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Urbanização litorânea nordestina: os casos de Pecém e do Arpoador-Ceará

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Academic year: 2021

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Urbanização litorânea nordestina: os casos de Pecém e do Arpoador-Ceará

Ana Maria Matos Araújo, ammaluz@yahoo.com.br 12

Resumo

A indústria e o turismo expandem-se no litoral cearense, tendo por suposto um espaço litorâneo abundante do nordeste brasileiro, desocupado e preservado. Entretanto, nem todo lugar corresponde a tal suposto, que faz parte de ideologia de governo progressista que vê nas atividades econômicas do capitalismo o fundamento para políticas públicas de intervenção no espaço, visando dotá-lo de infra-estrutura econômica. Divulga-se e defende-se a idéia de que tais investimentos, públicos e privados, venham trazer desenvolvimento regional. Contraditoriamente, as políticas não surtem todos os efeitos esperados, inclusive, parte delas chega a ser negativa. Para verificar tais supostos, analisa-se dois estudos de caso: na localidade metropolitana do Pecém onde ocorreu expropriação de terras para instalar indústrias; e na favela do Arpoador, no bairro de Pirambú na cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará, sobre a requalificação de áreas metropolitanas para expansão do turismo. Confirmando que as interferências políticas produziram efeitos controversos, por exemplo, nem sempre conduzindo ao desenvolvimento esperado pelas pessoas do lugar e acompanhado de mobilidade populacional, desemprego, aumento do custo de vida, escassez de terras produtivas, especulação e valorização imobiliária. Constatou-se em Pecém que, algumas comunidades pesqueiras e de pequenos agricultores mesmo resistindo capitulam a transformação da terra em mercadoria ou a sua revalorização. A terra produtiva é fragmentada e torna-se mercadoria, sofre especulação e valorização. Quanto à favela do Arpoador em Fortaleza, verificou-se que o habitar urbano e metropolitano é requalificado para fins de turistificação do espaço, sendo próprio à acumulação por espoliação, nos termos de Harvey (2004). O espaço metropolitano reestruturado para o capital torna-se insustentável para a reprodução da força de trabalho, que para ali permanecer desenvolve estratégias próprias de mobilidade populacional.

Palavras-chave: urbanização, industrialização, turismo, mobilidade populacional, expropriação de terras, especulação e valorização imobiliária.

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Economista, Prof. Dra. em Geografia, pesquisadora do Laboratório de Estudos de População (LEPOP) do Mestrado Acadêmico em Geografia (MAG) da UECE. Av. Paranjana, 1700 – Serrinha, Fortaleza - CE - CEP: 60.740-000, Prédio da Pós-graduação em Geografia – 1º piso. Fone: (85) 3101.9965, http://www.uece.br/lepop 2

Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ocorrido em Caxambu-MG, de 29/09 a 03/10/2008, promovido pela ABEP, na linha de pesquisa 33- urbanização e metropolização (demografia intra-urbana e geodemografia)

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Urbanização litorânea nordestina: os casos de Pecém e do Arpoador-Ceará

Ana Maria Matos Araújo, ammaluz@yahoo.com.br 34

Introdução

O processo de urbanização no Estado do Ceará acontece segundo ordem próxima que sai de sua capital, da cidade de Fortaleza em direção ao litoral e ao interior cearense. Desde meados dos anos 1980 que a urbanização intensificou-se, sendo mediada por cidades médias e pólos regionais, agora também por pequenas vilas de pescadores e sedes de municípios litorâneos.

Vários são os indicativos de tal expansão, observa-se, sobretudo, em termos de crescimento populacional e de domicílios, pela construção de vias e rodovias, no consumo de energia domiciliar e de vias públicas, no alargamento da malha urbana, dentre outros. Essa dinâmica está diretamente relacionada à reestruturação produtiva industrial e a expansão da atividade turística, tendo na ação do Estado o fomentador de urbanização e dos investimentos em infra-estrutura urbana. O setor terciário (comercial, financeiro e de serviços diversos) conseqüentemente elevando a circulação de recursos, bens, serviços e oferecendo condições de permanência e de visita à população residente ou circulante na metrópole regional, e entre esta e a sede dos municípios.

Neste artigo, destaca-se a urbanização litorânea a leste de Fortaleza, iniciada para apoiar as atividades de lazer do fortalezense e de turismo de seu visitante, mas contraditoriamente também sendo alvo de localização de investimentos industriais reestruturados do sudeste do país ou de outras partes do mundo.

No processo de urbanização litorânea ressalte-se a especulação imobiliária e o parcelamento dos solos no entorno das cidades e pequenas vilas cearenses, assumindo características semelhantes, pois inicia de forma desordenada, pela venda direta dos moradores sem a propriedade titular da terra, ou daqueles que se dizem proprietários, embora

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Economista, Prof. Dra. em Geografia, pesquisadora do Laboratório de Estudos de População (LEPOP) do Mestrado Acadêmico em Geografia (MAG) da UECE. Av. Paranjana, 1700 – Serrinha, Fortaleza - CE - CEP: 60.740-000, Prédio da Pós-graduação em Geografia – 1º piso. Fone: (85) 3101.9965, http://www.uece.br/lepop 4

Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ocorrido em Caxambu-MG, de 29/09 a 03/10/2008, promovido pela ABEP, na linha de pesquisa 33- urbanização e metropolização (demografia intra-urbana e geodemografia)

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muitos não sejam portadores de documentos oficiais, com forte atuação de grileiros5 da terra que se antecipam para repassar a terra para as imobiliárias. Na forma urbana, a propriedade capitalista da terra apresenta-se mais organizada, visando o lucro máximo de vendas, sob loteamentos. Em todos os casos os moradores muitas vezes saem prejudicados, expropriados de suas terras, chegando mesmo a serem expulsos da sua própria comunidade, pois sem a terra ficam proletarizados, mas não há mercado de trabalho suficiente para atender toda a formação de trabalho livre, mesmo com as atividades capitalistas ali introduzidas tornam-se reserva de trabalho com tendências a mobilidade do trabalho.

As empresas capitalistas incentivadas pelos governos localizam-se no litoral cearense, com o suposto de que há um espaço litorâneo abundante do nordeste brasileiro, desocupado e preservado. Entretanto, as famílias dos municípios litorâneos ainda vivem da pesca e da agricultura tradicional, além das atividades urbanas na sede municipal e distrital. O litoral, aparentemente desocupado permite a complementação da pesca artesanal, pois as famílias retiram lenha, animais e frutas silvestres, plantam pequeno roçado de subsistência, praticam a pesca na costa praiana, nas enseadas de rios e de lagoas, corpos d’água muito comum no espaço litorâneo. Caminham longas distancias para realizar tais atividades complementares de subsistência. Isto é, mesmo não sendo proprietária de grandes glebas de terra as utilizam como sendo suas para o sustento familiar. O alimento das famílias dos pescadores é retirado do mar e complementado pela faixa praiana e litorânea.

Assim, nem todo lugar corresponde ao suposto, de desocupado. Ressaltando, ainda, que há um tipo de ideologia progressista que aposta na atividade econômica capitalista como única forma de desenvolvimento. A política governamental de intervenção no espaço vê o espaço como desocupado, pois nega o valor das atividades de subsistência que da terra se retira, ao dotá-lo de infra-estrutura econômica para outros fins, para a atividade capitalista do turismo e para a indústria, por exemplos, retirando compulsoriamente as famílias que na terra residem ou que dela tiram seu meio de vida. Divulga-se e defende-se a idéia de que tais investimentos, públicos e privados, venham trazer desenvolvimento regional, sem questionar os problemas que geram com a negação de atividades e populações tradicionais. Portanto, as políticas não surtem todos os efeitos esperados, inclusive, parte delas chega a ser negativa.

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Conforme a Enciclopédia Livre Wikipédia, Grileiro é o nome designado a pessoas que se apossam de terras de forma ilegal por meio de documentos falsificados. O termo vem da técnica usada por tais pessoas, que colocam escrituras falsas dentro uma caixa com grilos que deixam os documentos amarelados e roídos dando-lhes uma aparência antiga e com isto mais verossímel. In <http://pt.wikipedia.org/wiki/Grileiro> [Acessado em 10/11/06]

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Esses foram os supostos e questionamentos iniciais que motivaram a realização da presente pesquisa, que se apóia em dois estudos de caso: no distrito de Pecém na região metropolitana e na favela do Arpoador, no bairro de Pirambú em Fortaleza, para verificar a urbanização litorânea pela expansão capitalista no espaço. Em termos específicos, os objetivos da pesquisa foram registrar os processos de resistência das populações praianas à capitulação de suas terras, observando o processo de proletarização ou de mudanças nas relações de produção, bem como as estratégias adotadas pelas famílias faveladas para beneficiarem-se de políticas habitacionais diante do quadro de requalificação de áreas urbanas.

Resistência a expropriação de terras

No estudo de caso do Pecém, distrito do município de São Gonçalo do Amarante (SGA), na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), observa-se duplo processo de expropriação da terra6 além da tradicional forma de urbanização associada aos grileiros, recentemente ocorreu desapropriação de vinte mil hectares de pequenos sitiantes posseiros e proprietários de terrenos loteados, para instalar o projeto governamental do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP). Para viabilizar o projeto, o governo instalou infra-estrutura de transporte e econômica; ampliou a RMF em quatro outros municípios, incluindo o de SGA, tornando o acesso facilitado tanto ao lugar como a metrópole por rodovia pavimentada e de fluxo rápido (ARAÚJO, 2002).

Com o CIPP, várias comunidades, entre Caucaia e São Gonçalo do Amarante (Pecém), residentes no espaço, futuro território industrial, foram retiradas compulsoriamente e mediante ação violenta do Estado, que se fez valer de decreto governamental de desapropriação, de força policial e judicial para retirar cerca de 400 famílias somente em Pecém.

Os moradores de Pecém agiram sob controvertida forma de reação, oscilando entre a passividade e a luta por manter suas terras. Seguindo o pensamento de Lefebvre a respeito da apropriação do espaço, constata-se que as comunidades de Pecém tiveram que fazer uma

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Essas situações de expropriação de terras e de formação de trabalhadores livres para o trabalho assalariado são de difícil comprovação estatística, salvo mediante pesquisa direta. Entre 2000 e 2002, fez-se pesquisa direta em Pecém, distrito do município de São Gonçalo do Amarante, sede do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) para examinar a mobilidade da população metropolitana a partir deste mega projeto governamental em apoio a iniciativa privada industrial. As informações e análises de Pecém ainda são bastante atuais e servem de indicativo de processos similares que vem acontecendo em Caucaia, São Gonçalo do Amarante e em Aquiraz, pelos mesmos usos capitalistas, para o lazer dos trabalhadores e, portanto, para reprodução de sua força de trabalho, e para fins imobiliários ou para acumulação capitalista industrial e turística (ARAÚJO, 2002).

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incursão nas questões de terras, porque estavam sendo expulsas do lugar, por isso recorreram ao apoio da Pastoral da Terra. Anteriormente, predominava na maioria das situações uma letargia própria do cotidiano rural que é sem muita movimentação (FREHSE et. al., 1996).

Nos primeiros momentos da desapropriação, quando as organizações civis e religiosas de Fortaleza foram solicitadas a prestar apoio às famílias atingidas, verificou-se que as pessoas interessadas na apropriação do espaço encontravam-se submersas à ordem capitalista de transformação de tudo e de todos em mercadoria. A ação política foi colocada no segundo plano, dando-se prioridade às estratégias de sobrevivência, que requeriam tempo e dedicação dos membros da família.

No cotidiano de Pecém, a postura governamental foi de tratar o espaço de forma homogênea e autoritária, quando conduzia o processo de desapropriação e de reassentamento, visando o interesse dos poderosos, detentores do capital. Esta postura contradiz com a percepção da sociedade urbana como um sistema complexo e problemático, principalmente nas situações de transição rural-urbana.

Nessa perspectiva, o urbano transpôs fronteiras, antecipou-se, inclusive, às indústrias e às organizações financeiras. Entretanto, a ruptura que a industrialização provoca é maior que a extensão do fenômeno urbano de explosão-implosão. Como propulsor dessas transformações, a metrópole é o centro de decisão e de poder, onde o Estado organiza e impõe sua dominação sobre o território regional e o nacional também como produtor, sobretudo, como detentor de parte da mais-valia, aquela correspondente aos tributos (LEFEBVRE, 1999b, p.155).

Os projetos e as estratégias concebidas pelos técnicos do governo, conscientes ou não de sua imposição e coerção, levam a esse estado de passividade, com o “silêncio dos usuários”, ou apenas alguns “balbucios informes” não ouvidos, de aspirações caladas, assim, os “habitantes e usuários permanecem mudos.” Permeada de motivos históricos, teóricos, ideológicos e políticos, a passividade é fruto dessa sociedade capitalista e da práxis social e urbana (LEFEBVRE, 1999a, p.165-166).

Mesmo admitindo muitas razões para essa passividade, Lefebvre defende que elas podem ser rompidas por uma “intervenção maciça que mudaria a situação.” Um movimento para politizar esses problemas e os objetivos dessa construção: a revolução urbana! No caso de Pecém, seria a organização e o movimento pelas terras. Com o CIPP, a fronteira do capitalismo industrial perpassou o urbano e o rural, numa perspectiva de expansão de

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território metropolitano, ao mesmo tempo violenta e autoritária, imposta pela lógica racional-burocrática do Estado.

As comunidades rurais sentiram-se motivadas a utilizar a força do grupo, o poder de muitos para enfrentar um processo que se caracterizou pela falta de diálogo e de informações. Um projeto pleno de previsão, de muitas metas que não se concretizariam no tempo, vistas por algumas pessoas como mentiras. Na interpretação de uma liderança comunitária, o fato constituiu-se mais do que ameaça e pressão em cima dessas populações, pois o Estado utilizou de violência para dominá-las e fazê-las ceder, sem resistência, ao projeto do poder público.

A população estava descrente do projeto de ‘progresso’ que o CIPP representava, já que fora excluída desde o início de sua concepção. Discordava do uso que se queria dar ao lugar, julgando-se no direito de decidir sua permanência ou não no lugar, já que eram populações historicamente assentadas.

Essas comunidades não compreendiam o fato da desapropriação de suas terras serem para o repasse a terceiros, inclusive empresários estrangeiros. Mas o principal conflito emergiu do decreto possibilitar qualquer cidadão adquirir as propriedades, embora aos antigos proprietários fossem vedadas.

O desenrolar dos acontecimentos durante a instalação do CIPP, desde a elaboração do projeto, em 1995, ao início do funcionamento do porto e a instalação de algumas empresas, até 2007, foi muito conturbado pelas dificuldades nas relações entre o Estado e a sociedade civil organizada. O cadastramento das propriedades a serem desapropriadas surpreendeu os primeiros moradores contatados, desavisados das intenções governamentais. Os anos seguintes foram vividos em um clima tenso, carregado de medo, incertezas e revoltas da população atingida. Várias organizações civis e a Igreja foram prestar apoio às comunidades locais, face aos problemas que se avolumaram, tomando espaço na imprensa.

A falta de diálogo e de informação, além de um tratamento diferenciado por classes sociais atestam o abuso do poder e a influência da classe burguesa sobre o Estado. Conforme o líder da participação popular, “o CIPP estava provocando uma série de problemas para a população carente [...]. As famílias não foram sequer consultadas sobre as mudanças [...], mas os técnicos do governo do Estado teriam ido somente às casas dos mais carentes medir o terreno, deixando de lado as residências mais estruturadas” (DIÁRIO do NORDESTE, de 29/6/1997). A violência transparece em vários dos discursos locais. Conforme depoimento de

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um morador de Gregório, eles foram tratados “não como proprietários, mas como se tivéssemos invadido a terra deles” (O POVO, de 2/12/1996).

As dúvidas sobre o futuro cresciam com o valor das desapropriações7, muito abaixo do mercado; com o desconhecimento das famílias para onde seriam transferidas e nas desinformações gerais do projeto.

Entre as famílias deslocadas compulsoriamente havia expressivo número de posseiros, condizente com a história da Vila de Pecém, assim como diz respeito também às áreas litorâneas cearenses, cuja posse legal é da União e os pretensos proprietários são apenas

usuários desse espaço. Constatou-se, no geral dos 437 imóveis de São Gonçalo do Amarante

e de Caucaia, que havia uma alta expressão de posseiros (30%) e de moradores (53%), contra poucos proprietários (17%), que sugerem, à primeira vista, uma relação de produção tradicional na agricultura, acompanhada de um processo generalizado de não legalidade da posse da terra (IDACE, 1997, p.10).

A pressão do Governo para retirar do lugar os desapropriados não foi a mesma para reassentar as comunidades, o que levou mais de quatro anos para ser feita. A representante do Conselho da Pastoral de Pescadores (CPP) declarava que o prazo para desocuparem era inferior a vinte dias. Retiradas as famílias da área, em 2006, com a construção da obra, ainda se tinha dúvida se a Siderúrgica seria instalada no lugar (O POVO, de 13/7/1997).

As desapropriações tendem a produzir um movimento de saída, apesar de muitas famílias persistirem no desejo de se manterem no lugar, no seu território de moradia e sobrevivência, e algumas ainda continuam sem saber até quando. Um anseio desrespeitado pelo autoritarismo de um Estado racional e burocrata.

A organização comunitária para permanecer no lugar obteve diferentes resultados: algumas comunidades capitularam diante de um processo violento, mediante pressões de muitas ordens e dimensões; outras permaneceram resistindo e rompendo com a passividade.

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A indenização proposta pelo governo para as terras urbanas e rurais desapropriadas, algumas com investimentos realizados pela população ao longo de sua história, era injusta e desvalorizada em relação ao preço de mercado. Para se ter idéia, um lote urbanizado em Pecém valia no mercado imobiliário cerca de R$ 11 mil reais e estava sendo avaliado pelo Estado para fins de desapropriação por R$ 300,00, quer dizer uma perda relativa de 97%. Na área rural, por exemplo, o hectare fora avaliado em R$ 50,00 e cada coqueiro em R$ 4,00. Isto é, algo fora da realidade de mercado e de qualquer negociação de valor, justificando a indignação popular com as ‘ofertas’ do governo (DIÁRIO do NORDESTE, 8/4/1997).

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Seguindo a linha de raciocínio de Lefebvre (1999b, p.166), as razões ideológicas da passividade-ação emergem do planejamento praticado pelo Estado, técnico-burocrático, que se mostra cego diante da complexidade do fenômeno urbano e da sociedade urbana. A cegueira básica consiste em trabalhar na elaboração dos planos e projetos com o espaço abstrato, aquele do campo da geometria, excluindo o espaço vivido. O retorno técnico ao espaço vivido é feito apenas para projetar essa abstração, que não consegue apreender a realidade em sua totalidade e complexidade.

Constata-se, entretanto, nas questões de migração compulsória pela desapropriação de terras em Pecém, que o centro da contradição com o Estado estava para além de um campo cego do planejamento estatal sobre a compreensão da realidade. Verifica-se uma preferência, uma intencionalidade de interesses sobre os resultados do projeto CIPP, desde o início, que foi claramente revelada na articulação do Estado com a iniciativa privada, para beneficiar a burguesia.

Com a construção do porto traçou-se caminhos de perigos e possibilidades sob vários aspectos da vida, criando novos ambientes e destruindo antigos, acelerando o ritmo da vida em Pecém. Aconteceu uma espécie de revolução demográfica, que afastou centenas de pessoas de seus habitats naturais, lançando-as em outra direção para novas vidas, em mobilidade do trabalho. Foi nesse momento de crescimento urbano rápido que emergiram vários dos problemas urbanos. Por exemplo, surgiram os movimentos sociais de contestação e em oposição aos dirigentes políticos, expressando uma luta pelo controle de suas terras (BERMAN apud SOJA, 1993, p.36).

Com as mudanças novas contradições se formaram, dentre elas destaca-se o fato de tornar os pequenos produtores livres para venderem sua força de trabalho no mercado, contudo exigindo qualificação e profissionalismo dos trabalhadores, mesmo na construção civil do Porto, tais como se pode ver melhor no resgate das mudanças nas relações de trabalho ocorridas em Pecém.

Mudanças nas relações de trabalho

Pecém, antes de todo esse processo de expropriação, era uma simples Vila de pescadores artesanais e de pequenos agricultores, posseiros e moradores de sítios urbanos de lazer, que se contrapõe ao CIPP, como território portuário regional e industrial metropolitano, atendendo a lógica de reprodução ampliada do capital mundial.

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A pesca tradicional ainda é realizada sistematicamente em viagens diárias em pequenas embarcações, ou em viagens de dormida, de até dois dias, nos barcos maiores, intercaladas por períodos de repouso em terra, para uma consecutiva jornada. Nunca trabalham aos domingos e feriados, bem como às segundas-feiras tiram para manutenção das embarcações e de seus equipamentos de pesca. Quando doentes, também, se resguardam até restabelecerem as forças para o trabalho. Mesmo que algum membro da família caía doente, o pescador pode ausentar-se do trabalho para substituir a dona de casa que trata da pessoa adoentada.

Esse tipo de relação e de produção dos trabalhadores locais já vinha se fazendo com mudanças, mas não sob tantos conflitos como os que se instalaram ali com o segundo movimento de urbanização do lugar. A primeira mudança no lugar foi apontada pela atuação da valorização imobiliária e dos veranistas. Muitos trabalhadores dedicados à própria sobrevivência venderam suas terras e empregaram-se como trabalhadores domésticos ou como caseiros, moradores de segunda residência dos veranistas.

A atividade de zelar e trabalhar nas propriedades (rurais e urbanas) envolve aspectos de relações de produção e de propriedade, que se constata ainda hoje no cotidiano de Pecém. Assemelha-se ao que Lefebvre (1978, p.9) identificou como realidades superpostas entre estruturas de vida agrária e urbana. Isto porque a modernidade, com seus aspectos novos e de mudanças, não submeteu a vida no campo por completo e de forma vertical. O tradicional morador rural era aquele que, se instalando numa grande propriedade, podia estabelecer relações de parceria com o proprietário para a produção agropecuária, recebendo parte dela e realizando sua subsistência. Entretanto, esta é uma categoria provavelmente em extinção em Pecém, pelo menos é o que sugere o perfil das famílias cadastradas para reassentamento no município de São Gonçalo do Amarante.

A tendência ao desaparecimento local do pequeno produtor de subsistência foi observada pela mudança na figura do morador rural, o tipo de ocupação dos chefes das famílias reassentadas mostra que uma parte dos trabalhadores está aposentada e outra assalariada. De um total de 89 famílias, 40% eram pequenos agricultores, 34% trabalhavam como diaristas rurais e 6% como assalariados rurais, além do expressivo número de aposentados rurais (11%).

Por outro lado, o movimento dos trabalhadores em direção à instituição governamental de intermediação do trabalho (SINE/IDT), durante as obras do porto, era intenso, mas o emprego não teve um aproveitamento da mão-de-obra local na mesma

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medida8. De 2.085 trabalhadores ocupados na obra, em 2001, apenas 26,8% (ou 604) residiam no próprio lugar. Havia 25,9% que se deslocavam diariamente entre Pecém, Fortaleza e Caucaia, além dos que migraram do interior do estado (11,1%) e de outras regiões do país (8,6%).

As experiências de trabalho assalariado na construção civil, em períodos de redução da pesca fizeram diferença nessas novas relações introduzidas pelo Porto. Mais acostumados ao regime capitalista de produção, esses trabalhadores experientes adaptam-se melhor à lógica do Porto, que passou por fases de intensa atividade e outras de paradeiro, tendo em vista o cronograma de liberação de recursos públicos e o próprio andamento das obras9. O depoimento de um pescador revela essas experiências e a relação da atividade pesqueira com os outros trabalhos:

“Antes do porto, eu trabalhava em Fortaleza. Trabalhava aqui também. Eu não posso parar porque eu tenho responsabilidade. Quando não tinha emprego aqui eu ia pra Fortaleza. Muita gente me conhecia lá. Trabalhava por lá cinco ou seis meses, na construção civil. Quando não tinha emprego aqui, nem tinha lá, eu ia paro o mar” (Pescador 1, Vila de Pecém).

Nota-se, entretanto, uma contradição inicial entre o tipo de organização do trabalho estabelecida pelo CIPP e a cultura local. Os nativos ocupavam-se com as atividades da pesca, artesanato e serviços de limpeza e vigilância nas moradias de veraneio. Com o CIPP foram para o trabalho assalariado nas instituições públicas e no Porto, levando consigo hábitos pretéritos.

Estavam acostumados a organizarem o trabalho em torno de tarefas, tendo em vista a regulação do tempo diário: que se baseia na hora em que se acorda e dorme, distribuindo o dia para fazer suas tarefas cotidianas, resolvendo problemas familiares e comunitários, além da atividade principal, como se estivessem realizando seus trabalhos na pesca, no artesanato e nos serviços de veraneio.

8 No sentido de preparar mão-de-obra disponível (ou em reserva) para as atividades que estavam sendo iniciadas no lugar a partir do Porto e na perspectiva do Complexo Industrial, a Secretaria de Trabalho e Ação Social do Estado (SETAS), somente em dois anos, entre 1998 e 1999, chegou a capacitar 1.731 trabalhadores. Com o mesmo objetivo, de disponibilizar trabalhadores para o capital, o SINE/IDT cadastrou, em único mês (em junho de 1996, bem antes das obras do porto), 1.677 trabalhadores procedentes das vizinhanças, sobretudo de Caucaia e São Gonçalo do Amarante, mas também de Paracuru e Paraípaba, esses dois últimos municípios fora da região metropolitana, mas na fronteira do CIPP (SINE/IDT, 1996).

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Após onze anos de projeto, a siderurgia de Pecém começou a ser construída neste ano (2006), após toda a instalação de infra-estrutura do Complexo.

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Tal organização contrapõe-se à dos trabalhadores assalariados ou prestadores de serviço contratados por tempo determinado, cuja jornada fixa de trabalho requer assiduidade e pontualidade, além de produtividade. E é nessa contradição que surgem os conflitos.

Segundo depoimentos de representantes de instituições governamentais e não governamentais, os empresários reclamavam dos trabalhadores locais por sua falta de adaptação ao regime de trabalho assalariado: faltam muito, e por quaisquer motivos pessoais ou familiares, sem dar satisfação, às vezes chegam a abandonar o trabalho sem buscar mesmo seus direitos. O depoimento da coordenação do GTP indicava esta contradição:

“[...] Eu tenho uma leitura muito interessante sobre a postura do trabalho, que as pessoas não tinham esse negócio de acordar, ter um horário correto. Olha, nos locais aonde eu convivi e trabalhei, eu traduzo onde tem uma origem indígena mais forte em termos culturais, eles não entendem aquela história que tem de trabalhar de segunda a sexta, eles dizem, não, hoje não acordei saudável para o trabalho mais a sua carteira assinada é de segunda a sexta” (Coordenação do GTP).

Além de indicar controvérsia, esses depoimentos confirmaram as avaliações dos empresários em relação ao desempenho das pessoas contratadas no Pecém. Por exemplo, sobre os ajudantes e vigilantes, eles oscilaram suas opiniões, mostrando péssima ou alta satisfação com aqueles trabalhadores. Isto sugere que não se pode generalizar uma conclusão, mas considerar critérios diferenciados dos empresários. Chama a atenção, inclusive, o fato de que, as empresas com seleção própria ainda sentem dificuldades em contratar pessoal que satisfaça às suas exigências.

A respeito das relações de produção, percebe-se na opinião desfavorável aos trabalhadores uma recorrência a duas situações básicas: falta de profissionalismo e de interesse com o trabalho. O profissionalismo requerido pelo empregador para atividades são elementares, tais como o básico na construção civil e faxineiro. A crítica sugere que os trabalhadores adotam um tipo de comportamento inadequado com a norma do emprego assalariado. A falta de experiência anterior e a diferença cultural, adversa ao regime de trabalho, implicavam na baixa assiduidade e não cumprimento das exigências do trabalho capitalista formal.

Por sua vez, as faltas de interesse e de disposição declinam para outras questões, relativas à própria motivação salarial ou mesmo outras razões de ordem cultural, na perspectiva do trabalhador. Do lado do empresário, sua experiência e compreensão do mundo permitem-lhe um referencial conceitual que, geralmente, desfavorece a população trabalhadora e local.

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De qualquer modo, percebe-se um contraditório que reforça a interpretação de que as relações de produção com temporalidades diferentes convivendo e produzindo conflitos. As diferenças surgindo na organização do trabalho local, entre as relações familiares e por conta-própria, opondo-se ao regime capitalista.

Acredita-se que os pescadores contratados na obra do Porto adotavam comportamento similar ao tradicional e cultural dos outros pescadores, qual seja: ausentar-se quando necessário à família, nos motivos de doença, por exemplo; dentre outras atitudes típicas de pequeno produtor dono de sua decisão e responsável pelo sustento de sua família. E isto causava (e causa) estranheza, queixas e conflitos com os administradores, durante os contratos formais, regulados por normas trabalhistas claras.

Comportamento semelhante ainda ao dos nativos assalariados prestadores de serviços de jardinagem, limpeza e vigilância de casas e sítios dos veranistas, envolvendo-se em conflitos com os seus empregadores. Antes da forma assalariada, muitos veranistas não se adaptaram aos costumes da cultura local, derivando, nesses conflitos em suas relações com os moradores ou com seus próprios caseiros, mesmo adotando relações mais flexíveis.

A dualidade aparentemente contraditória da percepção do tempo verificada em Pecém nasce com a mercantilização da força de trabalho, quando o trabalho passa a ser uma mercadoria de maior negociação no lugar, que assim introduz racionalidade ao tempo.

Outro aspecto a considerar é a questão do rendimento do trabalho. Para os artesãos, pescadores e caseiros a renda não é formada pela hora trabalhada, como na formação capitalista, mas pelo produto obtido ou tarefa realizada. Nas relações familiares e por conta-própria o trabalho e sua remuneração são indivisíveis, obtém-se mais produto ou mais tarefa, sem vínculos com as horas de trabalho. No assalariamento, as horas não trabalhadas são descontadas e isso o trabalhador alheio a esse sistema não compreende.

A perspectiva de um salário mínimo é pouco alentadora. Veja-se que segundo as informações disponíveis de 1998, a empresa que mais ocupava mão-de-obra em Pecém pagava apenas o mínimo para quase todas as ocupações, com exceção do vigilante que recebia o equivalente a dois salários mínimos. Embora raras, as melhores remunerações aconteciam para atividades que requeriam maior qualificação, tais como motorista e apontador, ou seja, as empresas que apresentavam um quadro salarial mais atrativo sofriam restrições de vagas, tal como determinada empresa remunerava um faxineiro com quase dois salários, mas disponibilizava apenas uma vaga.

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Apesar desse tipo de comportamento dos moradores de Pecém diante dos empregos, isto não significava ou significa que eles desvalorizem o trabalho, pois ao contrário teciam muitas expectativas com o Porto. Acreditam inclusive que as necessidades de migração das novas gerações diminuirão:

“A mudança com o porto foi trabalho. Trás trabalho pra gente. Para o filho da gente, que vai aparecer [o trabalho]. Com as indústrias que vão vir. Vai ser bom para os jovens que não tem trabalho aqui, que às vezes quer ir pra outro canto e fica aqui mesmo. Não vai. Não sai daqui, fica aqui”(Pescador 1, Vila de Pecém). Tal processo, ainda em curso, pois o complexo industrial ainda está por se realizar, a partir da siderurgia, já produziu conflitos e resistências dos moradores do Pecém, pela desapropriação de seus territórios, pela identidade com o lugar, mostrando-se mais do que um conflito de classes sociais e de interesses econômicos, sobretudo um “abismo histórico” (MARTINS, 1997, p.15).

A instalação do CIPP aconteceu sob “pressão hábil e brutal do Estado,” tal como ocorria na acumulação primitiva e hoje se faz na acumulação por espoliação (HARVEY, 2004). O processo conflituoso de expropriação de terras trouxe conseqüências desastrosas: houve ruptura de comunidades para introduzir infra-estrutura, crimes ambientais, agravando a especulação sobre as terras do entorno e dificultando o acesso das classes trabalhadoras a esses espaços. A atuação do governo estadual também esteve presente na formação da reserva do trabalho e nas mudanças nas relações de trabalho.

Assim, constata-se que a expropriação de terras e a intermediação de trabalhadores no mercado de trabalho mostram a tradição do Estado desenvolvimentista brasileiro com suas sucessivas políticas que permitem nada mais do que acumulações por espoliação, pois na perspectiva capitalista servem para superar a crise ou ampliar a acumulação. A dotação de infra-estrutura e os lotes industriais subsidiados reduzem o capital fixo investido nos novos empreendimentos e ampliam a acumulação.

O que se deu a pouco mais de 50 quilômetros de Fortaleza não é muito diferente do que cotidianamente ocorre nessa metrópole regional, em termos de deslocamentos compulsórios da população trabalhadora pobre, de espaços urbanos que se valorizam ou são necessários para a valorização capitalista, tal como no caso estudado da favela do Arpoador, no bairro do Pirambu.

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A Favela do Arpoador Areia está localizada no bairro do Pirambú, na porção litorânea a oeste de Fortaleza. Este bairro constituiu-se um território de permanente luta e resistência frente à valorização imobiliária e aos constantes processos de desapropriação realizados pelo Estado (incluindo ações municipais e estaduais). Conforme se apreende de vários estudos locais, a expansão urbana parte do centro da cidade em direção ao litoral leste, pois de certo modo é controlada no oeste litorâneo, pela resistência popular a expropriação de suas terras:

Pirambu era considerado ‘um prolongamento do Arraial Moura Brasil, tanto territorial quanto no sofrimento do povo’, embora a luta de seus moradores fosse mais intensa pela posse da terra. Desde 1948, possuía uma sociedade feminina para lutar contra ameaça de expulsão dos moradores do bairro e a favor das melhorias urbanas. A maioria de seus habitantes não pagava aluguel, pois suas palhoças situavam-se em terrenos pertencentes à marinha [...](JUCÁ, 2003, p.49).

Apesar da resistência comunitária, aos poucos, o bairro do Pirambú vem sendo valorizado, mantendo pequeno reduto de resistência e de permanência na área de antigos pescadores. Este é o caso particular de Arpoador, um espaço favelado que resiste a mudanças de relações e de atividades. Ali ainda é predominante a pesca artesanal, mesmo que a praia esteja quase desaparecendo pelos constantes avanços do mar e os trabalhadores sejam forçados a outras opções de vida.

O recente Projeto Costa-Oeste, de iniciativa governamental, poderá fazer capitular essa resistência, pois o mesmo visa expandir a infra-estrutura urbana para aproveitamento do turismo. Constitui-se, portanto, um espaço de expansão capitalista, embora tenha como barreira espacial o movimento social urbano dos moradores, com antigos membros da comunidade pesqueira. O empreendimento do Governo do Estado do Ceará está projetando uma avenida com 5,36 km de extensão, com abertura de 18 ruas transversais de acesso à praia e posterior instalação de equipamentos públicos de utilização privada voltados para o turismo10. Possui uma extensão superior a área da Favela em questão, pois partindo dessa Favela vai até a ponte sobre o Rio Ceará, contornando toda a faixa de praia. Para tanto precisa deslocar compulsoriamente parte da população ali residente, caracterizando-se como uma mobilidade do trabalho, na medida em que representará maior acumulação, contribuindo para elevar a renda da terra e, sobretudo, para a valorização turística.

O deslocamento compulsório além de uma forma violenta de poder representa uma espécie de acumulação primitiva para os capitalistas, sobretudo considerando a importância

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SANTOS, Maria Francineila Pinheiro dos; DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. TENTATIVA DE HOMOGENEIZAÇÃO DA PAISAGEM LITORÂNEA DE FORTALEZA In http://www.igeo.uerj.br/VICBG-2004/Eixo1/e1%20%20237.htm [Acessado em 26/07/06].

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da paisagem litorânea para o turismo, bastante valorizada, subjetiva e objetivamente, em termos da acumulação. O valor dos terrenos na costa leste de Fortaleza chega a representar cerca de 60% dos investimentos11. Esta é a fatia a conquistar com esses espaços desapropriados e colocados à disposição da iniciativa privada sem custos, uma acumulação por espoliação, nos termos de Harvey (2004). Isto porque a expropriação dessas famílias de seu habitar tem conseqüências sociais e territoriais desastrosas, mas sendo do interesse capitalista passa-se por cima de tudo.

Constata-se um processo de homogeneização da paisagem litorânea de Fortaleza, em beneficio do turismo, que promete benefícios sociais de emprego, mas que faz inclusão perversa desvalorizando as formas tradicionais de trabalho. A pesca artesanal sobrevive com muitas dificuldades e adversidades, mas contraditoriamente atende aos interesses capitalistas, na medida em que oferece meios para a reprodução dos trabalhadores na metrópole. Embora reduzido o número de famílias sobrevivendo da pesca artesanal, a ocupação em Arpoador ainda permanece tão importante quanto a construção civil. Ambas as atividades são adequadas aos que não conseguem se empregar de forma assalariada e procuram formas de trabalho temporário e precário. São formas complementares da renda familiar, apesar de a maioria não passar de um salário mínimo.

Mas essa não é a única controvérsia envolvendo a comunidade do Arpoador. A localidade é formada em parte por terrenos de marinha, cuja invasão se deu em sucessivos momentos. Recentemente, com o projeto governamental e com seu embargo por ação da Prefeitura Municipal surgiram novos processos de invasão. Parte dos moradores antigos já havia sido deslocada, transferida para um mutirão habitacional, mas outra ficou ali aguardando indenizações. Tal deslocamento sem uma conclusão e fechamento das áreas provocou novas vagas de ocupação. As famílias procuravam se inserir ali para, quando o projeto voltar a desenrolar, serem beneficiadas.

Essa realidade pode ser visualizada pela informação do tempo de permanência na área. Segundo a mesma pesquisa, verificou-se que a Favela se subdivide em três grupos: pouco menos da metade dos moradores reside ali a menos de 5 anos (46%); outra parcela igualmente importante (46%) é constituída pelos residentes há mais de 10 anos na área; e apenas uma minoria (8%) com situação intermediária entre 5 a 10 anos (ARAÚJO, 2007).

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“Conforme o arquiteto Augusto César a expansão do litoral leste está inviável economicamente, para implantação de investimentos turísticos, pois 60% desses investimentos são gastos somente com a aquisição dos terrenos. Daí a tendência de ocupação do litoral oeste [...] (SAULE JUNIOR, CARDOSO, 2005, p.66)”.

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O déficit habitacional, provocado pela falta de uma política pública e pela constituição de novas famílias, é apontado como as principais razões para que essas famílias tenham passado por dificuldades para se instalarem ainda mais precariamente na área, realizando uma segunda ocupação sobre território com intervenção governamental. De algum modo, essa população já fazia outros movimentos pelo território do bairro, ficando evidenciado pelas várias mudanças de residências (55,1% com 2 até 5 domicílios). Mas o caráter provisório do material construtivo sugere que eles sairão mais uma vez, sendo beneficiados ou não por política governamental.

Nesse reduto de luta pelo espaço urbano, encontram-se famílias que vieram de fora e até de municípios vizinhos, sobretudo, permanecendo em apenas uma moradia. Mas os recém-chegados são essencialmente da vizinhança. Quase toda população ali residente têm mais de 10 anos em Fortaleza, e somente 20% nasceram em outro município.

Mas as diferentes estratégias para se manterem na favela e no bairro do Pirambu não dizem respeito somente a casa, o habitar é visto também por suas condições de trabalho. Os moradores do Arpoador desenvolvem inúmeras atividades não-capitalistas complementares a produção e a distribuição capitalista. As atividades da pesca artesanal continuam com um reduto forte na Favela do Arpoador, apesar de históricas pressões para desocupação e valorização capitalista, mas há também os serventes e os pedreiros por conta-própria, que trabalham nas habitações populares; pequenos comerciantes com revenda de mercadorias básicas em compartimento de suas casas; donos de bares, de cantina e de lanchonete, além dos que vendem merenda nas portas das casas e estabelecimentos. Enfim, Arpoador tem muita relação com o centro da cidade de Fortaleza, pela sua proximidade, ao ponto de permitir o deslocamento a pé, ou de bicicleta para ir ao trabalho. É uma periferia geográfica, porque é periférica socialmente, embora em termos físicos esteja muito próxima ao centro da cidade, reforçando a estratégia popular de invasão e de autoconstrução em espaços periféricos.

Conclusões

A partir dos casos estudados entende-se melhor a lógica controversa da urbanização que incluí perversamente a maioria da população, responsabilizando-a pelos problemas urbanos existentes, tais como favelas, invasões de áreas de risco, violência, etc.

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A valorização imobiliária de determinados espaços é dada pelas condições urbanas do bairro tornando o lugar altamente atrativo em termos de investimentos privados e domésticos, ao contrário, os territórios sem infra-estrutura são desvalorizados e ocupados pela população trabalhadora. Contraditoriamente, os lugares altamente valorizados às vezes tornam-se inviáveis à acumulação capitalista ampliada, requerendo investimentos do Estado em espaços de reserva, aqueles deficitários das mínimas condições de sobrevivência, porém habitado por significativas parcelas da população. A política urbana é requerida para dotá-los de infra-estrutura, requalificando-o para novas atividades, reestruturando-os e deslocando compulsoriamente antigos usuários.

Por sua vez, a população trabalhadora na iminência de ser deslocada para uma periferia ainda mais distante que provavelmente lhe desarticulará os processos e as relações que lhes dão relativa sustentação, desencadeia processos de resistências, de lutas e estratégias de manutenção dos territórios. Afinal, o espaço do habitar, além da moradia, envolve acesso ao trabalho e, principalmente, a organização do movimento de resistências dos trabalhadores. Isto é, a sociedade civil se apropria e luta pelo espaço como instrumento de cidadania e de inserção sócio-territorial.

O ingresso e a saída de famílias descendentes de imigrantes tornaram-se uma constante na favela examinada em Fortaleza, com algumas famílias se beneficiando dessa mobilidade e outras resistindo a ela. A organização comunitária e a valorização do lugar são os principais componentes do processo de resistência comunitária às desapropriações e pressões imobiliárias para venda e deslocamento dos lugares de valorização capitalista.

Constatou-se que a urbanização tanto quanto a metropolização têm na ordem estadista e do planejamento suas determinações, pois representa interesses capitalistas do espaço produzido e valorizado. Uma ordem que contém a violência e, ao mesmo tempo, dissimula-se como proteção a grupos menos favorecidos, construindo-lhes moradia, por exemplo. A urbanização de Pecém é mais do que um fenômeno subordinado à industrialização, que ainda está iniciando. Faz parte da implosão das cidades através da metropolização.

Especificamente no caso metropolitano, o Estado, ao negar aos usuários seus tradicionais modos de ser, também excluiu os rentistas, aqueles responsáveis pela fragmentação dos solos rurais em loteamentos urbanos. Simultaneamente, impediu os negócios imobiliários com a propriedade privada do terreno e a satisfação das necessidades elementares do conjunto de famílias fixadas nesses lugares. Isto porque o Estado objetiva,

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com o projeto CIPP, distribuir pedaços separados de uma área de vinte mil hectares, entre grandes capitalistas, fragmentando o espaço em lotes industriais.

O processo capitalista conflituoso de expansão homogeneizada do processo produtivo e das relações trabalhistas que avançam desde a Metrópole até Pecém dá-se com oposição das relações sociais entre patrões e trabalhadores, as quais entraram em contradição com as práticas tradicionais construídas na pesca e na agricultura, mesmo nos serviços prestados ao pequeno proprietário de sítios ou veranistas da Vila. A legislação trabalhista, vigente no país, exige pontualidade, assiduidade e produtividade, ou seja, um conjunto de normas estranhas à população natural. Na representação patronal são trabalhadores desqualificados, justificando sua rotatividade com entradas e saídas no mercado de trabalho, conseqüentemente levando a mobilidade populacional e procura por novos lugares de trabalho e moradia.

Um novo sistema de trabalho é proposto, mas esbarra na resistência cultural às mudanças; normas de convivência são formalizadas, porém são questionadas porque são estranhas à tradição local; o trabalho e a propriedade privada, aceitos pela consciência social, desafiam os espaços produtivos coletivizados; e as necessidades imediatas de sobrevivência não esperam a demora necessária para a nova terra dar seus frutos. Por todos esses fatos, novos movimentos populacionais poderão advir nessa população recém instalada.

Através do planejamento, o Estado estimula a lógica da mercadoria e faz o valor de uso dos solos urbanos submeter-se ao valor de troca. Desse modo, a prática de apropriação do espaço se reduz.

Além de a problemática urbana ser perturbadora e conflituosa em seu processo de concentração e dispersão, segregando e desagregando famílias e grupos das populações, as situações de enfrentamento e de confrontos da classe trabalhadora com o Estado repressor provocam contraditórias circunstâncias de resistência e passividade.

A urbanização e a expansão metropolitana dando-se pelas forças hegemônicas capitalistas, que tutelam o Estado para adequar o território às suas necessidades de reestruturação. Entretanto, parte dessas mudanças se deve não somente ao imposto pelo Estado, mas aquilo que foi resultante da resistência dos usuários à capitulação de seus territórios. Desse modo, o conjunto dessas forças fez romper as fronteiras do centro da cidade quanto da periferia metropolitana, pela fragmentação do espaço urbano, dando novos sentidos à espacialização e à territorialização do lugar na ordem mundial.

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19 Referências bibliográficas

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(Dissertação de Mestrado Acadêmico em Geografia).

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Referências

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