estética. O texto O inquietante (2010/1919) inicia com uma afirmação considerando que a psicanálise tem pouco interesse na estética encontrada nos grandes manuais. Freud também afirma que não haveria nada na vasta literatura sobre a estética marginalizada que trabalha em seu texto, algo que ele chamará de inquietante ou estranho (unheimlich): “Sem dúvida relaciona-se ao que é terrível, ao que desperta angústia e horror [...]” (p.329).

Freud parece subestimar a presença de discursos da estética sobre essas expressões que desviam do belo clássico. Ele reconhece no texto não possuir um conhecimento profundo da área, mas diz não ter encontrado nada nos tradicionais manuais da estética. De fato, isso que desperta a atenção de Freud pode ser considerado uma perspectiva emergente, o que justifica a dificuldade de encontrar esses discursos. Porém, já existiam obras como a de Victor Hugo, por exemplo, que em 1827 já tratava da categoria estética do grotesco, valorizando enfaticamente essas expressões desviantes da estética do belo clássico.

Se essa possibilidade de estética chega como objeto de análise de Freud, inclusive, contando com obras literárias para serem pensadas sobre esse aspecto, é porque há no momento histórico de suas obras uma proliferação intensa das expressões artísticas possíveis, as quais poderíamos dizer que constituem a transição para o regime estético da arte. Sendo assim, Freud está correto na constatação da dificuldade de encontrar literatura sobre essa estética que o interessa, mas não se deu conta de que essa era a questão central e pulsante do campo artístico no período de constituição da psicanálise, não um detalhe esquecido a ser investigado.

De qualquer forma, no texto O inquietante, a visão diverge de um aspecto conciliador na arte, revelando aquilo que nas expressões artísticas angustia o sujeito. O texto parece mostrar que, o ponto onde a psicanálise terá maior interesse sobre o campo estético, é justamente onde o fazer artístico escapa da concepção de um objeto conciliador e encobridor. Em O inquietante, a arte aparece pela primeira vez, na teoria psicanalítica, como um campo disruptivo e tenso, ao contrário de um espaço de encobrimento da sexualidade. Nas palavras

da Psicanalista Tania Rivera (2014, n.p.).: “a estética do estranho [unheimlich] é justamente o oposto desta idílica e engessada ‘teoria da beleza’: em lugar de amortecer e esconder o sexual, ela traz à luz o que deveria ter permanecido escondido”.

Ao mesmo tempo, o texto rompe com uma prática de alguns dos textos freudianos, que olhavam para questões relacionadas ao artista através dos conteúdos presentes em obra. Estas análises focadas nos artistas podem ser percebidas em escritos como Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci (2015/1910) e O Moisés, de Michelangelo (2015/1914).

Já nos referimos a forma como Freud reconheceu a arte como uma expressão dividida, considerando que “a psicanálise não tem dificuldade em evidenciar, junto ao componente manifesto da fruição artística, um outro, latente e bem eficaz, oriundo das fontes ocultas da liberação instintual [pulsional]” (2012/1913, p.359). Há uma leitura possível de Freud onde isso significaria encontrar as neuroses dos artistas como sintomas nas obras de arte.

Essa visão não costuma ser partilhada pelos autores contemporâneos que trabalham com arte e psicanálise. Rivera (2002) cita como exemplo a obra freudiana Escritores criativos e devaneio (1907) como uma possibilidade de trabalho que não se limita à interpretação da psicanálise sobre o artista: “Nesse texto, não se trata de explicar a escrita ficcional a partir da psicanálise, mas, ao inverso, de tomar a criação literária como modelo da atividade psíquica” (RIVERA, 2002, p.32).

Lacan, em sua leitura da obra freudiana, costuma atribuir muitos de seus conceitos como já presentes indiretamente em Freud. Todavia, seu gesto por vezes salienta alguns aspectos da teoria em detrimento a outros. Através do desenvolvimento do conceito lacaniano de Real e dos três registros psíquicos, podemos pensar de outra forma a afirmação freudiana sobre o componente latente da obra de arte.

Se podemos pensar em Freud uma tentativa de encontrar um sentido oculto nas obras, trazendo o inconsciente para a consciência, a leitura através do Real lacaniano faz pensar também na presença de um sem sentido, algo de um inapreensível sobre o qual o sentido manifesto serviria como um recobrimento. Pois, a dimensão do Real propõe algo da ordem do impossível na experiência subjetiva humana, um vazio constituinte.

É esse vazio que Lacan colocará como determinante na experiência artística. Ele leva o conceito de sublimação para além da questão do laço social. Para Lacan, a sublimação e a arte estão diretamente relacionadas com o conceito de das Ding. Nas formulações de seus seminários ele afirma que a sublimação eleva o objeto à dignidade da Coisa (LACAN,

2008/1960). Ou seja, para que este objeto seja agraciado com o interesse estético do espectador, é necessário que esse seja percebido como algo que diz ao âmago do desejo do sujeito, sua perda original. Um objeto que, tal como o túmulo, olha o sujeito, lhe toca no vazio constituinte e no destino do desejo.

Sendo assim, é através do fazer artístico sublimatório que a obra pode abordar das Ding e fazer sobressair no objeto algo do reencontro prazeroso com a Coisa. Então, o objeto, enquanto portador de um possível prazer estético, tem de ser “coisificado”, ter valor do contato com o que está perdido. É por essa via que o quadro nos olha, a arte pode constituir cenas, imagens, sentidos, afetos, porém, invoca o sujeito por aquilo que há de mais humano na mais inerte paisagem. Sendo assim, Lacan esclarece que “[...] em toda forma de sublimação o vazio será determinante” (2008/1960, p.158).

Nesse sentido, a sublimação na arte nunca é somente expressão ou imitação da realidade. Mesmo se tratando das obras rigidamente figurativas, se estas produzem um prazer sublimatório, estarão sempre fazendo com que a figuração ganhe algum valor da Coisa. Não se trata de uma tarefa tão rara, pois, apesar da tentativa tautológica do Eu, a divisão própria do sujeito o coloca na situação de se deparar com seus conflitos em tudo aquilo que ele erroneamente percebe como “mundo exterior”. É esse o questionamento que a banda de Moebius nos convoca, onde está realmente o limite da parte de fora?

Como não existe a expressão da Coisa, esta pode assumir diferentes formas nas obras de arte. Nas poéticas de amor cortes dos séculos XI e XII, Lacan percebe a forma como as descrições da dama amada expressavam um amor absoluto e devoto, ao mesmo tempo em que pareciam esvaziar as caraterísticas do feminino. Há nessa idealização e despersonificação da dama uma referência ao mesmo objeto e a objeto nenhum. Fica exposto como esse amor suscitado pela privação do objeto não era direcionado à dama, mas a Coisa em forma de mulher.

Das Ding em si nunca será expresso, pois trata-se justamente do âmago do desejo, o impossível do Real. A arte pode dar forma a Coisa, para que tenha alguma forma, porém em certa medida ela sempre cercará esse vazio. Para isso, este fazer se realiza tal como o trabalho do oleiro que cria um vaso. A materialidade do vaso contorna o vazio e é criado a partir deste, mas é, antes de tudo, a superfície deste que permite que o vazio se faça presente, é através dele que o vazio tem lugar.

Então, sobre essa concepção do vazio na arte, temos que reconhecer que toda arte tem um potencial para ser angustiante, pois esta trata do vazio e está sempre sujeita ao prazer e ao horror deste encontro. Vimos que o vazio não tem expressão em si, é por isso que “Toda

arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno desse vazio” (LACAN, 2008/1960, p.158).

Podemos pensar como Freud alcança essa questão em sua obra Além do princípio do prazer (2010/1920). Nesse texto ele relata suas reflexões ao observar brincadeiras repetidas de seu neto de dezoito meses. Afirma que a criança exibia um comportamento muito tranquilo e obediente com os pais, porém, tinha um hábito de arremessar todos os pequenos objetos ao seu alcance para longe de si, para todos os cantos dos cômodos. Juntamente com o ato de arremessar objetos a criança com grande satisfação e interesse proferia um alongado som de “o”, repetidamente. A esse som Freud atribuiu a significação de fort (foi embora). Significava, então, como um jogo onde se fazia tudo ir embora.

Posteriormente, Freud teve contato com um outro momento da brincadeira da criança em que, desta vez, ele utilizava um carretel. O cordão do carretel permitia que o objeto fosse arremessado e segurado pelo cordão, podendo ser puxado para perto novamente. Ao puxar novamente para próximo de si o carretel, a criança emitia um som da vogal “a”, desta vez atribuído o significado de da (está aqui). Ali Freud considerou no que consistia aquela brincadeira em seus dois momentos, do fort que arremessa, e da que faz retornar: “Então era essa a brincadeira completa, desaparecimento e reaparição [...]” (FREUD, 2010/1920, p.172).

Freud constatou que nesse jogo da criança encontra-se uma conquista de possibilitar a situação da ausência dos cuidadores sem grande desespero. A criança que é abandonada desses cuidados da maternagem, mesmo que momentaneamente, sofre esse afastamento no campo do Real, como uma privação. Não há possibilidade se não o desespero frente à percepção deste vazio deixado pela ausência do cuidador. O jogo do fort-da coloca em questão esse perder e o retornar, a presença e a ausência, para que constitua um lugar simbólico para a falta. Ali a criança não somente ganha um papel ativo sobre esse acontecimento, mas também coloca a ser visto a reversibilidade e o significado da ausência.

Ao jogar com o carretel “[...] o objeto arrisca constantemente a se perder, e também o sujeito que dele ri” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 96). Essa perda do objeto o concerne tal como se dissesse sobre o vazio próprio do sujeito. Ele ri na medida em que essa ausência já não o invade como o vazio e ali ele pode jogar e enganar-se dela. Na angústia do vazio não há engano, pois, a angústia é aquilo que não engana (LACAN, 2005/1963). O jogo dá lugar possível a falta, para que se possa jogar com ela, justamente porque essa invadia a criança como algo insuportável.

Assim, o carretel não deixa de olhar a criança em seu vazio, é enquanto esse jogo a concerne nesse esvaziamento que ela o repete. É onde a criança pode jogar, pode repetir e significar, que se consegue dar algum sentido à ausência. Nos objetos de arte encontramos a mesma atividade, de criar e configurar algo em torno do vazio, de tocar de alguma maneira o Real. Temos então que: “As imagens da arte sabem de certo modo compacificar esse jogo da criança que se mantinha apenas por um fio, e com isso sabem lhe dar um estatuto de monumento [...]” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p.97).

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