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AS CAIXEIRAS DO DIVINO DO MARANHÃO ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA DE UMA COMUNIDADE NO RIO DE JANEIRO

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II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013

AS CAIXEIRAS DO DIVINO DO MARANHÃO – ESTRATÉGIAS DE

SOBREVIVÊNCIA DE UMA COMUNIDADE NO RIO DE JANEIRO

ROBERTO, FRANK WILSON

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Programa de Pós-Graduação em Memória Social - PPGMS

Rua Campinas 84, Grajaú, Rio de Janeiro, Cep: 20561-250 frankwknarf@gmail.com

RESUMO

Este trabalho aborda os aspectos relacionados à manifestação cultural das caixeiras do Divino Espírito Santo, e as contribuições que os discursos sobre memória social trazem para uma análise aprofundada do tema. As caixeiras vêm preservando suas tradições através da realização contínua de suas festas pela iniciativa individual das migrantes maranhenses residentes em três locais diferentes do Rio de Janeiro: Seropédica, Bairro da Posse (Nova Iguaçu) e Ilha do Governador. Deslocadas de seu espaço original, distanciadas das motivações sociais e ambientais que sustentam a preservação desta tradição, mantêm ativos os festejos do Divino, próximos das características originais da manifestação maranhense, tendo como suporte a fé e a memória de suas mestras. Essa é uma pesquisa em andamento e pretende investigar de que maneira vem acontecendo a preservação dessa manifestação tradicional e qual é o equilíbrio de forças internas (memória, empreendedorismo, receptividade e iniciativa dos migrantes) e externas (adesão, aprendizagem e ações políticas) que reconfiguram essa comunidade em uma neocomunidade (Lifschitz, 2011). Essa proposta realiza-se através de procedimentos metodológicos diferentes e nesta etapa, estão sendo investigadas através de revisão bibliográfica as contribuições dos discursos sobre memória social para a análise do objeto.

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INTRODUÇÃO

Deslocadas de seu espaço original, distanciadas das motivações sociais e ambientais que sustentam a preservação desta tradição, as caixeiras, representadas por três grupos que, cada qual com sua história, mantêm ativos no Rio de Janeiro os festejos do Divino Espírito Santo próximo das características originais da manifestação maranhense, tendo como suporte a fé e a memória de suas mestras. A devoção ao Divino Espírito Santo remonta a tradição católica herdada dos portugueses. As comemorações relativas ao Divino espalharam-se pelo Brasil, junto com a fé católica e apresentam muitas variações.

Este artigo tem por objetivo analisar os discursos sobre memória e suas relações com o espaço e enquanto patrimônio cultural brasileiro a partir da proposta de pesquisa sobre a comunidade das Caixeiras do Divino Espírito Santo, residentes em pontos diferentes do Rio de Janeiro. Este grupo constitui uma unidade identitária de maranhenses que mantém sua tradição religiosa distante de seu local de origem. Buscar-se-á analisar os elementos da tradição onde os estudos sobre memória social podem elucidar os temas que compõem as questões centrais da pesquisa.

Ao propormos a presente pesquisa, temos em vista a importância do fato de uma comunidade ser reconstruída através do poder da memória individual de alguns indivíduos que se coletivizam como forma de resistência e de como conseguem, ou pelo menos tentam, levar adiante seus atos de fé através do estabelecimento de uma flexibilização com os elementos externos, renovando e ressignificando suas formas de manifestação cultural.

Neste caso, a tradição ao ser reconstruída e reestabelecendo-se agora como uma nova tradição ou como uma tradição deslocada, reconstitui uma comunidade, não apenas por maranhenses, mas recorrendo aos elementos externos que passam a se agregar a partir de diversas ações das suas mestras.

Esse aspecto é de extrema relevância à pesquisa, pois estabelece um ponto de corte que o conceito de neocomunidade permitirá analisar. Ao tratar do conceito, Lifschitz (2011) destaca que estas “se caracterizam pelo fato de que os de “fora” participam ativamente na

reconstrução de espaços e práticas culturais, intervindo ativamente na infraestrutura material

e simbólica das comunidades.” (p.186)

Qual é o impacto dessa interferência na comunidade? Como se dá a inserção desses elementos externos? Como se caracterizam esses elementos? De que forma os discursos sobre memória podem contribuir para iluminar essas questões?

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Para a elaboração desse artigo, recorreremos a alguns autores que abordam a questão da Memória (Pollak, Huyssen, Halbwachs, Nora), das questões do patrimônio (Gonçalves) e de uma análise do objeto enquanto fenômeno da cultura popular (Gilroy).

A tradição do Divino Espírito Santo – memória e reconstrução

No Rio de Janeiro, reproduzindo a tradição maranhense, o culto ao Divino se distingue das demais formas existentes, por ser celebrado por mulheres que conduzem ritualmente a festa, as Caixeiras do Divino. Estas migraram com suas famílias do Maranhão em épocas distintas e aqui, movidas pela força de uma memória ligada ao aspecto ancestral de sua cultura, tornaram-se mantenedoras desta tradição, dando continuidade ao conhecimento religioso, poético e musical que compõe o culto e sua forma de transmissão. Analisando esse aspecto, Nora afirma que “(...) menos a memória é vivida coletivamente, mais ela tem

necessidade de homens particulares que fazem de si mesmos homens-memória”. (Nora,

1993, p. 18)

Em uma análise dos aspectos relacionados à manifestação enquanto patrimônio, Gonçalves () reafirma que “cada nação, grupo, família, enfim cada instituição construiria no

presente o seu patrimônio, com o propósito de articular e expressar sua identidade e sua memória”. (Gonçalves, 2007, p. 214)

O símbolo do Divino Espírito Santo é a pomba branca alusiva a terceira pessoa da Santíssima Trindade, cultuada nas missas católicas e nos cultos pentecostais e pelos devotos nos terreiros de Tambor-de-Mina, religiosidade afro-maranhense que se baseia na crença em voduns, orixás, caboclos e encantados, bem como nos santos católicos em meio a toques de caixas e cânticos.

A Festa do Divino é (...) realizada na Casa das Minas e na Casa de Nagô no domingo de Pentecoste e, (…) na Casa Fanti-Ashanti (…) é assumida por Pai Euclides (festeiro) com apoio de seu caboclo Corre-Beirada (seu ‘farrista’ de Cura) e a colaboração de várias pessoas e encantados ligados à casa e as crianças, que assumem as funções de Imperador e Imperatriz, Mordomo e Mordoma-Mores, Mordomo e Mordoma-Régios e das caixeiras do Divino Maranhense – mulheres que tocam caixa (bombo) por devoção em festas do Divino de vários terreiros (Ferreti, 95).

Em cada casa o ciclo tem duração de três dias, no primeiro dia acontece o levantamento do Mastro, onde um imenso tronco de árvore é enfeitado com frutas, folhas de eucalipto, bebidas e objetos que simbolizam tempos de colheita e muita fartura. Esta imagem símbolo do mastaréu como é concebido por elas, enfeita o terreiro até o findar do ciclo. No segundo dia, realiza-se uma missa para receber o Império que subirá na tribuna, tendo

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crianças nos papéis de Imperadores e Imperatrizes, Mordomos e Mordomas-Mores e Mordomos e Mordomas-Régios, representando a corte imperial com muita pompa e riqueza nos detalhes de suas indumentárias reais. No terceiro dia derruba-se o Mastro distribuindo os objetos simbólicos ali contidos e assim determinando os escolhidos para próximos padrinhos do Mastro para o ano seguinte.

Esse ato simbólico de fé é atribuído em agradecimento ao Espírito Santo pelos dons e as graças recebidas durante o ano anterior. A Festa é realizada com donativos e seu espírito é de promover um dia de muita fartura, abundância, compartilhando a comida e a bebida com todos que chegarem. Como grande parte das festas populares, as anfitriãs se revezam nas funções da cozinha e na recepção e hospitalidade aos convidados. Constata-se que o espírito cooperativo e solidário da festa a caracteriza com muita fartura de bebida e comida.

É constante a presença de outros grupos que compõem a rede de migrantes maranhenses que chegam para tocar o Bumba-meu-boi ou tambor de crioula - momento profano na festividade - agradando assim as entidades religiosas da casa. No que tange às regras de hospitalidade e condutas tanto para as visitas como para aqueles que as recebem. Os cicerones devem oferecer a seus hóspedes todas as refeições, bebidas e locais de repouso e pernoite, e, em alguns casos especiais, até mesmo prover-lhes os meios de transporte, não raramente dando lhes o dinheiro da passagem ou mandando buscá-los Já os visitantes têm por obrigação moral ajudar o festeiro ou pai -de- santo nos afazeres da festa, já que também se trata de uma obrigação ritual deles mesmos para com o Divino e demais entidades; ao passo que eles próprios também, ocasionalmente, poderão precisar desse tipo de apoio. Nesse ponto, percebe-se a incessante complementaridade entre “dádiva” e “contradádiva” entre esses personagens.

As Caixeiras são atores sociais imprescindíveis e fundamentais para a manutenção da festa pagando suas promessas e renovando a manifestação com o assentamento do império representado pelas crianças, num constante diálogo entre a tradição que se perpetua e a tradição que se renova, simbolizando a própria continuidade do ritual.

Percebe-se nesse contexto uma relação dinâmica onde o processo colonial estabeleceu uma via própria de relacionamento entre os elementos da tradição católica e cristã e o misticismo animista das tradições africanas. Convivem, nesse mesmo espaço, a força mística do terceiro elemento da santíssima trindade e as entidades mágicas ancestrais, reencarnadas na forma de caboclos, ou seja, o resultado da mestiçagem ou “crioulização” brasileira.

Ao olhar sobre o processo de encontro entre diferentes grupos étnicos através do mecanismo da colonização, Gilroy constrói uma rica análise do produto desse encontro,

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descartando a mestiçagem como uma lógica e adotando a “crioulização” como experimento onde, a priori, não são previstos os resultados. Ao correlacionar a experiência afrodescendente com a diáspora dos judeus, indica um caminho para se avaliar a condição de hibridismo da cultura brasileira afirmando que “o dinâmico trabalho de memória que é

estabelecido e moralizado na edificação da intercultura da diáspora construiu a coletividade e

legou tanto uma política como uma hermenêutica aos seus membros contemporâneos.”

(Gilroy, 2001, p. 17)

O culto ao Divino transcende a dimensão que os liga ao rito e constrói relações sociais através de uma irmandade de caixeiras que se reúnem nas datas da festividade para o Divino, no fortalecimento da tradição. Uma mesma motivação e memória as une e as distingue como grupo identitário, o que Nora acentua afirmando que “A memória emerge de um grupo que ela

une, o que quer dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quanto grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla, e desacelerada, coletiva, plural e individualizada.” (Nora,

1993, p.5)

Com base na teoria de Halbwachs, Santos afirma que:

O sentido de continuidade e permanência presente em um indivíduo ou grupo social ao longo do tempo depende tanto do que é lembrado, quanto o que é lembrado depende da identidade de quem lembra. Da mesma forma que a identidade, a memória também deixou de ser pensada como um atributo estritamente individual, passando a ser considerada como parte de um processo social em que aspectos da psique se encontram interligados a determinantes sociais. A memória deixou, portanto, de ser considerada como fenômeno individual, passando a elemento constitutivo do processo de construção de identidades coletivas. (Santos, 1998, p.1)

As três comunidades localizam-se em Seropédica, Nova Iguaçu e Ilha do Governador, cidades e bairros periféricos à cidade do Rio de Janeiro. Suas mestras contam histórias semelhantes que convergem para o fato de serem espiritualmente escolhidas e identificadas para reconstruírem sua tradição religiosa. Distantes de seu local de origem e de sua comunidade original, imersas em uma nova e estranha realidade cultural, muitas vezes refratária ao diverso, em especial quando se trata de aspectos religiosos, recorrem aos seus

rastros e resquícios de memória que se mantiveram silenciados por longo tempo para

reelaborarem as cantigas, trajes e toques de caixa que compõem parte do todo. Destacando esse aspecto, Nora observa que “a memória nas sociedades tradicionais estava incorporada

ao cotidiano dos indivíduos e grupos sociais pelas vivências das tradições e dos costumes, regulando e informando o futuro de indivíduos e coletividades”. (Nora, 1993, p.12).

Para Santos, a relação entre lembrança e esquecimento atrela-se á transformações na sociedade: “tradições são explicadas a partir de éticas e valores religiosos e seculares, e

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esquecimentos coletivos pelo processo de desumanização ocorrido na sociedade

burocrática.” (Santos, 1998, p. 144-145)

Já Huyssen levanta uma questão fundamental relacionada à condição da fragmentada sociedade contemporânea de lidar com aspectos peculiares de grupos específicos:

“As contrastantes e cada vez mais fragmentadas memórias políticas de grupos sociais e étnicos específicos permitem perguntar se ainda é possível, nos dias de hoje, a existência de memórias consensuais coletivas e, em caso negativo, se e de que forma a coesão grupal pode ser garantida sem ela.” (Huyssen, 2000, p.19)

Pela força de reconstrução, difusão e longevidade, que conduziu essa tradição até os dias de hoje, mesmo em condições adversas de espaço e tempo, constata-se que a manifestação está de tal forma impressa em seus participantes que o acesso a essa memória é de grande potencia e permite que aquela pequena chama se converta em brasa suficiente para espalhar-se e ser compartilhada, mesmo longe de sua origem. Uma motivação para essa mobilização vem a partir de uma memória associada aos aspectos da identidade. Santos reflete sobre a questão da tradição relacionada à memória que por sua vez pode reforçar e defender os laços identitários:

“Homens e mulheres, portanto, desprovidos de conhecimento e experiências do passado, se tornam incapazes de sentir, julgar e defender seus direitos. Nestas condições, seja tradição, memória ou traços do passado, estes são aspectos, que, de uma maneira ou de outra, representam uma defesa decisiva da humanidade na sua luta por autodeterminação e liberdade.” (Santos, 1998, p.141)

Gondar aborda essa questão também correlacionando a questão da memória com a identidade. Em uma análise ampla sobre as questões de lembrança e esquecimento, associa a ideia de identidade ao exercício do poder e alcança esse tema apoiando-se em Nietzsche. Analisa como um “instrumento de poder – o que implica admitir que não há poder político (que

não se reduz à dimensão do Estado) - sem controle de memória. Estaria abrangida aí a própria constituição do “eu” do que se torna possível dizer “meu orgulho”. Um mecanismo para a manutenção de uma imagem ou representação de si mesmo (...): identidade”. (Gondar,

2000, p.37)

Ao tratarmos de abordar os aspectos de uma memória calcada nas tradições de uma coletividade que remontam tempos imemoriais, onde a origem das coisas é sempre apontada para um tempo mais distante, observa-se que a relação entre o individuo e o grupo é de fato o que o constitui com integrante legítimo do mesmo. Santos colabora para esse debate afirmando que:

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“O sentido de continuidade e permanência presente em um indivíduo ou grupo social ao longo do tempo depende tanto do que é lembrado, quanto o que é lembrado depende da identidade de quem lembra. Da mesma forma que a identidade, a memória também deixou de ser pensada como um atributo estritamente individual, passando a ser considerada como parte de um processo social em que aspectos da psique se encontram interligados a determinantes sociais. A memória deixou, portanto, de ser considerada como fenômeno individual, passando a elemento constitutivo do processo de construção de identidades coletivas.” (idem, p.1)

Gonçalves, cujo trabalho aborda o patrimônio como objeto principal, contrapõe-se à afirmação destacando:

“(…) o fato de que o acesso que o patrimônio possibilita, por exemplo, ao passado não depende inteiramente de um trabalho consciente de construção no presente, mas, em parte, do acaso. Se por um lado construímos intencionalmente o passado, este, por sua vez, incontrolavelmente se insinua, à nossa inteira revelia, em nossas práticas e representações. Desse modo, o trabalho de construção de identidades e memórias coletivas não está evidentemente condenado ao sucesso. Ele poderá, de vários modos, não se realizar.” (p.215)

Ao buscar a relação com a memória social, encontramos em Halbwachs, em sua pioneira análise sobre a memória coletiva, uma estruturação básica apoiada no conceito de quadros de memória. Este seria constituído pelo “conjunto de representações estáveis e

dominantes que nos permite lembrar à vontade os acontecimentos essenciais de nosso

passado” (Halbwachs, 2006, p. 101).

Em uma analogia às reflexões de Pollak sobre memória silenciada, observa-se a condição de reavivamento da manifestação como um exemplo de memória que emerge a partir de dada motivação, não como um trauma, mas como um esquecimento forçado pela transculturação causada pela migração. Afinal, trata-se de uma manifestação religiosa que apresenta diversas peculiaridades que concorrem para um tratamento preconceituoso fora de seu contexto original. Dessa forma, “(…) a fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável

e o inconfessável, separa (...) uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária (…) desejam passar e impor.” (Pollak, 1989, p.8-9)

Uma das festas do Divino é realizada pela mestra D. Antônia, maranhense residente nesta cidade desde 1959. Em sua casa no bairro da Posse, em Nova Iguaçu, construiu o Centro de Tambor de Mina Abassá de Iansã e Obaluaiê, onde o ciclo do Divino Espírito Santo é realizado há mais de 30 anos, reunindo a comunidade de maranhenses residentes no Rio de Janeiro e outros adeptos, interessados nas tradições das Caixeiras do Divino. Essas tradições

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vêm sendo mantidas pela mestra que busca formar sucessores dentro e fora de sua família para que a herança se preserve. Em entrevista realizada em 2009, Dona Antônia revela que:

”Desde os sete anos de idade acompanhava minha mãe nas funções de caixeira. Mais tarde, já no Rio de Janeiro, depois que ela ficou doente, assumi suas obrigações religiosas, orientada por um Guia Espiritual que me auxiliou em tudo que ainda não sabia sobre as tradições da Festa do Divino Espírito Santo”.

Mais uma vez, encontramos em Halbwachs uma indicação coerente desse aspecto quando ele afirma que “é na sociedade onde, normalmente, o homem adquire suas

lembranças, que ele se lembra delas e que ele as reconhece e as localiza” (p.6). “Não existe memória possível fora dos quadros dos quais os homens que vivem em sociedade se servem para fixar e reencontrar suas lembranças” (Halbwachs, 2006, p. 79).

Nora, que, ao discutir a perda da memória como elemento essencial, sendo substituída pelos lugares onde essa memória é artificialmente armazenada, contribui para essa discussão ao acrescentar que:

“A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações.” (Nora, 1993, p.5)

As festividades ao Divino Espírito Santo no Rio de Janeiro acontecem principalmente nos meses de maio a julho. As caixeiras se reúnem para realizar três festas, na Ilha do Governador espaço cedido pela Associação da Aeronáutica – ASCAER, no domingo de Pentecostes; cerca de quinze dias depois em Seropédica no Terreiro Cazuá de Mironga no bairro Jardim São Jorge; em seguida ocorre no Terreiro Abassá de Iansã e Obaluaiê no bairro da Posse em Nova Iguaçu. Uma quarta festa era realizada na casa da caixeira D. Margarida (Terreiro Abassá de Mina Jeje-Nagô, em Costa Barros), e foi extinta em 2009, após o falecimento da mestra que comandava a casa.

Em cada casa o ciclo tem duração de três dias, no primeiro dia acontece o levantamento do Mastro, onde um imenso tronco de árvore é enfeitado com frutas, folhas de eucalipto, bebidas e objetos que simbolizam tempos de colheita e muita fartura. Esta imagem símbolo do mastaréu como é concebido por elas, enfeita o terreiro até o findar do ciclo. No segundo dia, realiza-se uma missa para receber o Império que subirá na tribuna, tendo as crianças nos papéis de Imperadores e Imperatrizes, Mordomos e Mordomas-Mores e Mordomos e Mordomas-Régios, representando a corte imperial com muita pompa e riqueza nos detalhes de suas indumentárias reais. No terceiro dia derruba-se o Mastro distribuindo os

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objetos simbólicos ali contidos e assim determinando os escolhidos para próximos padrinhos do Mastro para o ano seguinte.

Todos os elementos que compõem a manifestação remontam-se em novos contextos sociais e essa reconfiguração ancora-se através dos símbolos presentes que atualizam a manifestação fora de seu espaço original. Isso significa um amplo universo composto por música, dança, figurinos, poesia, culinária entre outros aspectos mágicos da tradição.

A presença de elementos externos à comunidade contribui para que quase todas as partes originais que compõem o rito sejam realizados, visto que a quantidade de membros originais já não é suficiente. Posições que tradicionalmente seriam ocupadas por familiares ou pessoas próximas passam a ser ocupadas por interessados que se agregam ao grupo e passam pelos ritos de aprendizagem seja do toque das caixas, da composição do império e dos segredos da preparação do mastro. Como parte do universo místico da religiosidade popular, os segredos e fundamentos ficam restritos às mestras e demais iniciadas.

Esse grupo “agregado” é composto por pesquisadores, estudantes universitários, artistas, agentes culturais e demais interessados que, ao se encantarem com a riqueza da manifestação, passam a frequentar as casas e acompanhar os ciclos de festa do Divino Espírito Santo. Uma ação que vem agregando mais pessoas é o fato das Mestras participarem de diversos eventos ligados à cultura popular e assim difundir a tradição, mesmo fora do contexto do rito. Mais uma vez, recorremos a Halbwachs em uma análise sobre memória individual e memória coletiva:

“a memória individual não deixa de existir, mas está enraizada em diferentes contextos, com a presença de diferentes participantes, e isso permite que haja uma transposição da memória de sua natureza pessoal para se converter num conjunto de acontecimentos partilhados por um grupo, passando de uma memória individual para uma memória coletiva.” (Halbwachs, 2006 p.30)

Esse aspecto é de extrema relevância à pesquisa, pois estabelece um ponto de corte que o conceito de neocomunidade permitirá analisar. Ao tratar do conceito, Lifschitz (2011) destaca que estas “se caracterizam pelo fato de que os de “fora” participam ativamente na reconstrução de espaços e práticas culturais, intervindo ativamente na infraestrutura material e simbólica das comunidades.” (p.186)

Como a manifestação vai enfrentar a transição para outras mestras? Como os elementos externos a conduzirão? Como analisar essa neocomunidade?

Essas são questões que a pesquisa procurará responder. Um avanço nas pesquisas acerca dos discursos sobre memória procurará uma via ao encontro dessas respostas.

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CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

Até os dias de hoje, foi predominante nos estudos sobre a cultura popular a tendência a um olhar etnográfico, de registro das peculiaridades de uma manifestação cultural com vistas à sua conservação como objeto de museu para ser observado distante de sua realização viva e pulsante. Nesse caminho, os relatos dos atores deste cenário foram transcritos como forma de registrar uma oralidade e transpor suas manifestações artísticas em pautas, gráficos e croquís, cristalizados no tempo como elementos de museu. Fez parte da tradição das pesquisas brasileiras esse viés metodológico e esteve presente desde as missões de Mario de Andrade até o grande trabalho de Luiz da Câmara Cascudo.

Com o recente advento da memória e do testemunho como recurso metodológico, o alcance das pesquisas nesse campo estende-se ao espaço onde esses atores desvendam não só uma subjetividade prenhe de sua cultura – em que ele a constitui e por ela é constituído –, mas também os efeitos e consequências dos fluxos, deslocamentos e transformações.

Por tratar-se de uma manifestação da religiosidade popular brasileira, o culto ao Divino Espírito Santo carrega em si um conjunto de dogmas que a priori estabelecem o que deve ser transmitido e ensinado. Porém, o fato de ter ficado preservado e latente na memória de suas mestras e, somente após longo período ser retomado como elemento a ser transmitido e compartilhado por um grupo através dos seus ensinamentos longe de seu espaço original, mostra-se rico e denso e justifica a motivação para sua adoção como objeto a ser pesquisado. Os discursos sobre memória, nesse sentido, apresentam-se como elementos importantes que comporão um cenário bem mais completo. Para tal, algumas analogias poderão ser adotadas, como, por exemplo, o conceito de memória subterrânea, associado originalmente a situações de trauma e que, neste caso específico serão aproximados das situações onde a memória é silenciada pelo deslocamento no espaço/tempo para outro ambiente cultural, perdendo a condição de pertencimento.

Os conceitos de memória coletiva e individual serão observados a partir da análise das transformações que o objeto – a manifestação cultural e o grupo envolvido – vem sofrendo e sendo percebidos através do olhar do conceito de neocomunidades. O cruzamento desses conceitos com as questões do patrimônio também servirão como base. Serão observadas também os desdobramentos que as políticas públicas tem oferecido como contribuição efetiva para o campo.

Terão continuidade as entrevistas que já vem sendo feitas para colher o testemunho dos integrantes originais e dos que vem se agregando de modo a enriquecer a investigação sobre o objeto. Será feito um acompanhamento sistemático não só das festas, mas também

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dos eventos em que as mestras participam como encontros culturais, oficinas, aulas, entre outras.

Pretende-se também ampliar a revisão da literatura e o número de autores que abordam o tema da memória e o referencial teórico e assim constituir um grupo de conceitos que possam ser aplicados a outras manifestações que apresentem condições semelhantes. Essa pesquisa teve início com investigações preliminares in loco, abordagem com os atores sociais, aproximações com os eventos realizados, mapeamento dos elementos a serem investigados e correlacionamento inicial com os autores citados nesse artigo e com outros que vem servindo como referência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERRETI, Sérgio. 1995. Repensando o sincretismo. São Paulo: EDUSP/FAPEMA. GONDAR, J. (org). 2000. Memória e espaço. Rio de Janeiro: 7 Letras.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. 2005. Ressonância, materialidade e subjetividade: as culturas como patrimônios. In: MACIEL, Maria Eunice; ALVES, Caleb Faria (Orgs.). Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n.23, jan/jun de 2007.

HALBWACHS, M. 2006. A memória coletiva. São Paulo: Centauro.

HUYSSEN, Andreas. 2000. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano.

LIFSCHITZ, Javier Alejandro. 2011. Comunidades Tradicionais e Neocomunidades. Rio de Janeiro: Contra Capa.

NORA, Pierre. 1993. Entre Memória e História – a problemática dos lugares. Revista Projeto História do Programa de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História-PUC-SP. Nº 10, São Paulo, SP.

POLLAK, Michael. 1989. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, V. 2: n.3.

SANTOS, M. S. 1998. Sobre a autonomia das novas identidades coletivas: alguns

problemas teóricos. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v.13, nº38, São

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