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TEMPO E MENTALIDADE NAS MISSÕE;SJESUfTICO-GUARANIS

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C O U 2 7 1 -9 = 9 8

TEMPO E MENTALIDADE

NAS MISSÕE;SJESUfTICO-GUARANIS

L U IZ H E N R IQ U E T O R R E S *

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"Nada é mais conservador e tenaz do que

a medida do tempo"

Philippe Ariês

RESUMO

A tra n s iç ã o m e d ie v a l/m o d e rn o c o n s titu iu -s e n u m p ro c e s s o le n to d e s o b re v iv ê n c ia d e u m a m e n ta lid a d e e x tre m a m e n te s e n s ív e l à s fo rç a s s o b re n a tu ra is . A c o n s tru ç ã o d a te m p o ra l id a d e m is s io n e ira je s u ític o -g u a ra n i a o lo n g o d o s s é c u lo s X V II-X V III o rie n to u -s e p o r ritm o s te m p o ra is , o n d e o ritu a lis m o c ris tã o , c o n d u z id o p e lo s p a d re s je s u íta s , im p ô s -s e c o m o d is c ip li-n a o rd e li-n a d o ra d o e s p a ç o s o c ia l. E li-n tre o d is c u rs o q u e re c o rre a o m e d ie v a l e a s m o tiv a ç õ e s d a m o d e rn id a d e m e rc a n tilis ta , s u rg e o im a g in á rio m is s io n e i-ro : ric o e m a le g o ria s , re p re s e n ta ç õ e s e s ig n o s , d in a m iz a d o p o r u m te m p o d e u to p ia e tra n s iç ã o .

1 INTRODUÇÃO

As Missões Jesuítico-Guaranis constituem-se num amplo tema para a

análise intelectual em Ciências Sociais. A documentação escrita e arqueológica, as

estruturas materiais ainda existentes e a ampla e variada produção historiográfica

constituem-se num campo fecundo para as novas interpretações e reinterpretações

do conhecimento acumulado.' .

A discussão sobre a temporal idade nas Missões, encaminhada nos trabalhos

de Maxime Haubert? e Bartomeu Meliá3, ainda é um campo pouco explorado para

as interpretações, que, buscando uma ampliação da visão global da dinâmica

missioneira, podem recorrer à abordagem da história das mentalidades ou história

psicossocial.

Hilário Franco Jr. propõe a seguinte definição de mentalidades:

Como a palavra "mentalidades" tem outros sentidos,

talvez história psicossocial fosse uma expressão

me-nos ambígua, indicando o primado psicológico nos

* P ro fe s s o r d a U n iv e rs id a d e d o R io G ra n d e .

(2)

seus aspectos mais profundos e permanentes, mas

sempre manifestados historicamente, dentro e em

função de um determinado contexto social, que por

sua vez passa a agir a longo prazo sobre aquele

conjunto de elementos psíquicos coletivos."

Especialmente os estudos de Jacques Le Goff sobre a temporal idade

medievais, de Philippe Ariés sobre a história das mentalidades". de Laura de Mello

e Souza com a feitiçaria na Europa e no Brasil

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C o lo n ia l" e a coletânea organizada

por Lana de Lage Lima sobre o período colonial b ra s ile iro " são trabalhos que

consideram que a história não é formada apenas pelo trabalho, leis, guerras,

acontecimentos políticos e pela dinâmica econômica, mas também pelas fantasias,

sonhos, angústias e esperanças dos homens em sociedade.

Para Le Goff, a história das mentalidades está situada na junção do

individual e do coletivo, do longo tempo e do cotidiano, do inconsciente e do

intencional, do estrutural e do conjuntural, do marginal e do qeral."

Em termos gerais,

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m e n t a l i d a d e refere-se aos conteúdos inconscientes da

psicologia coletiva, e i m a g i n á r i o corresponde ao conjunto de imagens, isto é,

representações, sonhos, visões, construída por uma sociedade.

O conceito de t e m p o supera a compreensão meramente cronológica,

matemática e mecânica, mas é entendido enquanto modo como as pessoas estão

estruturadas mentalmente no cotidiano de uma sociedade, reproduzindo

representa-ções e ritualizando a sua vida. Nesse sentido, o t e m p o de uma sociedade traduz,

além das mentalidades, a organização do espaço frente às possibilidades

tecnológi-cas de produção e às motivações de ordem política, sócio-cultural e ideológica.

Ao analisar a mentalidade na Idade Média, Hilário Franco Jr. concluiu que,

para o homem medieval, o referencial de todas as coisas era o sagrado e o

sobrenatural, fenômeno típico de sociedades agrárias muito dependentes da

natureza e portanto à mercê de forças desconhecidas e não controláveis. io

A sociedade missioneira surge num momento de transição econômica

(feudalismo/mercantilismo), política (descentralização/absolutismo). social

(or-dens/classes), mental (sobrenatural/racional) - a transição entre o medieval e o

moderno.

A partir da questão da temporal idade, é possível contribuir para uma

melhor compreensão do lugar das Missões nessa transição.

2 TEMPO MEDIEVAL: CAMPONESES E MERCADORES

Segundo Jacques Le Goff, no período medieval o tempo bíblico do

cristianismo primitivo é, antes de mais nada, um tempo teológico: tem início e é

dominado por Deus. Conseqüentemente "a ação divina, na sua totalidade, está tão

naturalmente ligada ao tempo que este não poderia constituir um problema; é, pelo

contrário, condição necessária e natural de todo ato d iv in o "."!

Na Idade Média Central (séculos X-XIII) o tempo da Igreja está

relacionado ao tempo do camponês, que se baseia no ciclo das estações, na

16 B IB L O S , R io G ra n d e , 4 : 1 5 -2 5 ,1 9 9 2 .

imprevisibilidade das intempéries e da natureza. Este tempo linear terá sempre um

sentido e uma direção, tendendo a Deus - afinal, o sentido global da história dà

humanidade é revelado por Deus aos homens e a Igreja orienta a humanidade em

sua busca de salvação:

O tempo do trabalho é o tempo de uma economia

ainda dominada pelos ritmos agrários, sem pressas,

sem preocupações de exatidão, com inquietações de

produtividade - e o de uma sociedade à sua imagem,

sóbria e pu dica, sem grandes apetites, pouco exigente,

pouco capaz de esforços quantitativos. 12

Os ritmos naturais, a atividade agrária e a prática religiosa, a partir do

século XIV, disputam posição com a temporal idade matemática dos relógios

mecânicos e com a ânsia dos mercadores em medir melhor o tempo do trabalho

(que passa a gerar lucro). A passagem de uma divisão eclesiástica para umà divisão

laica do tempo refletia a necessidade de adaptação às transformações econômicas,

especialmente às condições do trabalho urbano, ocasionando uma passagem lenta e

complexa ainda dominada pelo tempo tradicional. O mercador necessitava de um

tempo novo, mensurável, orientado e previsível, relacionado aos preços, viagens,

lucros, trabalho e mão-de-obra.

As grandes navegações e a descoberta da América exportam para o Novo

Mundo os conflitos na mentalidade européia: o homem assume um tempo que se

converte em dinheiro ou ainda o destino é obra divina?

Na Idade Média ninguém se preocupava em medir

matematicamente o tempo, porque a Deus cabia o

controle do destino de todo ser humano. Ninguém

precisava ter pressa, pois não faria nada além do que

Deus havia determinado. O sino da Igreja,

invariavel-mente, anunciava a repetição de um dia igual ao

outro. Trabalhando muito ou pouco, o servo

conti-nuaria servo e o senhor, senhor.13

3 TEMPO DO TESOURO E DO MISTt:RIO

A historiadora Janice Theodoro da Silva, através do estudo dos

descobri-mentos e colonização, busca a caracterização das concepções de tempo e a presença

do imaginário medieval/moderno na América Colonial. A autora considera que a

teatral idade, a agilidade e o apoio à política expansionista ibérica permitiram uma

rápida penetração da doutrina entre os povos vinculados a outra estrutura ritual,

sendo as igrejas "o suporte básico em que se assentou todo o projeto

coloniza-dor"!": A igreja não era apenas o lugar de oração, mas um objeto capaz de impor

sua ordem a tudo o que estava em sua volta: uma aldeia, uma vila ou uma cidade.' S

Na conquista do Continente Americano haveria dois momentos: o tempo

---

--

17

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(3)

do tesouro,

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o n d e o conquistador saqueia e opta p e lo lu xo e prazeres imediatos,

u tiliza n d o a riqueza para a re a liza çã o de obras sagradas ou para o uso profano, e o

tempo do mistério, que apresenta um ritmo mais le n to engendrado p e la Igreja e que

recorl<e à ritualização e à alegoria.

O tempo do tesouro pode se r caracterizado por este d iá lo g o entre o

imperador inca Atahua/pa e o representante cle rica l Frei Vicente. Este ú ltim o

tentava doutrinar o ínca, buscando o respeito ao rei espanhol, a a d o ra çã o da cruz e

a crença no e va n g e lh o . Atahualpa responde às in te rp e la çõ e s dizendo:

que não -tern que a d o ra r a nada se n ã o o so l que nunca

morre, nem seus guacas e df!uses também têm em SUa

le i: a q u ilo guardava. E perguntou o dito In ca a Frei

Vicente quem lh e havia dito.

Responde Frei Vicente que isso lh e havia dito o

e va n g e lh o , o livro . E disse Atahua/pa: dêem.me o

livro e o tomou nas mãos; começou a fo lh e a r as

folhas do dito livro . E disse o dito In ca que, como

não me disse n a d a , nem me fa la a mim o dito livro ,

falando Com grande majestade, sentado em seu trono,

e arremessou o dito livro d a s mãos, o dito In ca

Atahualpa.

Como Frei Vicente ordenou e disse: acudam aqui

ca va le iro s, estes índios gentios são contra a nossa fé!

E Dom Francisco Pizarro e Dom Diego A /m a g ro , por

sua vez, o rd e n a ra m e disseram: ataquem, cavaleiros,

estes infiéis são contra a nossa cristandade e nosso

imperador e rei; demos n e le s! E assim lo g o começa.

ram os ca va le iro s a dispararem seus arcabuzes e

fizeram escaramuças e os ditos so ld a d o s começaram a

matar índios como formigas. 16

Esta narração de Guamán Poma caracteriza uma representação te a tra l,

o n d e a destruição da dignidade indígena é necessária para a SUpremacia da

cristandade. O tempo do tesouro é o tempo da conquista e da brutalidade, cujos

excessos seriam condenados por Antonio de Montesinos17 e B a rto lo m é de Las

Casas.

No tempo do mistério, superado o saque, impõe.se um novo ritmo

histórico recompondo arduamente o espaço da destruição e ritu a liza n d o a fé

católica cerimonialmente, nos quadros e estátuas de d e vo çã o , instituindo-se o

tempo breve do pecado e o tempo lo n g o do perdão:

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1 8

Produziam-se virgens, santos, santas, reis, profetas,

a le g o ria s místicas, cenas evangélicas e histórias

clássi-cas em grande quantidade, forjando-se um tempo

Com dimensão a le g ó rica que satisfazia a o s nativos e

a o s europeus. Lentamente criava-se uma profunda

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identidade cultural, tan-to para os colonizadores

acos-tumados aos referenciais europeus como para a q u e le s

que se vinculavam às tradições indígenas. 18

A astrutura mental da colônia no século XVI ainda carecia de

racionalida-de empresarial. As relações de trabalho/mão-de-obra eram forjadas pela Igreja,

podendo a construção do Novo Mundo transcorrer com lentidão e con'stância.

Independente das transformações econômicas e políticas, o ritmo histórico

correspondia às estruturas de longa duração, elaborados pela lq re ja .' 9

4 O TEMPO MISSIONEIRO

O homem ibérico do século XVI, refletindo a presença rnarcante da Igreja,

que simbolizava a própria identidade após as .lutas de reconquista da Península

frente aos árabes, permanecia ligado ao universo medieval: superstições, espiritual

i-dade arraigada, devoção a santos e relíquias, peregrinações e sobrenaturalismo.

No contexto do Renascimento, da Reforma Protestante e da debilidade

ética-moral católica, é criada a Companhia de Jesus, ordem religiosa de caráter

reformista e militante (s o ld a d o s d e C ris to ), cuja ética loiolana baseava-se no "salvar a alma" através da militância religiosa e da obrigação de "viver no mundo.v"?

Nas relações entre Igreja e Monarquias espanhola e portuguesa, a

Companhia de Jesus prestou grandes serviços na conversão indígena e

missionariza-ção, No caso que será analisado - o surgimento das Missões Jesuítico-Guaranis - a

nacionalidade espanhola destas Missões é de extremo interesse para os estudos da

formação territorial sul-rio-grandense e para a história da Bacia Platina Oriental.

O surgimento de povoados missioneiros a partir do início do século XVII,

em terras pertencentes à monarquia espanhola (atuais Paraguai, Argentina e Brasil

-estados do Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Paraná}, desencadeou um

processo civilizatório junto aos indígenas guaranis (horticultores de floresta tropical

e subtropical)21, promovendo a formação de uma organização social de caráter

comunitário e católico, político-administrativamente vinculados aos órgãos

adminis-trativos metropolitanos (Casa de Contratación e Conselho das índias), coloniais

(audiências, Vice-Reis, governadores, autoridades), clericais (superiores da

Compa-nhia de Jesus e Igreja de Roma) e locais (Cabildo); prestando serviços militares, pois

os Guaranis são legalmente súditos do Rei (pagando impostos sobre a produção

agropecuária e a exportação); promovendo a produção artística, artesanal e técnica,

segundo o imaginário da sociedade européia católica (diabo x conversão).

A inserção das Missões no processo histórico platino tem possibilitado

análise da formação social, político-administrativa, econômica, cultural etc, porém

as. e~truturas rnentaísê ? ainda não receberam um espaço maior na produção

mlssloneira. Neste sentido, buscar a compreensão da temporal idade é uma das

Possibilidades para responder a uma instigante e complexa indagação: como a

Companhia de Jesus construiu ritualmente a temporalidade no Novo Mundo e qual

a na.tureza dessa construção frente ao Colonialismo, ou seja, o tempo missioneiro é

medieval/moderno ou decorrente das possibilidades histórico-culturais das Missões

S IS L O S , R io G ra n d e , 4 : 1 5 -2 5 ,1 9 9 2 .

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inseridas nas determinações do Sistema Colonial Mercantilista?

Para uma aproximação inicial com o cotidiano e temporalidade nill

Missões Jesuítico-Guaranis, partir-se-á dos estudos de Maxime Haubert e Bartome~

Meliá.

. No capítulo "As horas e os dias" de seu livro sobre o Cotidiano

missioneiro, Hãubert escreve sobre

à

despertar desse cotidiano:

O dia começa às quatro horas - ou às cinco no

inverno - ou seja, cerca de uma hora antes do nascer do Sol.

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I:

o guarda-portão quem toca o sino para acordar os jesUítas, os quais se dirigem imediatamente

à igreja, para uma hora de devoção mental. Durante

esse períOdo, os alcaides das crianças percorrem as

ruas ao som de tambores, gritando: "Irmãos! Eis que

vai começar o dia! Que Deus vos guarde e vos ajude!

Acordai os vossos filhos e filhas, para que venham

orar e louvar a Deus, ouvir a santa missa e começar os

vossos trabalhos em seguida. Não vos demoreis, não

sejais fracos, não vos deixeis tomar pela preguiça!

Ouvi! Já soam os tambores", etc. Todas as crianças e

todos os adolescentes, desde os sete anos até a idade

própria do casamento são reunidos pelos alcaides e

conduzidos até o adro da igreja. Duas crianças rezam

orações, as quais são repetidas em Coro pelos

compa-nheiros. Em seguida, entoam alguns pequenos

cânti-cos, tudo isso sob a direção de catequistas índios;

mas, como os jesuítas não acreditavam muito neles,

em assuntos tão essenciais, não é raro que surjam

imprevistamente no meio deles."23

Às dez horas, após haverem recitado as ordens canônicas, os jesuítas

retiram-se para os seus quartos para realizarem o exame de consciência. As

ocupações variam entre as confissões, inspeção dos campos e das oficinas,

catequese, visita a doentes. Durante as refeições, um chantre lê um capítulo das

Santas Escrituras em latim, vida dos santos em espanhol, o martirológico, o livro de

Ordenes (às sextas-feiras) e a cada quinze dias, as regras do Instituto.

24

Os índios trabalham nove horas no verão e sete no inverno, sendo a

jornada de trabalho encerrada com o toque do sino chamando para o terço. Os

padres encarregam_se dos enterros e após recebem os fiéis para confissão. Às

dezenove horas é servida a janta, seguida de uma hora de recreio e posterior exame)

-de consciência. O dia encerra-se com orações, leituras pias e penitências:

Antes de se deitarem, as crianças enchem as ruas de

breves cânticos, após o que vão pedir a bênção a seus

pais. Depois do toque de recolher, a nenhum índio é

permitido sair de casa, percorrendo vários zeladores

20

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todas as ruas, durante a noite, a fim de evitarem

infração ao

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s e x t o mandamento. Todo o moinante

recebe um castigo exemplar. A noite acha-se dividida

em três quartos, sendo a rendição anunciada por um

toque de tambor (... ) Assim decorrem os dias e as

noites? 5

O decurso dos anos é marcado pelas mesmas festas religiosas e civis da

América colonial espanhola, como é o caso das festividades da Quaresma, Paixão,

Páscoa, Natal, etc. Padre Peramás escreveu que "não se ouviam outros cânticos que

não fossem dedicados a Deus, a Jesus Cristo, à Virgem Maria e aos santos, cujos

louvores ressoavam pelas ruas e caminhos ... " (Pe. Peramás, citado por Haubert:

2 7 8 ).

Segundo Bartomeu Meliá, nas reduções jesuíticas as horas e os dias, as

semanas e as estações, sucedem-se com a regularidade de um relógio:

Las mismas figuras salen a Ias mismas determinadas

horas, se poen en movimento, hacen sus gestos con Ia

misma controlada exactitud que el paso de Ias horas,

siempre fieles a sí mismas, iguales, repetidas en su

rutinario volver, constantes en su dístríbulctón.? 6

O padre José Cardiel afirma que em cada redução havia um relógio feito

por índios ou comprado em Buenos Aires. Um índio. velho, o "portero", era

responsável por um relógio situado no corredor do primeiro pátio, o qual tocava

rigorosamente às cinco horas no inverno e às quatro no verão." 7

O)esuíta José Escandón escreve sobre o "tarnborcito " que é tocado "en Ia

plaza y por Ias calles", convocando os índios para o catecismo e a rnissa.?8

Os ofícios artesanais, o trabalho agrícola e as atividades possuem horários

fixos que somente são alternados nas mudanças de estação. O despertar, a missa, as

refeições, o repouso noturno são seqüências de um ritmo disciplinador e repetitivo,

"EI sol está ido y los indios descansam, esperando un nuevo día tan igual ai día

anterior y tan igual en un pueblo como en otro, que sólo Ias personas diversas y

algún detalle pueden orientar Iadiferencia't.? 9

As festividades religiosas eram momentos de ritualização de um cotidiano

voltado à dinâmica espiritual da moral cristã através das procissões, da música e

canto, da dança, representações teatrais e devoções.

Um livro escrito em guarani pelo padre J. Insaurralde "Ara porú aguiyey

hába" (Do uso perfeito do tempo" - edição de 1759) apresenta na capa o seguinte

texto: "En estos livros ensefia el autor aios indios, cómo pasar el día íntegro santa

y dignamente, ya sea trabajando en casa, ya cultivando el campo, ora camino de Ia

iglesia o asistiendo a Ia rnisa."? o

A uniformidade e repetição das atividades e movimentos nos

LKJIHGFEDCBA

p u e b lo s,

promovem um ritmo que almeja o "uso perfeito do tempo", um ritmo de trabalho

e cristianização, conduzido na atenção constante dos jesuítas. Este modelo de

uniformidade certamente deve ser relativizado (os apelos dos discursos jesuíticos

B IB L O S , R io G ra n d e , 4 : 1 5 -2 5 ,1 9 9 2 .

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21

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(5)

buscam uma certa prática

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S O cia l), e a fo rm a çã o m issio n e ira , na sua dinâmica global

e particularidades de cada povoado, construiu seu ritmo a partir de arritmias frente

ao modelo de uniformidade proposto no século XVIII no livro sobre o uso do

tempo (arritmias provocadas pelos "karais" do século XV 11, pela presença cultural

dos Guaranis nas reduções ... ).

A inserção e sobrevivência de um "tempo perfeito" frente à história

colonial lbero-Americana demonstrou ser um processo complexo e frágil. O

universo ritual, alegórico, material e discursivo sucumbiu frente à magia destruidora

de uma palavra: fronteira. A delimitação das fronteiras entre as frentes de expansão

lu,o-b''';I,;" e "p,nhol'-,m,,;o,n, e"""Pond'm a um pme""o de long,

duração, que se estendeu do século XVII até o século X IX . As Possibilidades

históricas missioneiras estão contextualizadas nessa disputa de fronteiras entre Os

países ibéricos e os interesses coloniais. A fragilidade de Possibilidades que se

denunciam em curta duração (bandeirantes esCravagistas e a destruição de

Reduções): em média duração (tratados políticos de delimitação territorial entre

PO'tug,' e E'p,nh,

J;

ern long, dU"cão

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Io, 'n"90n ;,mo, _ polit;oo" ,eonõm;oo"

militares e intelectuais - que até hoje lutamos para superar). Estas "durações"

traduzem a inviabilidade de uma temporalidade uniforme e perfeita num

espaço-tempo tenso e conflitivo.

As determinações do processo histórico europeu e platina (dinâmico em

que as Missões estão inseridas) propiciou um tempo para a Conquista espiritual, para

o florescente desenvolvimento e para a derrocada do projeto (e decorrente expulsão

dos jesuítas e marginalização dos Guaranis).

Se o confronto com o universo colonial desarticulou a temporalidade

missioneira (baseada no comunitário, mercantil, sobrenatural e hierarquia), a

questão de como o uso perfeito e uniforme do tempo regeu a vida de jesuítas e

índios por mais de cento e cinqüenta anos é um problema que conduz para o campo

da ritualização e das realizações materiais.

Para Meliá, os três pilares em que estava baseada a vida numa redução

eram: as casas comunais que uniam as famílias, a agricultura comunitária e a religião

cristã, que ritualizava todas as atividades do dia e oferecia uma intensa

cerimonialidade:

EI mérito de esta utópica realidad proviene

principal-mente de Ias mismos Guaraníes, y en segundo

término de Ias jesuítas en Ia medida en que no

destruyron ni Ia comunidad ni Ia sacramentalidad de

Ia gente guaraní, sino que con amor cristiano y fe le

dieron una forma de actualidad histórica muy

adecua-da para aquellos ticmpos de colonia.2 I

A ampliação das pesquisas no campo da ritualização e do sagrado profano

permitirão o levantamento de' novos elementos na caracterização do imaginário

missioneiro.

22

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5

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ritmo temporal missioneiro cadenciava-se pelo ritualismo cristão com

todo o seu universo de representações e repressõesê ". A sistemática do trabalho,

das atividades espirituais e artísticas impunha-se enquanto disciplina ordenadora do

espaço social.

Enquanto produto da conquista espiritual e tensão com a sociedade

baseada na exploração da mão-de-obra pelo encomendeiro, as Missões constituem-se

num processo enquadrado no Sistema Colonial Mercantilista, porém com

caracterís-ticas específicas e diferenciadas.

A Companhia de Jesus construiu ritualmente a temporal idade nas Missões

recorrendo às alegorias, representações, sobrenaturalismo, atividades cênicas,

musicais, festas religiosas, criando o pecado e propiciando o perdão ao Guarani,

estando em sintonia com os princípios religiosos católicos ordenados pela Igreja e

em consonância com as Monarquias Ibéricas no contexto do Padroato na Idade

Moderna.

A repetição-imposição de um certo comportamento cristão no cotidiano

das Reduções visava à doutrinação e ao enquadramento dos Guaranis às

necessidades advindas da modernidade.

A transição medieval/moderno foi um processo lento de sobrevivência de

uma mentalidade sensível às forças sobrenaturais.

Uma delimitação mais clara da temporal idade missioneira precisa levar em

consideração essa transição onde o recurso ao medieval através do pensamento

cruzadista, sobrenatural (intervenção divina na sociedade e na natureza; ação de

Deus, que guia e legitima a ação do Clero)33; a forte ritualização (símbolos,

relíquias etc.) se funde com as necessidades advindas do moderno (trabalho e

produção sistematizada, geração de excedentes para comercialização, divisão social

do trabalho, incorporação de tecnologia). Ou seja, o imaginário conservador,

repressor, ritual e conversor do período medieval é mantido (aquele universo

alegórico e discursivo no qual a Igreja erigiu o seu poder), enquanto outro medieval

é superado (a letargia produtiva ... ). O moderno está presente com sua sistemática e

disciplina, com seu tempo matemático e mecânico. O discurso recorre ao medieval,

mas as motivações são da modernidade.

Apesar de isoladas do contato direto com o universo ibérico e colonial, as

Missões tinham seu cotidiano regulado por aquele universo visando a um "uso

perteito do tempo" em vários níveis: organização político-jurídico-administrativa

(súditos do Rei) e organização sócio-econômica (trabalho, produção, excedentes e

comercialização).

Os conceitos de organização sócie-polínca que tentam explicar a formacão

missioneira (como é o caso do "Império Teocrático" da "República Comuni'sta

Cristã"3 4, do "Socialismo Missioneiro"3 s) desconsider~m que os conceitos devem

se~ !ormulados a partir do objeto. A própria construção da temporal idade

mlssloneira caracteriza uma formação que somente a complexa dinâmica histórica

dessa transição poderá melhor definir.

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NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

1 Além de uma vasta e variada produção intelectual, atualmente ocorrem dois

simpósios que congregam os pesquisadores: Simpósio Nacional de Estudos

Missioneiros e Jornadas Internacionales sobre Misiones Jesuíticas. Três

trabalhos são fundamentais para a compreensão do processo histórico

missioneiro: GADELHA, Regina M.

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

A s M i s s õ e s J e s u í t i c a s d o l t e t i m , e s t r u t u r a s s ó c i o - e c o n ô m i c a s d o P a r a g u a i c o l o n i a l - s é c u l o s X V I e X V I I . Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981; KE RN, Arno. M i s s õ e s ; u m a u t o p i a p o l í t i c a .

Porto Alegre, Mercado Aberto, 1982; SCHALLENBERGER, Erneldo. A s

M i s s õ e s d o G u a i r á ; a d e f e s a d o í n d i o n o p r o c e s s o d e c o l o n i z a ç ã o d o P r a t a .

Porto Alegre, Pontifícia Universidade Católica, 1986. Dissertação de

Mestra-do.

2 HAUBERT, Maxime. A V i d a Q u o t i d i a n a n o P a r a g u a i n o T e m p o d o s

LKJIHGFEDCBA

Je su ite s.

Lisboa, Livros do Brasil, s.d.

3MELlÁ. Bartomeu. La vida en Ias reduciones jesuíticas de Guaraníes o el uso

perfecto dei tiempo In: E I G U A R A N f C o n q u i s t a d o y R e d u c i d o ; e n s a i o s d e e t n o h i s t ó r i a . Asunción, Universidad Católica, 1988.

4FRANCO JR., Hilário. I d a d e M é d i a ; n a s c i m e n t o d o O c i d e n t e . São Paulo, Brasiliense, 1988. p. 149-150.

5LE GOFF, Jacques. P a r a u m N o v o C o n c e i t o d e I d a d e M é d i a ; t e m p o , t r a b a l h o e c u l t u r a n o o c i d e n t e . Lisboa, Estampa, 1979.

6 ARIES, Philippe. "A História das Mentalidades" In: LE GOFF, J. H i s t ó r i a N o v a .

São Paulo, M. Fontes, 1990.

7 ME LLO E SOUZA, Laura de. A F e i t i ç a r i a n a E u r o p a M o d e r n a . São Paulo, Ática, 1987; O D i a b o e a T e r r a d e S a n t a C r u z . São Paulo, Companhia das Letras, 1986.

8 LI MA, Lana de Lage. M u l h e r e s , A d ú l t e r o s e P a d r e s ; h i s t ó r i a e m o r a l n a s o c i e d a d e b r a s i l e i r a . Rio de Janeiro, Dois Pontos, 1987.

9LE GOFF, J. As mentalidades, uma história ambígua. In: H i s t ó r i a ; N o v o s

O b j e t o s . s.

jihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

1 .,F ra n cisco Alves, 1979.

10 FRANCO J R., H. Op. cit., p. 151.

11 LE GOFF, J. Para um Novo Conceito de Idade Média ... , p. 45.

1 2 Idem, ibidem, p. 63.

13 SI LV A, Janice Theodoro da. D e s c o b r i m e n t o s e C o l o n i z a ç ã o . São Paulo, Ática, 1987, p. 27-8.

14 Idem, ibidem, p. 9.

15Idem, ibidem, p. 10.

16 L~ON-PORTI LLA, Miguel (Org.) A C o n q u i s t a d a A m é r i c a L a t i n a v i s t a p e l o s í n d i o s ; r e l a t o s a s t e c a s , m a i a s e i n c a s . Petrópolis, Vozes, 1984, p. 109.

17 Antonio de Montesinos, citado por BUENO, Eduardo. O P a r a í s o D e s t r u i d o .

Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984, p. 14.

18SILVA, Janice, Op. cit., p. 33.

19Idem, ibidem, p. 35-6.

2oSEBE, José Carlos. O s J e s u í t a s . São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 27.

21 BROCHADO, José J. P. A l i m e n t a ç ã o n a F l o r e s t a T r o p i c a l . Porto Alegre,

24 B IB L O S . R io G ra n d e , 4 : 1 5 2 5 ,1 9 9 2 .

UFRGS, 1977, p. 23_

22 "traçoS coerentes e rigorosoS de uma totalidade psíquica que se impõe aos

contemporâneos sem que eles saibam. Talvez os homens de hoje sintam a

necessidade de trazer para a superfície da consciência os sentimentos de

outrora, enterrados numa memória coletiva profunda. Pesquisa subterrânea

das sabedorias anônimas: não sabedoria ou verdade atemporal, mas sabedorias

empíricas que regem as relações familiares entre as coletividade~ humanas e

cada indivíduo, a natureza, a vida, a morte, Deus e o além". ARIES, Philippe.

Op- cit.,p. 175.

2

3HAUBERT, Maxime. Op. cit., p. 272-3.

24 Idem, ibidem, p. 284-5.

25 Idem, ibidem, p. 288.

26MEUÁ,27FURLONG,B. Op.Guillermo.cit.,p. 210.J o s é C a r d i e l y s u a C a r t a R e l a c i ó n (1747). Buenos Aires,

Dei Plata, 1953, p. 134.

28 Citado por Meliá, op. cit., p. 212.

29MEUÁ, B. Op. cit..p. 213.

30 Idem, ibidem, p. 211.

31 Idem, ibidem,3 p. 219. 2

SOUZA, José Otávio Catafesto. Uma análise do discurso missionário: o caso da

indolência e imprevidência dos Guaranis: In: V e r i t a s . Porto Alegre, Pontifícia

Universidade Católica, dezembro/1990. n. 140, p. 706-726.

330 apelo ao sagrado e ao sobrenatural aparece claramente em dois jesuítas que

participaram da conquista espiritual: MONTOY A, Antonio Ruiz de. C o n q u i s

-ta E s p i r i t u a l f e i t a p e l o s r e l i g i o s o s d a c o m p a n h i a d e J e s u s n a s P r o v í n c i a s d o p a r a g u a i , P a r a n á , U r u g u a i e T a p e . porto Alegre, Martins Livreiro, 1985; SEPP, Antonio. V i a g e m à s M i s s õ e s J e s u í t i c a s e T r a b a l h o s A p o s t ó l i c o s . São Paulo,

Itatiaia-EDUSP, 1980.

34 LUGON, Clovis. A R e p ú b l i c a " C o m u n i s t a " C r i s t ã d o s G u a r a n i s . Rio de Janeiro,

Paz e Terra, 1971.

35 FRE ITAS, Décio. O S o c i a l i s m o M i s s i o n e i r o . Porto Alegre, Movimento, 1982.

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