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BRASILEIROS NO LÍBANO: diferença e identidade Samira Adel Osman ( USP) 1

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Academic year: 2021

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BRASILEIROS NO LÍBANO: diferença e identidade Samira Adel Osman ( USP)1

Resumo: O artigo trata do processo de inserção e adaptação de membros da comunidade

líbano-brasileira (re)estabelecida no Líbano, com a efetivação do processo de retorno ao país de origem, nos diferentes grupos pesquisados, considerando-se aspectos fundamentais do processo de identidade e identificações como ascendência, gênero, geração, faixa etária, utilizando-se da metodologia de História Oral de Vida de imigrantes libaneses de primeira geração; mulheres descendentes de segunda geração, casadas com libaneses, na faixa etária entre os trinta e os cinqüenta anos de idade; jovens descendentes de segunda e terceira gerações, filhos de pais libaneses e mães filhas de libaneses ou brasileiras, na faixa etária variando entre os sete e os vinte anos de idade na ida ao Líbano; e ainda brasileiras não-descendentes, casadas com imigrantes libaneses. A problemática identitária é compreendida e construída nas relações conflituosas das práticas cotidianas, na relação com o outro e na constatação das diferenças.

Palavras-Chaves: Imigração Libanesa, Retorno, Geração, Identidade.

Abstract: The article deals with the process of insertion and adaptation of the members of the

Lebanon-Brazilian community (re) established in the Lebanon, with the process of return to the native country, in the different searched groups, considering basic aspects of the identity process and identifications as ancestry, gender, generation, age, using the Oral History methodology, by interview Lebanese immigrants of first generation; descending women of second generation, married with Lebanese, between thirty and fifty years old; young descendants of second and third generations, between seven and twenty years old at the period that they had gone to the Lebanon; and also Brazilian not-descendants, married Lebanese immigrants. The problematic of identity is understood and constructed in the practical daily conflictive relations, in the relation with the other and the verification of the differences.

Key Words: Lebanese immigration, Return, Generation, Identity.

Introdução

Uma peculiaridade da imigração libanesa, quaisquer que tenham sido os locais de destino escolhidos pelos diferentes grupos que realizaram essa empreitada, tem sido o projeto de retorno ao país de origem, o Líbano. No Brasil, a comunidade líbano-brasileira tem mantido esse fluxo entre os dois países caracterizando um movimento circulatório e contínuo de idas e vindas dos diferentes membros1.

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Estabelecidos no Líbano, os imigrantes e seus descendentes (de segunda e terceira geração) retornados, além de mulheres brasileiras não descendentes que acompanharam seus maridos nesse processo de retorno, têm vivido um processo de inserção e reinserção nas comunidades de origem, que pode ser classificado no mínimo como conflituoso, posto que estamos falando de pessoas que viveram em outra cultura e devem integrar-se, agora, a um outro código.

Este conflito tem se traduzido como um jogo de diferenças, de alteridades, de preconceitos, os quais fazem parte de um contexto maior: a construção de uma identidade brasileira ou líbano-brasileira no Líbano.

A questão das diferenças

É importante inicialmente apontar como a temática das diferenças existentes entre os libaneses e a comunidade líbano-brasileira (incluindo aí as diferentes gerações e os não descendentes) são colocados em dois termos bastante simplificados: “mentalidade” ou “cabeça” referindo-se aos modos de pensar e de agir de ambos os lados, que os diferenciam nas práticas cotidianas e que os levam a definir (ou ao menos buscar) uma identidade: “eles” (os libaneses, os “nativos”, os que nunca emigraram) e “nós” (os líbano-brasileiros, os que “vieram de fora”, “que passaram um tempo fora”).

A primeira constatação é de que a diferença está estabelecida justamente por se fazer parte de um grupo que veio de fora, que viveu parte de suas vidas em outro país, de acordo com outra cultura, num outro modo de agir, de pensar e de ver o mundo. Portanto, pelas condições colocadas evidencia-se que a diferença é “inevitável”, “natural”, “lógica”, e existe de um lado e do outro: eles e nós somos diferentes, diferenças expressas nos seguintes termos: “são cabeças diferentes”, “nós temos uma mentalidade diferente da deles e eles da nossa”, “é coisa de mentalidade”, “o povo brasileiro foi criado de um jeito e o povo libanês foi criado de outro jeito”, “os pensamentos são diferentes, o jeito de agir é diferente, o comportamento é diferente”, “nós, o povo brasileiro, pensamos de um jeito e eles, o povo árabe, pensam o contrário”. Mas, para alguns, apenas os outros são diferentes, no sentido em que quem não pensa como eu penso, não age como eu ajo, está equivocado. Este equívoco á apontado de ambos os lados. Para a comunidade líbano-brasileira identifica-se a diferença nos seguintes termos, em relação aos libaneses: “a cabeça deles”, “a cabeça de árabe”, “são

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cabeça torta”, “a cabeça do povo daqui”, “cabeça antiga”, “cabeça de pedra”, “a cabeça de árabe é diferente”, “entender como funciona a cabeça deles”, “o modo de viver daqui”, “o pensamento deles”, “a mentalidade das pessoas”, “o modo como eles pensam e vivem”, “o povo árabe é muito ignorante”, “o povo daqui é totalmente diferente do Brasil, totalmente diferente”.

Em relação ao próprio grupo, a comunidade líbano-brasileira, reconhece-se num mesmo modo de pensar e agir, que é apontado pelo grupo como uma qualidade positiva, uma vantagem (“nós temos a mesma cabeça”, “tem a cabeça igual a minha”, “a gente tem a cabeça mais aberta”, “nós que viemos do Brasil temos outra cabeça”, ”a minha cabeça é de brasileiro”, “o nosso comportamento é muito diferente do deles”, e, inclusive, “não tem nenhum tipo de preconceito, de cor, religião, idade”) ou é visto pelo grupo local como falha, defeito, atitude incorreta (“eles falam que a gente tem cabeça de brasileiro, não de árabe”, “eles falam que você pensa como brasileira”, “eles falam que a gente é brasileiro”, “pensa e age como brasileiro”).

Nessa busca de identidade, procura-se definir o grupo do “nós” e o grupo dos “outros” a partir das diferenças de comportamentos, atitudes, modos de pensar e agir. Para os colaboradores de origem líbano-brasileira o libanês é “fofoqueiro”, “malicioso”, “manhoso”, “falso”, “hipócrita”, “interesseiro”, “egoísta”, “mal educado”, “mal criado”, “grosso”, “fechado”, “invejoso”, “mentiroso”, “mais frio”, “careta”, “desleixado”, “descuidado”, “ignorante”, “encrenqueiro”, “briguento”, “grosso”, e assim por diante.

Já o brasileiro é “totalmente diferente”: “educado”, “gentil”, “bom”, “solidário”, “aberto”, “humano”, “simples”, “humilde”, “generoso”, “autêntico”, “sentimental”, “puro”, “maravilhoso”, “feliz”, “alegre”, “sincero”, cujo advérbio freqüentemente utilizado para defini-lo é “mais”: “mais maduro”, “mais festivo”, “mais autêntico”, “mais descontraído”.

A diferença entre libaneses e brasileiros também é estabelecida em relação ao comportamento cotidiano, passível de interpretações dúbias e incompreensão do modo de pensar de ambos os lados.

“...eles falam que nossas idéias são todas atravessadas, que a gente pensa torto. Não é isso, a questão é que a gente fala o que pensa, e aqui não, eles são muito manhosos... Por exemplo, eles ligam muito para o que você fala, se você fala uma coisa eles entendem outra. Se você diz, por exemplo, „você não está

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me entendendo‟, eles já entendem que você o está chamando de burro... Vê como eles levam a coisa? Eles levam tudo ao pé da letra. Se a gente está conversando em português, eles já acham que estamos falando mal deles... Eles ligam muito para o protocolo, para as regras, para os cerimoniais de casamento, de velório, de obrigações de visitas...”

Widad Ismail Mohamad El Kadri (Rede II- 2ª Geração)2

Esta interpretação dúbia, a questão das obrigações recíprocas, as regras de convivência, o protocolo, o entendimento das formas de se comportar, tudo isso é traduzido por Certeau (1997) como decorrência da necessidade que o indivíduo tem de compreender o meio social para melhor inserir-se nele. Essa necessidade é colocada pelo autor como “conveniência” ou “lei”, que deve ser compreendida e aceita por toda a coletividade para tornar possível a vida cotidiana. Mas, ainda que se sinta “obrigado” (no sentido repressivo ou da criação de obrigações) a conviver com o outro, não significa aceitá-lo ou entendê-lo plenamente.

Se há uma opinião dos brasileiros sobre os libaneses, da mesma forma existe uma imagem construída pelos libaneses sobre os brasileiros ou, pelo menos, é a forma como os brasileiros acham que são vistos pelos outros. Segundo essa visão, os brasileiros são vistos como “diferentes”, “esquisitos”, “loucos”, “egoístas”, “preguiçosos”, “ingênuos”, “sinceros”, (como uma qualidade negativa), e que gostam apenas de si próprios:

“Eles dizem que as brasileiras são loucas. Sabe por quê? Porque você tem personalidade, porque você fala o que você pensa e não fala amém a tudo. Suponhamos que tem um cara conversando com uma moça: se for uma brasileira e ela achar que tem que discordar, ela discorda, coloca a opinião dela, se for uma árabe não, ela concorda com tudo o que ele disser, não dá a opinião dela. Elas se privam muito por isso e nesse ponto elas chegam até a ser submissas... Como as brasileiras têm opinião, então, para eles, nós somos loucas.

Outra coisa que eles acham sobre nós, é que nós somos trouxas... Eles dizem que a gente tem um coração muito mole, que qualquer um pode levar a gente no bico... Porque se um fala assim, “eu estou necessitado”, a gente tira a roupa e o que tiver no bolso, e eles acabam levando mesmo a gente na conversa. Eles já

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são mais vivos, mais espertos, têm maldade, e a gente já não tem essa maldade no Brasil... Depois dizem que os brasileiros são os malandros, a gente é que não presta, acaba levando a fama...”

Monira Mohamad Abou Jokh (Rede III- 3ª Geração)

Para os brasileiros, essa visão é equivocada e não corresponde à realidade, ao modo de ser dos brasileiros. O comportamento do brasileiro é avaliado sempre como positivo, pois de modo geral “ajuda os outros”, “acolhe”, “recebe bem”, “trata bem”, “dá apoio”, pois tem “bom coração” e “gosta um do outro”, além disso, ”respeita tudo”, “guarda segredos”, e “não tem preconceito (de cor, religião ou idade)”. Ao mesmo tempo, o brasileiro tem “personalidade”, “um bom pensamento”, “não leva nada na maldade”, “ri e se diverte”, “aceita brincadeiras”, “não tem frescuras”, “está sempre feliz”, quase numa visão ingênua:

“Eu sinto muita saudade do Brasil, principalmente do povo. O povo brasileiro é camarada, gente boa, tudo o que eles falam é de coração, outros povos não são assim, são grosseiros, aqui mesmo no Líbano, você conversa com as pessoas e elas não são sinceras, você não sabe qual é o verdadeiro pensamento dela. Outra coisa que é diferente, é que no Líbano você vale o que tem no bolso, e o brasileiro não pensa assim, ele gosta da pessoa pelo que ela é e não pelo que tem.

O brasileiro é um povo meigo, legal, amigo, aonde você vai todo mundo quer ter amizade com a gente. Nós não temos malícia no coração, não somos pessoas más, pelo contrário. O amor que o brasileiro tem no coração é único, o brasileiro chega até a ser bobo, ingênuo, não é malandro. O brasileiro é amigo até debaixo d`água, enquanto aqui você não pode dizer que tem amigos de verdade. No geral o brasileiro é amigo de verdade, é um ou outro que escapa, já aqui é ao contrário, é um ou outro que escapa de ser falso, até se seu irmão te tratar bem você tem que desconfiar dele.

Outra coisa é que o Brasil abre os braços para todo mundo, cabe todo mundo lá, é uma terra abençoada, todo mundo sabe disso. A hospitalidade no Brasil é

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demais, é como uma mãe recebendo um filho. Não tem quem viva no Brasil e não se sinta bem, não se sinta como se fosse sua própria terra.

Eu acho que o brasileiro é o povo mais feliz do mundo, só vive rindo, não reclama de barriga cheia. Para o brasileiro qualquer motivo é motivo de festa, e aqui não, parece que as pessoas não sabem ser felizes, são muito sérias, desconfiadas. Acho que as pessoas tinham que sair um pouco daqui para ver como é o mundo lá fora.”

Fátima Zeitoun (Rede II- 2ª Geração)

É na dicotomia que se estabelecem as diferenças entre os dois grupos:

“As pessoas daqui não são como nós, os brasileiros. O brasileiro é um povo bom, solidário, quer sempre ajudar aos outros, aqui é o contrário, sabe? O brasileiro recebe bem quem vem de fora, trata bem, dá apoio. Aqui não, aqui eles dificultam a vida de quem vem de fora.

É muito difícil conviver com o povo daqui, nós temos uma mentalidade diferente da deles e eles da nossa... A gente é mais aberto, eles são mais fechados... A gente é sincero, eles são falsos... Você tem que tomar cuidado com tudo que você faz ou fala, senão já viu, né? Até hoje eles falam que a gente tem cabeça de brasileiro, não de árabe. Eles não acham que eu sou libanesa, que eu sou filha de pai e mãe libaneses, eles falam que você é brasileira, eles não aceitam... Eles diferenciam a gente, lógico, para eles você é brasileira, você não é filha de árabe, entendeu?

(...)

Eu acho que tudo isso é porque eles têm inveja... A gente é diferente deles, a gente tem a cabeça mais aberta... Ah, a gente é mais sincero... Se eu não gosto de você, eu falo: “eu não gosto de você”. Aqui não, na frente eles falam: “eu gosto de você”, por trás eles falam mal..

Olha que absurdo: uma vez, veio uma vizinha minha reclamar de mim para o meu marido. Eu falei para ela: “faz um favor, vai embora da minha casa”. Isso é coisa que muita gente não faz, você tem que receber a pessoa na sua casa, aceitar o que ela está dizendo, fingir que gosta dela. E eu vou fingir? Eu não sei

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fingir, entendeu? Por isso que eles não gostam da gente, porque a gente é sincera... Eles falam que os brasileiros falam na cara. Eles não, falam mentira, fingem... Eu acho que tem que falar a verdade mesmo que ela machuque... A gente foi criada assim no Brasil, não é para mentir, se é verdade é para falar, entendeu como é?”

Maria Abdo Kadri (Rede III- 2ª Geração)

Na medida em que são diferentes, a preferência é buscar a convivência entre os iguais, no mesmo grupo, entre aqueles que têm a “mesma cabeça”, “uma cabeça aberta”, que “pensam igual”, que “pensam como eu, falam como eu”, que “gostam de você pelo que você é e não pelo que você tem”. As amizades são “poucas” e “apenas com brasileiros”, mas são seletas, “sinceras e verdadeiras”, “autênticas, sem interesses”, primando pela “confiança e lealdade” e por ficar “mais à vontade”. Quanto aos libaneses, “não se pode confiar”, “totalmente”, “cem por cento”, porque não são “amigos de verdade”, não são como “os brasileiros”, “não dá para conviver”, pois “te interpretam mal”:

“Até criar amizades aqui é uma coisa complicada. Olhe, eu tenho uma amiga, que é minha vizinha, uma pessoa muito boa, mas não é igual a uma amiga brasileira. Amiga aqui não dá para você conversar, confiar totalmente, tem diferença mesmo. Eu tento criar um círculo de amizades, converso com todo mundo, mas não é a mesma coisa, nada é igual a ter uma amiga brasileira... O pensamento é diferente, e não sou só eu que digo, então a gente procura quem pensa igual a gente...”

Maria da Penha Alves (Rede IV- Brasileiras não descendentes) Cotidiano e Diferenças

O modo de vestir também é apontado como experiência cotidiana que provoca estranhamento, que marca as diferenças e leva à necessidade de adaptação. Certeau afirma que a organização da vida cotidiana se articula em dimensões fundamentais relacionadas ao comportamento, em relação ao vestuário, saudações, alimentação, ritmos de andar, presentes no espaço público.

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Para os descendentes, essa dificuldade já é previamente conhecida ou já era uma exigência anterior dos pais na formação dessa geração durante o período emigratório, portanto, uma vez no Líbano, essa questão não causa surpresas, o que não significa que o conflito não exista ou que também não seja necessária a adequação:

“Eu procurei me adaptar no que pude ao modo de vida daqui, já mudei muita coisa para evitar problemas...

Não foi meu marido que me impôs isso, eu achei melhor mudar e andar como todo mundo que está ao meu redor, não queria ser a atração da cidade. Quero ser uma pessoa como todo mundo, não quero ser apontada na rua, não quero que meu marido sinta vergonha de mim... Então tive que mudar e passar a viver como eles vivem aqui. São essas coisas pequeninhas do dia-a-dia que você tem que aprender como levar, para sua vida ficar mais fácil.”

Iman Houssein Abou Jokh (Rede III- 2ª Geração)

Para as mulheres não descendentes trata-se, de fato, de aceitar e assumir uma nova forma de vestir, adequando-se ao ambiente:

“Tive que aprender a viver do jeito deles aqui, em relação a tudo, inclusive em questão de roupas. Lá no Brasil eu usava roupas de alcinha, regatas, bermudas, porque eu era jovem e tinha as pernas bonitas... Meu marido não falava nada, não se importava, mas quando a gente ia mudar para cá ele me avisou que eu iria me vestir do jeito que as irmãs dele se vestiam...

Aí eu cheguei aqui não usei mais bermudas e aposentei as regatas... Agora já não gosto mais nem de mangas curtas, só uso de mangas compridas direto. Não sei por que, mas não me sinto bem, chega uma idade que você não gosta mais, acha que fica feia, que não está adequado. Lá no Brasil é diferente, a mulher fica velha, usa regata, de alça, não está nem aí... Para mim isso não serve mais, eu não quero que eles falem: „olha aquela brasileira, olha o que ela está usando...‟ Eu gosto de usar roupa bonita mas não que seja escandalosa, porque cada moda tem sua idade...”

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Os jovens tanto do sexo feminino como do sexo masculino, e mesmo homens adultos, também enfrentam essa dificuldade, mas se esforçam para manter hábitos trazidos do Brasil em relação ao modo de vestir, considerados inadequados para os padrões da comunidade (que valoriza o uso de “calça e camisa de manga comprida”, “roupa larga”, “mais formal”, “bem arrumada”, “toda chique”, “sapato”, “salto alto”), como o uso de “bermuda”, “shorts”, “saia curta”, “camisetas regatas”, “calça mais justa”, “blusinha coladas”, “mais esporte”, “sem camiseta”, “chinelo”, “tênis”. Para manter esse modo de vestir muitas vezes é necessário enfrentar o “estranhamento”, o “falatório”, “não ligar”, e ser visto como “louco, xarope”:

“Uma outra coisa que foi um choque para a gente se adaptar foi a questão da roupa, do estilo, do jeito de ser. A gente chegou do Brasil com aquele jeito descontraído, no verão de quase quarenta graus usava chinelo, shorts, sem camiseta, que é normal... Nossa! Todo mundo falava que a gente andava pelado. Pe-la-do!

E quando eu resolvi deixar o cabelo crescer, então, foram comentários de todos os lados... Meu pai também não aceitava, porque ficava todo mundo comentando do meu cabelo, que era absurdo, que isso, que aquilo... Aqui todo mundo dá palpite, quer controlar sua vida, decidir como você deve se comportar, entendeu? Aí eu pensei: vou ter que andar como eles querem? Segurei a onda, mantive meu cabelo assim comprido, falaram, falaram e depois foram se acostumando. Se você não se impõe eles tomam conta da sua vida facilmente.”

Salman Ali Kadri (Rede III- 3ª Geração)

As práticas cotidianas também se evidenciam na questão da alimentação. Certeau (1997: 211-218) afirma que as “práticas culinárias se situam no mais elementar da vida cotidiana, no nível mais necessário e mais desprezado”, cabendo à mulher papel fundamental nestas “artes de nutrir”, na “preparação da comida no lar”. No invisível das práticas cotidianas, alimentar, nutrir, cozinhar é atribuição feminina, faz parte de suas tarefas cotidianas e remete a um mundo maternal com cheiros e sabores de infância.

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A alimentação é um dos principais fatores de estranhamento, seja em questão dos ingredientes (“aprendi a cozinhar a comida árabe porque era mais fácil encontrar as coisas”), da forma de cozinhar (“estranharam porque não coloquei o macarrão cabelo de anjo, que é o jeito de preparar o arroz aqui”) ou ainda de se compartilhar o momento da refeição (“a comida era feita para todo mundo”). É necessário aprender (com a sogra, com a cunhada, com a vizinha ou sozinha) a cozinhar (“todos os tipos de comida árabe”), acostumar aos novos sabores (“tive que comer a comida deles”), ainda que não se queira (“não queria comer a comida deles”).

Entre recusar e aceitar as novas práticas cotidianas na tarefa de alimentar e nutrir, a mediação, “um pouco daqui, um pouco de lá”, não importa qual parte seja:

“Em relação à comida a gente mantém um pouco de lá, nós não conseguimos nos adaptar a toda alimentação daqui, então comemos muito arroz, feijão, e bife, que é bem do costume brasileiro. Já o café da manhã é o típico daqui, o pão árabe, coalhada, azeitona, essas coisas, até o pão francês que eu tanto adorava já não como muito “

Soraia Sami Kadri (Rede II- 2ª Geração)

“Tem coisa que eu gosto mais do lado brasileiro, principalmente na questão da comida. Os árabes de manhã comem todas aquelas comidas, eu não, eu puxo pelo lado brasileiro, pela manhã é o café-com-leite e pão com manteiga, no almoço não pode faltar o arroz e feijão... Praticamente, eu só faço comida brasileira, é o que se come aqui em casa.‟

Vanda Luís (Rede IV- Brasileiras não descendentes)

Explicando as diferenças

A diferença é evidente, mas como explicá-las? Para os que retornaram, sobretudo para os membros da segunda e terceira geração, as diferenças são entendidas como decorrentes de uma mentalidade restrita e atrasada do povo libanês, de costumes arraigados e ultrapassados, que nunca saíram de seus lugares e, portanto, desconhecem o mundo de fora.

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Os que vieram de foram, sobretudo os brasileiros, se vêem como de mentalidade mais aberta e avançada, pois vieram de outro lugar, respiraram outros ares, partilharam de outra cultura e conviveram com outros valores, por isso “são muito melhores que os libaneses”, “são mais avançados”, “conhecem mais o outro lado”, “são mais modernos”. “Vir de fora”, “vir de outro país”, “ter vivido em outro lugar”, “quem saiu e conheceu outras culturas” está em vantagem em relação àqueles que “nunca saíram do lugar” e que deveriam “ir um dia para o Brasil” para conhecer e entender outros modos de vida, para “abrir a cabeça”. Os brasileiros estão em condição de superioridade até mesmo em relação àqueles que também vieram de fora, de outros países de emigração, pois são “mais educados, sabem falar obrigado, dá licença, por favor,” adaptam-se melhor que os demais grupos, aceitam e convivem com as diferenças e adversidades e permanecem no país:

“O povo daqui é careta, porque eles nunca saíram desse lugar, não conhecem o mundo lá fora, não sabem como os outros vivem, tem que ir para fora para ver como é... O mundo não é o Líbano, mas eles não sabem disso, ou não querem saber...

Por isso que eu prefiro manter minhas amizades mais com brasileiros porque é um povo simples, humilde, generoso, autêntico, sentimental, que não fica o tempo todo te julgando, escuta e te ajuda. Os árabes não são amigos de verdade, eles brigam e daqui meia hora eles estão bem, uma hora eles falam bem de você, daqui a pouco já estão falando mal, uma hora eles gostam e na outra já não gostam, e assim vai...

Mesmo assim, eu acho que ser brasileira no Líbano é ser privilegiada, porque eles te tratam de modo mais interessante que uma pessoa daqui, eles gostam de bater mais papo do que com uma pessoa daqui, porque o brasileiro leva tudo na brincadeira, tem cabeça mais aberta, e quem gosta disso prefere uma brasileira... As brasileiras, que não são filhas de árabes como eu, também se adaptam melhor, rezam, jejuam, usam lenço, aprendem os costumes. As mulheres de outros países, como as venezuelanas, não conseguem viver aqui, vão embora. As brasileiras ficam e não querem mais voltar ao Brasil.”

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Entretanto é necessário conviver com o outro, aceitá-lo e ser aceito também e, “quem vem de fora”, “quem está vivendo no país dele”, é que deve se adequar, se adaptar, se acostumar, procurando entender os costumes, o modo de ser, de agir e de pensar, agindo de forma “aberta”, “correta”, “discreta”, “anônima”, “chamando pouca atenção”, “sem dar motivos”:

“No começo é muito difícil para se acostumar com essas coisas, com o jeito das pessoas, com o pensamento deles... Mas rapidinho a gente fica sabendo o que tem que fazer e o que não tem que fazer, como deve fazer e como não se deve fazer... Os dois primeiros anos foram muito difíceis para a gente acostumar, mas não tem jeito, é preciso se acostumar com o modo de vida deles, se você quer ter um pouco de sossego, viu?”

Ahmad Abdo Latif Ahmad (Rede III- 2ª Geração)

Para viver entre os libaneses e com os libaneses a constatação a que se chega é que é necessário viver como os libaneses. Adaptar-se como forma e possibilidade de aceitação e inserção à comunidade, superando as barreiras dos preconceitos e das diferenças.

Uma identidade possível?

Vivendo no Líbano é necessário assumir ou construir uma identidade, um processo tão conflituoso quanto necessário. Sayad (2000:19) avalia que “esses homens que retornaram da imigração, homens do entre-dois– lugares, entre-dois-tempos, entre-sociedades, etc.– são também e, principalmente, homens entre duas-maneiras-de ser ou entre-duas-culturas”.

A identidade é conflito e é busca; é necessidade e é incerteza:

“...porque você já não é mais árabe, você não é brasileira, você não é venezuelana. Você tem um pouquinho de cada coisa, mas não tem nada por completo de nenhuma parte. Tudo passa a ser questionável...”

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“...então parece que você não tem uma identidade ou uma nacionalidade, que não está no lugar certo.“

Iman Hussein Abou Jokh (Rede II- 2ª Geração)

“...nós ficamos sem identidade ou buscando uma identidade o tempo todo.” Widad Ismail Mohamad El Kaderi (Rede II- 2ª Geração)

Sentir-se “dividido”, “um pouco de cada”, “brasileiro e árabe”, “mais árabe que brasileiro”, “parte daqui e parte de lá”, “pertencendo a esse país”, é sentimento compartilhado. Há crise de identidade, independentemente de geração, gênero, idade, nacionalidade ou ascendência. Viver entre os libaneses, como eles, aceitar costumes e repetir os mesmos padrões de comportamento foi entendido como uma forma de pertencimento ao grupo local e fez com que a pessoa se sentisse como parte do grupo no qual está inserida. Para Kristeva (1994:89), essa divisão deve ser entendida como “divisão passional do estrangeiro, considerando a sua divisão entre dois mundos menos como uma divisão entre dois países do que entre duas ordens psíquicas no interior de sua própria unidade possível”.

A definição de uma identidade, ou de “identidades possíveis”, como alerta Hall (2005:13-20), passa pela convivência com o grupo local, com o modo de viver, com o que se aprende da cultura local e o que se preserva da cultura original, num “jogo de identidades” como postula o mesmo autor. Para Hall ainda, “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um „eu‟ coerente”:

“Eu me sinto aqui tanto brasileiro quanto árabe, sou os dois... Durante o dia trabalhando, eu me sinto um autêntico árabe, mas à noite encontro com os amigos, bato papo, discuto futebol, jogo baralho, aí eu me sinto totalmente brasileiro. Em casa eu também me sinto brasileiro, o que a gente mantém em casa são modos brasileiros, todos são assim.”

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O que igualmente se pode inferir nessa definição de identidade é que se trata de um processo conflituoso, não resolvido, no qual reforçar com veemência a identidade brasileira revela tanto a necessidade de permanência e pertencimento à comunidade de origem como também demonstra o conflito de não ser aceito plenamente à comunidade na qual se está inserido. “Eles definem o que você é”, “eles nos identificam como brasileiros”, eles nos vêem como brasileiros”, “eles nos tratam como brasileiros”, “eles acham que nós somos brasileiros, “eles nos vêem como estrangeiros”, “eles nos diferenciam”, para “eles nós somos brasileiros”. A definição de uma identidade passa pelo grupo do “nós”, sem dúvida, mas o “nós” se define por eles e a partir deles. Ainda que se sinta ou se queira sentir parte da comunidade local, são eles que permitiram essa noção de pertencimento ou não.

Monteiro (1994) considera que a identidade é um processo que resulta da relação e da identificação com o outro, mas que não depende apenas da vontade e da maneira que se pretende afirmar, mas também da reação e da aceitação do outro a essa afirmação. É nessa complexidade que se trata a reinserção e inserção do migrante/retornado à sua pátria de origem, traduzida num conflituoso e contínuo processo de identificação e identidade.

Referências Bibliográficas

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: morar, cozinhar. vol. 2. Petrópolis, Vozes, 1997.

GEERTZ, Cliford. A Interpretação das culturas. Rio Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. RJ: DP & A, 2005, 10ª ed., pp. 13-20

HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. SP, Paz e Terra, 2004, 7ª ed. KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. RJ: Rocco, 1994.

MONTEIRO, Paulo Filipe. Emigração: o eterno mito do retorno. Oeiras: Celta, 1994. OSMAN, Samira Adel. Caminhos da Imigração Árabe em São Paulo: história oral de vida familiar. FFLCH- USP, Dissertação de Mestrado, 1998, 2 vols.

___________________. Entre o Líbano e o Brasil: dinâmica migratória e história oral de vida. FFLCH-USP, Tese de Doutorado, 2006, 2 vols.

SAYAD, Abdelmalek, A imigração ou os paradoxos da alteridade. SP, EDUSP, 1998. _______________. “O retorno: elemento constitutivo da condição de imigrante.

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Samira Adel Osman (sa.osman@uol.com.br; samira.aosman@sp.senac.br) R. Mestras Pias Filippini, 342- Freguesia do Ó

Cep: 02736-010 São Paulo-SP

1 Este artigo baseia-se em minha pesquisa para a elaboração da tese de doutorado, realizada na região do

Vale do Bekaa, no Líbano, com a comunidade líbano-brasileira por meio de entrevistas de História Oral de Vida., durante o período de dezembro de 2003 a fevereiro de 2004.

2 Os trechos das entrevistas identificadas como Rede I estão compostos por imigrantes de 1ª geração;

Rede II por mulheres descendentes de segunda geração; Rede III jovens descendentes de segunda e terceira geração; Rede IV mulheres brasileiras não descendentes.

Referências

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