Acta Radiológica Portuguesa, Vol.XVI, nº 63, pág. 27-34, Jul.-Set., 2004
Recebido a 12/11/2004 Aceite a 24/11/2004
Defecografia: Indicações Clínicas, Metodologia e
Alterações Radiológicas em 164 Doentes
Defecography: Indications, Methodology and Radiologic
Findings in 164 Patients
Pedro Belo Oliveira, Henrique Rodrigues, Pedro Belo Soares, José Ilharco
Hospitais da Universidade de Coimbra, Clínica Universitária de Imagiologia Directora: Dra Marta Monteiro Ferreira
Resumo
Objectivos - Descrição das indicações e metodologia da defecografia e determinação da incidência das diferentes alterações diagnosticadas na experiência do nosso serviço.
Material e métodos – Estudo retrospectivo dos exames de 164 doentes (148 mulheres e 16 homens; com uma média de idades de 54 anos) efectuados entre Janeiro de 2000 e Setembro de 2003.
Resultados - Foram diagnosticados 104 casos de rectocelo, 65 casos de disquinésia do músculo puborectalis, 57 casos de insuficiência do pavimento pélvico, 39 de invaginação da parede rectal e 20 de incontinência anal.
Conclusão - A defecografia é uma técnica de execução fácil e rápida, sendo importante no estudo das anomalias da defecação, com boa acuidade diagnóstica para a detecção de rectocelo, invaginação e prolapso rectal e disquinésia do músculo puborectalis, permitindo a correcta orientaçaõ para a decisão terapêutica (cirúrgica ou médica).
Palavras-chave
Defecografia; Rectocelo; Patologia Anorectal.
Abstract
Purpose - Radiographic imaging of dynamic changes within the pelvic cavity and rectum during evacuation has been recognized as a valuable method of assessment of pelvic floor disorders. However, diagnostic procedures required are available at a few centres, and many radiologists are not used to this morphodynamic technique. The aim of this work is to introduce defecography or evacuation proctography to a more general readership. We present the basic anatomic and pathological knowledge required for an accurate assessment on an evacuation proctographic study.
Methods and Materials - 164 patients (mean age: 54 years; age range: 13-86 years) with clinical symptoms of obstructed defecation underwent defecography.
Results - Rectocele was observed in 104 of the 164 patients. Sixty five of these patients had non-relaxing puborectalis syndrome. Pelvic floor insufficiency was observed in 57 patients and intusception was detected in 39 patients. There were 20 cases of anal incontinence.
Conclusion - Defecography is performed to investigate voiding problems like tenesmus, constipation, blood or mucous discharge, incomplete evacuation, or perineal pain. It is an easy and sensible method to evaluate pelvic floor disorders, contributing to medical or surgical planning.
Key-words
Defecography; Rectocele; Anorectal Pathology.
Introdução
A defecografia documenta o acto voluntário da evacuação rectal. O interesse na imagiologia das alterações dinâmicas do pavimento pélvico durante a evacuação teve o seu inicio com Lennart Walldén em 1952 [1]. Em 1953 Ekengren e
Snellman publicaram um artigo denominado aspectos Roentgenológicos na obstrucção rectal mecânica [2]. Burhenne em 1964 descreve a primeira técnica cineradiográfica com o doente em decúbito dorsal na mesa de fluoroscopia. Em 1968 Kerremans descreve a técnica de defecografia com o doente sentado [3]. Posteriormente, os artigos de Mahieu e Ekberg descrevem a técnica e as alterações radiológicas reavivando o interesse desta técnica.
Hoje a defecografia é um método de diagnóstico considerado da maior importância pela maior parte dos cirurgiões colo-rectais havendo vários artigos publicados nesta área. Trata-se de um método que permite o estudo anatómico e dinâmico do acto da defecação. Este método fornece informação sobre a função ano-rectal e do pavimento pélvico e permite a visualização directa de possíveis alterações.
Apesar da sua aparente simplicidade, esta técnica é multifacetada tendo-se nas últimas três décadas tentado uniformizar o procedimento básico [4,5]. As indicações incluem: obstrução defecatória, tenesmo e falsas vontades, dor perineal, dejecções frequentes não diarreicas, dejecções mucosas ou hemáticas não associadas a pólipos ou neoplasias, sensação de esvaziamento rectal incompleto. O objectivo do nosso estudo foi avaliar a incidência das diferentes alterações diagnosticadas por esta técnica assim como a descrição da metodologia e critérios de interpretação que devem ser rigorosamente cumpridos.
Material e Métodos
Foi efectuado um estudo retrospectivo de 164 doentes referenciados pelo cirurgião colo-rectal para a realização de Defecografia entre Janeiro de 2000 e 15 de Setembro de 2003.
Destes, 148 eram do sexo feminino e os restantes do sexo masculino. A média de idades foi de aproximadamente 54 anos (mínimo de 13 anos e máximo de 86 anos).
Todos os exames foram efectuados num aparelho Shimadzu
Sonialvision 100 2S-100I ® com a seguinte técnica: a)
recomenda-se que o doente evacue e urine antes do exame para uniformização da técnica e interpretação, não sendo necessária qualquer outra preparação; b) o contraste consiste numa mistura de sulfato de bário (100% p/v), água e farinha láctea formando uma pasta espessa, de consistência semelhante à das fezes; c) para o diagnóstico de eventual enterocelos era o doente ingere contraste baritado 45 minutos antes do exame para opacificação intestinal; d) preenche-se retrogradamente o recto com contraste até à junção recto-sigmoideia - 120 a 200ml - e o introdutor anal era retirado mantendo a injecção do contraste para preencher o canal anal(Fig. 1); e) o doente é sentado num suporte (“câmaras de ar” sobrepostas preenchidas com água) sendo a sua privacidade garantida pela interposição de um biombo entre a consola de trabalho e o doente(Fig. 2). f) o estudo é efectuado na incidência de perfil, sendo obtidas imagens nas fases de repouso, esforço de contracção, defecação (série) e pós-evacuação(Fig. 3).
As referências usadas e as medidas foram as seguintes:
Ângulo ano-rectal
O ângulo ano-rectal consiste no ângulo formado entre a tangente à parede posterior da ampola rectal e o eixo do canal anal e pode variar em repouso entre 60º a 105º (valor médio de 92º). Durante a evacuação este ângulo deve abrir para um valor médio de 137º [6,7](Fig. 4).
Linha pubo-coccígea
Trata-se da linha que une a extremidade inferior do cóccis ao bordo superior da sínfise púbica(Fig. 5).
Posição do pavimento pélvico
A posição do pavimento pélvico é dada pela distância entre a linha pubo-coccígea e a juncão ano-rectal. Em repouso esta distância não deve ser superior a 8cm. Durante a
Fig 1 – Introdutor anal e produto de contraste
defecação a variação em relação ao repouso não deve ser superior a 3,5cm(Figs. 6, 7).
Diâmetro do canal anal
Durante a defecação o diâmetro do canal anal deve ser menor ou igual a 2cm. Em repouso o canal anal deve ser quase virtual sem perda de contraste(Fig. 8).
Fig 3 – Estudo efectuado em incidência de perfil
Fig 4 – Ângulo ano-rectal
Fig 5 – Linha pubo-coccígea
Fig 6 – Posição do pavimento pélvico em repouso normal (<8cm)
1 - O defecograma é considerado normal quando em repouso o recto se encontra cheio de contraste e canal anal encerrado, mas opacificado(Fig. 9). 2 - No esforço de contracção deve haver diminuição
do ângulo anorectal(Fig. 10).
3 - Durante a defecação deve-se verificar o seguinte: a) aumento progressivo do ângulo ano-rectal; b) abertura do canal anal; c) descida moderada do pavimento pélvico (< 3,5cm)(Fig. 11).
4 - Nos filmes pós-evacuação deve-se verificar o esvaziamento completo ou quase da ampola rectal(Fig. 12).
Fig 8 – Diâmetro normal do canal anal
Fig 9 – Filme em repouso, com marcação do ângulo ano-rectal e da posição do pavimento pélvivo
Fig 10 – Filme no esforço de contracção – diminuição do ângulo ano-rectal
Resultados
A patologia mais frequentemente diagnosticada foi o rectocelo (104 casos) e a disquinésia do músculo puborectalis (65 casos). A insuficiência do pavimento pélvico foi diagnosticada em 57 casos. Na nossa série, 39 casos apresentavam invaginação da parede rectal e 20 doentes tinham incontinência anal (Quadro 1).
Discussão
A disfunção anorectal e a insuficiênia do pavimento pélvico têm vindo a ser responsabilizados com frequência crescente
Fig 11 – Filme na defecação mostram normal abertura do ângulo ano-rectal para 137,9º
como causa de sintomas de obstrucção defecatória, estando ainda pouco estudados os mecanismos patofisiológicos envolvidos. A defecografia surge como uma técnica minimamente invasiva, de fácil e rápida execução, com baixo custo e boa tolerância (suportada por todos os doentes sem complicações), permitindo uma avaliação fisiológica das disfunções da evacuação e uma adequada e importante distinção/orientação terapêutica (cirúrgica ou médica).
A maioria dos nossos doentes eram do sexo feminino e a patologia mais frequente foi o rectocelo seguido da disquinésia do músculo puborectalis, da insuficiência pavimento pélvico e finalmente da invaginação da parede rectal.
As anomalias da defecação diagnosticadas pela defecografia são: rectocelo; invaginação e prolapso rectais; disquinésia do músculo pubo-rectal; incontinência einsuficiência do pavimento pélvico.
O rectocelo consiste num abaulamento progressivo da parede anterior do recto onde pode ficar retido parte do produto de contraste no final da defecação. É considerado
Fig 12 – Filme pós-evacuação
Quadro 1 – distribuição das frequências da patologia
normal um abaulamento anterior da parede do recto até 2cm. Um rectocelo é considerado volumoso quando a protrusão rectal anterior é superior a 4cm, sendo significativa uma retenção de contraste no rectocelo superior a 10%, após a evacuação [9,10](Figs. 13, 14, 15, 16).
Falamos numa invaginação simples da parede rectal quando observamos a invaginação de uma prega de mucosa com mais de 3mm de espessura. A invaginação é intra-anal quando há associadamente alargamento do cintra-anal intra-anal. O prolapso rectal externo inicia-se como uma invaginação rectal que progride até à exteriorização [11](Figs. 17, 18).
Fig 13 – Rectocelo anterior (seta)
A disquinésia do músculo puborectalis consiste na hipertonia constante ou intermitente do músculo pubo-rectalis durante o esforço de evacuação. Na defecografia observa-se: a) em repouso há acentuação da impressão posterior do músculo puborectal; b) durante a defecação observamos deficiente abertura ou diminuição do ângulo ano-rectal [12](Fig. 19).
Radiologicamente a incontinência manifesta-se por perda involuntária do contraste baritado (durante o repouso), por aumentto do ângulo ano-rectal em repouso, por relaxamento anormal do músculo puborectal ou do esfincter anal com abertura do canal anal(Fig. 20).
Fig 15 – Volumoso rectocalo anterior >4cm
Fig 16 – Significativa retenção do produto de contraste no rectocelo após a evacuação
Fig 17 – invaginação da parede posterior do recto (seta)
Fig 18 – Prolapso rectal
A síndrome da insuficiência do pavimento pélvico pode manifestar-se de duas maneiras: quando em repouso a distância entre a linha pubo-coccígea e a junção ano-rectal é maior que 8cm ou quando no esforço da defecação a distância entre a posição da junção ano-rectal em repouso e durante a evacuação for maior que 3,5cm [13,14](Figs. 21, 22)
Os exames foram realizados com a técnica digital que permite uma melhor referenciação das estruturas anatómicas através da modificação do brilho e contraste, efectuar medidas e medir ângulos directamente na imagem adquirida. A possibilidade de adquirir uma sequência cine de uma ou mais imagens por segundo possibilita uma avaliação da mecânica defecatória, detectando eventuais alterações transitórias, apenas observáveis retros-pectivamente com a passagem das imagens.
Recentemente vários autores têm vindo a realizar a defecografia por ressonância magnética que, apesar do
Fig 20 – Incontinência anal com perda involutária de contraste e aumento do ângulo ano-rectal em repouso
Fig 21 – Posição do pavimento pélvico em repouso
Fig 22 – Descida do pavimento pélvico durante a evacuação
estudo ser feito em decúbito dorsal e sem preenchimento rectal (logo menos fisiológica), trata-se de uma técnica não invasiva, rápida, simples e sem recurso a radiação. Não menos importante a ressonância magnética fornece imagens de elevada qualidade que permitem uma adequada avaliação de todos os componenetes do pavimento pélvico, incluindo os tecidos moles, não sendo este facto possível com a defecografia convencional.
Conclusões
Os doentes com distúrbios da defecação têm frequentemente sinais inespecificos e mal compreendidos. Além da história clínica e exame fisico, são também necessários exames fisiológicos e radiológicos para se chegar a um diagnóstico correcto. A defecofrafia faz parte destes exames, sendo uma técnica importante no estudo das anomalias da defecação, com boa acuidade diagnóstica no caso de rectocelo, invaginação e prolapso rectal e disquinésia do músculo puborectalis.
No presente estudo verificamos que o rectocelo seguido da disquinésia do músculo puborectalis, da insuficiência pavimento pélvico e finalmente da invaginação da parede rectal são as patologias mais frequentemente diagnosticadas com esta técnica.
Para assegurar uma avaliação completa e padronizada adoptámos um protocolo rigoroso e reproduzível. Para retirar desta método todas as suas potencialidades deve haver uma cooperação estrita entre o Radiologista e o Clínico.
A experiência do Radiologista é determinante para a execução do exame e interpretação dos resultados dada a grande amplitude dos valores considerados normais, a variação inter-observador nas medições defecográficas e a correlação com a clínica.
Referências
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Correspondência
Pedro Nuno Belo Oliveira Serviço de Imagiologia
Hospitais da Universidade de Coimbra Praceta Prof. Mota Pinto