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Manifestações do Risco Dendrocaustológico

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Academic year: 2021

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Arborização das vertentes serranas, uma medida de

protecção contra as enxurradas.

Fogos florestais um atentado contra as arborizações

e um incentivo ao desenvolvimento de enxurradas

*

.

Os exemplos do alto vale do rio Zêzere, a montante de Manteigas

(Serra da Estrela, Portugal Central)

Introdução

Ao despertar, na manhã do dia 16 de Outubro de 1993, fui surpreendido com as notícias que, na rádio, davam conta da inundação, com água e entulho, do rés-do-chão do Hotel das Caldas de Manteigas, bem como, do corte de estradas, na sequência de chuvas intensas, as quais teriam originado um “desprendimento de terras”, em parte responsável pela enxurrada. O nosso interesse pela evolução actual das vertentes, sobretudo em ambientes serranos, desde logo nos motivou a analisar este acontecimento.

Na primeira página do Notícias de Manteigas, de 15 de Outubro de 1993, sob o título “Enxurradas alvoraçam Manteigas” pode ler-se: “Na noite de 15

para 16 do corrente mês por volta da uma da madrugada, grandes quantidades de água invadiram as encostas de Manteigas, estradas, casas e provocaram desabamentos de terras e grandes enxurradas.

A que causou mais prejuízos, na ordem de várias dezenas de milhares de contos, foi a que se abateu sobre o Hotel das Termas, inundando com a sua torrente tudo o que encontrou, e criando nas áreas envolventes uma visão catastrófica.

A enxurrada, segundo algumas fontes, terá tido origem com um desprendimento de terras a montante do ribeiro de Albagueira, que aliado à grande precipitação e

* Actas 2, Os recursos Florestais no Desenvolvimento Rural, III Encontro Florestal Nacional, Figueira da Foz, 1994, p. 1-9 (em colaboração com A. CUNHA DIREITO). Versão resumida em Estrela Informação,

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a outras situações provocou arrastamento de pontes, estradas, troncos de água, poios, numa inclinação de 70%”.

A notícia não se limita apenas a relatar os factos, mas tenta ir mais longe, interpretando-os, pois explica a origem das enxurradas (desprendimento de terras, grande precipitação, outras situações) e, até, procura avaliar os seus efeitos. No entanto, pensamos que vale a pena retomar esta notícia, no sentido de precisar melhor não só as condições que proporcionaram o desprendimento de terras, mas também aquelas que correspondem às outras situações que não foram descritas e que poderão constituir o fundamento dos factos acabados de mencionar.

Antecedentes históricos

Desde logo, a notícia deixa supor que poderão ocorrer enxurradas sempre que se registem grandes precipitações.

Assim sendo, caberia inventariar os registos das precipitações e verificar se lhes corresponderam enxurradas violentas para, em função das circunstâncias, se poder concluir sobre as “outras situações”.

Acontece que o Eng.º Silvicultor Augusto Sanches Barjona de Freitas, nos seus Apontamentos sobre Perímetro Florestal de Manteigas, editados em 1989 pela Direcção Geral das Florestas, por ocasião do I Centenário da Administração Florestal de Manteigas refere-se aos efeitos dos grandes temporais, páginas 92 a 95, nestes termos:

“Em tempos afastados, em que as encostas que circundam a vila de Manteigas eram escavadas e despidas de vegetação, as torrentes manifestaram, por vezes, a sua terrível acção devastadora.

Assim, em Agosto do ano de 1804, desencadeou-se sobre Manteigas uma forte trovoada […] acompanhada de tão copiosa chuva que originou uma grande e súbita enchente [...] que, arrancando árvores e carregando terra, areia e pedregulhos, penetrou na vila destruindo umas vinte casas e causando a morte de igual número de habitantes.

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Durante a madrugada e prolongando-se até às 10 horas da manhã do dia 13 de Maio de 1893, caiu chuva copiosa […].

Pelas três horas da tarde do dia 24 de Agosto de 1899 caiu uma chuva bastante forte […].

Em Dezembro de 1909 grandes chuvadas, […].

Em 22 de Maio de 1927, pelas 18.30 horas, pairou sobre a Serra da Estrela uma grande trovoada, acompanhada de chuva muito copiosa, a qual causou grandes prejuízos na região de Manteigas […]”.

Os habitantes de Manteigas, na sua maioria, foram unânimes em reconhecer o benefício que àquela vila presta a arborização das suas encostas, levada a cabo pelos Serviços Florestais e, sem a qual, muitos maiores prejuízos haveria a lamentar, pois que a acção destruidora desta enorme tromba de água certamente se não faria sentir só nos ribeiros e suas margens, mas também nas encostas que, sem arborização, se prestavam a uma fácil erosão e consequente desmoronamento dos rochedos nelas existentes.

Quando visitámos os locais mais atingidos, ouvimos de várias bocas de gente rude frases como estas: “Se não fosse a floresta o que seria de nós”.

“Certamente os prejuízos não teriam sido tão avultados se estivessem totalmente arborizadas as bacias de recepção dos dois referidos ribeiros”.

Estes relatos constituem preciosos documentos históricos que não só nos dão conta da acção destruidora do escoamento das águas superficiais, subsequentes a precipitações intensas, mas também, referem a importância da floresta na contensão da erosão.

Como é sabido, os Serviços Florestais desenvolveram uma intensa acção de arborização nas áreas de cabeceira do rio Zêzere, pontualmente destruída pelos fogos florestais, com o intuito de fixar as vertentes, a qual foi acompanhada por obras de correcção torrencial ao longo das linhas de água, quer através do calcetamento do leito, quer da construção de muretes nas respectivas margens.

Perante esta minuciosa inventariação dos grandes temporais fomos analisar os valores das máximas precipitações diárias para verificar se produziram efeitos catastróficos.

Ora, a máxima precipitação diária, 331,0 mm, ocorreu no dia 23 de Dezembro de 1927, precisamente sete meses depois do último grande temporal referido.

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O facto de não ser mencionado por Barjona de Freitas deve-se, certamente, à circunstância dos seus efeitos terem sido de pouca monta, o que poderá significar que esse quantitativo anormal de precipitação se terá distribuído mais ou menos homogeneamente ao longo das 24 horas e não se terá concentrado num curto espaço de tempo, como sucedeu na madrugada de 15 para 16 de Outubro de 1993, situação que passamos a analisar.

A enxurrada

No dia 16 de Outubro de 1993, o observatório das Penhas Douradas registou 71,3 mm de precipitação. Desconhecemos a sua distribuição horária e, por conseguinte, a sua intensidade, porquanto o udógrafo esteve avariado entre as 20 horas do dia 15 e as 9 horas do dia 16, precisamente quando ocorreu a enxurrada, ou seja, quando a precipitação terá sido mais intensa, logo, esteve avariado no período em que os registos nos eram mais necessários. Ora, como estas precipitações são, em regra, concentradas no espaço e no tempo, fomos analisar os registos de outro posto próximo, o de Manteigas.

Verificámos que entre os dias 1 e 17 de Outubro nele foram registados 544,9 mm de precipitação e que no período de 24 horas, compreendido entre as 9 horas do dia 15 e as 9 horas do dia 16, foram registados 152 mm, valor que é superior ao observado nas Penhas Douradas, no mesmo período de tempo.

Com estes valores de precipitação torna-se fácil justificar a cheia do rio Zêzere, mas continua por explicar a enxurrada, no sentido de “corrente violenta de águas sujas”, praticamente confinada ao ribeiro da Albagueira que, nas Caldas de Manteigas, conflui com o rio Zêzere (fig. 1).

Como consta da notícia, a enxurrada ficou a dever-se a um “desprendimento de terras” e a “outras situações” que importa analisar.

Com efeito, a enxurrada não pode ser de atribuir apenas às elevadas precipitações. Como vimos, nem sempre que ocorrem valores elevados de precipitações se registam enxurradas.

Ora, depois dos anos 50, a máxima precipitação diária observada nas Penhas Douradas, foi de 134,3 mm, tendo ocorrido em 16 de Fevereiro de

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1963, e não produziu enxurradas dignas de monta.

Com efeito, os trabalhos de arborização levados a cabo pelos Serviços Florestais contribuiram para corrigir o regime torrencial destes ribeiros. Só assim é possível entender a frase “Se não fosse a floresta o que seria de nós”.

Efectivamente, as enxurradas eram muito frequentes antes da arborização das vertentes serranas, muitas vezes com efeitos tão desastrosos que o povo entendeu criar uma festa religiosa especificamente com o objectivo de solicitar a protecção divina contra as enxurradas.

Assim, surgiu a festa do Senhor do Calvário, criada com a finalidade de lhe implorar para “suster as enxurradas”. Actualmente ainda se realiza, a 15 de Agosto, mas desvirtuada da sua função inicial, até porque, com a arborização das vertentes, as enxurradas diminuiram de importância.

Ora, sendo a floresta que corrige o regime torrencial, parece evidente que se ela for retirada, os ribeiros retomarão esse regime.

Na realidade foi o que sucedeu no ribeiro da Albagueira. Com efeito, em Agosto de 1991, um incêndio florestal incinerou as áreas de cabeceira do ribeiro. Nestas circunstâncias, a ausência de árvores (fot.1), que foram destruídas pelo fogo, dificulta a fixação do solo e facilita o “desprendimento de terras”. Por sua vez, o deslizamento do solo veio aumentar substancialmente a carga da corrente, transmitindo-lhe uma maior força viva e, consequentemente, um maior poder erosivo, já de si grande devido tanto ao facto da corrente ser muito veloz, como ao acentuado declive do seu perfil longitudinal (declive médio = 47,5%).

Os seus efeitos destruidores foram particularmente sentidos ao longo de todo o leito do ribeiro e particularmente nos locais em que era atravessado por estradas florestais, as quais foram cortadas pelo ímpeto da corrente.

Os troncos queimados das árvores que ficaram abandonados e os materiais arrastados pela corrente ajudaram a obstruir os aquedutos, facilitando a destruição das estradas.

Na parte vestibular do leito, já na área de confluência com o rio Zêzere, situam-se as instalações do conhecido Hotel das Termas (INATEL) cujo piso térreo foi invadido pelas águas, tendo nele ficado abandonada parte da carga sólida, cuja espessura nalguns locais era de cerca de um metro.

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Fig. 1 - Esboço de localização do ribeiro da Albagueira.

1. Curvas de nível, equidistância 5 m; 2. rede hidrográfica; 3. estradas e casas; 4. caminhos; 5. limite da bacia hidrográfica;

6. localização

do deslizamento; 7. locais onde a erosão foi mais intensa; 8. deposição de materiais.

1450 1400 1350 1300 1250 1200 1150 1100 1050 1000 950 900 850 800 750 i R o Z ê z e r e B a r r o c a d e A l b a g u e i r a

Cabeção da Fraga da Bicha

Cabeço Alto Celorico da Beira Gouveia Seia Manteigas Rio Mondego Rio Zêzer e Rio Alva 2 5 1 3 4 6 7 8 Caldas de Manteigas

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Além destes efeitos sumariamente apresentados, as consequências do fogo e da erosão hídrica que se verificou depois dele poderiam ter sido bem mais graves se, entretanto, não se tivesse destruído um enorme bloco arredondado, uma bola de granito, situada junto ao local onde ocorreu o “desprendimento de terras” e que se encontrava numa situação de grande instabilidade.

Felizmente que não se movimentou, pois a rebolar por uma vertente com grande declive, produziria efeitos difíceis de imaginar, como difícil seria saber onde terminaria a sua marcha.

Alertada pelo Parque Natural da Serra da Estrela para o perigo que aquela bola de granito representava, a Câmara Municipal de Manteigas procedeu à sua destruição, evitando o agravamento dos efeitos do fogo florestal das cabeceiras de ribeiro de Albagueira.

Fot.1 - Vista panorâmica da bacia hidrográfica do Ribeiro da Albagueira. Notar a ausência de vegetação na parte superior, correspondente à área de cabeceiras, onde

ocorreu o deslizamento.

Conclusão

A torrencialidade das ribeiras depende de diversos factores, nomeadamente do declive das vertentes, podendo ser atenuada com a arborização das vertentes, como se pode comprovar no alto do rio Zêzere.

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Mas, do mesmo modo que se pode corrigir, também se pode acelerar essa torrencialidade quando, ao contrário, se destrói completamente a vegetação que cobre as vertentes declivosas, como sucede, por exemplo, quando ocorrem fogos florestais.

Deste modo, tomámos para paradigma uma situação verificada no alto vale do rio Zêzere, num ribeiro seu afluente, o qual, em resposta a precipitações intensas, reagiu com uma enxurrada, agravada por um deslizamento que veio “engrossar” o caudal e intensificar os seus efeitos.

Mais uma vez tivemos a possibilidade de comprovar, não só a importância da arborização como impedimento à erosão das vertentes, mas também que os efeitos dos fogos florestais não se resumem apenas à destruição das árvores, no momento em que são percorridas pelo fogo, mas perduram no tempo e, por vezes, as outras consequências podem ser mais catastróficas do que a destruição da floresta em si mesma.

Agradecimento

Os autores desejam manifestar o seu vivo agradecimento à Zona Florestal da Serra da Estrela em particular à Sr.ª Eng.ª Alice Marques que nos proporcionou observar “in loco” alguns dos efeitos de enxurrada e ao Parque Natural da Serra da Estrela, em especial à Sr.ª Dr.ª Angelina Barbosa, que não se poupou a esforços para nos facultar elementos inéditos imprescindíveis para uma análise mais correcta dos factos.

De igual modo, estamos gratos à Câmara Municipal de Manteigas, ao Observatório das Penhas Douradas, ao Guarda da Natureza, Sr. José Maria Serra Saraiva, aos Sr. Nataniel Evangelista Lopes Rosa, José Abrantes e a todos os outros que nos ajudaram na realização deste trabalho.

Aos alunos de Geografia, Rosa Catarina Reis e António Marques, que colaboraram na recolha dos dados, o nosso muito obrigado.

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Bibliografia

FREITAS, AUGUSTO S. BARJONADE (1989) - Perímetro Florestal de Manteigas,

Apontamentos Coligidos e Coordenados para o I Centenário da Administração Florestal de Manteigas. Direcção-Geral das Florestas, Lisboa, 141 p.

SaRAIVA, JOSÉ MARIA SERRA (1993) - Relatório sobre as inundações verificadas em

Manteigas na noite de 15 para 16 de Outubro de 1993. Parque Natural da

Serra da Estrela, 12 p. (inédito).

Referências

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