abril-junho de 2013 _____________________________________________________________________________________
ENTREFIOS DA MEMÓRIA NO CONTO “PENÉLOPE”
Pensar sobre a literatura é pensar com a literatura e, simultaneamente, incluir o pensar
e o poetar sobre e com a memória. (Angélica Soares)
É defendido neste trabalho que a tessitura do fazer literário é impregnada pela memória coletiva, visto que, o escritor irá buscar na sociedade a matéria que será transformada em ficção. Além de se abastecer com o alimento da memória social, o mesmo também ajuda a formar, com a sua teia discursiva, a memória da comunidade, pois capta o modo de ver, sentir e viver de uma determinada época. Possibilitando às gerações futuras um legado artístico e de memória. Para dialogar com essa ideia, trouxemos o texto teórico A memória coletiva de Maurice Halbwachs e o conto literário “Penélope” de Dalton Trevisan.
O conto Penélope entrelaça a personagem mítica Penélope, que aparece na Grécia da epopeia de Homero, à esposa apresentada na Curitiba contemporânea. Observa-se que o Aedo grego, que cantava a glória do passado do seu povo através da inspiração das musas, filhas da deusa da memória Mnemosyne, hoje permanece no escritor, que, auxiliado pela imaginação e pelo tecido social, é aquele que canta a vida, seja ela gloriosa ou não. E a vida de todos nós é impregnada de memória, assim, citamos Cecília Meireles “só sei, que tudo é memória”.
Neste trabalho consideraremos o enfoque de Halbwachs sobre a questão da memória, apontando que a mesma é construída e alimentada na e pela coletividade.
Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se tratando de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade nunca estamos sós. (HALBWACHS, 1990, p. 26)
As imagens de nossas lembranças podem mudar com o tempo. Assim, as impressões que guardamos podem se modificar e se diferenciarem de quando a recordamos pela primeira vez, “para algumas lembranças reais, se junta uma massa de lembranças fictícias.” (Halbwachs, 1990, p. 28) e pode ser que ocorra a distinção das lembranças coletivas para um mesmo grupo. Recordamos o passado a partir do presente, e no hoje não somos mais como no momento do evento ocorrido. Esse fato indica que o sentimento e a forma como cada um apreendeu o vivido vai influenciar no modo de lembrar no presente.
Acreditamos na memória como geradora do fenômeno criador e que nos dá um caminho duplo: preservar e acrescentar conhecimento. Assim, ela é um elemento de conservação, mas também de transformação. Além de ser elemento que estimula a imaginação do homem.
O escritor Dalton Trevisan é um dos renovadores conto na literatura brasileira. É o autor do conto ‘Penélope’, que é matéria de estudo neste trabalho. O conto em destaque foi publicado pela primeira vez no ano de 1959. É o conto de encerramento do livro Novelas nada exemplares.
No conto “Penélope”, temos a apresentação de um enredo que, a princípio, parece ser banal. É narrada a vida de um casal de idosos que se muda para Curitiba após a morte dos filhos. Na nova casa o casal tem uma rotina comum e calma, mas que se modifica e é abalada com a chegada de vários envelopes cujo conteúdo foi escrito por um anônimo e que são colocados por debaixo da porta da casa do casal todos os sábados. Nesse dia, o casal sempre saia para passear. Num dia, ao retornar de um desses passeios, é encontrado pelo marido um envelope azul. A partir deste acontecimento, o texto começa a mostrar as desconfianças do marido em relação à esposa.
marido, de modo tal que o discurso do narrador se interpenetra no fluxo de consciência da personagem e o leitor não sabe ao certo se é a voz do primeiro ou o pensamento do segundo. A esposa é apresentada pelo narrador em algumas ações no dia a dia do trabalho da casa, mas o que prevalece é o ponto de vista do marido.
A construção do conto Penélope é alicerçada no diálogo intertextual com uma personagem da obra Odisseia de Homero. A interrelação já aparece a partir do título: “Penélope”. Na obra de Homero, Penélope é aquela que ficou mais de 20 anos esperando pelo retorno do marido. Manteve-se fiel arrumando expedientes para não aceitar casar-se com os vários pretendentes que se apresentaram a ela. Iremos perceber que, no texto de Trevisan, há um jogo de resgate e afastamento da Penélope clássica. O texto de Homero é escrito por volta do século IX ou VIII a. C. e o texto de Trevisan é da segunda metade do século XX. Como eles se aproximam e se distanciam?
O conto “Penélope” de Dalton Trevisan inicia-se com a apresentação dos protagonistas. Esclarecemos que todas as citações do conto destacadas neste trabalho são da coletânea de contos do autor citado, intitulada Vozes do retrato: quinze histórias de mentiras e verdades. Vejamos os dois parágrafos iniciais:
Naquela rua mora um casal de velhos. A mulher espera o marido na varanda, tricoteia em sua cadeira de balanço. Quando ele chega ao portão, ela está de pé, agulhas cruzadas na cestinha. Ele atravessa o pequeno jardim e, no limiar da porta, beija-a de olho fechado. Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de malvas. Pela janela da cozinha, os vizinhos podem ver que o marido enxuga a louça. No sábado, saem a passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de preto. No verão, a mulher usa um vestido branco fora de moda; ele ainda usa preto. Mistério a sua vida; sabe-se vagamente, anos atrás, um desastre, os filhos mortos. Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos mudam-se para Curitiba. (p.52)
Constatamos que o casal leva uma vida harmoniosa. Ao se mudarem para Curitiba, eles querem romper com o seu passado. Ao decidirem ir para outro lugar, percebemos que desejam romper totalmente com a vida anterior. O narrador usa o verbo “desertar”, o que reforça a ideia de abandono total da vida anterior a mudança. Para os vizinhos, o que existe é mistério em relação aos novos moradores. Embora tenha “desertado” do “túmulo”, o marido mantém o luto; o narrador informa que “ele ainda se veste de preto”. Essa personagem carrega as sombras do passado, pois o preto, além de luto, também está ligado à escuridão, à noite. A mulher não está mais de luto, embora o vestido esteja “fora de moda”, no verão, ela usa branco. O branco está ligado à luz, à claridade, ao dia. É interessante registrar que o branco é uma cor que é oposta ao preto.
A harmonia inicial, que acreditávamos fazer parte da vida do casal, começa a ser desconstruída. O casal não é tão harmônico assim. As cores que usam são significativamente contrárias. O fato ratifica a diferença de pensamento e estado de espírito entre o marido e a mulher e se dá tanto no contexto exterior como na interioridade de cada um:
Só os dois, sem cachorro, gato, passarinho. Por vezes, na ausência do marido, ela traz um osso ao cão vagabundo que cheira o portão. Engorda uma galinha, logo se enternece, incapaz de matá-la. O homem desmancha o galinheiro e, no lugar ergue-se cacto feroz. Arranca a única roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa concede o seu resto de amor. (p. 52) [grifo nosso]
Aqui se tem a certeza do quanto o casal é dissonante. A ideia de harmonia se desfaz por completo. Concluímos que é o homem que não quer ter nem bichos, nem plantas em casa. Ele tem sentimento destruidor: “desmancha”, “arranca”. O amor que tem é “resto”. A mulher ainda tem amor, mas para demonstrá-lo, precisa que o marido esteja ausente. Com a sua ausência, pode levar um osso para o cão que aparece para cheirar o seu portão. É incapaz de matar a galinha que engorda. O narrador diz que ela se “enternece”, ou seja, ela é dócil, terna e amorosa.
sábado. Esse é o dia reservado para o passeio dos dois. Ao retornar de um desses passeios, o marido encontra um envelope azul. A mulher propõe ao marido que queime antes mesmo de abrir, mas ele não atende ao pedido. Lê e guarda. Ao longo de outras semanas, outros bilhetes no envelope azul são enviados e também são guardados. A partir desse fato, o marido começa a desconfiar da fidelidade da mulher e a tratá-la de forma diferente e a imaginar que o motivo da infidelidade está por perto e imagina que as atitudes da mulher são uma prova de culpa:
É um jogo, e exibe a carta: nenhum endereço. Abre-a, duas palavras recortadas. Sopra o envelope, sacode-o sobre o tapete mais nada. Coleciona-a com a outra e, ao dobrar o jornal, a amiga desmancha um ponto errado na toalhinha.
Acorda no meio da noite, salta da cama, vai olhar à janela. Afasta a cortina, ali na sombra um vulto de homem. Mão crispada, até o outro ir-se embora.
[...] Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recorda a legenda de Penélope, que desfaz de noite, à luz do archote, as linhas acabadas no dia e assim ganha tempo de seus pretendentes. Cala-se no meio da história: ao marido ausente enganou Penélope? Para quem trançava a mortalha? Continuou a lida nas agulhas após o regresso de Ulisses? (p. 53 e 54)
A partir do momento em que o marido se convence da traição da mulher, vê a necessidade de vigiá-la: “Desde a rua vigia os passos da mulher dentro de casa.”(p. 54) Com a obsessão da traição instaurada, o mesmo compra um revólver. A narrativa marca o espanto da companheira com a compra de uma arma:
De madrugada acorda, o travesseiro ainda quente da outra cabeça. Sob a porta, uma luz na sala. Faz o seu tricô, sempre a toalhinha. É Penélope a desfazer na noite o trabalho de mais um dia?
Erguendo os olhos, a mulher dá com o revólver. Batem as agulhas, sem fio. Jamais soube por que a poupou. Assim que se deitam, ele cai em sono profundo. (p.55)
Cada vez mais atormentado pelas desconfianças, o marido, que no início do conto havia desertado totalmente das lembranças do passado, vai relembrar um primo na vida da mulher. Mesmo ela afirmando que o primo havia morrido aos 11 anos de uma doença, não houve mudança no comportamento do companheiro. Contrariada, a mulher tomou uma atitude radical, que mesmo silenciosa e solitária, foi a sua resposta:
Uma tarde abre a porta e respira o ar. Desliza os dedos sobre os móveis: pó. Tateia a teia dos vasos: seca. Direto ao quarto de janelas fechadas e acende a luz. A velha ali na cama, revólver na mão, vestido branco ensanguentado. Deixa-a de olho aberto. ( p.55-56)
Após a morte e o enterro da esposa, o marido não sente remorso, acredita que foi justo. Ele continua a fazer o seu passeio de sábado e a encontrar, na volta, o envelope que fora o deflagrador de suas desconfianças em relação à esposa que se matara.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conto trevisaniano entrelaça duas épocas, duas sociedades. Ao recorrer ao mito de Penélope, que está presente na epopeia de Homero, Dalton Trevisan vai à tradição cultural da Grécia para servir-se dela e criar a sua “Penélope moderna”. As
Ao tecer durante o dia e desmanchar durante a noite, para que dê tempo do marido retornar, a espera é cheia de esperança. Sua trama é constituída pela determinação e confiança. A moderna borda uma toalhinha, mas não aguenta esperar pelo dia em que o marido deixará de oprimi-la psicologicamente. O seu bordado termina, ela corta os fios da linha e também os fios de sua vida. Ao decidir o dia de acabar o seu bordado, decide também o dia em que a sua vida terá fim. A sua trama é tecida pela tortura e pela morte.
A narrativa da tradição clássica apresenta o final feliz com o reencontro dos esposos. A espera e fidelidade de Penélope são recompensadas pela felicidade do retorno do marido. O conto moderno é marcado pelo desencontro e pela infelicidade, e registra a fragilidade dos laços matrimoniais e a ausência da certeza de finais felizes. No conto trevisaniano temos uma versão condizente com a sociedade contemporânea, a família deixa de ser vista como sagrada e indissolúvel.
A memória liga o presente ao passado, nos dá a oportunidade de rever o ontem e por causa disso constatar o que está diferente e o que permanece no hoje. A literatura é o lugar privilegiado para isso, pois o fazer literário se alimenta e apresenta na multiplicidade das narrativas a tradição e a renovação, conectando o ontem e o hoje através da linguagem. Unindo assim, os fios do lembrar e do narrar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A.Queiroz, 1979.
COMMELIN, P. Nova Mitologia Grega e Romana. Trad. Thomaz Lopes. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
FACINA, Adriana. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução: Laurent Leon Schaffter São Paulo: Vértice, 1990.
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução: J.A.A. Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1991.
HOMERO. Odisseia. (Em forma de narrativa). 8. ed. Tradução e adaptação de Fernando C. de Araújo Gomes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
TREVISAN, Dalton. Vozes do retrato: quinze histórias de mentiras e verdade. São Paulo: Ática, 2002.