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Agindo como experts: a atuação dos cientistas na audiência pública sobre a constitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ISRAEL DE JESUS ROCHA

AGINDO COMO EXPERTS:

A atuação dos cientistas na audiência pública sobre a constitucionalidade do

artigo 5º da lei de biossegurança

Salvador 2013

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ISRAEL DE JESUS ROCHA

AGINDO COMO EXPERTS:

A atuação dos cientistas na audiência pública sobre a constitucionalidade do

artigo 5º da lei de biossegurança

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia como requisito para obtenção do título de mestre.

Orientadora

Prof.ª Dr.ª Iara Maria de Almeida Souza

Salvador 2013

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À Ceição, e seus exageros de mãe.

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AGRADECIMENTOS

Como sempre sou esquecido, espero que me perdoem. Vamos aos costumes. Quero muito agradecer:

A Iara Maria de Almeida Souza, que mais do que orientadora e interlocutora, tem sido uma mentora desde os tempos remotos da graduação. Agradeço o estímulo e constante disposição nas leituras deste texto.

Aos amigos e colegas da turma de mestrado que tanto contribuíram com todo tipo de apoio possível na construção deste texto.

A Rosanita Baptista, amiga de angústias acadêmicas, pela solidariedade nos momentos em que “jogar para cima” significa tudo.

Aos queridos professores, pois sem eles, por bem ou mal, as coisas não teriam acontecido dessa forma.

Aos finais de tarde das sextas-feiras conversando sobre fenomenologia, filosofia e teoria social com o povo do ECSAS/UFBA. Tardes que tanto contribuíram, e ainda contribuem, para a minha formação.

Aos sempre solícitos Dora e Reinaldo, dispostos sempre a resolver os problemas dos desesperados pós-graduandos.

E por fim, mas não menos importante, ao meu computador, que além de andar nas nuvens em nenhum momento resolveu desviar o curso de nossas ações na produção deste trabalho.

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RESUMO

A Lei de Biossegurança brasileira, após aprovação, iniciou um longo percurso pelo judiciário que se encerraria três anos mais tarde com a audiência pública e a votação sobre a constitucionalidade da referida lei. Entre uma e outra, uma série de mobilizações em torno da questão envolvendo o uso de embriões para obtenção de células-tronco ganhou os espaços midiáticos, políticos e jurídicos. O objetivo deste trabalho é analisar a controvérsia envolvendo a lei de biossegurança a partir da audiência pública, convocada a partir da ação direta de inconstitucionalidade 3510, no Supremo Tribunal Federal, descrevendo os modos de ação dos cientistas envolvidos com o tema. Para isso, procura recompor a partir de materiais audiovisuais e rastros documentais os traços deixados desde a votação no Congresso até a audiência, ao passo que tenta mostrar como as apresentações dos cientistas são pontualizações que evidenciam e mobilizam uma série de redes sociotécnicas formadas por atores humanos e não-humanos. Nosso ponto de partida considera que as relações entre a ciência e o direito não podem ser concebidas como esferas desarticuladas. Antes, elas são parte do esforço de composição de um mundo em comum para o qual escolhemos aqueles que farão parte ou não de tais arranjos. Conclui-se, então, que os vínculos estabelecidos pela ciência a partir da mobilização dos atores que a sustentam não podem ser vistos de maneira isolada da sociedade, pois há neste processo um esforço de mobilização de outros atores, como o sistema jurídico, que atuam diretamente no sentido de lançar perspectivas de significação e contextos de uso sobre os resultados alcançados pela ciência, sobretudo quando os objetos oferecem riscos e afetam diretamente um número significativo de pessoas.

Palavras-chave: expertise; experts; células-tronco; Supremo Tribunal Federal;

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ABSTRACT

After approval The Biosafety Bill Law in Brazil began a long journey for judiciary that would end three years later with a public hearing and vote on the constitutionality of that law. Between them, a series of demonstrations around the issue involving the use of embryos to obtain stem cells gained the media, political and legal spaces. The objective of this study is to analyze the controversy surrounding the law biosecurity from the public hearing, requested from the direct action of unconstitutionality 3510, in Brazil’s Federal Supreme Court, describing the modes of action of the scientists involved with the topic. For this, demand recover from audiovisual and documentary materialsthe traces left from the vote in Congress by the audience, while trying to show how scientists are punctualizations presentations that highlight and mobilize a range of socio-technical networks formed by human and non-human actors. In this case we consider that the relationship between science and law can not be conceived as disjointed spheres. Rather, they are part of the effort of composing a common world in which we choose those who will be part or not of such arrangements. We conclude that the bonds established by science from the mobilization of actors that support can not be seen in isolation from society, because this process is an effort to mobilize other actors such as the legal system, which act directly to launch perspectives of meaning and contexts of use on the achievements of science, especially when objects pose risks and directly affect a significant number of people.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

CAPITULO 01: Traços teórico-metodológicos 16

CAPÍTULO 02: A expertise e seus delineamentos na audiência pública 23

2.1 - As abordagens sobre a audiência pública 3510-0. 24

2.2 - A noção de pessoa revisada e o problema do embrião como indivíduo. 27

2.3 - Expertise em ação. 29

2.4 - Autoridade científica e democracia liberal. 31

2.5 - Expertise, experiência e core set. 36

2.6 - Expertise, participação pública e concernimento nos debates sobre a ciência e tecnologia.

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CAPÍTULO 03: rastreando os percursos da ação direta de inconstitucionalidade 3510-0 46

3.1 - O Supremo Tribunal Federal e sua primeira audiência pública. 47

3.2 - Passos para ação direta de inconstitucionalidade 3510. 52

3.3 - A ação direta de inconstitucionalidade 3510 e seus procedimentos. 62

3.4 - A disposição dos blocos. 68

CAPÍTULO 04: construindo (dis)cursos em oposição: mobilizando atores humanos e não-humanos numa audiência pública.

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4.1 - O embrião como massa celular 81

4.2 - O descarte do embrião e um possível destino nobre 86

4.3 - O embrião mobilizado: sua autonomia a partir daperformance químico-biológica

97

FECHAMENTOS PRECÁRIOS: quando ciência e lei estabilizam arranjos sociotécnicos.

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REFERÊNCIAS 121

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INTRODUÇÃO

Minhas palavras vão no sentido de agradecer à comunidade científica, que vem trazer a este tribunal o aporte de seu conhecimento acumulado ao longo do tempo sobre uma matéria tão difícil quanto esta que constitui o objeto, e dizer lhes que o ato de julgar é antes de mais nada um grande exercício de humildade.E é por isso que o Supremo tribunal Federal se reúne para ouvir a opinião dos especialistas. Acrescentar conhecimentos e aprofundar esses conhecimentos... para que possa, conhecendo as limitações que são próprias do ser humano tentar encontrar a melhor solução...

(Ellen Grace, Ministra do Supremo)

Gostaria muito de aplaudir essa iniciativa... eu venho defendendo a muito tempo a importância dos cientistas conversarem com a população, com a sociedade... eu acho que essa interação é extremamente importante.

(Maiana Zatz, Professora de genética da Universidade de São Paulo)

Aquilo que parecia ser o final de um longo processo de construção de uma lei no Congresso Nacional, envolvendo atores heterogêneos interessados na questão, a votação da lei de Biossegurança1 em 2005, contudo, sua aprovação marcou o início, ou o prolongamento, de uma longa controvérsia envolvendo as células-tronco embrionárias (CTe) e as células-tronco adultas (CTa).Este processo culminou, três anos depois, com uma audiência e posterior votação da ação direta de inconstitucionalidade, impetrada pelo então Procurador da Geral da Republica, Claudio Fonteles.

O texto da lei buscava regulamentar inicialmente os organismos geneticamente modificados com o objetivo de resolver um problema criado com a plantação da soja transgênica na região sul do país. Entre as idas e vindas nas duas casas do Congresso, o texto passou a incorporar um artigo elaborado para disciplinar o uso dos embriões supranumerários para a obtenção de células tronco embrionárias.

1 Biossegurança, segundo a definição usada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBIO), é o conjunto de medidas relacionadas à segurança, controle e diminuição dos riscos que emergem com as biotecnologias. Em termos conceituais a biossegurança começou a ser elaborada na conferência de Asilomar, em 1975, nos Estados Unidos, quando especialistas se reuniram para elaborar propostas que minimizassem os efeitos do progresso científico até aquele momento. O termo não foi cunhado nesta conferência e a participação se limitou aos especialistas.

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11 Estes embriões extra uterinos não são um problema recente constituído pela ciência. Há mais de 20 anos, quando a técnica de fertilização in vitro começou a ser estabilizada como procedimento para resolver casos de casais que não podem ter filhos por fertilização natural, a ciência passou a procurar delimitações para o que viria a ser chamado de pré-embrião. Convencionou-se que essa nova entidade formada nas bancadas dos laboratórios seria aquela desenvolvida até o 14º dia. Assim como definiu que a morte encefálica seria uma definição precária para a morte, diante da consolidação dos transplantes de órgãos, o desenvolvimento do sistema nervoso central seria o marco do início da vida. O pré-embrião, como uma definição, está distante de ser uma caixa preta sem muitas mobilizações, e perceberemos como na audiência ela será questionada por cientistas que formaram o grupo contrário à liberação.

Se, por um lado, a lei de biossegurança tratou de colocar dois assuntos que provocaram polêmica em um único texto, o mesmo não aconteceu com a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade. Objetiva em seus interesses, a ação procurou questionar todo o artigo que permitia o uso de embriões para obtenção de células-tronco. Sugeriu, ainda, que o Supremo Tribunal Federal convocasse uma audiência pública com caráter instrutório com o objetivo de ouvir pessoas com notório saber relacionado ao tema para ajudar a fornecer subsídios para a posterior votação dos ministros, sobretudo aqueles especialistas mencionados por ela.

À luz do disposto na parte final, do parágrafo 1º, artigo 9, da lei nº 9869/99, solicito a realização da audiência pública a que deponham, sobre o tema, as pessoas que apresento, e que comparecerão a audiência independentemente de intimação, tão só bastando a este Procurador-Geral da República a intimação pessoal da data aprazada à realização da audiência pública.2

Este notório saber esteve presente no período de constituição da lei no Congresso. Os especialistas formaram as comissões que auxiliaram a elaboração e os arranjos políticos que colocaram o texto sobre as células-tronco na ordem do dia da lei de biossegurança. E alguns deles tornaram a participar da audiência no Supremo.

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12 O ponto de partida de descrição da controvérsia começa, então, pela atuação desses cientistas na audiência. A escolha desse evento parte de um pressuposto adotado pelos teóricos da teoria do ator-rede, sobretudo Latour (2005), segundo o qual precisamos seguir os atores em seu trabalho de construção de um mundo em comum. Neste processo, alguns atores ganham status de entidades privilegiadas e outros são deixados de fora no curso da ação.

A escolha pelas apresentações dos cientistas faz parte desse esforço de percebê-los como pontualizações de redes sociotécnicas heterogêneas formadas por atores humanos e não humanos. Algumas objeções podem surgir destacando que a audiência apenas marca o poder discricionário do judiciário em julgar e, com de seus procedimentos, legitimar entidades que poderão compor o mundo através das leis. No entanto, um olhar mais detido nos modos como os cientistas foram mobilizados perceberá os diversos atores que perpassam seus discursos e ações durante a audiência. E estes extrapolam os limites dos dados técnicos, apropriando-se de linguagens comuns aos que assistiram e aos próprios ministros do Supremo.

O interesse pela atuação desses experts em espaços que não são usuais para os mesmos tem sido desenvolvido em meu percurso acadêmico desde a graduação, momento em que estudava a cobertura da mídia sobre as células-tronco. A partir desses trabalhos a ideia de estudar como a ciência ocupa espaços fora do laboratório surgiu da tentativa de perceber que as distinções institucionais que marcam a modernidade, ciência de um lado, sistema judiciário de outro, podem melhor ser compreendidas quando pensamos em suas interseções e no trabalho de proliferação de atores no mundo. Diante disso, partimos do suposto que considera tais instituições como espaços essenciais de estabilização de atores no mundo moderno.

A emergência de objetos que surgem do trabalho científico tecnológico tem demandado do sistema jurídico atuações no sentido de nomeá-los e discipliná-los de acordo com as leis vigentes. Não apenas as células-tronco, assunto dessa dissertação, mas os crimes digitais, as biotecnologias, técnicas de clonagem, mapeamento de genomas, coletas de material genético biológico, todas estas questões têm mobilizado o direito em seus aspectos disciplinadores.

Neste sentido, como afirma Jasanoff (1995), e veremos mais adiante, o sistema judiciário lança bases nas quais a ciência e seus constructos podem ter um significado e sobretudo um sentido de utilidade. Não podemos pensar então como esferas distintas de

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13 atuação. Elas permeiam uma a outra. Bruno Latour (2004) proporciona considerações razoáveis sobre esse fazer da ciência, do direito e da política, concebendo em alguma medida esses dois últimos como trabalhos cujo processo consiste em selecionar, classificar e agenciar, fazendo com que isso ou aquilo faça parte do real, ou o que o autor chamou de composição progressiva de um mundo comum. Assim, a ciência, a despeito de seus almejos em manter clara a distinção e seu espaço imaculados, é uma atividade cuja prática de proliferação de híbridos pelo mundo é política.

Como já antecipamos, o objeto dessa dissertação é o modo como os cientistas atuaram na audiência sobre a ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Supremo Tribunal Federal. Os modos de atuação dos cientistas, considerando os pressupostos teóricos metodológicos adotados, são compreendidos menos como uma tentativa da ciência em definir o seu espaço, e o direito no lado oposto definindo o que é seu, e sim como um esforço de estabilização de uma série de redes sociotécnicas que se tornam visíveis pela ação de tais cientistas. Essas redes mobilizam uma série de atores humanos e não humanos que transitam pelas apresentações no decorrer da audiência. Em alguns momentos, atores, como os embriões, são relevantes nos relatos, mobilizam e sugerem ações. Agem como verdadeiros mediadores. Em outros, apenas são espécies de intermediários que conduzem sem modificar sentidos e significados.

Desse modo, o texto aqui elaborado visa seguir os passos dados por esses cientistas em suas apresentações na audiência. Algumas questões também o norteiam. Como compreender os modos como a ciência e o direito se entrecruzam na contemporaneidade, permeada por objetos que proporcionam riscos e incertezas? Que critérios de validade são mobilizados pelos cientistas para justificar suas pesquisas e, sobretudo, legitimá-las diante de públicos mais amplos? Como os cursos de ação que envolvem a controvérsia são a todo instante negociados e refeitos pelos atores, seja humanos ou não-humanos? Estas questões perpassam a dissertação que segue.

Seguindo a sugestão de descrever os modos como os cientistas atuaram na audiência estruturamos a dissertação considerando os seguintes passos. O leitor encontrará alguns traços teóricos e metodológicos adotados para compor nosso trabalho. Neste primeiro momento vamos apresentar como desenvolvemos um interesse pela audiência e como autores mais alinhados com a teoria do ator-rede nos orientam no sentido de pensar a audiência como

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14 um espaço no qual podemos perceber o fluxo de diversas agências. Em seguida, descrevemos os materiais coletados e usados para recompor a controvérsia desde o momento em que foi debatida e aprovada no Congresso.

Posteriormente, tentamos dar conta de algumas discussões envolvendo a questão da expertise. A ciência e os especialistas têm assumido um contorno preponderante nas explicações sobre os fenômenos naturais e sociais ao mesmo tempo em que tem demandado dos mesmos uma maior interação e participação com públicos formados tanto por outros especialistas, nosso caso com a audiência, como públicos leigos em tais assuntos. Isso porque uma das características dos objetos que emergem dos arranjos científicos e tecnológicos diz respeito ao concernimento que os públicos desenvolvem em relação às consequências que tais objetos podem provocar.

No capítulo dois, delineamos uma discussão sobre a noção de expertise como ela nos ajuda a pensar as articulações presentes na audiência, perpassando o debate envolvendo a participação de especialistas no âmbito politico até os contornos que a noção assume com os estudos sociais sobre a ciência e a tecnologia. Além de uma discussão sobre expertise, apontamos alguns limites presentes nos trabalhos anteriores que debateram pontos em comum com nosso texto. A pretensão nesta parte é mostrar como estes trabalhos centraram em aspectos que deixaremos de lado no debate proposto pela dissertação, como a questão da noção de pessoa e a definição do que é embrião e como os juristas trataram o tema.

No terceiro capítulo traçamos os fios que ligam a controvérsia na audiência aos seus vínculos iniciais com a votação da lei de biossegurança em 2005. Essa recomposição considerou aspectos que conduziram à audiência e como a própria constituição da lei oscilou entre a inclusão e retirada do tema das células-tronco da pauta. O que seria parte de outra legislação, com defenderam alguns, acabou tornando-se parte de uma discussão elaborada para desviar os holofotes televisivos da questão envolvendo os organismos geneticamente modificados. Além desses vínculos com a votação no Congresso, articula-se o modo como a audiência foi construída, a maneira como os blocos se consolidaram e os arranjos improvisados nos procedimentos da audiência, pois se tratou da primeira realizada pelo Supremo Tribunal Federal.

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15 O último capítulo é um desdobramento do anterior e tem como objetivo colocar os relatos dos cientistas em temas que predominaram nas apresentações. Neste sentido, falaremos da maneira como os blocos organizaram estratégias a fim de colocar o embrião como um objeto criado fora de uma relação com seus genitores e, por isso, passível de manipulação como um produto da prática científica. De outro modo, temos a tentativa de proporcionar uma autonomia do embrião por parte dos cientistas contrários às pesquisas com células tronco embrionárias. Neste percurso atores emergem e são mobilizados na sustentação das performances na audiência. Transitamos entre embriões, artigos científicos, crianças com doenças degenerativas, pacientes curados, o mercado capitalista ávido por novos produtos, a prática médica revisitada, bem como uma sorte de atores que em alguns momentos são intermediários e em outros mediadores.

Ao final, retomamos a discussão no sentido de consolidar a perspectiva desenvolvida durante o texto. Aquela que procura perceber a audiência mais como um processo no qual uma série de redes sociotécnicas estão sendo mobilizadas a fim de possibilitar a composição de um mundo em comum. Se neste mundo teremos ou não participação de células embrionárias, de embriões supranumerários, cabe seguir os fios que nos conduzem à audiência.

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CAPÍTULO 01

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17 Analisar um material que em alguma medida se revela desgastado por diversas abordagens apresenta-se sempre como uma tarefa difícil e cautelosa. Aqui coloco-me diante de tal problema. Inicialmente concebida como projeto para tratar da cobertura da mídia entre o período da votação da Lei de Biossegurança em 2005 e o debate que envolveu o artigo 5º de tal lei, sobre a liberação do uso de embriões supranumerários para obtenção de células-tronco embrionárias, no Supremo Tribunal Federal, este texto tomou rumos outros por alguns obstáculos ocorridos durante seu desenvolvimento. Trabalhar com a cobertura da mídia sobre o caso tinha sido um tema pouco discutido nas fases iniciais na tentativa de estudar as relações entre a ciência e a sociedade. Objeto este que dialogo desde a graduação com as pesquisas desenvolvidas sobre a organização e a cooperação em um laboratório de terapia celular.

Após descobrir que uma tese de doutorado (BROTAS, 2011) em comunicação tratou de muitos aspectos que pretendia discutir, resolvi retomar os objetivos do projeto e deslocá-los de uma análise da cobertura midiática para uma observação da maneira como a expertise tinha sido delineada na controvérsia que ocasionou a audiência pública. Não desprezando os materiais empíricos coletados ainda quando a pesquisa dizia respeito a cobertura da mídia, tomei os mesmos como tentativa de recomposição da controvérsia na audiência, seguindo os rastros deixados pelos atores em suas tarefas de construção de um mundo em comum (LATOUR, 2004).

As matérias veiculadas pela imprensa revelaram algumas pistas sobre a dinâmica dos atores envolvidos: cientistas, juristas, associações de pacientes, advogados interessados, leituras e ilustrações que demonstravam uma certa movimentação em torno do evento. Não apenas este movimento, mas uma série de redes mobilizadas em torno da defesa dos embriões e de seu uso para os fins de pesquisa.

Deslocando os objetivos, o primeiro passo foi coletar os dados referentes à audiência. Passei a trabalhar com os dados audiovisuais da audiência e julgamento. Todas as apresentações ocorridas na audiência foram registradas em audiovisual e disponibilizadas para qualquer interessado no material. Ao todo, os registros audiovisuais somam quase 5 horas de apresentações e sessão de perguntas e respostas. Outra parte do registro consta as leituras dos votos dos ministros, que somam cerca de 6 horas de material audiovisual. Parte do material usado foi transcrito para fins de uso na pesquisa.

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18 Além do material audiovisual, uma busca por documentos foi realizada com o objetivo de obter mais detalhes sobre a controvérsia e a audiência. Os documentos do trâmite jurídico da mesma foram encontrados em sites especializados em direito. Por ter sido a primeira audiência pública no Supremo, muitos estudos relacionados ao Direito foram elaborados com o objetivo de entender o processo. Assim, a literatura dos estudos jurídicos sobre o debate e a organização da audiência ajudou-me a seguir os rastros, em alguns momentos não identificados a partir do material audiovisual. Todo o processo, desde as petições até os despachos estão disponíveis no site do Supremo Tribunal Federal3. Estão entre esses documentos: os votos dos Ministros disponíveis tanto no site do Supremo como em sites especializados. As petições iniciais do processo, as convocações dos cientistas, os convites enviados pelas partes interessadas e os documentos que solicitavam inclusão de membros antes não convidados para o certame. Todos fazem parte dos materiais coletados e compõem o quadro de materiais empíricos usados nesta pesquisa.

Adotando como premissas deste trabalho os pressupostos da teoria-ator-rede, procuro recuperar a controvérsia seguindo o maior número de rastros deixados pelos atores envolvidos nela. Sigo, então, uma premissa fundamental de simetria ontológica entre os atores envolvidos no debate, não privilegiando, a priori, nenhum ator como ponto de partida (LATOUR, 1989, 2000, 2005; LAW, 2005; JASANOFF, 1993, 2002, 2005, CALLON et al. 2010). Mesmo que nosso objetivo seja a ação dos experts, a compreensão que segue este objetivo é que, ao considerá-la, tomamos tal ação como pontualizações de redes sociotécnicas (LAW, 2005). Há diversos pontos que nos direcionam para análise da ação dos experts considerando-os a partir da noção apresentada por John Law (2005). As pontualizações se apresentam tanto como uma maneira de as redes sociotécnicas se fecharem, assim aparecendo como um recurso que pode ser mobilizado e se apresentam também como uma simplificação da heterogeneidade da rede. Neste sentido, por mais que consideremos que o sistema jurídico e seus representantes na audiência tenham um peso relevante na controvérsia, reconhece-se que é mediante o agir dos especialistas que nos é permitido rastrear os diversos fios que desenrolam a controvérsia.

3www.stf.gov.br. Basta inserir o nome a referência da ADIN nos motores de busca do site que será visualizada a página que consta os documentos produzidos pelo processo. Não há com identificar que se trata de todo o trâmite envolvendo a ADIN, mas o material oferece informações substanciais para o rastreamento de pontos discutidos na audiência.

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19 Seguindo o argumento, poderíamos pensar no que levou os Ministros a convocarem os especialistas em pesquisas com células-tronco a falarem em nome delas, se os mesmos poderiam mobilizar a rede de uma forma mais dilatada, como a ação de um dos Ministros sugere quando faz uma visita ao laboratório? A simplificação, neste argumento, aponta apenas para os recursos pontualizados nos quais as redes podem ser mobilizadas e utilizadas rapidamente sem o envolvimento direto com complexidades intermináveis (LAW, 2005). A audiência não seria nada curta se os cientistas detalhassem e recuperassem todas as complexidades que estão sendo mobilizadas em torno de suas apresentações. E eu como pesquisador já teria, em alguma medida, desistido de descrevê-los. E os ministros já teriam julgado antes da conclusão dos trabalhos.

Mas esta proposição não advém de uma postura teórico-metodológica de considerar a análise dos especialistas, a priori. Parte da consideração sobre os diferentes modos como a controvérsia é performada a partir das apresentações dos experts na audiência. Seguindo os rastros deixados pelos cientistas ao longo de suas exposições, registramos os diversos atores concernidos a agir com, entre e por eles. Por serem porta-vozes tanto de humanos como de não-humanos, resolvi, com o risco que se corre ao delimitar, torná-los atores chave na compreensão da controvérsia. A própria Teoria-Ator-Rede não se fecha sobre este ponto. Seria difícil tocar uma descrição dos modos como uma controvérsia se desenrola sem escolhermos traços que consideramos mais interessantes, ou que os atores no seu trabalho de construir mundos sugiram como importantes a serem considerados.

A indeterminação (Latour, 2005) nos pontos de partida permite, neste sentido, ao pesquisador rastrear a multiplicidade de atores envolvidos com a controvérsia, e a escolha dos caminhos segue muito mais trilhas abertas e fechadas por eles do que uma seleção prévia, realizada pelo investigador. Seguir os atores é seguir escolhas que os mesmos fazem sobre a questão em análise. A controvérsia pode ser constantemente aberta devido ao seu caráter de estabilização precária (LAW, 2005). Alguns atores sucumbiram no decorrer do processo de coleta e acompanhamento de suas atribuições na controvérsia. Outros seguirão mesmo quando o pesquisador colocar um ponto final no trabalho.

Outra premissa importante levantada pelos estudos sociais sobre a ciência é a quebra dos privilégios epistemológicos dados aos cientistas, procurando compreender como a audiência faz parte de um processo de estabilização de uma nova tecnologia que relaciona

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20 experts, jornalistas, um público mais amplo e aqueles diretamente interessados nos resultados das pesquisas como potenciais usuários de tais tecnologias. Nesta perspectiva, a análise dos processos de estabilização privilegia menos o trabalho dos cientistas, no sentido tradicional de descoberta de fatos já dados no mundo, e abre margem para os diversos atores envolvidos na controvérsia.

As sociedades contemporâneas caracterizadas por incertezas e riscos têm gerado controvérsias que envolvem os desenvolvimentos científicos e tecnológicos. A própria conformação desses objetos já produzem mobilizações de atores heterogêneos e argumentos que não são puros em termos científicos. Sugerem que as fronteiras e delimitações que usualmente mobilizamos para descrever nossos objetos são pouco profícuas em termos práticos, mas que geram grandes divisões como as apontadas por Latour em Jamais fomos

modernos (2011). A separação operada pela modernidade entre regiões nas quais transitam

fatos e outras valores nos remete aos processos em que criamos mundos nos quais os não-humanos parecem desvinculados do mundo dos não-humanos. Este processo contínuo que Latour chamou de separação das esferas. O debate na audiência pública sugere que o embrião congelado está seguindo este curso de ação ao romper vínculos direto com os humanos e sofrendo o processo de transformação em objeto (CESARINO, 2006).

No mesmo sentido, os riscos e incertezas que são oferecidos por esses objetos controversos e ambivalentes mobilizam e interessam um público mais amplo, solicitam novos espaços de decisão, ainda em fases de mobilização de uma pluralidade de atores. Tais espaços, apresentados por Callon et al. (2010), são considerados fóruns híbridos por que permitem uma multiplicidade de performances que envolvem a abertura e o fechamento de uma controvérsia. Por mais que na audiência possamos não considerar a participação explícita desses atores mobilizados, eles em diversos momentos da controvérsia são solicitados e arregimentados.

Considerando as observações feitas por Latour (2004) sobre a questão da formação dos coletivos, o constante trabalho de proliferação e inserção de novos atores no mundo em comum, tais inserções envolvem um processo exaustivo de concernir aos atores atribuições nestes coletivos. A noção de matters of concern nos ajuda a pensar a controvérsia em questão como uma boa ilustração de como a ciência se apresenta como uma prática de produzir híbridos de fatos e artefatos que produzem diferenças nos coletivos. As

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células-21 tronco (embrionárias ou adultas), em jogo na audiência, convocam atores heterogêneos a falarem em nome delas. Solicitam atenção, provocam dúvidas, até mesmo descrença em suas potencialidades. Colocam em xeque a sua própria existência no mundo comum. Definem e se redefinem de acordo com os atores que são afetados por elas. Reivindicam esperança, mobilizam pacientes. Solicitam deles mobilizações diante do Congresso. Se trata não apenas de especialistas em ciência e direito a definirem limites de uso de uma determinada tecnologia. O que está em jogo, podemos sugerir, é como essa tecnologia (células-tronco) será disposta em um mundo comum entre humanos e não humanos.

Kristin Asdal (2008) apresenta um caso interessante sobre a ciência nos caminhos de espaços considerados políticos. Adotando a perspectiva de Michael Lynch (1998, apud ASDAL, 2008), que explorou como o corpo do animal se transformou em objeto científico no laboratório, Asdal procurou perceber como em alguma medida o uso do animal se tornou algo não só cientificamente, como também cultural e politicamente aceito. Seu argumento então se desloca do laboratório como o lugar privilegiado para a compreensão dos usos de animais, o que aqui poderia ser estendido para os embriões, como uma questão que precisa ser performada fora dos muros que cercam o laboratório. É nos espaços políticos, como o Parlamento, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, que são performados, aceitos ou excluídos e delimitados como objetos possíveis de atuarem no mundo em comum.

Asdal (1998) aponta que entre o fim do século 19 e inicio do século 20 inúmeros países introduziram leis que regulavam e proibiam os maus tratos com animais. Tais regulamentações não apenas discutiam normas para animais domésticos como também aqueles que eram utilizados em laboratório. No mesmo período, considerando o caso Norueguês, a comunidade médica tomou para si o trabalho de performar como a medicina experimental estava ligada à sociedade através de suas descobertas, que seriam em última instancia para resolver os problemas da própria sociedade. Assim sendo, o uso dos animais como objetos não se prestava apenas para os propósitos da ciência, para descobrir mais sobre a natureza ou desvendar os caminhos da verdade. Tratou-se de uma benéfica ligação entre o laboratório e o alívio da dor e sofrimento fora de seu espaço. (ASDAL, 2008. p. 903).

Se compararmos os argumentos e recursos utilizados pelos experts na audiência, em muitas articulações mobilizadas por eles, a sociedade aparece como um recurso que produz efeitos sobre a maneira como os ministros poderiam ou não incorporar em seus votos. O voto

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22 da Ministra Ellen Grace aponta para as possibilidades que os embriões supranumerários poderiam oferecer à sociedade em seu uso para a obtenção das células-tronco.

Na mesma audiência, ainda podemos perceber como os argumentos levantados por um dos ministros, Lewandowski, apresentam certa desconfiança no papel da expertise em definir o que pode ou não ser feito com os embriões. Essa desconfiança Asdal (2008) também identificou no caso dos animais, quando o parlamento norueguês colocou limites à autonomia da comunidade científica, bem como o direito da mesma em regular suas próprias atividades. Tal perspectiva e interesse do Parlamento estavam ligados não apenas a uma critica à falta de limites dos cientistas, mas também um certo desapontamento sobre os experimentos médicos, aponta Asdal (2008).

Em certa medida, como veremos no próximo capítulo, a tônica de alguns votos, principalmente os contrários à constitucionalidade do artigo, seguiram estes aspectos apresentados na discussão de Asdal. Muito mais do que agir apenas no laboratório, cabia aos cientistas performar e mobilizar diversos atores em torno da constitucionalidade do 5º artigo da lei de biossegurança. Em muitos casos, na audiência, assim como as comissões à época da votação no Congresso, tais performances precisaram extrapolar o universo do laboratório e serem atuadas em espaços políticos4.

Seguiremos adiante os rastros deixados pelos ministros, cientistas, associações de pacientes, organizações religiosas deixaram no desenrolar da controvérsia.

4

A leitora, ou leitor, já deve ter percebido que a menção aos espaços como científico, sociedade ou político em muitas ocasiões do texto estão mais de acordo como adoto uma certa leitura do autor(a) que no momento discuto, do que como uma posição explicita de quem escreve. Preciso, então, deixar mais uma vez claro que se desvincular desses recursos mais alinhados a uma sociologia do social (LATOUR, 2005) em alguns momentos se torna uma tarefa difícil. A maneira como manuseio aqui não cria abismos e fronteiras entre tais espaços, como coisas bem distintas e delimitadas. Aqui estou mais alinhado com uma Sociologia das associações (LATOUR, 2005; LAW, 2005 e CALLON, 2010) em que tais usos aparecem muito mais como recursos para facilitar a compreensão do que como uma certa diferenciação ontológica dos mesmos. Latour (2004) usou a expressão

coletivos com o objetivo de minimizar as confusões entre uma sociologia que toma a sociedade como objeto

externalizado e outra sociologia que considera o próprio uso do termo sociedade inapropriado para dar conta das inúmeras associações que envolvem o trabalho constante de estabilização precária do mundo.

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CAPÍTULO 02

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2.1 - As abordagens sobre a audiência pública 3510-0.

Durante o intervalo entre a votação da lei de Biossegurança em março de 2005 e a audiência pública em 2008, diversas pesquisas sobre o caso das células-tronco no Brasil foram desenvolvidas. As principais abordagens sociológicas e antropológicas sobre o tema procuraram destacar o papel dos atores na dinâmica do trâmite na Câmara e no Senado, discutindo o processo de construção da lei de Biossegurança (CESARINO, 2006), o embrião a partir de uma noção de pessoa como categoria explicativa chave para a questão do embrião, tanto na construção dos artigos relacionados às Células-tronco na Lei, como em sua votação por constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (LUNA, 2009). Em outro trabalho, Naara Luna (2007) discutiu o conceito de ‘vida’ nos debates que envolveram os ministros do Supremo.

Além das abordagens mais diretamente relacionadas ao debate e a forma como categorias como “pessoa” e “embrião” foram manuseadas pelos atores envolvidos na audiência pública e na sessão de votos dos Ministros, outras perspectivas elaboraram comparações entre o debate brasileiro e o debate britânico na definição dos limites do embrião humano (CESARINO, 2007).

Outra questão que ecoou como desdobramento, principalmente a partir de uma discussão mais antropológica, procurou destacar a pertinência de se considerar certas categorias como elemento explicativo para a controvérsia envolvendo as células-tronco (ALMEIDA; PEREIRA, 2010). Para estes autores, considerar o embrião como uma categoria explicativa centrada em numa ideia de unicidade seria um problema trazido pela perspectiva usada nos trabalhos de Salem (1997) e Luna (2007). Neste sentido, as perspectivas que consideraram o embrião a partir de uma noção de pessoa pouco elucidariam o debate já que desconsiderariam a hibridicidade e os diversos atores envolvidos nas constantes definições e redefinições do embrião na controvérsia.

O embrião extracorpóreo, traço das tecnologias de reprodução assistida, seria um adensamento das características da individualidade moderna e o consequente velamento dos vínculos de parentesco. Um dado interessante trazido por Salem (1997) é que este embrião que vive fora do útero está inserido numa rede mais complexa que outrora. Além dos seus

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25 genitores, outros a partir de então poderiam agir com e falar em seu nome. Dizer sobre sua natureza e resistência [depoimento de Patrícia Pranke], defender suas relações químicas com a futura mãe [depoimento de Elizabeth], convocar atores que dependem de sua condição favorável para pesquisas e minorar seu peso enquanto vida [depoimento de Maiana Zatz], ser meramente um aglomerado de células, um blastocisto [depoimento de Ricardo Ribeiro]. Todos estes vínculos precários multiplicados com a possibilidade extracorpórea tornam o embrião um ente que concerne a muitos atores, liga grandes mercados e empresas a associações de pacientes e genitores a possíveis beneficiários da tecnologia de células-tronco.

Outra questão que precisamos destacar desses trabalhos é a adoção de uma perspectiva de análise baseada no pressuposto segundo o qual o debate brasileiro estava centrado, tanto no Congresso como no debate jurídico do Supremo, numa ideologia moderna do individualismo, discutida extensivamente por Louis Dumont (1985), considerando como consequência que o embrião seria um indivíduo dotado de autonomia. Em linhas gerais, o argumento de Dumont (1985) centra-se na distinção entre o sujeito empírico e o sujeito com valor moral. Tal distinção parte de um suposto que o individualismo moderno teve sua semente ainda entre os primeiros cristãos e o mundo que os cercam. O sujeito empírico é aquele que fala e pensa, a amostra individual da espécie humana. O ser moral, aquele autônomo, não-social e portador dos nossos valores supremos, e que se encontra em primeiro lugar em nossa ideologia moderna do homem e da sociedade. Tendo como base essa distinção, Dumont argumenta que há duas espécies de sociedade. Uma centrada na ideia de indivíduo como valor supremo, por consequência o individualismo; e outra, um caso oposto, em que o valor está na sociedade, então que se tem o holismo. (DUMONT, 1985. p. 36-37).

Os indivíduos nas sociedades tradicionais não têm o valor moral como nas sociedades modernas. Como estas sociedades, do ponto de vista histórico, partem das sociedades tradicionais, a questão colocada por Dumont é compreender como ocorreu tal mudança, já que o autor supõe que ocorreu de maneira natural que o individualismo surgiu em oposição à sociedade holista. Uma tese sugerida pelo autor encontra-se na sociedade indiana. A figura do renunciante sugere pistas para o entendimento das origens do individualismo. O renunciante indiano é aquele que,

basta-se a si mesmo, só se preocupa consigo mesmo. O pensamento dele é semelhante ao do indivíduo moderno, mas com uma diferença essencial: nós vivemos no mundo social, ele vive fora deste [...] um

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‘indivíduo-fora-do-mundo’. Comparativamente, nós somos ‘indivíduos-no-mundo’ (DUMONT, 1985. p. 38)

Para Dumont (1985), o individualismo surge como um suplemento nas sociedades tradicionais, mas não como o conhecemos na forma moderna. Por isso a comparação entre o ‘indivíduo-fora-do-mundo’ e ‘indivíduo-no-mundo’.

Considerando a abordagem de Dumont (1985), Luna e Salem traçaram uma leitura do debate envolvendo a questão das células-tronco como uma possível leitura e reflexo desse individualismo das sociedades modernas, proposto pelo autor. Ao considerar em linhas gerais os argumentos essenciais da perspectiva dumontiana, para Almeida e Ferreira (2010), o problema desta abordagem (LUNA, 2007, 2009 e SALEM, 1997) da controvérsia reside na persistência em analisá-la com referência a uma noção de pessoa assentada em pressupostos exclusivamente ocidentais, desconsiderando os desdobramentos que a mesma implicaria se mudássemos a perspectiva. Quando analisada em outros termos, afirmam Almeida e Ferreira (2010), a controvérsia deixa ser considerada como apenas uma alegoria de uma suposta ideologia moderna e o embrião passa a ser colocado em termos de relações que são estabelecidas em diversas situações apresentadas pelos cientistas e magistrados em seus argumentos.

De tais situações emergem possibilidades nas quais o embrião tem suas definições avaliadas e reconfiguradas a todo instante. Elas podem dizer respeito em alguns momentos ao desenvolvimento do país num ranking de pesquisa; podem estar associadas às imagens de crianças portadoras de doenças degenerativas, como na apresentação de Maiana Zatz; em alguns momentos está em relação de autonomia com a genitora, quando já pode enviar para a genitora informações sobre o seu desenvolvimento, que independe de sua relação de dependência química com a mesma; em outros momentos pode ser apenas algo que não pode ser destruído em nome de pesquisas que ainda não produziram resultados satisfatórios, entre outras situações que podem ser vistas no quadro de distribuição dos argumentos das apresentações no quarto capítulo. O embrião extracorpóreo, dessa maneira, seria visto como um ente que ultrapassa as fronteiras usuais como cultura/natureza, na medida em que se estabelece múltiplos vínculos em sua definição, vínculos esses incapazes de serem discernidos entre culturais e naturais (ALMEIDA; PEREIRA, 2010).

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27 Neste sentido, veremos na próxima seção como se desenvolveu algumas abordagens envolvendo a controvérsia, sobretudo a questão do embrião como tema central da controvérsia.

2.2 - A noção de pessoa revisada e o problema do embrião como indivíduo.

O debate em torno do embrião e as células-tronco no Brasil, de acordo com as análises elaboradas e resumidas na seção anterior, girou em torno do pressuposto segundo o qual o embrião é um indivíduo. Ao considerar o debate uma alegoria da ideologia moderna, tais abordagens deixaram de considerar pontos que serão levados em conta aqui. A questão do embrião, então, foi abordada dentro de características que dizem respeito a tal suposta ideologia e os dados levantados por Salem e Luna corresponderam às características que sugeriram os caminhos da controvérsia alinhados no sentido de demonstrar tal correspondência no debate brasileiro.

No sentido empregado tanto por Salem (1997) como por Luna (2007) o debate brasileiro envolveu o embrião com uma certa definição de vida vinculada à concepção de pessoa, o que marca parte dos relatos dos participantes da controvérsia. Além disso, o conceito de vida, como destacado por Luna (2007), foi vinculado a uma definição religiosa e uma noção mais ligada à biopolítica, que estaria mais identificada com as atividades científicas, pouco foi mobilizada no julgamento, ponto este que foi polarizado em alguns momentos das exposições da audiência. A ideia de vida interpretada como bem jurídico apresentada pelos ministros se aproximou da linguagem religiosa da vida como “dom de Deus”.

Para Luna (2007), tanto a petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510, como a Campanha da Fraternidade, organizada pela CNBB no ano de 2008, afirmaram em seus argumentos uma ideia de que a vida começava na concepção e que, portanto, o uso dos embriões para a produção de células-tronco feria preceitos fundamentais garantidos pela Constituição Brasileira, como a dignidade da pessoa e o direito à vida. Ambos os textos fundamentaram-se em dados biológicos para garantir que o embrião extracorpóreo seria um depositário dos direitos, garantindo assim sua dignidade enquanto pessoa. Assim, Luna afirma

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28 que nos dois espaços em que a controvérsia foi performada figurou uma representação de pessoa apenas como indivíduo, destacando o pressuposto já discutido por Almeida e Ferreira (2010) que tais análises colocaram o prisma do individualismo como uma ideologia moderna e presente em todo debate.

Deslocando o debate de tal pressuposto, o que se pode rastrear da controvérsia, segundo Almeida e Pereira (2010: 11) é uma certa ideia a qual o embrião extracorpóreo seria dotado de uma visível fractalidade. Neste sentido, no calor dos ânimos elevados pela poeira não assentada da controvérsia, o embrião estaria envolvido num conjunto de vínculos implicados que em um dado momento presta-se a uma definição que o considera um humano, o que garante uma proteção por parte do Estado, ou em outros momentos apenas como um conjunto de células que serão lançadas diretamente nas bancadas dos laboratórios Brasil afora.

Quando deslocado o debate em torno do embrião de uma concepção que o trata em seu pressuposto como um indivíduo para uma noção que o redesenha em redes de definições, o embrião extracorpóreo deixa de estar implicado nas variações dos discursos que supostamente estão simplesmente baseados em uma ideologia moderna do individualismo, de acordo com os discursos proferidos pelos atores que se posicionam na controvérsia, e passa a ser compreendido ao largo pelas relações que são estabelecidas e que o redefine a todo momento. Neste sentido, o embrião extracorpóreo para alguns dos cientistas que defendem a constitucionalidade da Lei de Biossegurança é diferente em termos relacionais dos cientistas que garantem que o artigo 5º da lei fere os princípios constitucionais e sua garantia como ser humano. Ele pode ser o ator que vai posicionar o Brasil no ranking mundial dos países que desenvolvem pesquisas biomédicas de alto nível. Vai estar envolvido nas redefinições do que é ser paciente portador de doença degenerativa, inserindo expectativa e esperança em novas relações. Noutras situações será o ente que já estabelece um contato intimo com o ser que o abriga por nove meses (a mulher), através da troca de elementos químicos.

Em todo debate, segundo o deslocamento produzido por Almeida e Pereira, os embriões extracorpóreos passíveis de serem utilizados nas bancadas para a produção de células-tronco, têm seus limites e contornos negociados constantemente. No capítulo 4, quando nos deteremos mais nos detalhes das apresentações, as fronteiras de tal embrião são recolocadas a cada 15 minutos, espaço este dado entre uma apresentação e outra. Ainda que as apresentações figurassem em mesmo bloco, favorável ou contrário, a negociação em torno das

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29 definições apresentavam variações nítidas de relações implicadas que o embrião estabelece com seus porta-vozes. Estas relações pouco deixam claras em quais aspectos o embrião está implicado, se em termos culturais ou naturais. A oposição, neste sentido, pouca diferença produz nas relações que são performadas pelos embriões, cientistas, pacientes, juristas e atores envolvidos na controvérsia.

2.3 - Expertise em ação

A expertise passou a ser encarada como objeto de estudo entre autores dos estudos sociais sobre a ciência e tecnologia (ESCT) a partir da percepção do envolvimento dos cientistas em debates públicos relacionados as decisões sobre o uso e o impacto de tecnologias no cotidiano das pessoas. Tais debates públicos em sua maioria estavam imersos em controvérsias acerca do uso de tais tecnologias, controvérsias que extrapolavam os limites laboratoriais e envolviam diversos atores em sua dinâmica de estabilização.

A expertise, à maneira dos autores dos ESCT, não assume um sentido homogêneo. As abordagens foram diversas e procuraram tanto seguir um programa de pesquisa relacionado ao Programa Forte de David Bloor (2009)5, como é o caso da perspectiva de Collins e Evans (2002; 2010), até perspectivas que incialmente surgiram como reação à concepção daqueles, sobre a terceira onda nos estudos sobre ciência e tecnologia. Esta onda foi marcada pela criação de uma teoria normativa da expertise e da experiência na ciência, e as suas críticas apontam para uma abordagem do problema da expertise em termos de heterogeneidade de agenciamentos e pontualizações.

Parte dos argumentos em reação a teoria da expertise surge dos trabalhos de Sheila Jasanoff (2003a; 2003b), Arie Tip (2003), Brian Wynne (2003), Anne Kerret al (2007).

5

O Programa Forte de David Bloor desenrolou um novo impulso nos estudos sociais sobre a ciência, retomando alguns argumentos apresentados por Thomas Kuhn em seu livro: A estrutura das revoluções científicas. O impulso do Programa, no entanto, se deu diante da ideia de simetria proposta por Bloor, ideia até então marginalizada na sociologia do conhecimento do período. Em termos gerais a simetria proposta por Bloor procurava tratar de maneira simétrica tanto os erros como os acertos da ciência. Até então, os sociólogos do conhecimento procuravam apenas os fatores extracientíficos, sociais e psicológicos, para a explicação dos erros na ciência. Os acertos pouco interessavam pois se tratavam de curso normal da racionalidade científica. Questão que será ainda mais radicalizada com os estudos que sucederam o Programa Forte, como as etnografias dos trabalhos científicos.

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30 Além desses trabalhos, que discutem o argumento apresentado por Collins e Evans, nos aproximaremos das perspectivas de Bruno Latour (2000; 2005); Michel Callon et al (2011) e Sheila Jasanoff (2003a) que ajudam a pensar o argumento no qual a audiência pública em discussão neste texto precisa ser entendida a partir da ação dos especialistas como uma forma de estabilização de redes que envolvem diversos atores. Neste sentido, cabe menos considerar que os discursos, tanto das ciências como do direito, estão ocupando espaços distintos e bem delimitados na controvérsia. Trata-se de perceber como o próprio sistema legal (a questão jurídica) tem tido um importante papel no desenvolvimento de uma percepção pública da ciência e que o papel dessa não pode ser entendido sem uma vinculação com os seus diversos trânsitos com o âmbito da justiça (JASANOFF, 1995).

Como sugere Jasanoff (1995), a lei não apenas interpreta os impactos sociais da ciência e da tecnologia, mas também constrói regiões virtuais e materiais pelas quais tanto uma como a outra passam a ter sentido, utilidade e peso nos processos e dinâmicas sociais. Os limites que poderíamos sugerir para uma separação entre essas duas instituições acabam por se revelarem frágeis diante de objetos e temas híbridos que exigem tanto da ciência como do direito mobilizações a fim de produzir significados e sentidos para arranjos científicos tecnológicos que não estão devidamente estabilizados, em termos de lei ou procedimentos de pesquisa.

A audiência pública mobilizada em torno do uso dos embriões considerados inviáveis insere-se nestes processos em que tanto a ciência como o regime jurídico precisam estar distribuídos em espaços comuns no sentido de procurar novas formas de configuração sobre essas novas entidades, frutos de desenvolvimento de tecnologias e pesquisa nas áreas científicas. Neste sentido, o sistema jurídico não dispondo de uma legislação que discipline essas tecnologias, a ciência precisa participar não apenas com o objetivo de legitimar seus experimentos, como também fornecendo visões sobre tais tecnologias que ajudam a conformar uma realidade sobre os experimentos, o andamento das pesquisas no país, as possibilidades de tratamento. Estas visões se sustentam na medida em que os cientistas trabalham produzindo fatos que reivindicam como verdadeiros assim como os trâmites jurídicos também trabalham com regimes discursivos baseados numa autoridade presente na lei. Este pressuposto está presente na audiência nas diversas intervenções feitas pelo ministro relator, primeiro sobre a manifestação da plateia com palmas e, segundo, com a afirmação de

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31 que a audiência tem caráter instrutório e por isso os cientistas não poderiam fazer afirmações de cunho jurídico nem levantar ofensas aos cientistas que apresentaram argumentos contrários.

2.4 - Autoridade científica e democracia liberal

A participação crescente dos especialistas em debates públicos gerou dois problemas do ponto de vista teórico (TURNER, 2001). Os problemas da igualdade e da neutralidade. O primeiro problema diz respeito às relações entre o fenômeno da expertise e o princípio que sustenta as democracias liberais, segundo o qual todos têm igualdade nas decisões políticas. Tal problema é colocado diante da relação desigual em que é situado o envolvimento entre experts que detém um determinado conhecimento sobre uma controvérsia e um público mais abrangente formado por pessoas não especializadas (lay-people). As desigualdades pautadas com base no conhecimento provocariam uma assimetria da participação no debate envolvendo as controvérsias, conferindo um poder que extrapola os limites e a capacidade de participação dos cidadãos. Supõe-se, então, que o público não dispõe de capacidade para compreender assuntos relacionados à ciência, e que por isso não saberia inferir as consequências dos mesmos.

O outro problema gerado pela participação dos cientistas em debates públicos, segundo Turner (2001), está relacionado ao privilégio concedido pelo Estado à figura do especialista. Ao conferir um status privilegiado aos experts, o Estado estaria violando o principio da neutralidade que fundamenta as democracias liberais, acentuando o argumento segundo o qual os públicos não especializados pouco têm a contribuir em debates que envolvem decisões sobre ciência e tecnologia. Caberia apenas aos especialistas a tarefa de definir o que deve ser feito ou não, já que pouco conhecimento científico e especializado detém os públicos não especializados. Esta “violação” do principio da neutralidade apresenta-se na mediação que o Estado faz fornecendo investimentos na produção da ciência.

Estes dois problemas, quando colocados separadamente, poderiam ser resolvidos pelos meandros da política. Com base na literatura que discute a popularização da ciência, a solução estaria numa resposta sistêmica: a educação. Esta seria o caminho para resolver os

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32 problemas relacionados à falta de compreensão do público não especializado sobre as decisões que envolvem ciência e tecnologia.

O modelo do déficit (Wynne, 1993), muito difundido na literatura sobre a popularização, preconizava que a simples exposição dos cidadãos aos conteúdos produzidos pela ciência seria capaz de produzir um letramento sobre tais assuntos, tornando possível a participação daqueles cidadãos em tais decisões. Tempos depois, alguns trabalhos, como os desenvolvidos pelo próprio Wynne, mostraram que o modelo do déficit não pontuava a maneira como os experts e o público leigo tinham leituras diferentes sobre os mesmos problemas que emergiam das pesquisas científicas.

Ainda na direção do modelo do déficit, o conhecimento é tratado como algo que pode ser quantificado e a questão passa a ser deslocada para a relação entre aqueles que o possuem e os que não possuem. O conhecimento é tratado, neste caso, como um bem que deve ser possuído. Para equilibrar a assimetria entre experts e públicos que não o possuem, o Estado seria o provedor da produção de expertise e proporcionaria a popularização dos conhecimentos produzidos pelos experts (TURNER, 2001: 124). No entanto, o problema pode ser tratado apenas como uma questão de mudança de ponto de vista, e não como algo quantitativo. Partindo desse suposto, a educação científica seria meramente uma propaganda de um grupo limitado, o grupo dos experts. Deste modo, seria uma outra “violação” do principio da neutralidade do Estado.

Se pensarmos ambos problemas articulados uma outra questão emerge: o público estaria sob controle cultural e intelectual dos experts na medida que estes são a fonte de produção de tal conhecimento e o público seria, desse modo, menos competente que os experts nas tomadas de decisão sobre assuntos científicos e tecnológicos (TURNER, 2001: 125)6. Tal problema suscitado por Turner emerge da relação que os cientistas estabelecem na criação do discurso científico e na criação de um discurso público sobre a ciência, justificando o uso e apropriação social de tal discurso, todos eles baseados numa ideia de autoridade que permeia a expertise.

6 If experts are the source of the public’s knowledge, and this knowledge is not essentially superior to unaided public opinion, not genuinely expert, the ‘public’ itself is presently not merely less competent than the experts but is more or less under the cultural or intellectual control of the experts. (TURNER, 2001: 125)

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33 Este tipo de autoridade, que Turner chama de autoridade cognitiva, se manifesta direta e indiretamente. A autoridade científica reveste muitas das decisões tomadas no cotidiano da política, sem que nenhum cientista apareça para justificar os usos de argumentos utilizados para tal decisão. Turner se baseia no argumento de Habermas segundo o qual o mundo da vida em parte é fruto de controles externos operados por experts cuja maneira de pensar é incompreensível para as tradições que são parte e ajudam a constituir o mundo da vida. (TURNER, 2001: 128)7. Existiria um lapso cultural entre a compreensão que os públicos têm da ciência e da expertise e o que acontece nos ambientes e espaços de produção da expertise e a maneira como a mesma influencia o cotidiano das pessoas. A autoridade que fundamenta as decisões a partir da ideia de “cultura expert” de Habermas não passa em muitos casos por processos de legitimação democrática. O expert, neste sentido, não seria aquele que temos um contato face a face, mas aquele que está imerso na dinâmica da burocracia do Estado.

A maneira direta pela qual opera a autoridade científica baseia-se na persuasão do contato direto que os cientistas estabelecem entre seus pares e o público não especializado. E esta autoridade se reveste de um caráter corporativo, segundo Turner. O público julga os cientistas como porta-vozes legítimos para falar sobre a ciência, quando eles falam sobre a ciência. Este julgamento fundamenta-se na medida que o público percebe que os cientistas falam em nome da Ciência. Este tipo de manifestação da autoridade também é construída pelos meandros da legitimação democrática quando os cientistas submetem seus trabalhos para obtenção de financiamentos, avaliação pelos pares, nas publicações e apresentações em congressos. Nesta relação, a autoridade está relacionada aos critérios de validação pelo outro que está envolvido na situação.

No interior das duas lógicas de autoridade exercida pelo expert, Turner (2001) propõe a existência de cinco tipos de processos de legitimação que estão relacionados com a construção de uma autoridade política. Estes, entretanto, tipos propostos por Turner não tratam de uma classificação, segundo o próprio autor coloca, mas de perceber como se dão os processos de legitimação e suas implicações políticas.

7 The life-world is the product, at least in part, of external controls, which he calls ‘steering mechanisms’, operates by experts whose thinking is not comprehensible within the traditions that are partof, and help to constitute, the life-world.

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34 Os experts do tipo I apresentado por Turner (2001: 131) são aqueles que a legitimação permeia todo o coletivo social e uma audiência limitada. Esta legitimação acontece de uma maneira diferente a qual concebe uma leitura da expertise no sentido colocado por Habermas. Ela tem sua garantia numa aceitação geral dos resultados práticos que uma expertise proporciona. Tomemos como exemplo a questão da bomba atômica. Qualquer indivíduo direta ou indiretamente sabe que tal bomba é produto das descobertas feitas pelos físicos em seus laboratórios. Além de ter uma ampla aceitação, aqui no sentido de percepção da origem das descobertas, a legitimação da autoridade dos físicos fundamenta-se numa crença que os achados têm consequências que podem ser percebidas como fruto do trabalho dos físicos. Estes reivindicam tal autoridade e a incorporam através da ideia de comunidade dos físicos. Este tipo de expertise tem o seu processo de legitimação muito parecido com os de aceitação e rejeição pelos quais passam a autoridade política.

O segundo tipo de expert apresentado por Turner são aqueles que apresentam uma legitimidade decorrente de uma audiência restrita. Mesmo possuindo uma autoridade restrita, os físicos são pensados como experts do tipo 1 por que seus achados extrapolam a esfera de legitimação da audiência formada apenas pela comunidade científica dos físicos. Os experts tipo 2 apenas possuem uma legitimidade aceita por uma audiência específica. O exemplo dos teólogos, usado por Turner (2001: 131), que tem sua autoridade como especialista em leitura de textos religiosos limitada a determinados grupos sociais. Tal tipo de legitimação da autoridade está restrito e possui uma audiência que é pré-estabelecida, como o caso dos físicos e sua comunidade.

Os experts do tipo 3 não possuem uma comunidade pré-estabelecida e seus achados não são considerados como possuindo uma relação direta e causal com os seus produtores. Tal tipo de expertise tem como característica a formação de uma audiência. Este tipo de expertise é formada por pessoas que são pagas para performar algum tipo de serviço. Fiquemos ainda com o exemplo de Turner. O massagista terapêutico é pago pelo conhecimento que possui em massagem, e pelo exercício de tal conhecimento, mas o pagamento está relacionado ao julgamento que os consumidores do serviço fazem da relação entre o conhecimento e o efeito proporcionado pela terapia. O testemunho dos consumidores permite que os terapeutas reivindiquem uma expertise em relação a uma audiência mais aberta, mas ao mesmo tempo algumas pessoas não se beneficiam dos resultados alcançados

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35 pela massagem terapêutica e não percebem, ou possuem uma crença, as suas promessas como um tratamento. Por isso, Turner considera que os terapeutas massagistas criam uma audiência. Um grupo de pessoas para as quais o terapeuta é um especialista que suas ações são comprovadas na prestação do serviço.

Os dois tipos finais estão direta ou indiretamente relacionados com a atuação do Estado. Esses experts são convocados a falar em nome de algo e usam a expertise na esperança que suas perspectivas convençam um público mais amplo e assim conduzam-nos a seguir certas escolhas diante de uma situação de definição política. Para Turner (2001), este tipo desenvolveu-se no final do século XIX nos Estados Unidos a partir do desenvolvimento de fundações e organizações que tinham como objetivo causas filantrópicas e ações de mobilização coletiva. Tal tipo de expert falhou em muitos casos nos quais a expertise não foi amplamente aceita como esperavam os seus fundadores.

O quinto tipo seria um desenvolvimento histórico do tipo 4 e está diretamente relacionado a administração pública. São os experts que agem como consultores para assuntos de interesse público, mas que raramente são vistos. As relações estabelecidas entre esses técnicos para assuntos científicos, os gestores públicos e os diversos tipos de interesses envolvidos nessas relações pouco são divulgados e explicitados, para Turner (2001:136). Diversas decisões políticas são tomadas a partir dessas relações entre tais experts e os gestores. Uma rápida observação do trâmite da lei de biossegurança no Congresso Nacional amplia as associações que envolvem experts do tipo 5, pois em casos como das Células-tronco, muitos experts foram solicitados a falar em espaços midiáticos a falar sobre a controvérsia. (ver Cesarino, 2006).8

Mesmo que Turner trate do contexto americano, podemos perceber estes aspectos relacionados à cultura política brasileira. O auxílio de experts em questões relacionadas à elaboração de políticas públicas é visível, por exemplo, se considerarmos os trabalhos desenvolvidos pelos cientistas no processo de discussão e elaboração da lei de biossegurança no Congresso, bem descrito por Letícia Cesarino (2006). Neste sentido, os dois últimos tipos apontados por Turner (2001) estão muito relacionados ao que ocorreu na audiência pública,

8

Cabe notar que este tipo de expertise é diferente da noção de expert cultures de Habermas. Os experts no sentido de Habermas atuam muito mais na burocracia através de um poder discricionário, como descreve Turner (2001: 141). Este suposto poder discricionário tem relação com a possibilidade que os experts têm de lançar mão de uma forma de dominação de forma indireta, já que a burocracia parte do suposto que a autoridade exercida é difusa, como já havia notado Max Weber em seus relatos sobre a dominação racional.

Referências

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