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Traduzir ficção criminal - Crime de James Ellroy

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

Traduzir Ficção Criminal - Crime Wave de James Ellroy

Ana Filipa Amado de Oliveira

Mestrado em Tradução

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

Traduzir Ficção Criminal - Crime Wave de James Ellroy

Ana Filipa Amado de Oliveira

Mestrado em Tradução

Orientadora: Professora Doutora Margarida Vale de Gato

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“The plain prose translation surprises us with foreign splendors in the midst of our national domestic sensibility, in our everyday lives, and without our realizing what is happening to us – by lending our lives a nobler air – it genuinely uplifts us.”

Johann Wolfgang von Goethe, “Translations”, 1819, in The Translation Studies

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Agradecimentos

Os meus sinceros agradecimentos à Professora Doutora Margarida Vale de Gato, orientadora deste projecto, pelo apoio dado e pelas valiosas contribuições para o desenvolvimento e enriquecimento do trabalho.

À Professora Doutora Maria de Lurdes Sampaio, pela preciosa ajuda ao longo deste projecto, nomeadamente no auxílio de suportes bibliográficos e sugestões de pesquisa.

Ao agente da Polícia Judiciária Bruno Antunes pela amizade, revisão técnica e esclarecimento de dúvidas que surgiram ao longo do decorrer do trabalho.

À minha família e amigos, pelo incentivo e pelo apoio que deram ao longo destes meses, não só a nível académico como também emocional.

Um agradecimento final a todos aqueles que de forma directa ou indirecta ajudaram na concretização deste projecto.

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Resumo

O presente projecto tem por objectivo investigar uma área da tradução literária ainda pouco explorada no mundo académico, a tradução de ficção criminal, nomeadamente de uma parte do livro Crime Wave de James Ellroy, editado em 1999. A obra escolhida tem como objectivo a obtenção do grau de mestre em Tradução, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo o trabalho decorrido no terceiro, quarto e quinto semestres de 2010-12.

A tradução desta obra foi, por si só, um desafio, em parte graças ao estilo peculiar do autor que confronta a linguagem politicamente correcta, mas também pelo desenvolvimento que faz de uma prosa lisa ou seca (plain style), oferecendo resistência na estrutura frásica do português, que tende a ser mais extensa do que a da língua de partida. A tradução realizada, e que serve de base ao grosso deste projecto, teve por horizonte a possibilidade de edição comercial para o público-alvo aficionado do policial negro e/ou interessado na literatura contemporânea dos E.U.A.

A escolha apenas de uma parte da obra Crime Wave recai na extensão pretendida para o presente projecto, sendo que se procedeu à tradução dos três capítulos que constituem a primeira parte do livro.

Quanto ao relatório, baseia-se numa exploração do género no contexto editorial português dentro da acepção de literatura e, acima de tudo, numa delimitação dos seus sub-géneros e definições. Procurou-se também explorar em que medida o carácter do autor pode influenciar a sua obra o que influiu na análise de estilo apresentada. Finalmente fez-se um levantamento, com respectiva análise, das principais questões linguísticas da tradução.

Em anexo, encontram-se o texto traduzido para português e o respectivo texto de partida, bem como um relatório policial que serve de demonstração ao trabalho de credibilização e do estilo de escrita apresentado no texto traduzido.

Espero que o presente relatório demonstre o empenho e investigação necessários à tradução não só da ficção criminal, mas de toda a tradução literária.

Palavras-chave: James Ellroy, ficção criminal, literatura, tradução de policial, estratégias de tradução.

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Abstract

This project aims to explore a field of literary translation that is still little explored in the academic world, the translation of crime fiction, namely a part of the book Crime Wave by James Ellroy, published in 1999. It aims at obtaining the master degree in Translation, by Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, and it was produced during the third, fourth and fifth semesters of 2010-12.

The translation of this work was, in itself, a challenge mainly due to the author’s peculiar style. This presents a challenge to political correctness, but also to the ability to reflect an adoption of a plain, or rather though, style, defying the resistance of the Portuguese sentence structure, which tends to be longer than the one in the source language. The translation made, as a basis for the bulk of this project, envisages the possibility of commercial publication for a target readership fond of the noir and/or interested in contemporary US literature.

The choice of only one part of the book Crime Wave relies in the extension desired for this project. The translation presents the three chapters that comprise the first part.

As for the report, it is based on the exploration of the genre in the Portuguese editorial context as well as within the conventions of literature. It seeks furthermore to explore to what extent the author’s character can influence his work, which in turn influenced the textual analysis we present here. Finally, the report provides a survey and the respective analysis of the translation’s main linguistic issues.

The translated text into Portuguese and its source text are appended to the report, as well as a report from Polícia Judiciária, which gives credibility to the presented work and style of writing of the translation.

I hope this report demonstrates the necessary commitment and research for the translation not only of crime fiction, but of all literary translation.

Key words: James Ellroy, crime fiction, literature, crime novel translation, translation strategies

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Índice

Agradecimentos 5 Resumo 6 Abstract 7 Índice 8 0. Introdução 9

1. A fortuna da literatura policial 11

1.1. Policial e literatura 11

1.2. A literatura policial no sistema literário português 14

2.

2.1 A ficção criminal até James Ellroy 17

2.1.1. Distinção entre ficção criminal e detectivesca 17

2.1.2. O Criminoso, o Detective, a Vítima e o Watson 20

2.2 A obra e a figura de James Ellroy 23

2.2.1. Perfil Psicológico 23

2.2.2. O Estilo de James Ellroy 25

3. Normas, estratégias e problemas de tradução 29

3.1. Estratégias Sintácticas 34 3.2. Estratégias Semânticas 43 3.3. Estratégias Pragmáticas 54 3.4. Vocabulário Especializado 62 4. Conclusão 77 5. Bibliografia 79 6. Anexos i

6. 1. Anexo 1 – Texto traduzido ii

6. 2. Anexo 2 – Texto original cxiii

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Introdução

Tem esta tese um duplo objectivo: primeiro, o de aprofundar um autor tão valorizado na literatura policial dos E.U.A. como James Ellroy que, bem como o género que representa, atraiu, e continua a atrair, poucas atenções na crítica literária em Portugal e, segundo, o de discutir as dificuldades de tradução do estilo muito próprio por si definido, derivado do policial negro e da literatura de crime. Para este efeito, o trabalho divide-se em três partes. Inicia-se com uma introdução ao género da ficção policial, incluindo uma contextualização histórica e uma panorâmica da evolução desde Poe a James Ellroy, bem como uma exploração das suas manifestações em Portugal. Na segunda parte, será discutida a obra e a figura de James Ellroy: autor controverso no que toca à sua forma de escrita, mas consagrado no policial americano. A sua obra engloba várias autobiografias e a exploração do lado mais negro de Los Angeles. A obra de um autor é fruto da sua vivência, pelo que se julgou necessária a exploração do perfil psicológico de James Ellroy e da forma como este poderá influenciar a sua escrita. Finalmente, na terceira e última parte desta tese, será feita a análise das várias estratégias utilizadas a fim de realizar a tradução que se encontra em anexo e que foi ponto de partida deste trabalho.

A tradutora tem de estar consciente das suas opções; sem esta consciência poderá correr o risco de não ficar satisfeita com o seu trabalho nem saber defender as decisões por si tomadas. A fim de entregar uma tradução que se aproxime do texto de partida e da realidade que este representa, a tradutora tem de se munir de inúmeros recursos e recorrer a várias pesquisas. Esta afirmação pressupõe já uma norma inicial governante da presente tradução, a adequação, segundo Gideon Toury correspondente a uma maior aproximação às normas do texto de partida, opção dominante que procurará ser sustentada com justificação no género e tipo do texto policial, geralmente localizado no estrangeiro. Com o objectivo de apresentar um texto espelhando a realidade do sistema policial americano, procedeu-se a uma investigação em fontes bibliográficas, nomeadamente livros que auxiliam escritores deste género, listados na bibliografia.

As características diferentes entre os sistemas literários e sócio-ideológicos norte-americano e português tornam problemática a construção do carácter de estrangeiro que sempre foi colado ao policial. Não só a nível nacional, como também a

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10

nível internacional, o género sofreu sempre, como a seguir se verá, de uma inferiorização enquanto “paraliteratura” ao invés de literatura. Estas questões serão mais aprofundadas na primeira parte desta tese, discutindo a delimitação dos subgéneros e do género da ficção criminal.

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Parte 1

A fortuna da literatura policial

1.1. Policial e literatura

“David L. Grossvogel prefers to think of detective fiction as a striptease (his word): ‘…the genre features a hero, the detective, whose existence is a mere function of the mystery he is solving, while that mystery is, in fact, a patent knowledge over which a veil has been drawn at the first page that cannot extend beyond the last.’ A metaphor for life, in fact.” Winks, Robin W., Detective Fiction – A collection of critical essays, p.3

A definição de início da ficção criminal, enquanto género, deve muito à literatura norte-americana, parecendo consensual que as suas bases foram lançadas por The Murders in

the Rue Morgue (“Os Crimes da Rua Morgue”), The Purloined Letter (“A carta

roubada”) e The Murder of Marie Roget (“O assassinato de Marie Roget”) de Edgar Allan Poe. Historicamente, a sua expansão deve-se a um maior desenvolvimento da imprensa e à produção maciça tanto de livros como dos meios de comunicação, nomeadamente os jornais. Por outro lado, o crescimento da taxa de criminalidade que se fez sentir em zonas do mundo como os Estados Unidos da América também foi um incentivo, se não mesmo a rampa de lançamento, para o progresso de um estilo de escrita debruçando-se sobre as duras realidades de violência, que estava pouco desenvolvido. Os autores sentiram necessidade de se expressar contra uma força policial que julgavam ser incapaz e de transmitir a sua opinião em relação à onda de criminalidade que viviam, como afirma David Madden: “Not only do the implications of the tough novels have a social relevance that transcends entertainment value, their authors sometimes wrote directly against the evils of their times and even engaged in political activities.”1 Segundo a História crítica do género policial em Portugal de

1

David Madden, Tough Guy Writers of the Thirties, Londres e Amesterdão: Arcturus Paperbacks, 1979, p. xxiv

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Maria de Lurdes Sampaio, esta vontade de expressão seria, entre nós, particularmente popular no período pós-guerra.2

Antes de mais, é necessário definir qual a importância e qual o papel que a ficção criminal tem no panorama literário. A ficção criminal, ao contrário de obras consideradas literatura3, sofre da inferiorização colada à denominação de paraliteratura. Sem querer aprofundar demasiado este assunto, julga-se necessário discutir a distinção entre literatura e paraliteratura. Partindo de Aguiar e Silva, e de acordo com a definição apresentada por Diderot, “littérature apresenta o significado de específica actividade criadora que se consubstancia em obras caracterizadas por uma particular categoria de belo.”4 No entanto, a fim de fornecer uma definição mais recente e clara, Aguiar e Silva afirma:

O lexema é fortemente polissémico; o conceito de literatura é relativamente moderno e constitui-se, após mais de dois milénios de produção literária, em função de um determinado circunstancialismo histórico-cultural; a literatura não consiste apenas numa herança, num conjunto cerrado e estático de textos inscritos no passado, mas apresenta-se antes como um ininterrupto processo histórico de produção de novos textos…5

A definição de literatura toma-se assim algo que não é estático, cujas fronteiras não são imóveis. A existência de fronteiras difusas em relação ao tipo de obras que são incluídas na definição de literatura vai ao encontro de uma definição proposta por Earl Miner que se encontra inserida dentro do que ele denomina por falácia objectiva, isto é, segundo Miner, a noção de literatura cai na falácia de que as obras apenas recebem esta denominação se se inserirem nas “qualidades objectivas” que lhe são atribuídas. Como tal, e segundo a sua opinião de que “a obra literária só existe através do acto cognitivo do seu leitor”6, não pode haver objectividade nesta definição, pois a opinião do leitor pertence ao campo do cognitivo, isto é, da percepção, pensamento, linguagem e “estratégias interpretativas” do leitor. Sendo assim, pode-se considerar literatura como sendo um sistema aberto, cujas fronteiras não são reais nem imutáveis.

Quanto a paraliteratura, ao contrário da infraliteratura, encontra-se numa posição periférica à literatura, isto é, é uma literatura marginal mas que mesmo assim ainda é

2

Maria de Lurdes Rodrigues Morgado Sampaio, História crítica do género policial em Portugal:

1870-1970: transfusões e transferências, dissertação de douramento apresentada à FLUP, Porto, 2007, p. 423

3

Literatura, proveniente da palavra latina literatura, que significa arte na sua acepção técnica, perícia e conhecimento.

4

Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, Coimbra: Livraria Almedina, 1992, p. 6

5

Ibid. p. 14

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considerada por diversos teóricos. Mais uma vez, de acordo com Aguiar e Silva, a paraliteratura não se insere dentro das fronteiras de literatura porque carece do carácter inovador essencial à definição de literatura. A paraliteratura é praticamente destituída da característica de novidade e originalidade, alterando-se e evoluindo de uma forma tão lenta que é quase imperceptível.7 Nada era mais importante, porém, para o “pai” da ficção criminal, Edgar Allan Poe, do que a “novidade” nas obras literárias que escrevia, pelo que este estatismo de convenções é comprovadamente superável nos casos em que o mistério encontra a forma da boa literatura.

Como referido anteriormente, define-se o início do género da ficção criminal com o trabalho de Edgar Allan Poe. A inovação de estilo e o recurso ao mundo do crime e à força policial, bem como os seus meios para resolver crimes, continuam a inspirar autores do século XX como Raymond Chandler, Dashiell Hammett ou James Ellroy. Nos seus contos de detective, Poe utiliza estratégias policiais e pensamento inquiridor a fim de descobrir o responsável por crimes cometidos em ambientes urbanos com características contemporâneas. Num dos contos, The Murder of Marie Roget, observa-se a importância que a imprensa tinha, e tem, na divulgação dos crimes mais sensacionalistas e na difusão da violência.8 Esta característica de violência marca o género da ficção criminal e, consoante a forma e a intensidade com que é apresentada, cria os vários subgéneros existentes.

É este trabalho propício a observar as transformações e as linhas de continuidade ao longo dos anos, desde The Murders of the Rue Morgue a Crime Wave. James Ellroy continua a pôr a descoberto crimes sensacionalistas, num palco onde reina o crime. No entanto, usa uma linguagem directa, de estrutura superficial simples, de modo a dar a ilusão de realização objectiva, quase crua. Já Poe mantém um nível de linguagem elevado: veja-se a presença constante de francesismos e citações clássicas com que também elevava o seu capital cultural na literatura oitocentista9, ao mesmo tempo que aprofunda a subjectividade das mentes criminosas. Assim, o nível de introspecção em relação ao crime é diferente: Poe foca-se principalmente no processo mental do crime. Para Poe, o desfecho da história é determinante, sendo que toda a narrativa tem de ser

7

Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, Coimbra: Livraria Almedina, 1992, p. 133

8

Neste conto, o detective tenta resolver o crime através dos dados que vão sendo fornecidos pelos meios de comunicação, em particular, os jornais.

9

ver Margarida Vale de Gato, Edgar Allan Poe em Translação: entre texto e sistemas, visando as

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construída de forma a conduzir, mesmo que não a uma resolução, a um efeito climático. Sendo assim narrativa e desfecho prosseguem lado a lado, sendo que do avançar de um depende a revelação da outra. O próprio Poe afirma:

Nothing is more clear than that every plot, worth the name, must be elaborated to its dénouement before any thing be attempted with the pen. It is only with the dénouement constantly in view that we can give a plot its indispensable air of consequence, or causation, by making the incidents, and especially the tone at all points, tend to the development of the intention.10

Pelo contrário, Ellroy usa o “plain style” (ver adiante) que se foca aparentemente nos percursos físicos e biográficos, distribuindo os detalhes e factos de forma fria pelo triângulo vítima, investigador e criminoso, e dispensando quaisquer embelezamento ou adornos.

1.2. A literatura policial no sistema literário português

Apesar de as histórias policiais se situarem principalmente em contextos anglófonos ou francófonos, os livros deste género começaram a circular noutros países, um dos quais Portugal. As traduções de obras policiais dos E.U.A. chegavam até ao nosso país principalmente através da via intermédia de traduções francesas (então a principal “segunda língua”), que depois foram traduzidas para português ou através de traduções brasileiras que, por sua vez, foram revistas por tradutores portugueses. Todas estas traduções/adaptações faziam com que o resultado final não fosse o mais positivo, pois o tradutor português, muitas vezes, não tinha acesso ao texto de partida ou nem sequer o compreendia. Além disso, as versões de livros de ficção criminal que chegaram até nós sofreram inúmeras transformações, como truncamentos e resumos, pelo que, não é de estranhar que os livros fossem significativamente mais curtos. Em parte, estas transformações devem-se à forte censura a que o país estava sujeito nas décadas de 50 a 70. Havia a preocupação de eliminar todo o tipo de imagens mais sexualizadas, sendo que desvirtuava a narrativa retirar dos textos a informação que se considerasse moral ou politicamente repreensível, chegando-se mesmo a eliminar capítulos inteiros e a

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reorganizar o texto de uma forma que se tornava incómoda ao público-alvo. Além disso, notava-se uma grande preocupação em definir, e em deixar bem claro, o carácter dos personagens, acentuando-se a diferença entre bons e maus. Ainda dentro destes processos de omissão, observa-se a eliminação de personagens com carácter mais político, que poderiam pôr em risco a força política vigente em Portugal durante o Estado Novo, questão bastante aprofundada por Maria de Lurdes Sampaio na sua tese de doutoramento sobre literatura policial11.

Aquando do processo de tradução, os tradutores trabalhavam o texto a fim de o tornar compreensível ao público de chegada, isto é, “domesticavam-no”. Para tal, interpretavam ou encontravam equivalentes para todas as referências histórico-sociais que pudessem existir, ou simplesmente eliminavam-nas. Desta forma, conseguiam chegar a um público mais vasto, entre o qual se encontravam operários e leitores com poucos conhecimentos enciclopédicos, cuja leitura poderia sair prejudicada se não existisse essa adaptação à cultura de chegada. Estas alterações ao texto de chegada popularizaram o género em Portugal. Contudo, e à medida que o género se foi tornando mais conhecido, os leitores começaram a sentir uma necessidade de conhecer o estrangeiro, de conhecer o outro, processo facilitado pela abertura política do país. Sendo assim, foi necessário tomar uma abordagem diferente em relação às traduções que eram apresentadas ao público português. A manutenção dos vocábulos e conceitos estrangeiros tornou-se determinante para a manutenção da credibilidade da narrativa e para a formação dos leitores em relação ao país estrangeiro.Observou-se, inclusive, uma maior aceitação pelo mercado livreiro português do género quando o autor aparecia com nome estrangeiro. 12 Esta situação difere assim do que se observou no país que foi berço deste género. Assistimos também à criação de edições cujo enfoque principal é a literatura criminal, como a Colecção Vampiro, bem como revistas que se debruçavam sobre este género, como Vampiro Magazine e X-Magazine.

O género da ficção criminal tornou-se distintivo devido a um rompimento de barreiras. Expôs a corrupção, criticou sistemas políticos e, ao mesmo tempo, conseguiu

11

Maria de Lurdes Sampaio, p. 282. Já André Lefevre escrevia no seu ensaio “Mother Courage’s Cucumbers”: Translations are produced under constraints that go far beyond those of natural language – in fact, other constraints are often much more influential in the shaping of the translation than are the semantic or linguistic ones.

12

Quanto aos nossos escritores portugueses, devido a uma falta de aceitação pelo mercado livreiro, utilizavam pseudónimos de língua inglesa, fazendo com que os seus livros circulassem como se fossem traduções. O caso português mais conhecido é do escritor Dennis Macshade, pseudónimo de Dinis Machado.

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criar heróis humanos, os detectives, capazes de resolver os crimes mais hediondos. Assistiu-se também a uma maior abertura do tipo de linguagem utilizada, ultrapassando-se as barreiras imposta pela literatura clássica. A utilização de vocabulário escatológico e do mundo do crime tornou-se também uma forma de mostrar, o mais credivelmente possível, os submundos da droga e do crime. Este género consagra-se, tipicamente, pela importância que o mistério, a violência e o erotismo têm, sendo que, tal como num jogo de xadrez, cada uma destas peças desempenha um movimento único na defesa do género, na defesa do rei.

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Parte 2

2.1. A ficção criminal até James Ellroy

“LITERATURE has from the first been full of violence. This applies even to literature of the highest type, indeed, the higher it is (Shakespeare, Dante, Greek tragedy), the fuller of violence.” Moore, Harry T., Prefácio in David Madden, Tough guy writers of the thirties, Londres e Amesterdão: Arcturus Paperback, 1979, p.v

2.1.1. Distinção entre ficção criminal e detectivesca

“...it is mainly the private detective novels that penetrate to the underworld, and in those novels high society often completes the social picture – the poles, meet, clash, merge, often prove essentially identical.”13

Antes de mais é importante explicar como funciona convencionalmente o género policial, como se desenvolve a sua trama. Existem autores que preferem criar um detective, um herói que resolve o crime e com o qual o leitor deverá simpatizar. Dessa forma, vemos criações como Hercule Poirot, Miss Marple, o Comissário Maigret, Sherlock Holmes e o seu inseparável Watson, entre muitos outros. No entanto, existem outros autores para quem isso não é tão importante e que mantêm a sua história mais focada no crime e suas circunstâncias do que na personagem. Pode-se, assim, de uma forma muito genérica, fazer a distinção entre ficção criminal e ficção detectivesca. No entanto, estas duas vertentes da ficção encontram-se estreitamente ligadas, uma vez que partilham a maioria das fases que, de acordo com Freeman14, levam à construção do romance policial e as quais não podem ser ignoradas:

1) a enunciação do problema;

2) a apresentação dos dados essenciais para a descoberta da solução; 3) o desenvolvimento da investigação e problematização da resolução;

13

David Madden, Tough Guy Writers of the Thirties, Londres e Amesterdão: Arcturus Paperbacks, 1979, p.xxii

14

Austin Freeman (Abril de 1862 – Setembro de 1943), autor britânico de romance detectivesco, o seu personagem mais conhecido é o médico forense Dr. Thorndyke.

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18 4) a discussão dos indícios e a demonstração15

Embora os pontos 3 e 4 possam parecer semelhantes e, até mesmo, sobrepostos tal não é realidade uma vez que no ponto três assistimos à apresentação da solução, ou seja, é apresentada a solução do crime ao leitor, mas é só no ponto 4 que nos é demonstrada a forma como o crime teve lugar. Nem sempre esta caracterização pode ser compreendida de forma tão linear, uma vez que se aplica à disposição de informação a que o leitor tem acesso, e que pode variar de escritor para escritor (embora se observe uma presença mais ou menos visível de todas estas fases). No entanto, na obra de James Ellroy assiste-se a uma não finalização deste ciclo definidor, uma vez que o quarto ponto “a discussão dos indícios e a demonstração” não tem uma realização, isto é, não se chega a demonstrar quem é o verdadeiro responsável pelo crime cometido. Esta é mesmo uma questão fulcral na obra de Ellroy, uma vez que se baseia na apresentação ao público de crimes hediondos que nunca conseguiram ficar resolvidos aos olhos da lei. Quanto ao autor, cabe-lhe o processo mental para chegar a estes quatro pontos, sendo que se deve focar em primeiro lugar na trama, ou intriga, onde se descreve como e quando aconteceu o crime (mesmo que estes dados não sejam imediatamente fornecidos ao leitor já deverão estar previamente construídos na mente do seu criador), ou seja, os dados principais da história; e, em segundo lugar, a narrativa. Dá-se o nome de intriga, ou enredo, à definição das linhas fundamentais do romance, enquanto se dá o nome de narrativa, ou diegese, ao conjunto de acções distribuídas por um espaço-tempo circunscrito: “La diégèse est l’univers spatio-temporel désigné par le récit”.16

Sem narrativa17, o livro policial seria uma mera relação de factos. J.C. Masterman, autor de Writing Crime Fiction define de forma original as condições de uma narrativa deste tipo: quatro ases - Espadas (oportunidade), Copas (um motivo), Ouro (a capacidade de matar), Paus (a capacidade de cometer este crime em particular).18 Por outro lado, de acordo com Boileau-Narcejac existem três personagens fundamentais no romance policial: “le criminel, la victime, le detective.”

15

Boileau-Narcejac, Le Roman Policier, Presses Universitaires de France, Éditions Denoël, 1982, pág.46, minha tradução. A autora deste projecto e relatório, apesar do escasso conhecimento da língua francesa tentou, a fim de fundamentar melhor a presente tese, ler e compreender alguns textos em francês. Desta forma, ao longo da tese observa-se a leitura na língua original francesa mas, em casos onde a língua oferecia uma maior dificuldade de compreensão, optou-se pela leitura em obras traduzidas.

16

Gerárd Genette, Figures III, Paris; Éditions du Seuil, 1972, p.280

17

Sobre as questões de narrativa, enredo e história ver também Carlos Ceia, “Diegese” in Dicionário de termos literários online, URL: http://www.edtl.com.pt

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A investigação pode ser levada a cabo de forma mais tradicional, recorrendo a interrogatórios ou, tal como se tem observado nas últimas produções literárias do género, de uma forma mais científica. Nos últimos anos tem-se assistido a um crescendo da utilização de terminologia forense na ficção criminal. Observa-se assim a introdução de elementos científicos e especializados, permitindo que o público geral obtenha alguns, embora que superficiais, conhecimentos da área.19 Um outro sub-género da ficção criminal é o “cozy mistery”, tipo de ficção onde o sexo e a violência são tratados de forma humorística. O género foi definido no final do século XX, após uma tentativa de recriar a época de ouro da ficção criminal. Normalmente, os heróis desta história são detectives amadores, com alguns conhecimentos na força policial. Um dos exemplos deste género são as histórias de Miss Marple, de Agatha Christie. O sub-género do

thriller jurídico é aquele que apresenta como personagens principais advogados. Neste

tipo de escrita o sistema jurídico é a pedra de toque. Um dos livros mais conhecidos é

To kill a mockingbird (Por Favor Não Matem a Cotovia) de 1960 escrito por Harper

Lee.

O sub-género hardboiled é dos mais comummente associados à ficção criminal com cenas de sexo e violência. Nascido nos EUA, o género foi entusiasticamente recebido pela Europa francófona onde recebeu a designação de roman noir. Aponta-se como sendo o autor pioneiro Carrol John Daily (1889 –1958), na década de 20, publicando “Knights of the Open Palm” em 1923, onde apresentou o primeiro detective (reconhecido) de ficção criminal, Race Williams. Daily popularizou-se pela aspereza da sua narrativa. Durante essa mesma década o hardboiled foi cultivado e disseminado por Dashiell Hammett [entre os seus títulos mais conhecidos encontram-se The Maltese

Falcon (O Falcão Maltês, 1930) e Red Harvest (Colheita Sangrenta, 1929)], mas

conheceu a sua “afinação” principal na década de 30 pela mão de Raymond Chandler, reconhecido por obras como The Big Sleep (À Beira do Abismo, 1939) e The Long

Goodbye (O Imenso Adeus, 1953). Apesar de muito semelhantes, estes dois autores

acabaram por desenvolver registos distintos. Dashiel Hammett, considerado o primeiro mestre da ficção detectivesca do hardboiled, apresenta um estilo mais plano, embora com enredo denso e personagens de carácter cínico; por outro lado, Raymond Chandler apresenta-nos uma narrativa na primeira pessoa, veiculando uma hesitação sobre a sua

19

A este respeito, consulte-se Kerstin Bergman, “Crime Fiction as Popular Science. The case of Asa Nilsonne”; Lund University, Agosto 2009, p. 193-207, URL: http://www.ep.liu.se/ecp/042/017/, acessado a 21 de Setembro de 2011

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fidedignidade. Talvez devido às experiências pessoais destes autores, Chandler apresenta também uma narrativa menos política e mais poética. Contudo, em ambos os casos pode afirmar-se que oferecem aos seus leitores contos com um carácter vincadamente moral. Este género está também associado ao termo pulp fiction, devido às edições de capa mole que eram reproduzidas e que tinham o nome de pulps. Dentro deste género literário encontramos ainda várias variações, nomeadamente a noir fiction na sua prática a um tempo revivalista e contemporânea, e o neo-noir, que se caracteriza pelo seu protagonista não ser um detective, mas sim uma vítima ou um suspeito.

Apesar das opções estilísticas utilizadas pelos vários autores do noir, este caracteriza-se pelo tom sombrio, mesmo que a cor principal seja o vermelho do sangue das vítimas, sendo que o seu nome deriva do film noir de Hollywood. A importância que os franceses lhe deram fez com que anos mais tarde aparecessem em França vários livros do género, muitos deles traduções do inglês, criando a Série noire. Dentro dos vários autores que poderiam servir de exemplo, destaca-se James M. Cain. Quanto ao sub-género literário, neo-noir, um dos mais promissores escritores é James Ellroy, que sem dúvida alguma espelha nos seus livros uma visão negra da sociedade contemporânea, devido à brutalidade com que são descritos os assassínios. O facto de Ellroy se focar em crimes reais, e relatos o mais semelhantes possível aos relatórios criminais, torna as suas descrições ainda mais precisas.

2.1.2.

O Criminoso, o Detective, a Vítima e o Watson

De acordo com o dicionário da Língua Portuguesa, crime é todo o acto repreensível; todo o delito previsto e punido por lei penal. No entanto, o crime, enquanto instância metafísica, tem alimentado especulações estético-filosóficas de poetas e pensadores, como Jorge Luís Borges e W. H. Auden. No estudo profundo deste último sobre as raízes cristãs do mistério, existem três tipos de crime a serem considerados no género da ficção criminal: ofensas contra Deus e ao semelhante; ofensas contra Deus e contra a sociedade; e ofensas contra Deus, sendo que todos os crimes são ofensas contra a própria pessoa. A ideia de crime surge indissociável de uma visão social, filosófica e religiosa.

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21

Uma das primeiras preocupações do detective para tentar desvendar um crime é o “como” desse crime, mas, relacionada com esta pergunta, vem também o “porquê”. É na tentativa de responder a estas questões que, pela mão de Arthur Conan Doyle, é criado o personagem Sherlock Holmes, conhecido como o primeiro detective que aplica práticas científicas. Finalmente, para haver crime tem de existir uma vítima; é também papel do detective descobrir o perfil da vítima e perceber qual a razão para ter sofrido um ataque por parte do assassino. Cabe ao detective descobrir a relação entre estas duas personagens e, assim, descobrir a razão do crime e o criminoso.

Em James Ellroy, em particular nos seus livros autobiográficos, My Dark Places (O meu Quarto Escuro20) e The Hilliker’s Curse (à data da presente tese ainda sem tradução em Portugal), é notório o papel de vítima protagonizado por si. Ellroy foi uma vítima indirecta da morte de sua mãe: ao ficar órfão de uma forma tão abrupta, o seu futuro terá sido moldado de forma pouco comum. No entanto, este papel de vítima depressa se une a um papel de “criminoso”, que desempenhou durante a sua juventude. Os seus períodos de dependência de benzendrex, juntamente com os pequenos delitos que cometeu e de que foi acusado, dão-lhe um estatuto de criminoso, algumas vezes desenvolvido nos livros supra mencionados. A autora desta tese defende também o possível papel de criminoso de James Ellroy, no que toca à transmissão e à descrição apaixonada (roçando o doentio) com que descreve os crimes. No caso do género tough, que se tenta definir adiante, o criminoso/gangter:

...is an idealization and stylization of the criminal, whose meaning inheres in the armor of his style. His actions are pessimistic protests against the forced optimism of society.21

Pode argumentar-se que já no romance policial tradicional o detective é indissociável do assassino. Como acontece em Poe, e mais tarde na série Sherlock Holmes, o detective pode ser visto como uma réplica do criminoso, mas no sentido inverso. Procura-se que assassino e detective sejam igualmente inteligentes, a fim de que a luta entre a lei e o “fora” da lei seja de igual para igual. Note-se, porém, que, pela tradição, desta luta apenas um saía vencedor, o herói, o detective.

20

Livro publicado pela Notícias Editora, traduzido por Margarida Vale de Gato, Colecção Prosas de Fora, Lisboa, 1998. Original publicado por Alfred A. Knopf, Inc., Nova Iorque, 1996.

21

David Madden, Tough Guy Writers of the Thirties, Londres e Amesterdão: Arcturus Paperbacks, 1979, p.xxiv

(22)

22

Para chegar à resolução do problema existem vários tipos de detective. O detective cerebral, como Hércule Poirot que utiliza as suas “células cinzentas” ou então o detective apresentado por Raymond Chandler, aquele que entra de rompante pela sala com uma arma na mão e segue sobretudo o instinto e a sua impressão das experiências vividas. Independentemente do seu estilo, cabe ao detective restabelecer a normalidade, a ordem. Ordem essa que foi destabilizada pelo criminoso, ou pelo anti-herói. Eis o que diz W.H. Auden em relação a esta questão, bem como ao papel e ao perfil do detective:

The job of the detective is to restore the state of grace in which the aesthetic and the ethical are as one. Since the murderer who caused their disjunction is the aesthetically defiant individual, his opponent, the detective, must be either the official representative of the ethical or the exceptional individual who is himself in a state of grace. If he is the former, he is a professional: if he is the latter, he is an amateur.22

Há que discutir também o papel de outra personagem recorrente no policial e a que podemos chamar Watson. Os famosos livros de Sir Arthur Conan Doyle não seriam os mesmos sem a presença de Dr. Watson. Embora, inicialmente, o seu papel possa parecer pouco activo na trama, a realidade não é bem essa. Dr. Watson, um médico que partilha o apartamento com Sherlock Holmes e que o ajuda a resolver alguns dos seus casos, torna-se um meio catalítico de explicação do caso. São vários os autores que optaram por criar um “Watson”. O Watson é apresentado como sendo aquele que faz as perguntas que qualquer leitor curioso faria, é o ser que questiona a racionalidade. No entanto, tal como HRF Keating refere no seu livro Writing Crime Fiction23, embora o Watson faça as questões que o leitor inteligente coloca ao longo da leitura, representando um desafio à sua inteligência, permite que este vá desenvolvendo as várias hipóteses de resolução por si mesmo, sem ter uma personagem a relatar-lhe exactamente todos os pormenores. O Watson, note-se não é uma personagem essencial para a ficção criminal, existem outras abordagens que podem ser utilizadas, como o relato feito por alguém que se encontra no nível superior ao do detective e que, por isso, tem acesso a todas as informações (e talvez até a mais) do que aquelas que teria um Watson. No caso de James Ellroy, nos textos que se traduzem em anexo, podemos estabelecer um paralelismo, em que se observa o papel de Watson desempenhado por Bill Stoner. É graças a esta relação que Ellroy tem acesso a algumas informações e pessoas determinantes nos processos que investiga.

22

W. H. Auden “The Guilty Vicarage” in Detective Fiction, A Collection of Critical Essays, ed. Robin W. Winks, Prentice – Hall, Inc., 1980

23

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23

2.2. A obra e a figura de James Ellroy

2.2.1. Perfil Psicológico

Creio que para analisar a obra de um autor esta não deve ser dissociada do perfil psicológico do mesmo. Apesar de esta tese não ter como objectivo a exploração psicológica aprofundada, tentar-se-á fazer uma abordagem, embora ligeira, da psique de James Ellroy para assim analisar melhor a sua obra. Para esse efeito para além do texto em análise e de algumas obras de perfil mais académico ao nível da psicologia, também se recorreu a ilações retiradas de outras obras do autor, tal como The Hilliker Curse24 e da sua auto-biografia, My Dark Places. Como tal, irá descrever-se, em traços gerais, a sua biografia, as implicações psicológicas que a mesma sugere e, depois, transpor essa análise para características estilísticas na obra.

James Ellroy nasceu a 4 de Março de 1948 em Los Angeles, Califórnia, filho de Geneva Odelia e Armand Ellroy. Após o divórcio dos seus pais, James e a mãe mudam-se para El Monte, Califórnia, cidade onde morreu a mãe de Ellroy, brutal e misteriosamente assassinada quando este tinha apenas dez anos. Esta perda drástica na sua vida criou um fascínio pelo homicídio que Ellroy até então desconhecia. O seu processo de luto não foi feito da forma mais comum, tendo criado um certo deslumbramento por outras mulheres também elas assassinadas. Foi assim que teve conhecimento da morte de Elizabeth Short, The Black Dalia (A Dália Negra), caso que inspirou e deu nome a um dos seus livros mais conhecidos, publicado em 1987, e que, mais tarde, foi adaptado para o grande ecrã.

Durante o seu percurso escolar frequentou Fairfax, de onde viria a ser expulso devido às suas manifestações nazis, através das quais procurava chamar as atenções. Ingressou no exército mas, passados três meses, apercebendo-se que aquele não era o seu lugar, e preocupado com o pai, uma vez que este estava sozinho e tinha uma saúde precária, conseguiu convencer o psiquiatra do exército que não era mentalmente capaz. Pouco depois de ter voltado para casa o pai acabou por falecer, ficando Ellroy à responsabilidade de um amigo daquele. Ao fazer dezoito anos, tornou-se livre, entrando

24

(24)

24

numa vida de álcool e de dependência de inaladores Benzedrex que o levou, por fim, a viver na rua. Foi acusado de pequenos crimes, como pequenos furtos e invasão de propriedade privada. Após temporadas consecutivas em penitenciárias, hospitais e a viver na rua, Ellroy apanhou uma pneumonia e começou a duvidar da sua sanidade mental. Preocupado com esta situação, arranjou um emprego como caddy de golfe, o que lhe ofereceu não só uma estabilidade financeira, mas também o tempo de que precisava para a sua produção literária.

Aos trinta anos, James Ellroy publica o primeiro livro daquela que é considerada uma carreira de referência no mundo da ficção criminal, sendo que de si mesmo afirma “Sou o Beethoven do policial negro”25. O seu carácter, ou persona, social é de tal forma egocêntrico e megalómano que este é um registo típico de como inicia as suas aparições públicas:

Good evening peepers, prowlers, pederasts, panty-sniffers, punks and pimps. I'm James Ellroy, the demon dog, the foul owl with the death growl, the white knight of the far right, and the slick trick with the donkey dick. I'm the author of 16 books, masterpieces all; they precede all my future masterpieces. These books will leave you reamed, steamed and drycleaned, tie-dyed, swept to the side, true-blued, tattooed and bah fongooed. These are books for the whole fuckin' family, if the name of your family is the Manson Family.26

Segundo o behaviorismo, o comportamento é uma reacção ao meio exterior. A vivência de um acontecimento traumático pode gerar comportamentos disfuncionais a fim de que o cérebro humano se adapte a essa situação. Podemos dizer que o distúrbio acaba por ser uma protecção que o cérebro humano cria contra eventuais futuros traumas. Situações traumáticas como a perda precoce, e inesperada, de um progenitor podem causar alterações comportamentais na criança. James Ellroy perdeu a mãe aos dez anos e, embora o autor afirme que no momento não sentiu qualquer tristeza pela sua morte, a verdade é que de acordo com estudos psicológicos, pessoas sujeitas a este tipo de experiência traumática podem refugiar-se em substitutos para a pessoa perdida, ou ficarem obcecadas pela situação. Neste caso, a mãe de James Ellroy foi assassinada,

25

Frase retirada da entrevista de Ellroy dada à revista portuguesa Visão a 18 de Fevereiro de 2010.

26

Boa noite, voyeurs, vagabundos, pederastas, farejadores de cuecas, rufias e chulos. Eu sou James Ellroy, o cão do Inferno, a coruja imunda com o rosnar da morte, o cavaleiro branco da extrema-direita e o truque manhoso com pila de burro. Sou autor de 16 livros, todos eles obras-primas, que precedem todas as minhas futuras obras-primas. Estes livros irão deixar-vos escareados, cozidos a vapor e limpos a seco, tingidos, varridos para o lado, verdadeiramente azuis, tatuados e marados dos cornos. Estes livros são para a merda de toda a família, se o nome da sua família for Manson. – minha tradução

(25)

25

tendo o seu corpo sido abandonado sem se descobrir o assassino. Ao iniciar a sua actividade como escritor, e ainda como leitor, Ellroy focou-se na literatura criminal, com principal atenção ao procedimento policial realizado após o assassinato de alguém. Focou-se em casos reais, como o da Dália Negra, ou das mulheres referidas na parte inicial do livro Crime Wave que deu origem a esta tese. Pode-se assim considerar o processo de escrita como uma catarse de todos os seus sentimentos recalcados. Por outro lado, também existem vários momentos nos seus livros em que Ellroy afirma a sua fixação, por vezes sexual, na mãe, observando-se assim, numa fase adolescente, uma manifestação do complexo de Édipo, manifestação essa que podemos considerar perpetuada na descrição extremamente sexualizada das vítimas dos crimes apresentados.

2.2.2. O Estilo de James Ellroy

James Ellroy estreia-se no mundo literário com o romance Brown’s Requiem, publicado em 1981, que se baseia na sua experiência enquanto caddy.

A sua escrita telegráfica, em contraste com os enredos complicados e sombrios, consegue envolver os seus leitores, que são capazes de preencher os espaços em branco e imaginar as mentes distorcidas que cometem os crimes ao longo das páginas. Desde o início, o leitor vê-se envolvido por uma linguagem com bastante calão e expressões típicas do mundo do crime. Predominam o vocabulário escatológico e termos vindos do mundo da droga, do sexo e do álcool num mundo de prostituição, onde actores e actrizes se rendem aos caprichos da vida do espectáculo e se envolvem em mundos obscuros e incertezas sobre si mesmos, tal como pode ser observado no terceiro capítulo da primeira parte do livro Crime Wave (1999).

Apesar de a sua obra muitas vezes desmascarar a corrupção e as falhas da força policial, James Ellroy diz ser adepto do Departamento de Polícia de Los Angeles, acabando por desenvolver uma forte parceria com este. Graças a esta colaboração, James Ellroy conseguiu consumar um estilo único na sua obra em relação aos

(26)

26

conhecimentos internos do meio policial.27 Uma outra característica marcante da sua obra são as frases curtas, atributo esse que constitui mais uma ponte com o mundo policial, uma vez que este tipo de escrita é muito semelhante àquela utilizada nos relatórios de ocorrências de crime. A escrita de James Ellroy acaba assim por ter um registo fortemente factual, que aparenta afastar da narrativa a impressão subjectiva e tudo o que não seja relevante para a apresentação dos dados cumulativos do processo de investigação. Tal característica discursiva manifesta-se numa linguagem tendencialmente descritiva e clara com poucas metáforas e imagens, sendo o objectivo transmitir ao leitor, ou interlocutor, a mensagem principal desprovida de adornos. Podemos associá-la a um estilo marcante da novelística norte-americana no Séc. XX, o

plain style, que teve em Hemingway o seu expoente, e que na ficção criminal,

nomeadamente no hardboiled, adquire uma tensão e rudeza vincadas, conduzindo ao privilégio de designação do estilo tough. Grebstein, no artigo “Hemingway and His Hard-Boiled Children” estabelece a seguinte ligação entre este e Hemingway:

To be specific, Hemingway’s tough style depends on three dominant elements: first, short and simple sentence constructions, with heavy use of parallelism, which convey the effect of control, terseness, and blunt honesty; second, purged diction which above all eschews the use of bookish, latinate, or abstract words and thus achieves the effect of being heard or spoken or transcribed from reality rather than appearing as a construct of the imagination (in brief, verosimilitude), and third, skillful use of repetition and a kind of verbal counterpoint, which operate either by pairing word or juxtaposing opposites, or else by running the same word or phrase through a series of shifting meanings and inflections.28

No entanto, a objectividade pode ser fabricada, sendo afectada por um uso controlado de todos os valores sentimentais e das palavras. De acordo com Richard Ruland e Malcolm Bradbury

“For Hemingway too the writer was a performing self who discovered, through action, areas of personal being and crisis he could use to challenge the truth of language and form”29.

Ou até mesmo, como afirma Sheldon Norman Grebstein:

27

A tradutora, a fim de se familiarizar com este tipo de linguagem e procurar a sua transposição passando para o meio criminal português, procurou documentar-se junto de fontes da Polícia Judiciária,

acrescentando-se em anexo um exemplo de um relatório policial.

28

Sheldon Norman Grebstein, “Hemingway and His Hard-Boiled Children” in David Madden, Tough

Guy Writers of the Thirties, Londres e Amesterdão, Arcturus Paperbacks, 1979, p. 30-31

29

Richard Ruland e Malcolm Bradbury, From Puritanism to Postmodernism – A history of American

(27)

27 …no Hemingway protagonist and few of the protagonists of his disciples, is wholly successful in the restraint of emotion. All strive for coolness and freedom from passion, but all are subject to it.30

No entanto, estas verdades e crises não deveriam passar para a escrita, sendo apenas uma arma a utilizar na produção literária, apelando assim a uma força interior. O

plain style caracteriza-se, assim, por um estilo em que se privilegia o acontecimento em

detrimento do adorno descritivo. A escrita de Hemingway suscitou a Edmund Wilson a seguinte reflexão “the undruggable consciousness of something wrong.”31 Quanto a isso os autores de From Puristanism to Postmodernism vão mais longe e afirmam:

This manner of writing is a kind of existential realism that seems to derive directly from encounter with experiences, but it also implies acquaintance with a new historical condition and so leads onward into a world of trauma, sleeplessness, an awareness of nada, of all meaning lost except that which can be arduously reconstructed. So the writing both focuses attention on the cleanness of its own line, and on the stoic pain and integrity of the experience and its human witness.32

Aqui, apresenta-se uma forma de existencialismo típico da época, onde sobrevém a consciência de que as grandes narrativas não fazem sentido, mas existe uma moral burguesa que é preciso confrontar com o mal sem ser de forma explícita.

Podemos argumentar que o plain style surge como decorrente de uma norma no discurso escrito em inglês, cujas origens remontam à tradução da Bíblia do rei Jaime (King James Bible, 1611). Foi particularmente encorajado entre os puritanos dos EUA e generalizou-se nas classes intelectuais e académicas do século XX através de manuais de estilo como The King’s English (1906) de Henry e Francis Fowler e The Elements of

Style de William Strunk Jr, e E. B. White (1918) 33.

O estilo tough, com a sua característica de imediato e de necessidade de transpor para o papel todo o dinamismo da acção, confere uma maior importância à acção, ou antes mostra-nos o que se passa, em vez de contar como foi. O que se torna importante, e determinante, na narrativa e compreensão das personagens é a forma como as vemos agir e a informação factual sobre elas. Assim, o narrador não tem de descrever o

30

Sheldon Norman Grebstein, “Hemingway and His Hard-Boiled Children” in Madden, David, Tough

Guy Writers of the Thirties, Londres e Amesterdão: Arcturus Paperbacks, 1979, p. 25

31

Ibid. p. 255

32

Ibid. p. 255

33

Tal como afirmam os irmãos Fowler, na sua obra The King’s English: “Prefer the familiar word to the far-fetched./Prefer the concrete word to the abstract./ Prefer the single word to the circumlocution./ Prefer the short word to the long./ Prefer the Saxon word to the Romance.” From Henry and Francis Fowler, The

King’s English, 1906, p.1 in

(28)

28

carácter da personagem para a ficarmos a conhecer, pelo contrário faz-nos acompanhá-lo, o que é determinante para a criação de empatia com a mesma. Estas características destacadas pela análise estilística implicam já uma proposta tradutória, nomeadamente evitando as tendências deformantes de popularização e enobrecimento da linguagem, conforme sublinhado na parte seguinte.

(29)

29

Parte 3

Normas, estratégias e problemas de tradução

“Traduzir, portanto, quer dizer compreender o sistema interno de uma língua e a estrutura de um texto dado nessa língua, e construir um duplo do sistema textual que, sob uma certa descrição, possa produzir efeitos análogos no leitor, tanto no plano semântico e sintáctico, como no estilístico, métrico, fonossimbólico, e quanto aos efeitos passionais para que tende o

texto-fonte.” Umberto Eco, Dizer quase a mesma coisa, tradução de José Colaço Barreiros, Difel, Algés, 2005, p. 15

Sendo que esta tese não tem apenas como objectivo traduzir um texto de Ellroy, mas também explorar uma área literária que infelizmente ainda não tem grande pesquisa por parte dos tradutores, pretende-se aqui apresentar algumas das principais dificuldades com que o tradutor se depara ao longo da tradução deste género tão marcado pelas referências culturais do país de origem, nomeadamente os Estados Unidos da América. Com o propósito também de explorar a ficção criminal, recorre-se a algumas explicações do foro policial, ao longo da análise da tradução.

A obra de James Ellroy conta com vários volumes e êxitos, muitos deles já traduzidos para português. Por isso mesmo, umas das dificuldades sentidas na escolha da obra a traduzir foi mesmo a questão de qual das suas obras ainda não estava traduzida. A fim de realizar a tradução que se encontra em anexo recorreu-se à leitura de vários textos do autor, na língua de partida, tal como já foi referido, bem como de traduções existentes na língua portuguesa de algumas das narrativas do autor. A análise que se segue visa a apresentação de uma tradução de um texto literário em inglês, neste caso, parte do livro Crime Wave, escrito por James Ellroy.

O livro Crime Wave foi editado em 1991, pela Century, sendo uma colectânea de textos escritos para a revista GQ. Os textos aqui reunidos vão desde relatos de casos-crime reais (nomeadamente os três textos traduzidos em anexo) a contos ficcionais, sendo dois deles inéditos (Hollywood Shakedown e Tijuana Mon Amour). Especificamente, os três contos alvo de tradução fazem parte da primeira parte do livro,

(30)

30

intitulada “Unsolved” e foram editados em 1998 (“Body Dumps”), 1994 (“My Mother’s Killer”) e 1998 (“Glamour Jungle”).

Como se afirma na introdução deste trabalho, a tradutora regeu-se por uma norma inicial, a nível global, de traduzir preferentemente em adequação, ou através do método estranhante34, isto é, manter na medida do possível as referências que possam

causar alguma estranheza ao público-alvo a fim de transportar o leitor para o contexto sócio-cultural em que ocorre a narrativa. Conforme postula Gideon Toury, a actividade do tradutor rege-se por três tipos de normas de tradução: as normas iniciais, as normas preliminares e as normas operacionais, dividindo-se as últimas em matriciais e linguístico-textuais. 35 As normas preliminares concernem os factores que determinam a importação de um determinado texto para uma determinada língua/cultura num dado período de tempo e as permissões que essa mesma língua de chegada dá em relação a esse texto. Por sua vez, as normas operacionais centram-se nas decisões tomadas ao longo do processo tradutório.36

They affect the matrix of the text – i.e. the modes of distributing linguistic material in it – directly and indirectly – the relationships as well that would obtain between the target and source texts, i.e, what is more likely to remain invariant under transformation and what will change.37

Sendo assim, observa-se que a tradução não é alvo apenas de uma norma, sendo necessário inclusive modalizar as normas iniciais a determinadas instâncias textuais. A tradução alvo de análise nesta tese, apesar de se ter regido por normas que tendem a levar a uma tradução por adequação, não exclui, assim, momentos em que teve de optar por outras estratégias de uma maior adaptação à língua e cultura de chegada, ou como defende Chesterman, estratégias locais. Tal decisão deve-se à observação das normas preliminares que regem actualmente o mercado livreiro em Portugal como referido anteriormente. Além disso, o leitor de ficção criminal, apesar de desejar entrar num mundo e num espaço que não lhe é familiar, e de preferir que o texto tenha uma componente de estranheza, não deseja sentir necessidade de recorrer a notas de rodapé,

34

Método proposto por Lawrence Venuti em The Translator’s Invisibility, 1995

35

Guideon Toury, “The Nature and Role of Norms in Translation” in The Translation Studies Reader, Lawrence Venuti, Nova Iorque: Routledge, 2004, p. 205-217

36

“Translating” (Processo tradutório”) termo defendido por Toury em “Translation: A cultural semiotic perspective” in Sebeok, Thomas A. Et al. (Eds.). Encyclopedic Dictionary of Semiotics, Berlim/Nova Iorque/Amesterdão: Mounton de Gruyter. 1111-1124. De acordo com Toury há que fazer a distinção entre o processo tradutório, que denomina de “translating” e o produto final deste processo, designado de “translation”.

37

(31)

31

ou até mesmo a outro tipo de recursos, como dicionários e enciclopédias para compreender o corpo do texto, até porque o suspense e a ansiedade pelo desenvolvimento da narrativa são centrais a esta construção.

Desta forma, embora a tradução tenha partido de um impulso estrangeirizante, existiu uma preocupação de que o leitor compreendesse o texto que estava a ler sem se exagerar na localização do texto de partida, isto é, sem transpor todas as ocorrências culturais do texto/cultura de partida para o texto/cultura de chegada. No entanto, há também que especular sobre a questão da traduzibilidade do texto que temos entre mãos. Não basta ao tradutor preocupar-se tanto com o texto de partida como com o texto de chegada, o tradutor tem de considerar que existem:

…duas vias de acesso ao problema gerado pelo acto de traduzir: considerar o termo ‘tradução’ no sentido restrito de transferência de uma mensagem verbal de uma língua para outra, ou considerá-lo no sentido lato, como sinónimo da interpretação de qualquer unidade significante no seio da mesma comunidade linguística.38

O leitor típico do romance policial é alguém que procura estimular o espírito, que procura alguma actividade intelectual, em que lhe seja provocada curiosidade e tensão, onde página após página o leitor se sinta parte deste mundo tão semelhante ao seu, mas dominado pelo crime e pela tentativa de punição do criminoso. Este leitor nem sempre é alguém que principalmente procura uma prosa literária. Por outras palavras, é possível que não tolere um sentimento demasiado grande de estranheza em relação ao texto que está a ler, tal como defendido por Boileau-Narcejac em Le Roman Policier:

Le roman policier est un genre três defini. Le lecteur n’y cherche ni des falbalas littéraires, ni des virtuosités de style, ni des analyses trop approfondies, mais un certain stimulant de l’esprit ou une sorte d’activité intellectuelle comme il en trouve en assistant à un match de football ou en se penchant sur des mots croisés.39

Assim, para transportar o leitor para o local do crime é necessária alguma imersão na cultura de partida, mas é desaconselhável a sua explicitação em notas de rodapé, pelo que nesta tradução se evitaram as mesmas. Uma explicação demasiado aprofundada das referências culturais iria fazer com que depressa o leitor sentisse que lhe estava a ser feito um apelo à inércia intelectual. Pressupõe-se também que o leitor do

38

Paul Ricoeur, Sobre aTradução, Lisboa: tradução de Maria Jorge de Vilar Figueiredo, Livros Cotovia, 2005, p. 23

39

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32

policial tenha algum conhecimento da cultura de partida a fim de compreender o texto que está a ler. Por isso mesmo, em relação ao público-alvo que se teve em consideração para esta tradução, presume-se que seja um leitor com alguma literacia e de idade adulta, em parte devido ao vocabulário escatológico utilizado. A tradutora está consciente da dificuldade que pode ser para o leitor comum da língua de chegada, habituada a um estilo por ventura mais reflexivo e com rodeios de linguagem, confrontar-se com a frase directa e curta e, até mesmo, com algum do vocabulário utilizado, sabendo que pode ser chocante para o leitor. No entanto, julga que uma adaptação à realidade de destino, isto é, a domesticação, ou de acordo com a terminologia de Antoine Berman40, a popularização do texto, poderia ser entendida como uma contaminação do estilo do autor e um afastamento de uma das características do mesmo: a semelhança narrativa com a realidade quotidiana de um polícia ou detective que vive num meio corrompido pelas drogas, álcool e dinheiro da cidade de Los Angeles de meados do século XX. Berman, também no seu ensaio “Translation and the Trials of the Foreign”, afirma que o tradutor pode ter o cuidado excessivo de enobrecer o texto de chegada quando se guia por uma ideia de elevação do registo escrito. Estas são outras tendências deformantes contra as quais nos adverte:

Rationalization, clarification, expansion, etc. destroy the systematic nature of the text by introducing elements that are excluded by its essential system. Hence, a curious consequence: when the translated text is more “homogeneous” than the original (possessing more “style” in the ordinary sense), it is equally more incoherent and, in a certain way, more heterogeneous, more inconsistent. It is a patchwork of the different kinds of writing employed by the translator (like combining ennoblement with popularization where the original cultivates an orality).41

O estilo tough apresenta-se avesso quer à popularização quer ao enobrecimento. Assim, no processo de tradução optou-se, na maioria dos casos, pela manutenção das frases curtas no texto de chegada, bem como por alusões à realidade norte-americana, nomeadamente o seu sistema policial, uma vez que são característica do texto de partida. Como Maria de Lurdes Sampaio afirma na sua tese “este estilo tough está profundamente ligado a personagens pouco cultas e a uma filosofia de vida em que o

fazer é mais importante do que o dizer…”42 Tais características de simplicidade na

40

Antoine Berman, “Translation and the Trials of the Foreign” in The Translation Studies Reader ed. Lawrence Venuti, Routledge, 2009

41

Ibid p. 285

42

Maria de Lurdes Rodrigues Morgado Sampaio, História crítica do género policial em Portugal:

(33)

33

construção frásica podem ser observadas nos livros de Ellroy onde, mais uma vez, predomina a objectividade e a transmissão de factos.

A análise desta tradução reflecte as opções tomadas pela tradutora, relacionadas com a sintaxe, semântica e pragmática utilizadas a fim de manter a linha narrativa em relação ao texto de partida. De seguida irá proceder-se a uma análise das estratégias pontualmente utilizadas tendo por base a categorização de estratégias de Andrew Chesterman em “Translation Strategies”43 para além de outras fontes.

43

Andrew Chesterman “Chapter 4. Translation Strategies” in: Memes of Translation. The Spread of Ideas

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34

3.1 . Estratégias Sintácticas

Este ponto tem como objectivo a análise dos problemas sintácticos ocorridos ao longo da tradução e a exposição das soluções encontradas pela tradutora para os resolver. Abrange questões a nível micro-textual onde foi necessário adaptar a sintaxe. Para esta análise, irá reflectir-se sobre problemas relacionados com tradução literal, empréstimos e transposições, mudanças do tipo de unidade e de estrutura frásica e, finalmente, mudanças de coesão. Trata-se de questões que são estratégias que se concentram na alteração da posição e ordem das palavras na frase.

 Tradução Literal

A tradução literal, em termos sintácticos, caracteriza-se por uma aproximação deliberada à estrutura frásica do texto de partida mantendo, no entanto, toda a gramaticalidade do texto de chegada. Como afirmam Jean-Paul Vinay e Jean Darbelnet “Literal, or word for word, translation is the direct transfer of a SL text into a grammatically and idiomatically appropriate TL text…”44 Além do valor estrutural que caracteriza esta opção, existe também o objectivo de marcação de estilo do autor. Há ainda que ter em consideração que esta estratégia de tradução, e tal como afirma Toury nos seus universais de Tradução, é utilizada de diferentes formas consoante a idade, o conhecimento e a experiência do tradutor.45 De seguida irão ser apresentados alguns exemplos, seguidos de uma pequena explicação:

Exemplo 1

Texto de partida: I want to be slim and she loves me and wants me to be slim - intellectualization doesn't mark. (p. 67 do anexo 2)

Texto de chegada: Eu quero ser magra e ela gosta de mim e quer que eu seja magra - o intelecto não importa. (p. LXXX do anexo 1)

44

Jean-Paul Vinay e Jean Darbelnet“A Methodology for Translation” in The Translation Studies Reader, capítulo 13, p. 128-137, ed. Lawrence Venuti, Nova Iorque e Londres: Routledge, 2004

45

Mona Baker, “Norms” in Baker: Mona, Encyclopedia of Translation Studies, Londres e Nova iorque: Routledge, 1997, 288-291.

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35

Neste exemplo manteve-se a ênfase nas copulativas, marca do temperamento infantil e do pensamento pouco sofisticado que esta personagem tem.

Exemplo 2

Texto de partida: No one needs me - or cares to need me. They're right. I'm bored and I'm a doll at first, then a phony and fake. I feel like "they" owe me a life. (p. 67 do anexo 2)

Texto de chegada: Ninguém precisa de mim - ou se preocupa em precisar de mim. Eles têm razão. Estou aborrecida e, em primeiro lugar, sou uma boneca, depois uma impostura e uma mentira. Sinto como se “eles” me devessem uma vida. (p. LXXX do anexo 1)

Neste exemplo observa-se uma opção de tradução ao nível natural em que se optou por manter o sentido primeiro do vocabulário empregue no monólogo interior desta personagem enquanto se descreve como “boneca…impostura e…mentira”. Tal como no exemplo anterior, optou-se pela manutenção do vocabulário e da ordem em que é disposto a fim de transmitir o carácter imaturo da personagem.

 Empréstimo

Durante o processo tradutório, existem necessidades de se retirar determinadas palavras ou até mesmo expressões do texto de partida para o texto de chegada: a este processo damos o nome de empréstimo. É graças a ele que a língua de chegada adquire bastantes palavras; sendo assim, pode-se dizer que a tradução tem um papel determinante na evolução de uma língua. No entanto, há que ter em consideração que esta estratégia depende muito não só da idiossincrasia do tradutor, como também do tipo de texto que se está a traduzir; por conseguinte, do tipo de mensagem que se deseja transmitir.46 Seguem-se alguns exemplos:

46

Jean-Paul Vinay e Jean Darbelnet“A Methodology for Translation” in The Translation Studies Reader, capítulo 13, p. 129, ed. Lawrence Venuti, Nova Iorque e Londres: Routledge, 2004

(36)

36

Exemplo 1

Texto de partida: The racial mix was white trash and low-rent Latin. (p. 3 do anexo 2) Texto de chegada: A mistura racial englobava white trash47 e latinos com baixo rendimento. (p. IV do anexo 1)

Note-se que, considerando-se um culturema, ou fenómeno sem correspondente directo na cultura de chegada48, este empréstimo constitui também uma referência cultural que se achou necessário explicitar em nota de rodapé.

Exemplo 2

Texto de partida: I didn't want to give it up. I toured for the paperback edition. (p. 18 do anexo 2)

Texto de chegada: Eu não queria desistir dele. Fiz um tour de promoção do paperback. (p. XXI do anexo 1)

Neste exemplo está bem presente a cultura de partida, onde a “tour” pertence a uma realidade editorial norte-americana que apenas há pouco tempo teve início no mundo editorial português.

 Transposição

A transposição caracteriza-se pela alteração de uma classe de palavra do texto de partida para o texto de chegada, ou seja, se a palavra do texto de partida for um verbo, no texto de chegada pode passar a ser um nome. Tal processo é muito frequente na tradução de inglês para português, uma vez que a língua inglesa utiliza bastantes verbos formados a partir de substantivos, acontecendo que neste texto esse é um recurso comum para apresentar uma descrição gráfica da acção, na língua portuguesa foi preciso adaptar tais verbos para nomes. Seguem-se alguns exemplos desta estratégia:

47

Termo depreciativo vindo dos Estados Unidos da América em relação a pessoas de raça branca de baixo estatuto social.

48

Ver Christiane Nord, Translating as a Purposeful Activity. Functionalist Approaches Explained, Manchester: St. Jerome, 1997, p. 34

(37)

37

Exemplo 1

Texto de partida: A dozen cops hit the crime scene. They grid-searched the pit. (p. 9 do anexo 2)

Texto de chegada: Uma dúzia de polícias invadiu o local do crime. Fizeram uma busca em grelha no poço. (p. XI do anexo 1)

Neste exemplo, realça-se a transposição relativamente ao verbo “grid-searched” no texto de partida que, no texto de chegada, é normalizada, sendo que “em grelha” classifica o género de pesquisa realizada (ver glossário).

Exemplo 2

Texto de partida: They door-to-doored by Durfee Drugs and Vons Market. (p. 8 do anexo 2)

Texto de chegada: Foram porta-a-porta desde o Durfee Drugs até ao Vons Market. (p. X do anexo 1)

Na frase acima apresentada, surgiu a necessidade de transformar, a verbalizar “door-to-doored” no texto de partida para um descritivo nominal no texto de chegada.

Exemplo 3

Texto de partida: The dispatcher radioed a patrol car. (p. 64 do anexo 2)

Texto de chegada: O telefonista chamou pela rádio um carro patrulha. (p. LXXVII do anexo 1)

Neste exemplo, assistimos ao mesmo problema que nos exemplos anteriores, em relação à nominalização de um verbo na língua de partida. No texto de chegada foi necessário acrescentar o verbo “chamar”, com um intuito de clarificação.

Referências

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