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Cinema e história antiga : a propósito do filme Cléopatra (1963) de Joseph Leo Mankiewicz : II parte

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Academic year: 2021

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Cinema e História Antiga: a propósito do filme Cleopatra (1963) de Joseph Leo

Mankiewichz. II parte

Autor(es):

Sales, José das Candeias

Publicado por:

Centro de História da Universidade de Lisboa

URL

persistente:

URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23723

Accessed :

3-Apr-2014 22:28:01

digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

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CADMO

Revista de Historia Antiga

Centro de História

da Universidade de Lisboa

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CINEMA E HISTORIA ANTIGA.

A PROPÓSITO DO FILME

CLEOPATRA

(1963)

DE JOSEPH LEO MANKIEWICZ - Il PARTE(1)

JOSÉ DAS CANDEIAS SALES Universidade Aberta

jcsales@clix.pt

Resumo

O objecto central da reflexão apresentada é 0 filme Cleopatra (1963) de Joseph Leo Mankiewicz. Nesta II Parte efectua־se uma análise detalhada desta superprodução de Hollywood, tentando determinar até que ponto as suas cenas se afastam ou ajustam dos/ aos eventos históricos que a investi- gação científica entretanto estabeleceu.

Palavras-chave: Cinema; História Antiga; Cleopatra VII.

Abstract

Joseph Leo Mankiewicz’s Cleopatra (1963) is the main object of this reflection. In Part II is carried out a detailed analysis of this Hollywood’s su- per production, with the purpose of realizing how far do their scenes diverge from or actually suit historical events that scientific research has established, in the meantime.

Key-words: Cinema; Ancient History; Cleopatra VII.

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JOSÉ DAS CANDEIAS SALES

Comentário ao Cleopatra de Mankiewicz - Da Lenda à História

São muitos os especialistas do Egipto ptolomaico que, como Christian-Georges Schwentzel, consideram que «Le chef-d’oeuvre cinématographique consacré à la reine d’Égypte demeure sans conteste le Cléopâtre de Joseph L. Mankiewicz (1963)»(2). Trata-se, de facto, de um filme emblemático sobre a célebre rainha do antigo Egipto.

No genérico inicial do filme, os produtores assinalaram que o filme é «based upon histories by Plutarch, Suetonius, Appian, other ancient sources and “The life and times of Cleopatra” by C. M. Franzero»(3). Há, portanto, subjacente ã dimensão do espectáculo e da superprodu- ção, uma tentativa de verosimilhança histórica através da pesquisa, consulta e trabalho sobre as antigas fontes disponíveis sobre o período histórico em causa e sobre algumas das suas personagens históricas.

Há, realmente, um conjunto de fontes disponíveis para 0 estudo do I século a. C. e da vida de muitos dos seus protagonistas, nomea- damente para traçar os contornos da vida e actuação da sétima Cleó- patra da família real dos Lágidas: Flávio Josefo (37 100)(4), Plutarco (45-125P, Suetónio (69-141)<6>, Apiano (95-165)<7י, Díon Cássio (163/ /164-229)(8). Graças a eles, embora em muitos casos a partir de frag- mentos e elementos dispersos, alguns - poucos - coevos, outros muito posteriores, pode esboçar-se um quadro e uma visão de conjunto mais ou menos consistente, embora com algumas «áreas» e «aspectos» menos evidentes ou totalmente esclarecidos.

Sobre a rainha do Egipto, há também alusões em Veleio Patér- culo (19 a. C.-31 d.C.), Plínio-o-Velho (23-79), Floro (séc. I-II d. C.) e Aulo Gélio (séc. II d. C.) e servem nos ainda alguns dos poetas ofi- ciais de Augusto, como Horácio (65 a.C.-8 d. C.) na Ode I, 37, Pro- pércio (47 a.C.-15 d. C.) na Elegia III, Vergilio (70 a.C.-19 d. C.) na

Eneida e Lucano (39-65) em Farsália X.

Estes autores e poetas latinos, que, na maioria dos casos, escre- veram em épocas posteriores aos factos, foram particularmente influen- ciados pela propaganda oficial de Octávio. Ao serviço do senhor de Roma, encarregaram-se de passar uma imagem negativa e deformada do Oriente, do Egipto e de Cleópatra, qual «rainha das meretrizes», que, em última instância, o cinema herdou e trabalhou desde os tem- pos do mudo(9).

Para completar 0 quadro das fontes disponíveis, é justo aludir aos testemunhos contemporâneos de Júlio César (100-44 a. C.)(10), de Cícero, que revela o seu ódio a Cleópatra numa carta dirigida ao seu 196

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CINEMA E HISTORIA ANTIGA

amigo Ático (Ad Atticum XV, 15), e de Nicolau de Damasco (64 a. C.- -10 d. C.) que, antes de entrar ao serviço do rei Herodes, foi tutor dos filhos de Cleópatra e de cuja obra nos chegaram alguns fragmentos.

Naturalmente, muitas das informações recolhidas nestas fontes são transmitidas ou trabalhadas no filme de Mankiewicz através dos cenários, dos figurinos, dos diálogos, dos elementos materiais das ce- nas; procuram conferir a necessária consistência histórica à narrativa cinematográfica e, embora esta não seja um «exercício histórico» nem um documentário, as suas propostas, leituras e recriações de ambien- tes, personagens, factos e situações moldam a nossa percepção dos eventos reais, históricos. É indiscutível que há no Cleopatra de Mankiewicz áreas de enorme verosimilhança e plausibilidade histórica.

No meio dessa verosimilhança e plausibilidade histórica recriadas pela narrativa fílmica, é, no entanto, possível detectar e comentar alguns desajustes, por vezes altamente significativos pelo eco que transmitem de imagens preconcebidas e construídas pelo devir histórico.

O «épico intimista» de Hollywood de 1963 é, no fundo, um épico duplo: 0 primeiro (a primeira parte do filme) conta a história de César e Cleópatra (como Bernard Shaw fizera no argumento do filme de 1945) e 0 segundo (a segunda parte) centra-se na história de António e Cleópatra (como William Shakespeare fizera na peça Antony and

Cleopatra)(U).

Cada parte do filme tem a sua cena épica: na primeira parte é a entrada triunfal de Cleópatra no forum romano(12), com 0 pequeno César e com uma esfinge de «granito cinzento» tão grande que mal cabe sob a reconstrução do Arco de Constantino031. Na segunda parte é a cena da chegada de Cleópatra a Tarso na sua barca, descrita em pormenor por Plutarco e por Shakespeare. O que vemos no filme é a passagem para 0 cinema de uma autêntica epifania divina<14).

Sendo naturalmente impossível comentarmos todas as cenas e informações históricas contidas no filme de Mankiewicz - nem sequer é essa a nossa intenção - , vejamos alguns aspectos importantes para um correcto enquadramento desta superprodução de Hollywood, ten- tando determinar até que ponto se afastam dos (ou ajustam aos) eventos históricos que a investigação científica entretanto estabeleceu.

Do ponto de vista histórico, a primeira parte parece-nos global- mente mais bem conseguida e até mais fiel ao espírito e à letra de algumas das narrativas antigas ao nosso dispor. Em contraste, a se- gunda parte, talvez devido ao «peso» da peça de Shakespeare, é menos consistente e talvez por isso de maior «liberdade criativa»,

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JOSÉ DAS CANDEIAS SALES

pontuada aqui e além por alguns significativos «afastamentos» em relação ao que a moderna historiografia propõe e que interessa comentar.

1. A situação político-militar pós-Farsália

O filme inicia-se no pós-batalha de Farsália: a batalha travada numa planície do sul da Tessália (Grécia Central), a 9 de Agosto de 48 a. C., entre Júlio César e os seus oponentes chefiados por Pompeio(15). Esta batalha assinala e é resultado de um momento parti- cularmente importante de perturbações civis que desde o final dos anos 50 a. C. haviam mergulhado Roma e 0 mundo do Oriente num ambiente de constantes sublevações e lutas e que, no fundo, só ter- minaria com 0 confronto entre as hostes egípcias de Cleopatra VII e Marco António e as forças romanas do pré-princeps Octávio, em 31 a. C., em Áccio, ao largo das costas ocidentais da Grécia continental. Aliás, 0 Oriente tornar-se-ia teatro de confrontos, território de recruta- mento de tropas e seu tesouro de abastecimento06·.

Mesmo em inferioridade numérica perante o seu antagonista (24.000 cesaristas para 47.000 pompeianos), a refrega de Farsália foi favorável aos interesses de César, pondo termo ao primeiro triunvirato de Roma e consolidando dessa forma, decisivamente, 0 seu controlo sobre a República romana. César saqueou o acampamento do adver- sário e executou muitos prisioneiros, após ter feito cerca de 15.000 mortos em batalha entre as hostes comandadas por Pompeio, contra as 1.200 perdas do seu lado°7). As várias piras com corpos a arder das primeiras cenas do filme exprimem exactamente a vitória das hostes de César. Em consequência, Pompeio fugiu para 0 Egipto, em busca de um apoio especial da corte alexandrina do jovem Ptolomeu XIII.

De seguida, Júlio César vai a Alexandria, justamente no encalço de Pompeio, e à sua chegada e na sua estadia de sete meses preci- pitam-se uma série de acontecimentos marcantes. Desde logo, receo- sos dos efeitos que a protecção a Pompeio poderia provocar em César, Ptolomeu XIII e os seus acólitos e conselheiros (0 eunuco Potino,

tropheus^18) e preceptor do rei, Teódoto de Quios, professor de retórica,

e 0 strategos egípcio Áquila, comandante do exército) assassinam e decapitam, a 29 ou 30 de Setembro, 0 «amigo» romano<19). A corte ptolomaica considerava que ter Pompeio sob a sua protecção era uma provocação a César e não correu 0 risco de entrar em guerra com ele.

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CINEMA E HISTORIA ANTIGA

O filme destaca todos estes personagens na recepção a Júlio César, a «oferta» da cabeça e do anel de Pompeio(20), bem como a guerra civil que se vivia também no Egipto, entre os partidários dos dois filhos de Ptolomeu XII, Cleopatra VII e Ptolomeu XIII. A resposta da corte egípcia às pretensões de Pompeio foi manifestamente contrá- ria àquilo que ele esperava e, com o seu assassinato, foi Júlio César, seu companheiro de triunvirato, mas representante de uma facção po- lítica distinta e com um divergente projecto político, quem beneficiou, passando a controlar 0 Oriente.

A reconstituição fílmica que comanda 0 início da longa-metragem de Mankiewicz está, portanto, repleta de plausibilidade histórica, as- sente no relato de Plutarco (77-78) e permite-nos entender, nos seus contornos essenciais, o quadro das relações internacionais do Mediter- râneo no início da segunda metade do século I a. C.

Para se compreender melhor a opção de Pompeio pelo Egipto ptolomaico é, porém, necessário recuar um pouco mais, à primeira metade do século I a. C., pelo menos a 80 a. C., quando Ptolomeu XII Neo Dioniso, 0 pai de Cleopatra VII e Ptolomeu XIII, foi entronizado rei no Egipto. Já nessa altura 0 exercício da realeza no Egipto estava condicionado ao reconhecimento do Senado romano. De facto, Ptolo- meu XII (0 soberano «que não tinha alma de rei») herdara um reino politicamente inviável.

A perda drástica da talassocracia dos Lágidas ao longo do século II a. C. enfraqueceu a monarquia e deixou uma reduzida margem de ma- nobra política e diplomática para os seus soberanos face ao verdadeiro protectorado que Roma lançou sobre o Egipto logo nos reinados de Pto- lomeu VI Filometor e de Ptolomeu VIII Evérgeta II. Com a morte de Pto- lomeu Ápio<21) (filho de Ptolomeu VIII Evérgeta II e da concubina Irene), sem herdeiros, em 96 a. C., a Cirenaica, a última possessão do antigo império dos Ptolomeus, foi deixada em testamento a Roma. Apesar de o Senado romano não ter tomado de imediato posse da sua herança, a região estava definitivamente fora da alçada dos Lágidas do Egipto.

Em 80 a. C., o testamento político de Ptolomeu XI Alexandre II fazia da cidade de Roma sua legatária, reconhecendo e compensando assim 0 apoio prestado pelos Romanos à monarquia egípcía<22). Inde- pendentemente dos impedimentos jurídicos em torno da autenticidade e validade do testamento, Egipto e Chipre pertenciam, a partir de então, a Roma, quais territórios-protectorados da República.

O reinado de Ptolomeu XII (filho ilegítimo de Ptolomeu IX Sóter II), não obstante preservar nominalmente a autonomia do território, foi

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JOSÉ DAS CANDEIAS SALES

vivido num quadro de manifesta incerteza, insegurança e dependência de Roma, com receio de que 0 Senado reclamasse subitamente a sua herança e com a inevitável e sempre temível instalação de sucessivas legiões em território egípcio(23). Assim, só em 58 a. C., após 22 anos de governo de facto e após fabulosas somas dispendidas em subor- nos a senadores romanos, Ptolomeu XII foi por eles considerado

soei usque amicus populi roman/ 24).

Ao deixar, em troca do apoio romano, que Roma se apoderasse de Chipre (onde reinava 0 seu irmão) como província romana, Ptolo- meu XII provocou a revolta dos alexandrinos que 0 consideravam um fantoche nas mãos dos Romanos e teve de se refugiar em Rodes e finalmente fugir para Itália (58-55 a. C.). Expulso pelos seus súbditos, Ptolomeu XII viu também, entretanto, a sua filha mais velha (Berenice IV) proclamar-se na sua ausência rainha do Egipto, com a colabora- ção do marido, Arquelau, filho do rei da Capadócia. A presença em Itália do rei egípcio ficou, de novo, marcada pelo gasto de avultadas quantias para comprar 0 Senado romano(25).

Regressado ao Egipto, com a ajuda de Pompeio(26) e de Gabínio, governador da Síria, Ptolomeu XII reinou novamente durante cerca de cinco anos (55-51 a. C.). Díon Cássio explica a ajuda de Pompeio e de Gabínio a Ptolomeu XII da seguinte forma: «Pompeio enviou ordens a Gabínio, que era então governador da Síria, e este interveio, sendo que enquanto um actuava por bondade, 0 outro agia por interesse. Mas empossaram o rei, ao contrário dos interesses do Estado»(27). No filme, César (Rex Harrisson) refere acerca de Pompeio que «O Egipto devia-lhe muito».

A «amizade» entre os senadores romanos e Ptolomeu XII justifi- cam que 0 general Pompeio (em cujas mãos haviam caído as gran- des quantidades de dinheiro dos subornos egípcios e que havia aju- dado o pai de Cleopatra a recuperar 0 seu trono(28>), depositário das últimas vontades do rei egípcio, após 0 desaire de Farsália se tenha procurado refugiar em Alexandria, capital dos Lágidas.

2. A luta pelo trono do Egipto

Cleopatra VII, filha de Ptolomeu XII Neo Dioniso Auleta e prova- velmente de Cleópatra V Trifena(29), nasceu em 69 a. C., em Alexan- dria, e acompanhou, desde cedo, no palácio real, as vicissitudes da política internacional do século I a. C., designadamente a interferência

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decisiva dos Romanos nos equilibrios estratégicos e jogos de poder no Mediterrâneo*30*. Tinha já 11/12 anos quando o pai, Ptolomeu XII, em 58 a. C., fugiu para Roma, para junto dos seus «amigos», onde permaneceria até 55 a. C., e cerca de 17/18 anos quando o pai mor- reu em 51 a. C.(31)

Desde cedo, portanto, que Cleopatra entendeu a força deter- minante que 0 dinheiro, 0 exército, 0 Senado romano, os seus mem- bros e os seus conhecidos tinham no estabelecimento e na destituição dos reis do Mediterrâneo Oriental, em geral, e da sua dinastia, em particular(32). O reino que herdou era um reino profundamente endi- vidado e por isso dependente das boas relações políticas com o Se- nado romano.

Cleopatra aprendeu também a sorte dos que desafiavam os senhores de Roma, pelo exemplo de sua irmã, que, na ausência do pai, assumiu 0 poder no Egipto como Berenice IV (58-55 a. C.); con- siderada usurpadora, acabou por ser decapitada, bem como o seu marido, Arquelau.

Como se vê no filme, quando Júlio César chega ao porto de Alexandria, a 2 de Outubro de 48 a. C., poucos dias depois do assas- sinato de Pompeio, Cleopatra está em aberta querela pelo trono do Egipto com 0 irmão e, oriunda de Pelúsio, no delta oriental, onde se instalara para recrutar um exército que a ajudasse a reconquistar 0 reino, encontra forma de se introduzir no palácio real de Lóquias, onde César se instalara, e de chegar à fala com 0 general romano.

A teatral entrada de Cleopatra nos aposentos de Júlio César, transportada por Apolodoro da Sicília enrolada num tapete, espicaçou a imaginação de inúmeros autores e criadores ao longo dos tempos e é fonte de inspiração para a espectacular cena do filme Cleopatra de Mankiewicz. Também aqui, os argumentistas e cenógrafos levaram em linha de conta a descrição de Plutarco (49, 1-3) e de Díon Cássio (42, 34, 3-5 a 35, 1,2)(33). Sobre os detalhes concretos da «entrada», as opiniões dividem-se: há quem a considere uma total efabulação, inse- rida, como primeira manifestação da sua dissimulação e lascívia (uma prostituta entregue sem controlo ao frenesim dos sentidos), na ficção criada pelos inimigos da rainha; outros aceitam-na como verdadeira e destacam que esse encontro, por ela promovido, é já, além de uma prova de coragem, de audácia e de confiança nos seus argumentos (políticos e físicos), uma demonstração do seu profundo entendimento do relacionamento político que, como no tempo de seu pai, era preciso continuar a estabelecer directamente com os senhores de Roma<34).

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O que sabemos é que a pintura e, sobretudo, o cinema elegeram esta cena, com alusões mais ou menos eróticas, mostrando uma gra- ciosa e insinuante jovem (Cleópatra teria então 21 anos; Taylor tinha 28) a ser liberta do seu invólucro, qual bailarina de cabaré, por um maduro e surpreendido imperator (tinha então 52 anos; Rex Harrison tinha 52 anos). Provavelmente, não terá sido exactamente assim que as coisas se passaram. Talvez nem se possa sequer falar de admira- ção ou surpresa por parte de César. Aliás, na cena do filme, César não se surpreende com a entrada de Cleópatra; antes, parece aguardá-la.

No fundo, independentemente do processo ou estratagema espe- cífico utilizado para iludir a oposição da facção contrária a Cleópatra, 0 encontro põe frente-a-frente dois líderes políticos a braços com pro- blemas, ambições e desejos comuns: ambos estavam em guerra civil com os seus antagonistas, ambos procuravam cimentar a sua autori- dade e ambos necessitavam de ajuda para 0 conseguir. Tudo se con- jugava para um profícuo entendimento-acordo político romano-egípcio.

Devido às circunstâncias, qual executante testamentário, Júlio César é forçado a arbitrar 0 conflito dinástico entre os dois irmãos, embora numericamente a força militar da sua escolta não fosse sufi- ciente para impor determinadas condições, pelo menos até à chegada dos reforços enviados por Mitridates de Pérgamo e, depois, da 37.- legião, poderosamente armada, pedida ao governador da Ásia<35).

As cenas do julgamento sumário de Potino, Ptolomeu XII e Teó- doto<36) e do incêndio da frota egípcia no porto de Alexandria, em 48 a. C., no decurso das «Guerras Alexandrinas», com consequente pro- pagação às edificações da área limítrofe, incluindo a Biblioteca, decor- rem, pois, sob este dúbio signo da influência e fraqueza de César no Egipto.

O desenrolar dos acontecimentos políticos de 48/47 a. C. permi- tem afirmar que é realmente Júlio César que torna Cleópatra, como se diz no filme, «rainha indisputada», «a única governante do Egipto». Se Ptolomeu XII devera o seu reinado a Pompeio, a filha, como rai- nha absoluta, devia-0 a César. A República continuava a «proteger» o Egipto monárquico.

A partir dos seus 17/18 anos, Cleópatra VII governou 0 Egipto durante 20 anos, entre 51 e 30 a. C.: de 51-47 a. C. em co-reinado com 0 seu irmão Ptolomeu XIII (12 anos) e de 47-44 a. C. com o irmão Ptolomeu XIV (11/12 anos). Ambos os períodos só foram pos- síveis pela complacência e colaboração de Júlio César (na parte final), com quem se envolveu amorosamente - dele concebendo, em 47 a. C., 202

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o filho Ptolomeu Cesarião, «Pequeno César», que seu pai reconhe- ceu<37), 0 futuro Ptolomeu XV - e de Marco António, de quem teve três filhos: Alexandre Hélio e Cleópatra Selene (gémeos nascidos em 40/39 a. C.) e Ptolomeu Filadelfo (36 a. C.).

No filme, não é feita qualquer alusão a Arsinoe Auleta ou Arsínoe IV(38), outra das filhas de Ptolomeu XII, irmã portanto de Cleó- patra VII, Ptolomeu XIII e Ptolomeu XIV. Historicamente, sabemos que Arsínoe IV foi possivelmente co-regente com Ptolomeu XIII, em 50/49 a. C. Em Agosto de 48 a. C., governou Chipre conjuntamente com Ptolomeu XIV, depois de Júlio César ter decretado que Ptolomeu XIII e Cleópatra VII é que deviam governar conjuntamente 0 Egipto.

Sabe-se também que, no princípio de Setembro de 48 a. C., governou no Egipto em oposição aos seus irmãos Ptolomeu XIII e Cleópatra VII. Depois, no início de Outubro do mesmo ano, alterou as suas alianças para governar com Ptolomeu XIII, em oposição a Cleó- patra VII. Apoiada pelo eunuco Ganimedes e pelo general Áquila lutou arduamente pelo trono do Egipto, mesmo com a incomodada e des- contente atitude dos soldados egípcios, servindo contrariados sob a autoridade de uma mulher e de um eunuco.

Capturada por Júlio César em Janeiro de 47 a. C., quando ele toma claramente 0 partido de Cleópatra VII nas querelas dinásticas egípcias, foi levada para Roma sendo apresentada publicamente, agri- lhoada, no triunfo de César, em Julho de 46 a. C.

3. O incêndio da Biblioteca de Alexandria

Embora não seja um tópico particularmente desenvolvido na nar- rativa cinematográfica, 0 incêndio da antiga Biblioteca de Alexan- dria(39), além da directa sugestão de que 0 edifício se encontra perto da zona portuária, no Bruqueíon, como defendem muitos estudiosos*40*, permite colocar em cena Sosigenes, 0 astrónomo alexandrino(41) que terá importância fulcral na reforma do calendário romano luni-solar de 12 meses de 355 dias baseado na inserção de um mês extra (mensis

intercalaris) de dois em dois anos, com o objectivo de manter em

sincronía 0 calendário com os ritmos sazonais de translação da terra e que, ainda assim, não conseguia solucionar as suas intrínsecas irre- gularidades.

Sosigenes era um dos mais audaciosos astrónomos da época e, por solicitação de Júlio César, estabeleceu um novo sistema de

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tagem do tempo, mais cómodo e racional, que viria a ser chamado calendário juliano, de base solar.

Assente nas determinações de Eratóstenes que concluíra que 0 ano terrestre tinha 365 dias e 6 horas, tornando necessária a introdu- ção de apenas um dia de quatro em quatro anos (os anos bissextos), Sosigenes alterou 0 calendário anual para ter 12 meses que soma- vam 365 dias, iniciando-se no mês de Martius.

A reforma apresentada por Sosigenes em 46 a. C. entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 45 a. C., embora a sua aplicação não tenha sido imediata em todos os espaços sob dominação romana(42). Em 44 a. C., o Senado romano homenageou Júlio César mudando 0 nome do mês Quintilis para lullus, um mês de 31 dias(43).

As origens do calendário juliano remontam, pois, ao Egipto ptolo- maico e, em Cleopatra, é o seu autor, Hume Cronyn como Sosigenes, que, nostálgico, a propósito do incêndio da Biblioteca, menciona as perdas dos livros, entre outros, de Aristóteles, de Platão e dos livros hebraicos(44):

«A Grande Biblioteca! Os manuscritos de Aristóteles ... Os comentá- rios platónicos, as peças, as histórias. O Testamento do deus dos hebreus. O Livro dos Livros!»

Cleópatra, por seu turno, defende fervorosamente a sua Bibliote- ca perante Júlio César:

«Como te atreves tu e o resto dos teus bárbaros a incendiar a Biblio- teca? Arma-te em conquistador, se quiseres, poderoso César. Viola, assassina, saqueia milhares, milhões de seres humanos. Mas nem tu nem nenhum outro bárbaro tem o direito de destruir um pensamento humano!»

César responde-lhe com uma série de directas e significativas referências:

«Tu, descendente de gerações de atrasados mentais incestuosos como ousas chamar-me bárbaro? Filha de um bêbado idiota que su- bornou para subir ao trono. Já estou farto de pretendentes a exibir-se nas ruínas do passado!»

A acusação feita ao progenitor de Cleópatra está repleta de ver- dade histórica: Ptolomeu Auleta («Flautista») consagrava a maior parte

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do seu tempo ao aulo, qual forma de evasão dos reais problemas políticos com que se confrontava. Quando não tocava ou não promo- via sumptuosos banquetes musicais, embriagava-se - outra forma assumida de evasão existencial.

No filme, o incêndio da Biblioteca é, pois, pretexto para traçar, através de elucidativos diálogos, uma séria oposição entre os «bárba- ros» romanos e os «eruditos» greco-macedónicos, na perspectiva de Cleópatra, e entre os inteligentes, racionais e pragmáticos Romanos e os degenerados, «bêbados» e fracos Lágidas, na perspectiva de César. Esta leitura é também filha de uma interpretação histórica antiga: lem- bremos Estrabão, que, ao serviço da propaganda imperial romana, denegriu a linhagem ptolomaica de Cleópatra<45>.

4. Visita ao túmulo de Alexandre

Na época de César, o túmulo de Alexandre Magno situava-se no parque sagrado do Soma, entre os túmulos dos Ptolomeus. Num sarcófago de ouro colocado dentro de um sarcófago de alabastro, re- pousavam os restos mortais do grande conquistador macedónico, 0 putativo fundador da dinastia ptolomaica<46).

No filme, a parede tumular é decorada com 0 famoso mosaico da Casa do Fauno, em Pompeios («Mosaico de Alexandre»), que re- produz uma pintura do século IV a. C., onde um destemido Alexandre Magno montado no seu cavalo de eleição, Bucéfalo, investe, na bata- lha de Isso (em 333 a. C.), contra um assustado Dario III Codomano, rei aqueménida dos Persas.

Mais do que um «erro histórico», trata-se objectivamente de uma composição cenográfica que, em nossa opinião, tenta ampliar a dico- tomia que se pretende estabelecer entre César e Alexandre, mediada pela vontade de Cleópatra.

A hipotética visita de César e de Cleópatra a este túmulo é, em nossa opinião, uma das cenas mais importantes do filme em análise, porque encerra a chave para a compreensão da actuação política de Cleópatra junto dos Romanos. O diálogo elaborado pelos argumen- tistas e posto nas bocas de Rex Harrison (César) e Elizabeth Taylor (Cleópatra) é digno de registo pela dimensão histórica que confere à personagem de Cleópatra e que se conforma à visão mais histórica e verdadeira da sua actuação: a rainha do Egipto sonhava com um im- pério universal como Alexandre Magno e como ele pretendia ser a

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soberana do mundo. Para 0 efeito, necessitava da colaboração activa de Júlio César e, mais tarde, desaparecido este, de Marco António.

«Cleóp. - Faz do sonho dele o teu, César. O seu plano glorioso. Pega

nele onde ele o deixou. Da miscelânea de conquistas faz um mundo e de um mundo, uma nação, um povo, a viver em paz na Terra.

César - Disseste-me por fim 0 que queres de mim. Cleóp. - De nós.

César - No centro, a capital deste mundo, deste povo único, desta

nação ... é Alexandria.

Cleóp. - Foi ele quem a escolheu.

César - Sou romano.

Cleóp. - Ele era grego! Que importância terá quando formos um só

povo?

César - Tenho 52 anos. Ele tinha 32 e não conseguiu.

Cleóp. - Nós conseguiremos. Os teus sonhos, as tuas ambições...

César - Uma vida não chega para tais sonhos, para tais ambições. Cleóp. - O manto de Alexandre não pode ser demasiado pesado para Roma e o Egipto junto. E que tem a espada dele estar demasia- do cravada? Será substituída pela tua, César.

César - Tens queda para misturar política e paixão. Onde começa

uma e acaba a outra?

Cleóp. - Isso não começou nem acabará comigo.

César - Cleopatra, seja qual for o desfecho, deixa-me o meu destino.

Cleóp. - O teu destino já não é só teu. Também é meu. Em breve, haverá alguém que carregue o manto de Alexandre e a espada de César e 0 nome de César. E em nome de César governará o Egipto. Seja qual for a parte ou o mundo inteiro que lhe dermos, 0 nosso filho será um filho para ti, César. Juro-o por ísis. Podes adiar o teu regres- so a Roma durante 0 tempo suficiente?»

Ptolomeu Cesarião é concebido como o herdeiro dos destinos de Roma e do Egipto, capaz de gerar uma nova empresa de unificação imperial similar àquela que Alexandre empreendera, unindo o Egipto e Roma, a Europa e a Ásia. Com a morte de César, será com Marco António, o herdeiro político de César no Mediterrâneo Oriental, que Cleopatra, corajosa, ambiciosa e visionária, continuará a tentar «imple- mentar» o seu sonho de dominação universal, incluindo também os três filhos que com ele gerou.

As cenas do túmulo de Alexandre do filme de Mankiewicz são, em nossa opinião, muito significativas: num ambiente carregado de antíteses e comparações, são postos em cena o antigo e mítico con­

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quistador Alexandre (morto jovem) e o actual conquistador imperial (envelhecido mas vivo); são assim postos lado-a-lado(47). Mediando os dois, instilando a força e a determinação do primeiro que parecem faltar ao segundo está a dinâmica e firme Cleópatra. Esta cena reúne magistralmente três dos maiores ícones do mundo antigo: Alexandre Magno, Júlio César e Cleópatra.

5. A chegada de Cleópatra a Roma

Quando Júlio César regressou a Roma (47 a. C.) deixou três le- giões romanas para proteger Cleópatra e passado um ano convidou-a para o visitar. Em Outono de 46 a. C., Cleópatra chega a Roma, junta- mente com 0 pequeno César e com 0 seu marido-irmão Ptolomeu XIV(48).

No final de Setembro de 46 a. C., César festeja em Roma os seus quatro triumphi curules (o da Gália, o do Egipto, o do Ponto Euxino e o da África), passeando pelas ruas da cidade vários prisio- neiros agrilhoados, entre eles Arsinoe IV, a irmã de Cleópatra VII, e Ganimedes, o seu conselheiro e cúmplice(49). Urna vez mais, a rainha egípcia tem conhecimento da sorte reservada aos derrotados<50). César poupará a vida de Arsinoe e libertá-la-á. Será exilada em Éfeso, con- sagrando-se ao culto de Ártemis, e será Marco António, mais tarde (em 40 a. C.), a executá-la, a pedido da própria Cleópatra<51).

A visita de Cleópatra a Roma não merece nenhuma descrição nas fontes antigas, pelo que qualquer reconstituição é puramente vir- tual, resultado da imaginação de pintores, romancistas ou realizadores de cinema. Nada sabemos dos seus vestidos, jóias ou ornamentos nem dos do seu séquito. Assim, a cena-símbolo do filme que é a deslum- brante, aparatosa e colorida entrada de Cleópatra, conquistando 0 povo de Roma, com dezenas de bailarinas e bailarinos numa coreo- grafia plena de sensualidade, agilidade e exotismo, no alto de uma escadaria piramidal no cimo da qual surgem entronizados Cleópatra e 0 pequeno César, e atrás dos quais se vê um gigantesco rosto de uma esfinge antropocéfala, é uma completa criação de Hollywood.

A presença de Cleópatra em Roma, não como prisioneira ou despojo mas como rainha do Egipto, significava que 0 seu reino con- servava a independência e que se reforçava com 0 Senado a aliança e a amizade que se estabelecera no tempo do Auleta.

Durante dois anos (Outubro de 46-Março de 44 a. C.), Cleópatra vive nos jardins de Janiculo, numa uilla de César, situada no

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Transtiberino, perto de Roma. Apesar da atenção de César, é exage- rado, como faz o filme, colocar César e Cleópatra a partilhar o mesmo tecto em Roma. Ademais, Calpúrnia, a esposa de César, estava viva e vivia em Roma. Aliás, ao contrário do que 0 filme sugere, no dia do assassinato (15 de Março), César não saiu da casa de Cleópatra. A tarde de 14 de Março foi passada em casa de Lépido, 0 seu

magister equitum, e na manhã de 15 de Março saiu do domicílio con-

jugal de sua esposa Calpúrnia que, temerosa dos maus presságios, tentou convencê-lo a cancelar a reunião(52).

Já não é exagerado - é até, em nossa opinião, muito bem con- seguido - colocar a cena do assassinato, sem diálogos, na cúria de Pompeio, junto da base da estátua de Pompeio(53). Numa suprema ironia, Júlio César morre aos pés do homem que venceu. Os senado- res-conspiradores desprezam 0 projecto político de Júlio César e mos- tram-se mais defensores da visão de Pompeio. Ao mesmo tempo, ao prescindir do uso das vozes nesta cena, Mankiewicz conseguiu evitar a repetição do popular «Até tu, Bruto!» que William Shakespeare bebeu em Suetónio. Mas, para 0 espectador informado, a sua cena estabelece um interessante «diálogo» subliminar com a peça teatral de 1623... um «diálogo» com 380 anos de permeio.

Durante a estadia bianual de Cleópatra em Roma, Júlio César estima-a, exibe-a e presenteia-a: com oferendas, títulos e com uma estátua de bronze dourada (feita por Arquesilau) no templo de Vénus

Genetrix, mitológica ascendente da gens lulia e versão romana de

ísis(54). Para muitos romanos, a imagem de uma personagem viva num lugar de culto (algo habitual no mundo oriental, mas estranho à cultura latina) era um desafio aos deuses. Como se menciona no filme, ao lado da estátua de Cleópatra-Vénus seria colocada a de César e a de Vénus.

Paralelamente, há a leitura simbólica da situação: ao escolher o templo de Vénus (deusa do amor) e em concreto Vénus Genetrix («Mãe») e sendo descendente directo da mesma deusa como membro da família lulia, Júlio César associava Cleópatra, encarnação de ísis desde o seu nascimento, e transmitia a mensagem que o filho de ambos, Cesarião, era descendente directo dos deuses, pelas vias paterna e materna, e que, portanto, estava destinado a governar o mundo(55).

O facto é que a presença da rainha egípcia em Roma juntamente com 0 seu pequeno filho teve efeitos ambivalentes, tanto de aceita- ção como de animosidade dos Romanos, com destaque para Cícero. A arrogância da rainha e a sua inimizade com Cícero, bem atestadas nas fontes, não merecem qualquer ênfase no filme de Mankiewicz(56). 208

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Além da designação como ditador vitalício, Júlio César ambiciona a abolição do Senado, a nomeação como senhor (rei) absoluto de Roma. A ditadura de César parecia ser um prólogo para a monarquia, 0 que para os senadores republicanos era uma intolerável procura de protagonismo e uma completa aberração política que, em última ins- tância, atribuíam à (má) influência da incestuosa «meretriz» egípcia

(.regina meretrix; incesti meretrix Regina CanopP7)). Esta é, aliás, a

vertente a que 0 filme dá particular destaque.

No entanto, há uma outra problemática de cariz religioso associa- da ao tipo de monarquia que César se propunha instaurar em Roma a que não é dada qualquer relevância no filme e que muito incomoda- va os senadores romanos: a aceleração do processo de divinização do ditador. Digamos que, neste particular, a narrativa cinematográfica, embora toque «ao de leve» este aspecto, se centra no acessório e ignora 0 principal.

Depois dos idos de Março de 44 a. C., ou seja, depois do assas- sinato de César pelos senadores-conspiradores, Cleópatra abandona Roma, volta a Alexandria, desembaraça-se de Ptolomeu XIV com uma dose letal de veneno e designa Ptolomeu Cesarião como co־regente(58). O episódio do suposto envenenamento de Ptolomeu XIV é por muitos interpretado como uma efabulação, a par das que apresentam a sua irmã como uma sedutora pérfida e cruel que se banhava em leite de burra e bebia pérolas dissolvidas em vinagre(59).

No Verão de 44 a. C., Cleópatra entroniza 0 pequeno Cesarião, então com apenas 3 anos de idade(60). A rainha do Egipto (então com 25 anos) e 0 seu filho de César, juntos, estão em posição de recia- mar 0 mundo mediterrâneo. Tal projecto não seria logicamente pos- sível sem 0 imprescindível apoio romano. Com os contactos com Roma, Cleópatra compreendeu ainda melhor que as vias extralegais e a conquista de influências particulares eram os únicos meios de um estrangeiro poder orientar ou utilizar a política romana(61).

Paralelamente, Cleópatra necessita de assegurar o apoio interno e a legitimidade do clero egípcio ao seu reinado com 0 filho. É assim que, tirando partido da sua identificação com ísis, se procede ao re- gisto dos baixos-relevos da rainha e do seu filho nos templos de Dendera e de Armant. Cleópatra, a «nova ísis», sustenta Cesarião, o «novo Hórus»(62).

Terminava uma fase da vida de Cleópatra e da vida política do Egipto e em breve, depois da guerra civil (44-42 a. C.) entre Octávio e Marco António, de um lado, e os assassinos de César (sobretudo

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Cássio - que morreu em luta - e Bruto - que se suicidou ao ver-se vencido<63)), de outro, e do estabelecimento do segundo triunvirato (Marco António, Octávio e Lépido(64)) que pretendia continuar a obra de César, iniciar se-ia a sua ligação com Marco António e uma nova etapa da sua existência.

Subentendida ou com referências pontuais no filme, a guerra civil entre os Romanos, com assassinatos em série dos senadores-conspi- radores e consequente confiscação de bens, é 0 elemento-chave do ponto de vista político-militar para o Egipto de Cleópatra. Depois da formação do segundo triunvirato (43 a. C.) e da batalha de Filipos, na Grécia (42 a. C.), os novos triunviros dividem 0 poder entre si: Octávio fica com 0 Ocidente, Lépido com a África e António com 0 Oriente·65*. O mesmo é dizer, 0 Egipto ptolomaico de Cleópatra passa a estar sob a guarda e protecção de Marco António.

6. O convite-convocatoria para o encontro de Tarso: Afrodite e Dioniso

Mesmo com as confiscações de bens e propriedades dos conspi- radores, a República romana necessitava de homens e fundos para prosseguir as suas campanhas de ampliação territorial e os seus pro- jectos de dominação político-militar. Neste sentido, 0 Egipto podia ser um aliado importante. Essa foi uma das motivações, como 0 filme menciona, do convite-convocatória enviado por Marco António a Cleó- patra para um encontro em Tarso (sul da Anatólia, na Cilicia). O en- contro ocorreu de facto, em Antioquia, no Verão de 41 a. C. Ele tinha 41 anos e ela 28.

Na película de Mankiewicz, porém, muito presa à narrativa de Plutarco, enfatiza-se que este encontro era mais do interesse de Antó- nio do que do de Cleópatra. Trata-se de uma percepção distorcida da História, pois quem tem mais interesse na subida do Cnido até Tarso é Cleópatra.

Desde logo, não podemos ignorar que no mundo antigo 0 pro- cedimento habitual no caso de «visitas de Estado», chamemos-lhe assim, era o Estado «inferior» vir ao encontro do Estado «superior»166*. Neste sentido, Cleópatra ocupava um patamar inferior - com mais a ganhar - do que António, que era 0 representante da maior potência militar da época. Não podemos esquecer também que António, com o objectivo de se entender politicamente com ela, lhe oferece a Fenícia,

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a Coelesíria, Chipre, parte da Cilicia, os campos de bálsamo de Jericó e 0 território dos perfumes pertencentes aos Nabateus(67). Depois, é preciso recordar que a fome terrível de 43 a. C. no Egipto e as duas escassas inundações do Nilo de 42 e 41 a. C., haviam empobrecido 0 país.

A deslocação de António para 0 Oriente implicou uma série de acontecimentos inter-relacionados a que o filme não concede qualquer menção: a acentuada inimizade entre António e Agripa(68); a oposição de Fúlvia, mulher de António, e de Lúcio António, seu irmão, a Octá- vio; a consolidação dos poderes de António no Oriente; a guerra con- tra os Partos e a conquista da Arménia<69). Todos estes factores afas- taram António de Roma e aproximaram-no cada vez mais de Cleópatra. Também aqui, como no caso do encontro com Júlio César, os dois líderes políticos lidavam com problemas, ambições e desejos similares e um entendimento romano-egípcio facilitaria muito a situação para ambos os lados.

Seja como for, este célebre encontro de ambos, em Tarso (Cilicia), iniciando os 11 anos que medeiam entre 41 e 30 a. C. e que correspondem ao período da sua ligação político-amorosa, dá lugar à segunda grande cena-símbolo do filme de 1963 que é justamente a chegada da embarcação de Cleópatra. Uma vez mais, é Plutarco (26, 1-4) e a sua descrição do cortejo fluvial que se encontram subjacen- tes á construção cinematográfica.

A opção do Cleopatra é claramente pela dimensão e pelo espec- tacular: esta Cleópatra-Vénus seduz 0 embevecido e embriagado Marco António-Dioniso bem como os seus múltiplos espectadores<70). O tom metafórico que Plutarco e o filme fixam para a cena do encontro de Tarso transformam Cleópatra e Marco António em duas divindades distintas mas complementares (Nova Afrodite e Novo Dioniso) e a pos- teridade tem dificuldade em se afastar desta visão assim construída.

Centrado na ligação entre Marco António e Cleópatra, o filme só alude de forma lateral ao «casamento político» entre António e Octávia, a irmã mais nova de Octávio, e não há qualquer referência aos aspectos positivos do entendimento de António com Octávio (por exemplo, tratado de paz de Brundisio, de 40 a. C.) nem ao bom rela- cionamento do novo casal, em Atenas, de 39 a 37 a. C. durante a estadia de António(71). As fontes antigas dão disso testemunho<72).

O filme prefere acompanhar a ligação de Cleópatra com Marco António, «separando-o» das suas ligações e responsabilidades roma- nas, 0 que, de certa forma, é historicamente correcto. Ao longo dos

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anos de convívio com Cleópatra, não obstante as medidas de apro- ximação promovidas por Octávio (designadamente o casamento de António com Octávia), António vai progressivamente afastando-se dos interesses de Roma e ficando «cativo» de Cleópatra(73).

Em consequência, a visão de Marco António que 0 filme acaba por transmitir sofre os efeitos da propaganda de Octávio-Augusto, desde o seu retrato físico psicológico como pessoa de temperamento variável, físico hercúleo, dado ã bebida e ã satisfação dos seus impul- sos, escassamente reflexivo e que se sentia inferior no diálogo e no debate, até à imagem de um mísero personagem dependente dos en- cantos e favores sexuais de uma mulher.

A actuação de Richard Burton (Marco António) é marcada pro- fundamente por esta visão plutarquiana e shakespeareana que, em muitos aspectos, parece afastar-se da dimensão histórica: António não era um mau orador (tinha estudado retórica na Grécia e aprimorado as suas competências neste domínio) e a sua atracção por Cleópatra parece centrar-se na musicalidade e encanto da sua voz<74).

7. A expedição contra os Partos (36 a. C.), a invasão da Arménia e as «Doações de Alexandria» (34 a. C.)

O filme não dá grande relevância aos avanços dos Partos Arsácidas e à expedição desencadeada por Marco António contra eles, em 36 a. C.(75), que se saldaria por um desastre*76*, mas este acontecimento é extraordinariamente importante em termos históricos, pois dará origem a outros acontecimentos que irão marcar, em nossa opinião, a história pessoal da rainha egípcia e a história do mundo mediterrâneo: a invasão vitoriosa da Arménia e as chamadas «Doa- ções de Alexandria».

Em 34 a. C., Marco António celebra triunfalmente em Alexandria a vitória sobre Artavastes, 0 rei da Arménia(77), e nas «Doações de Alexandria», naturalmente à revelia do Senado romano, atribuiu territó- rios romanos aos seus filhos carnais com Cleópatra, que tinha reco- nhecido em 37/36 a. C.: Ptolomeu Filadelfo, o mais novo (com 2 anos), foi coroado rei da Macedonia, da Fenícia, da Cilicia e da Síria (os países aquém-Eufrates); Alexandre Hélio (com 6 anos) foi feito rei da Arménia, da Média e dos futuros territórios ainda por conquistar aos Partos (os países além-Eufrates); Cleópatra Selene, irmã gémea de Alexandre Hélio, tornou-se rainha da Cirenaica e de Creta. O filho

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de Cleópatra com Júlio César, Ptolomeu Cesarião, era feito «rei dos reis», enquanto sua mãe era proclamada «rainha dos reis», recebendo o Egipto, Chipre, a Líbia e a Coelesíria, ou seja, grosso modo, as antigas possessões dos Lágidas(78).

A encenação das «Doações» foi completa: sentados em tronos, os príncipes envergavam trajes típicos dos povos sob a sua alegada dominação ou evocativos da sua origem. Alexandre Hélio usava os hábitos medos (túnica de mangas compridas, calças entufadas e manto pregueado) e cingia a tiara pontiaguda chamada citaris, ostentada pe- los reis medos e arménios. Ptolomeu Filadelfo, por sua vez, apareceu com as vestes reais dos Macedónios: 0 chapéu tradicional (kausia), em redor do qual se atara 0 diadema real (kausia diadématophoros), a clâmide e as botas militares com atacadores (krepides). Vestida à egípcia, Cleópatra VII apresentava-se como a deusa Isis: longa túnica de franjas atada entre os seios (nó isíaco) e pesado toucado típico da deusa sobre a sua cabeleira. A Thea Filopator, «deusa que ama o pai» (título usado desde 51 a. C.) podia agora ser apropriadamente encarada como Nea Isis, «Nova ísis», e Thea Neotera, «deusa re- novada» (as novas epicleses com que se denominava a partir de 34 a. C.)<79>.

Todos os territórios do Oriente eram subtraídos à soberania de Roma. Cumprindo 0 sonho de Cleópatra de restaurar 0 império perdi- do de Alexandre, Marco António distribuiu-0 pelos filhos da rainha egípcia e, de forma directa, desafia o seu cunhado e companheiro de triunvirato Octávio que reage militarmente a este desafio à soberania romana. O «Novo Dioniso» em companhia da «nova ísis», agora tam- bém «Rainha de Reis», e 0 filho desta (Cesarião), como «Rei dos Reis», desafiam o Senado romano. Marco António não toma 0 título de «rei»; mantém-se triúnviro e imperator. Deste ponto de vista, não traiu Roma, mas a cerimónia organizada em Alexandria é entendida como uma afronta de marcado sentido político. Além do mais, António ratificava Cesarião como legítimo herdeiro de Júlio César o que era, naturalmente, uma inquietação suplementar para Octávio<80).

A celebração triunfal em Alexandria da vitória de Marco António sobre a Arménia constitui um ultraje e uma traição sentidos pelo Se- nado e é o primeiro «antecedente próximo» da batalha de Áccio. Nunca antes um general romano celebrara um triunfo sagrado fora da Via Apia, em Roma, 0 que significava, do ponto de vista político, que Marco António equiparava Alexandria a Roma e Serápis a Júpiter Capitolino(81). As «Doações de Alexandria» são o segundo «antecedente próximo»,

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pela redução patrimonial e o desafio implícito a Octávio, que leva à declaração de guerra de 32 a. C.(82). Não há no filme de Mankiewicz nenhuma alusão significativa a estes factos históricos, nem se fala sequer dos três filhos de Marco António com Cleópatra e tudo se cen- tra em Cesarião, 0 filho de Cleópatra com Júlio César(83).

Neste caso, o filme de Mankiewicz assenta no «pretexto histórico» da leitura pública, ilegal, por Octávio das vontades de António. A de- claração de guerra do Senado é interpretada como resposta ao facto de António pretender ser enterrado em Alexandria. Suetónio, que tam- bém alude à leitura do testamento, parece mais atento ao «aspecto substantivo» dessa leitura quando escreve: «A sua aliança com Marco António sempre fora dúbia e incerta, e as suas sucessivas reconcilia- ções eram apenas maus remendos. Rompeu-a por fim e, para mostrar bem que António não respeitava os usos e costumes da sua pátria, mandou abrir e 1er, frente ao povo, 0 testamento que este deixara em Roma, e no qual figuravam, entre os herdeiros, os filhos que António tivera de Cleópatra. »(84)

A preferência da narrativa cinematográfica vai para o tratamento dos preparativos(85>, do desenrolar e do desfecho da Batalha de Áccio.

8. A batalha de Áccio (2 de Setembro de 31 a. C.)

No Cleopatra de 1963, a reconstituição da batalha naval entre as hostes de Cleópatra e de Marco António e as de Octávio ao largo da entrada do golfo da Ambrácia, entre os promontórios de Preveza e de Áccio (sul do Epiro, costa ocidental da Grécia continental), conhecida como batalha de Áccio, de 2 de Setembro de 31 a. C., só salienta a fuga desonrosa da aliança romano-egípcia, susceptível de ilustrar a obsessão e a cobardia de António por Cleópatra e o carácter traiçoeiro e ardiloso desta. Nada se diz sobre o destino da frota(86).

Escavações recentes em Áccio e a crítica textual dos textos anti- gos sugerem que a retirada da batalha dos navios de Marco António não se deveu a cobardia, mas antes a uma manobra planeada capaz de permitir a bem sucedida retirada - por pouco tempo, porém - de Marco António e Cleópatra(87).

Ao seguir o relato novelesco de Plutarco (66, 1-5; 67, 1), a deser- ção de Cleópatra (que interviera no conflito com 60 embarcações) é apresentada no filme como uma deslealdade e uma traição. Embora se deva aceitar com ponderação a versão dos acontecimentos de 214

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Díon Cássio (interessado em salientar a fraqueza e o medo de ambos os adversários de Octávio), do seu testemunho (50, 1-4) deduz-se cia- ramente que a fuga para o Egipto foi acordada entre Cleópatra e Marco António.

Cerca de um ano depois da batalha, a 12 de Agosto de 30 a. C., perante a chegada de Octávio a Alexandria e o rumo dos acontecí- mentos (vitória efémera de Marco António sobre Octávio diante da Porta Canópica de Alexandria, último enfrentamento em Pelúsio e de- serção da cavalaria de António), Marco António e Cleópatra (com 39 anos) suicidam-se em Alexandria, não sem antes criarem os synapo-

thanumenon (Συναποξανουμένων, «os que devem morrer juntos»).

Esta sociedade, instituída pós-Áccio, substituía a confraria

amimetobion (Αμιμητοβίων, «aqueles que levam uma vida inimitável»),

criada em 41-40 a.C., de que faziam parte Cleópatra e Marco António, bem como a elite social e intelectual de Alexandria, e se afirmava pelo delírio sensual, pela volúpia, pela diversão, pela opulência, pela evasão, pela bebida e pela soberania egípcia. Na segunda associa- ção, onde 0 esbanjamento, 0 excesso e a falta de medida também tinham lugar, exprimia-se sobretudo a ideia de que os seus membros e, sobretudo, 0 «casal real», não pretendiam ser capturados vivos pelo vitorioso Octávio. Era, neste sentido, um sinal da decadência da soberania egípcia. A rainha do Egipto e os seus amigos sabiam que estava prestes a anexação do Egipto por Roma.

As festanças promovidas por estas associações, a que Plutarco alude, tornaram-se famosas na capital ptolomaica e contribuiriam direc- tamente para a progressiva perda de credibilidade do general romano e para a posterior pejorativa construção mítica da figura de Cleópatra, verdadeira persona non grata, que a propaganda anti-egípcia e anti- -oriental de Roma bem aproveitou.

9. A morte de Cleópatra

No Cleopatra de 1963, o suicídio de Marco António está envolto em erro histórico, uma vez que, segundo as narrativas antigas, Antó- nio solicita ao seu servidor Eros que lhe acabe com a vida, 0 que este recusa e, servindo de exemplo ao seu amo, prefere antes suici- dar-se<88>. No filme, é envolvido no acontecimento um descabido Apoio- doro, a pretexto da sua paixão por Cleópatra. Hollywood a sobrepor- -se completamente à História...

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No que toca às várias peripécias associadas às mortes de Antó- nio e de Cleópatra (Marco António tenta 0 suicídio pensando que Cie- ópatra já está morta; Cleópatra envia Diomedes com uma mensagem a António; António, agonizante, é transportado até junto de Cleópatra; morte de António junto de Cleópatra), o filme é relativamente fiel aos relatos históricos disponíveis.

Díon Cássio faz ainda eco da derradeira tentativa, frustrada, de Cleópatra seduzir Octávio, depois dos funerais de António(89>. O relato é, uma vez mais, uma obra de propaganda difundida em prol de Octá- vio-Augusto, 0 único dos governantes romanos capaz de resistir às «artimanhas» da femme fatale egípcia... No filme de 1963, embora presente, esta vertente não é muito acentuada.

As narrativas que relatam a morte de Cleópatra (a 17 de Mesori - Agosto - de 30 a. C., 11 dias depois da de António) são as mais sus- ceptíveis de mistificação e de se constituírem em lendas, tanto no que se refere à mordedura da áspide, como ao local exacto dessa suposta mordedura (mão, braço ou seio). Muito da celebridade e imortalidade de Cleópatra através do tempo deve-se ao tratamento deste tema na pintura, na escultura (em vários suportes), na literatura e no cinema<90). Como admite Whitehorne, a morte de Cleópatra «is undoubtedly the best-known incident of her full and varied life»(91) e juntamente com 0 assassínio de Júlio César nos idos de Março de 44 a. C., «it is one of the most famous events in the whole history of ancient world»(92).

A mordedura da áspide comporta todos os ingredientes suscepti- veis de conjugar distintas tradições e influências culturais e, assim, estimular as facetas míticas da personagem. Como escreveu Auguste Bailly: «Fosse qual fosse a verdadeira morte de Cleópatra, e supondo que poderíamos chegar a ter uma certeza a esse respeito, ser-nos-ia possível renunciar ao seio nu, a essa imperceptível picada de serpente, achado verdadeiramente genial que junta o prestígio da morte a uma imagem de voluptuosidade e evoca de um modo insidioso a satisfação de um desejo supremo e bizarro? Rodeada por todos os símbolos da lenda, Cleópatra não poderia ter outra morte (...).»(93)

É assim que inúmeros artistas sucumbiram literalm ente ao mito(94). Plutarco, porém, seguramente consciente da eventual constru- ção literária e simbólica subjacente a esta morte, reconhece a exces- siva encenação que ela patenteia (encerramento de Cleópatra no mausoléu, com as criadas Iras e Cármion(95); celebração do último banquete, envergando as sumptuosas vestes reais e os regalia) e a diversidade de opiniões sobre ela existentes.

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Díon Cássio (14, 1-3) não resistiu também nas suas considera- ções ao episódio da morte de Cleópatra e também ele admite várias possibilidades para o desfecho final, ou seja, a incerteza quanto ao exacto processo utilizado.

Que meio terá, então, usado Cleópatra para se suicidar? Inges- tão de veneno? Serpente venenosa? Há uma dimensão simbólica e política associada ao último acto da rainha do Egipto? É muito prová- vel que logo após a morte de Cleópatra tenham circulado em Alexan- dria as duas versões possíveis para 0 facto (mordedura de serpente e veneno), pois Estrabão (Geog. XVII, 1, 10), que visitou 0 Egipto pou- cos anos, faz delas eco.

A «tese» da picada da serpente e da cesta de figos deve ter sido adoptada e «autorizada» por Octávio, pois isso justifica 0 apare- cimento desta versão - e 0 nascimento do mito - nas primeiras fontes romanas. A própria descrição de Plutarco deixa entrever que o con- quistador do reino do Egipto acreditava nesta possibilidade. Assim, em resultado desta «crença», não surpreende, por um lado, que a estátua de Cleópatra que desfilou em procissão pelas ruas de Roma aquando do triunfo de Octávio, em 29 a. C., fosse «ornamentada» com duas áspides e, por outro, que os poetas romanos Vergilio, Propércio e Horácio, que provavelmente assistiram ao desfile, falassem nos seus escritos precisamente da picada das «serpentes»(96).

Este aspecto do «número» de serpentes, leva-nos a outras hipó- teses: admitindo 0 uso de uma serpente, a que matou Cleópatra não poderia desferir de imediato outro golpe mortal noutro ser humano. Se Iras e Cármion cometeram suicídio pelo mesmo método, teria de ha- ver pelo menos três serpentes. Ou haveria mais? Começam a ser «serpentes a mais» ... A tese do veneno pode facilitar - e muito - o entendimento do que se poderá ter passado... embora não seja tão espectacular ou dignificante.

Paralelamente, se a serpente usada é a serpente-uraeus (outra dúvida não esclarecida pelas fontes), a sagrada serpente protectora das antigas divindades egípcias e dos antigos faraós, ou se a serpente é a forma da deusa ísis Thermutharion (associada ao deus Serápis em Alexandria), há uma outra dimensão que a «mitologia popular» do mundo ocidental associada à serpente pretende sugerir: a dimensão simbólica do suicídio da última descendente da Casa Real lágida. Cleópatra procuraria transmitir a ideia de que com a sua morte desa- pareciam os Ptolomeus e os faraós do Egipto e a utilização da ser- pente tornava a sua morte um «acto religioso».

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Este «simbolismo» é contraditório com a co-regência de Cesa- rião, como Ptolomeu XV, com a fuga que preparou para Cesarião e com os cargos entretanto distribuídos aos seus filhos com Marco António. Provavelmente não houve qualquer simbolismo associado ao seu suicídio. O «simbolismo» não é obra de Cleópatra, mas sim da- queles que sobre a sua morte escreveram, desde a Antiguidade até Shakespeare.

Mesmo que o mistério da morte de Cleópatra nunca se resolva inquestionavelmente, a tradição mítico-literária-simbólica conseguiu fixar uma «versão oficial» da mordedura da áspide e, sem resistência, para não dizer mesmo que cedendo de bom ânimo, é essa versão que triunfa na reconstituição cinematográfica de Joseph Leo Mankiewicz. Reconheça-se que essa leitura encerra todos os ingredientes para um final apoteótico. Dificilmente 0 cinema deixaria de aproveitar tão ofere- eido filão(97).

Reconheça-se também, não obstante, que há no Cleopatra algu- mas cenas que sugerem 0 uso frequente de venenos na corte lágida (por exemplo, a tentativa de assassinato de Cleópatra com veneno perpetrada por uma serviçal da rainha que é, depois, compelida a be- ber da taça envenenada).

Politicamente, interessa perceber as razões e as consequências do acto de Cleópatra, independentemente das dúvidas sobre 0 pro- cesso realmente utilizado. Desde logo, interessa perceber que 0 sui- cídio de Cleópatra resulta de uma decisão própria (e não da acção directa de Octávio), 0 que, dito de outra forma, significa que foi ela e não ele quem triunfou(98). Ao escolher o suicídio, Cleópatra saía da His- tória pela porta grande: «Cleopatra VII nobly chose ritual suicide rather than life as a captive».(99) Conseguia dessa forma evitar passar pela humilhante experiência por que passara a sua irmã Arsinoe IV, cerca de 15 anos antes, com Júlio César.

O suicídio da rainha terá, pois, desagradado profundamente a Octávio e aos seus acólitos: fugia-lhes a «atracção principal» do es- pectáculo do seu triunfo, não apenas do ponto de vista dos tesouros materiais (capturar Cleópatra significava também capturar o seu te- souro(100)), mas sobretudo do prestígio simbólico. Ela seria o Verein- gétorix de Octávio. Talvez por isso, Díon Cássio escreveu: «Mas César, quando percebeu que não poderia trazer de forma alguma Cleópatra de volta à vida, sentiu tanto admiração como pena dela, e não foi pequena a lamentação que sentiu, como se tivesse sido privado de toda a glória da sua própria vitória.»(101)

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CINEMA E HISTORIA ANTIGA

Ideia que Suetonio repete: «Quanto a Cleópatra, desejava tão ardentemente guardá-la para 0 seu triunfo (...)»<102). Octávio via-se, pois, privado da «glória da sua vitória»; Cleópatra escapava ao desfile da vitória de Octávio(103); estragava-lhe, dessa forma, os planos.

Talvez por isso, no filme, num tom de irritação, Agripa pergunta a uma agonizante Cármion: «Achas que a tua senhora agiu bem?!»; ao que esta ainda consegue responder: «Extremamente bem. E foi digno ... do último de tantos nobres ... governantes.»(104)

De facto, com 0 suicídio de Cleópatra terminava 0 sonho do im- pério com capital em Alexandria e desaparecia a mais longa das di- nastias helenísticas. Morria, assim, também definitivamente 0 mundo político helenístico saído das campanhas de Alexandre Magno. A civi- lização helenística subsistiria, porém, agora tendo os Romanos como protagonistas. O Egipto, terra de infinitos recursos, mantinha-se sob a autoridade de Roma como a principal chave para a saúde financeira do Império.

Conclusão

Ao recuperarmos os principais dados histórico-biográficos sobre Cleópatra VII Tea Filopator (69-30 a. C.), «Cleópatra, a deusa, a que ama o seu pai», estamos perante uma das mais célebres figuras - senão mesmo a mais célebre - do final da antiga civilização egíp- cia. Foi a última e a mais ilustre dos membros femininos da dinastia macedónia dos Ptolomeus, descendente de Ptolomeu I, filho de La- gos, proeminente general de Alexandre Magno, pelo activo papel poli- tico que desempenhou no seu tempo.

Figura incontornável da história ptolomaica, em sentido estrito, e da história antiga, de forma mais lata, Cleópatra VII é um fortíssimo ícone, ainda intensamente actuante e fascinante por vários motivos e sob diversas facetas, quiçá mesmo imortal.

Longe de ser bela, como os bustos e as moedas antigas deixam perceber (fronte determinada, longo nariz aquilino, boca generosa com lábio inferior saliente e feições um tanto masculinas, sem relação com os cânones de beleza clássica ou egípcia), Cleópatra VII foi uma mulher sedutora, carismática e inteligente. A despeito destas evidências históri- cas, a imagem que a tradição fixou, ampliou e mistificou foi a de uma mulher de beleza irresistível, exótica, extravagante e sexualmente insa- ciável, a cujo encanto e modulações da voz poucos podiam escapar.

Referências

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