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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP JARBAS ANDRADE MACHIONI O USUFRUTO DE AÇÕES DE COMPANHIAS NO DIREITO BRASILEIRO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

JARBAS ANDRADE MACHIONI

O USUFRUTO DE AÇÕES DE COMPANHIAS NO DIREITO

BRASILEIRO

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2020

(2)

JARBAS ANDRADE MACHIONI

O USUFRUTO DE AÇÕES DE COMPANHIAS NO DIREITO

BRASILEIRO

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, como requisito parcial para a obtenção do título de MESTRE em Direito Comercial, sob a orientação do Prof. Dr. Marcus Elídius Michelli de Almeida.

(3)

2020

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________

_________________________________________

(4)

Dedico este trabalho à memória de meu saudoso pai, Antonio. Dedico à minha amada mãe, Chrys,

À Tereza, pelo nosso sonho,

Aos meus filhos, Antonio Pedro, Luiz Felipe e Maria Fernanda, frutos de nosso sonho.

(5)

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao professor Marcus Elidius Michelli de Almeida, meu professor, não só de Direito.

Agradeço aos professores, profissionais e colegas, todos, afinal, companheiros desta jornada, e que, de toda forma, contribuíram para este trabalho, debatendo-o, trocando experiências e ensinando sobre diversos outros temas, e em outras oportunidades, algumas recentes, outras já longínquas, mas sempre enriquecedoras. Todos fizeram parte de minha formação. São eles: Tércio Sampaio Ferraz Jr., José Eduardo Campos de Oliveira Faria, José Alexandre Tavares Guerreiro, Marcio Pugliesi, Eros Roberto Grau, Ricardo Peake Braga, Queren Santana Formiga, Armando Rovai, minha colega Julia Fiorin Bassi Azevedo, e, sobretudo, o saudoso Sergio Marcos de Moraes Pitombo, por cujas mãos iniciei o estudo profundo do Direito.

(6)

RESUMO

O tema da presente pesquisa é “O Usufruto de Ações de Companhias no Direito Brasileiro”. Seu objetivo é examinar o instituto à luz da doutrina e jurisprudência sobre o conceito e evolução do usufruto, inclusive à luz do processo histórico, bem como sua aplicação às ações emitidas pelas sociedades anônimas. Nessa senda, serão estudadas as modalidades de usufruto, seu regime, sua forma de constituição e modo de extinção. De outro lado, será examinado brevemente as sociedades anônimas, o conceito de ação, suas modalidades e sua natureza, bem como os traços essenciais que possam ser úteis ao emprego do usufruto. Isto posto, discorrer-se-á sobre o modo de constituição do usufruto de ações, o regime legal previsto na vigente lei e os problemas decorrentes, seja da aplicação de uma ou outra norma, seja pelo conflito potencial ou efetivo entre nu-proprietário das ações e o usufrutuário à luz das normas e deveres, sabidamente complexos, instituídos para a sociedade anônima.

Palavras-chave: Usufruto. Ações. Sociedade Anônima. Direito Empresarial. Companhia.

(7)

ABSTRACT

The subject of this research is “The Usufruct of Shares of Companies in Brazilian Law”. Its objective is to examine the institute in the light of doctrine and jurisprudence on the concept and evolution of usufruct, including in the light of the historical process, as well as its application to the shares issued by brazilian corporations. Along this path, the modalities of usufruct, its regime, its form of constitution and its extinction mode will be studied. On the other hand, corporations, the concept of action, their modalities and their nature, as well as the essential traits that may be useful in the use of usufruct, will be briefly examined. That said, it will be discussed about the form of constitution of the usufruct of shares, the legal regime provided for them in the current law and the problems arising, either from the application of one or another rule, or due to the potential or actual conflict between the owner of the shares. shares and usufructuary in the light of the rules and duties, known to be complex, instituted for the corporation.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO E A IMPORTÂNCIA DO OBJETO DE ESTUDO... 08

1.1 Introdução... 08

1.2 Importância do Objeto do Estudo... 09

1.3 Método... 12

2 NOÇÕES INICIAIS E HISTÓRICAS DO USUFRUTO... 13

2.1 Noções Iniciais... 13

2.2 Noções Históricas... 32

2.3 Usufruto, Propriedade e outros Direitos Reais... 38

2.3.1 Conceito de Usufruto... 38

2.3.2 Direito de Propriedade na Atualidade... 38

2.3.3 Atributos da Propriedade Moderna e Modos de Aquisição... 41

2.3.4 Tipos de Direito Reais... 49

3 CONCEITO E REGIME JURÍDICO DO USUFRUTO NO DIREITO BRASILEIRO... 54

3.1 Quadro Jurídico do Usufruto... 54

3.2 Objeto do Usufruto... 56

3.3 Inalienabilidade do Usufruto e seus Efeitos... 59

3.4 Uso e Gozo... 67

(9)

3.6 Constituição e Extinção... 73

4 DAS COMPANHIAS E DAS SUAS AÇÕES... 78

4.1 Das Companhias... 78

4.2 Das Ações... 80

5 CONSTITUIÇÃO E REGIME JURÍDICO APLICÁVEL AO USUFRUTO DE AÇÕES... 88

5.1 Constituição do Usufruto sobre Ações... 88

5.2 Do Regime Legal do Usufruto de Ações... 92

6 MODIFICAÇÕES NA ESTRUTURA DA COMPANHIA E O USUFRUTO... 101

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 104

(10)

1 INTRODUÇÃO E A IMPORTÂNCIA DO OBJETO DE ESTUDO

1.1 Introdução

O Instituto do usufruto é criação milenar, e, com os traços básicos como o conhecemos hoje, já era amplamente utilizado no Direito Romano, com atestam as famosas Institutas de Justiniano. É o usufruto o direito real de uso e gozo de coisa de propriedade de outrem, por tempo limitado, ao fim do qual o bem deve ser devolvido ao proprietário.

Já quanto às companhias, ou sociedade anônimas, sua criação advém, na forma mais semelhante a que conhecemos, da Alta Idade Média, com o surgimento das companhias patrocinadas pelo Estado, primordialmente como entes de personalidade independente e veículos para alocação dos grandes volumes de recursos necessários para colonização e exploração de empreendimentos de vulto na era das descobertas. Nestas , a junção de capitais mediante a contrapartida de emissão de um título a favor do investidor, tornando-o sócio, emitido por escrito, fisicamente palpável, representativo da participação no empreendimento, livremente negociável e com rendimentos variáveis distribuídos ao longo do tempo de acordo com o rendimento e a duração do empreendimento, demonstrou ser um sucesso.

Por companhia ou sociedade anônima chamamos o tipo societário em que todos os sócios, chamados de “acionistas” subscrevem participações societárias denominadas “ações”, e cuja responsabilidade é limitada apenas ao pagamento do preço de aquisição dessas ações. Esse tipo de sociedade é regulado no Brasil pela Lei nº 6.404766 e pelos artigos 1.088 e 1.089 do Código Civil. As sociedades anônimas podem ser abertas ou fechadas, conforme tenham ou não títulos e valores negociados no mercado de capitais.

(11)

1.2 Importância do Objeto do Estudo

Historicamente, o mecanismo do usufruto permitiu atribuir a outrem, que não o proprietário, atributos de uso e gozo da propriedade alheia, de modo o que proprietário mantivesse o direito de propriedade mas o beneficiário do usufruto percebesse as utilidades da coisa; não só isso, como atribuiu-se a esse instituto jurídico o “status” de direito real, do modo a, de maneira mais forte do que no direito das obrigações, ser ele oponível amplamente a terceiros. De outro lado, as ações emitidas tornaram-se um bem em si, de tal forma que tais títulos de sócio, então emitidos pelo documento escrito e negociável, atribuindo uma série de direitos em caráter bastante perene, poderiam ser objeto de usufruto, como o foram.

Desta forma, sobre as ações, pois, pôde recair o usufruto, atribuindo ao

usufrutuário o direito de uso e gozo delas, permanecendo o acionista todavia como titular da ação, sem direito a tais atributos.

Se a função econômica do usufruto sempre foi primordialmente ligado ao seu caráter de proteção familiar, como meio de assegurar a subsistência aos que vão dele fruir, modernamente tem sido utilizado, na doação com reserva de usufruto, como ferramenta substitutiva à partilha de bens em vida , de modo que os titulares não se privem de subsistência ou controle dos negócios. Mas não só isso, nunca deve-se negar sua possibilidade de papel de agente de circulação de riquezas ou de sua alocação, com teremos oportunidade de apontar, ao estudar alguns autores.

Embora haja autores que minimizem a importância atual do usufruto, é fato que seu emprego, na verdade, é largo, como nota Barreira (BARREIRA, 1977, p. 238) comparando seu uso amiúde com o declínio do instituto da enfiteuse; no mesmo sentido, ressalta Wolf ser muito grande seu emprego na vida moderna, destacando, no direito alemão, seu papel na sucessão por legado a favor do cônjuge supérstite (in ENNECERUS, KILP e WOLF, 1970, p. 80).

(12)

O usufruto é instituto jurídico reconhecido e adotado nas diferentes legislações e alcança uma larga aplicação em face dos benefícios e vantagens que proporciona. Sua importância é grande, uma vez que

detém o valor econômico da coisa. A sua prática não é pouco usual

entre os pais de família, que fazem doações de determinados bens, em vida, reservando para si o usufruto sobre as coisas doadas, que lhes servirá como garantia de sobrevivência. Um dos objetivos é afastar possíveis litígios entre os herdeiros, após a sua morte. “In casu”, os donatários passam a ser nus- proprietários e os doadores, usufrutuários. Estes, com o direito de usar e fruir a coisa, tirando-lhe proveito direto ou sujeitando-a a qualquer outra destinação legalmente permitida. O direito dos nus-proprietários fica adstrito à substância da coisa

E ainda, ressaltando sua importância com ferramenta econômica, apontam os contemporâneos Teppedino, Monteiro Filho e Renteria (2020, p. 327):

Importa, ainda, por em relevo, a importância do usufruto sob o ponto de vista técnico, propiciando a separação das faculdades dominiais, o que enseja maior potencial de aproveitamento da coisa. Seria, conforme se afirmou, "a solução civilística'' (isto é, a solução dada ao problema pelos ordenamentos da civil law) do problema de dividir no tempo a utilização de um bem". Trata-se, pois, de poderoso instrumento, nas mão do legislador, para, coercitivamente, nas situações que julgar merecedoras de especial tutela, separar a propriedade em si dos poderes inerentes ao seu aproveitamento econômico.

Ademais, sob outro prisma, não podemos esquecer que “numa sociedade mutante, crescentemente complexa e de alta diferenciação social, cujo desafio à dogmática jurídica é adequar-se a esse constante desenvolvimento” , consoante explica Tercio Sampaio Ferraz Jr. (FERRAZ JR., 1980, p. 202). A nosso ver os institutos jurídicos renovam-se, ganham novo significado , impulsionados, não raro, pela “ praxis ”.

Sob tal ponto de vista, podemos exemplificar a função clássica da moradia na propriedade imobiliária. Tem-se visto um certo esvaziamento de importância da propriedade imobiliária como fator da moradia, há um certo movimento ou tendência em favor da locação de imóveis para esse fim e não mais sua aquisição, seja pelo alto preço dos imóveis e decorrente impossibilidade aquisitiva1, seja pela diminuição

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numérica de membros das famílias ou aumento de indivíduos vivendo sozinhos, seja pela incidência da individualidade como paradigma cultural, seja pelo fenômeno da mobilidade geográfica e flexibilidade trabalhista, que leva pessoas a não se fixarem em um local ou em laços familiares, ao menos tanto como no passado na sociedade avançadas ocidentais, fenômenos decorrentes da Modernidade Líquida, apontada por Zygmunt Bauman (BAUMAN, 2001, “ passim ”).

Essa tendência cultural, se durar no sentido que ora se desenha, terá os inevitáveis reflexos no Direito, afinal, como demonstrou Marcio Pugliesi : “A Cultura é campo visto que exerce influência sobre as condutas” (PUGLIESI, 2015, p. 257), e essas condutas, dizemos, irão não produzir normas, mas formatar o discurso e pensamento dos aplicadores dessas normas.

No Direito Comercial o usufruto de ações aparece como instrumento útil em operações bancárias e creditícias, seja como ferramenta de garantia ou de alocação de recursos, ou em ajustes de controle e propriedade em grandes empresas ou grupo empresariais, enfim, é de larga aplicação .

Aliado a isso, é importante ressalta a existência de uma explosão de criatividade empresarial decorrente do advento e popularização da informática e das redes mundiais de computares, destacadamente a Internet, aliada à crescente sofisticação do mercado financeiro e de capitais brasileiro , com a entrada de novos tipos de sociedades dedicadas a investimentos, inclusive como incentivadoras de novos negócios, seja esse fenômeno na chamada economia virtual (“nova economia” ou “e-business”), seja na economia tradicional, gerou necessidade crescente de ferramentas para alocação de interesses societários ou de investidores, ou de circulação e garantia de propriedade; esse quadro demanda ferramentas jurídicas eficazes, seja elas inovadoras com a criatividade própria do empresários e as historicamente flexíveis regras do Direito Comercial, sejam elas as tradicionais, que aliam a segurança de institutos consagrados e longamente debatidos.

https://www.independent.co.uk/news/business/news/europeans-home-ownership-renting-half-eu-british-people-germans-buy-property-ladder-a8041346.html Acesso em: 21 out. 2019.

(14)

Ora, nessas operações a ação de companhia tem-se mostrado um excelente veículo para a constituição de tal direito real

Todavia, paradoxalmente, a matéria na prática empresarial - que é atividade cujos desafios são constantes e não raro imprevisíveis - encontra questões relevantes e de complexa definição regramento aplicável ou mesmo antinomias desafiadoras e de solução difícil, que tem levado a controvérsias nos Tribunais e pouca atenção da doutrina para enfrentá-las. (BARBOSA, 2012, p. 367).

1.3 Método

Procuraremos desenvolver essa dissertação examinando a evolução doutrinária dos institutos examinados, usufruto e ações, fazendo referência à jurisprudência essencial, e, com base nos conceitos extraídos, nortear a aplicação à luz dos princípios e teorias contemporâneas que permeiam tanto o Direto Civil quanto o Direito Empresarial.

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2 NOÇÕES INICIAIS E HISTÓRICAS DO USUFRUTO

2.1 Noções Iniciais

A noção de usufruto baseia-se na ideia de certa partição do direito de propriedade. Empregamos a expressão “certa partição” com cautela, pois parte da doutrina discute a natureza do fenômeno, se na verdade há um efetivo desmembramento, fracionamento ou se é mera restrição da propriedade remanescente - trata-se de um debate que exporemos mais à frente.

Embora no instituto do usufruto mantenha-se o vínculo de domínio sobre o bem com o proprietário original, ele desdobra outro direitos, propriamente inerentes à noção clássica de propriedade, atribuindo-os a um terceiro, chamado de “usufrutuário”, em face do que o titular da propriedade passa a ser, na expressiva terminologia consagrada, o “nu-proprietário”; já o bem em que incide o usufruto chama-se coisa usufrutuária ou usufruída. A definição clássica do direito romano da antiguidade é referência para os estudiosos do nosso direito civil, principalmente no século passado: jus rebus alienis utendi fruendi salva rerum substantia2 , explica Carvalho de Mendonça (MENDONÇA, 1922, p. 30)

Na verdade, esse instituto não só atribui ao terceiro uma dada espécie de direitos , como os exclui da esfera do proprietário , seja essa exclusão absoluta, de modo a valerem inclusive contra o próprio titular da coisa, seja essa exclusão limitada por ser subsidiária, permitindo a este apenas atuar na omissão do usufrutuário em certas circunstâncias, seja na diminuta esfera de atuação que ainda é reservada ao nu-proprietário. A esse feixe de direitos destacados da propriedade a doutrina chama de direitos de uso e gozo da coisa usufrutuária, pois implicam no poder exclusivo de proveito sobre a ela (HADEMANN, apud PEREIRA, 2009) .

2

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Modernamente, Romitti e Dantas Jr. (2004, p. 3) explicam essa possibilidade técnica do instituto, atribuindo-a a chamada elasticidade do direito de propriedade:

Face ao princípio da elasticidade do direito real de propriedade, podem ser destacados temporariamente um ou mais elementos em favor de outrem, mantida a essência do dominus. São o jus utendi,

fruendi e abutendi. conteúdo do direito subjetivo de referência.

Duas importantes restrições ao direito de usufruto, em favor do nu-proprietário, existem. De um lado é titular o nu-proprietário do direito à integridade da coisa, consoante nosso diploma civil, e, de outro, o limite temporal, findo o qual os direitos cujo exercício saem da esfera do titular do domínio deverão voltar ao nu-proprietário. Ainda que possa ser largo este prazo, pois no atual direito brasileiro o usufruto a pessoa natural será no máximo vitalício3 e para pessoa jurídica pelo prazo limite de trinta anos4, o usufruto será sempre temporário, opondo-se desta forma à noção de perpetuidade clássica no direito de propriedade que, de resto, também dá base ao Direito das Sucessões.

A ideia de “integridade da coisa” é essencial ao instituto, todavia, ela, como veremos, tem significados diferentes conforme a diferenciação que a doutrina faz entre o chamado usufruto , tradicional ou próprio, e o usufruto impróprio ou quase-usufruto. Aquele incide sobre coisas infungíveis , este sobre as coisas fungíveis ou consumíveis.

Em razão do quadro retro traçado, a força do vínculo criado pelo instituto do usufruto é tal que o Direito modernamente, afastando-se da ideia inicial de “servidão”, nas mais variadas legislações atribuiu a ele a força de Direito Real, ou seja tornou-o oponível “erga omnes”, e franqueou ao instituto muitos atributos dessa categoria jurídica.

3

Art. 1.410, I do Código Civil 4

(17)

Nas palavras de Tupinambá Miguel de Castor Nascimento (NASCIMENTO, 1986, p. 9), o fenômeno pode ser assim sintetizado:

A existência de um bem, do qual se destacam5 os direitos reflexos de

usar e fruir, normalmente na área de ação do proprietário, para serem entregues a outrem, que se denominará usufrutuário, permanecendo o que resta, a substância da coisa, com o primeiro, que passa a se nomear de nu-proprietário, configura direito real de usufruto .

Maria Helena Diniz (DINIZ, 2009, p. 432) explica o usufruto reportando-se à definição do art. 713 antigo Código Civil, comparando-a com a do jurisconsulto romano Paulo:

Como o novo Código Civil não define o usufruto, tratando tão-somente de sua incidência e aplicabilidade, poder-se-á elaborar o conceito de usufruto tendo-se por fundamento o revogado art. 713 do Código Civil de 1916, que dispunha: constitui usufruto direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa, enquanto temporariamente destacado da propriedade.

Esse conceito correspondia ao do direito romano, pois o usufruto foi definido por Paulo como “o direito de usar uma coisa e pertencente a outrem e de perceber-lhe os frutos, ressalvada sua substância”.

Com razão, Maria Helena Diniz (DINIZ, 2009, p. 432), pois, a nosso ver, a definição do antigo diploma civil é loquaz suficiente para apreender-se, ao menos, algumas da noções iniciais, mas cumpre aprofunda-las um pouco mais.

Todavia, antes de avançarmos, cumpre assinalar que iremos considerar a dualidade do usufruto (próprio e impróprio) nesta dissertação, todavia, consoante o método adotado geralmente adotado no estudo do instituto, ressalvado o exame do quase usufruto em sítio próprio, abordaremos na explanação o usufruto próprio de um modo geral com as ressalvas ao impróprio quando necessário.

5

Observamos, como mencionado acima, que há controvérsia jurídica sobre existir um “destaque” ou “fracionamento” do direito de propriedade no usufruto. O assunto será objeto de análise mais à frente.

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Como primeira consideração essencial, devemos observar que o direito do nu-proprietário e do usufrutuário são diferentes mas convivem simultaneamente. Ambos feixes de direitos projetam-se entre a coisa usufrutuária e os dois sujeitos sobre essa mesma coisa. Não se trata de divisão da coisa em si, nem de alguma espécie de condomínio ou comunhão sobre ela, mas são esferas de direito diferentes que coexistem sobre o mesmo bem. Nas palavras de Tupinambá Miguel Castro Nascimento (NASCIMENTO, 1986, p. 9): “sobre o mesmo bem usufruído, dois sujeitos diferentes - o nu-proprietário e o usufrutuário - têm dominação jurídica diferenciada pelo conteúdo diverso”.

Laffayete Rodrigues Pereira (1943, p. 303), ao explicar a estrutura primordial do usufruto, aborda a duplicidade de esfera de direitos:

1. Entre os direitos elementares do domínio avultam, por sua

importância prática, o direito de usar da coisa e o de perceber os

frutos que ela é capaz de produzir. Estes direitos destacadas da

pessoa do proprietário e investidos na pessoa de terceiro, constituem o usufruto.

Pressupõe, pois, o usufruto duas ordens de direito sobre a mesma coisa: - os direitos de senhor da coisa (o proprietário ) e os direitos daquele em favor de quem ele é instituído (o usufrutuário) .

O senhor conserva o direito à substância da coisa, ao qual oportunamente virão de novo reunir-se os direitos destacados e por essa razão continua a ser reputado proprietário. O usufrutuário, portanto exerce seus direitos em coisa que está sob domínio de outrem: daí o princípio que o usufruto não pode se constituir senão na coisa alheia. (grifos nossos)

Marcelo Benacchio (BENACCHIO, 2019, p. 1762) aponta, ressaltando a simultaneidade, que: “O usufruto é um direito real menor que pressupõe a coexistência com o direito de propriedade, denominado nua-propriedade ou propriedade de raiz”. A coexistência, como fato essencial, também é ressaltada por Tepedino, Monteiro Filho e Renteria (2020, p. 329): “salienta a doutrina indispensável a coexistência do usufruto com a nua propriedade”, que a entendem como conexão imprescindível do usufruto com a substância, chamando tal fenômeno de segunda característica do instituto. No mesmo sentido, Viana (2003, p. 616) apontando, também, “ser característica do usufruto a coexistência”.

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Caio Mario da Silva Pereira (PEREIRA, 2009, p. 248) também assinala, em seu curso de direito ciivil, que o instituto reconhece a dualidade ora exposta:

Pressupõe, então, a coexistência harmônica dos direitos do

usufrutuário, constituídos em torno da ideia de utilização e fruição da

coisa, e dos direitos do proprietário, que os perde em proveito daquele, conservando todavia a substância da coisa ou a condição jurídica do senhor dela. (grifos nossos)

Em verdade, sobre isso, “não há notícia de dissenso na doutrina, seja estrangeira, seja nacional, sobre essa simultaneidade de direitos de ambos sujeitos sobre a mesma coisa” (Maria Helena DINIZ, 2009, p. 431 e nota de rodapé 119, p. 432).

Discussão todavia há sobre o fenômeno que gera essa coexistência de direitos. A maioria da doutrina informa haver um destaque ou fracionamento do direito de propriedade. Com efeito T

upinambá Miguel de Castro Nascimento

, Nascimento abre seu trabalho afirmando (NASCIMENTO, 1986, p. 9):

A existência de um bem, do qual se destacam os direitos reflexos de usar e fruir, normalmente na área de ação do proprietário, para serem entregues a outrem, permanecendo o que resta, a substância

da coisa, com o primeiro, que passa a se nomear de nu-proprietário,

configura o direito real de usufruto. (grifos nossos)

A antiga norma civilista do art. 713 afirmava ser o usufruto “destacado da propriedade”, embora o atual Código Civil não reproduza esse texto, como é sabido. A assertiva de que o usufruto é um instituto destacado da propriedade está na maior parte da doutrina contemporânea àquele diploma civil, como em

J. M. de Carvalho

Santos, e Washignton de Barros Monteiro

(SANTOS, 1982, p. 331 e MONTEIRO, 1970, p. 290).

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A despeito da citada não reprodução da dispositivo no atual diploma civil, diversos autores que comentam o assunto sob as luzes do Código Civil de 2002, também adotam a tese do destaque ou fracionamento. Assim, por exemplo, Romitti e Dantas Jr. (2004, p. 3) entendem haver no usufruto um destaque temporário de alguns elementos da propriedade em favor de terceiros, e que a coexistência de tais direitos retrata o “desdobramento da propriedade plena”. No mesmo sentido, Benacchio (BENACCHIO, in NANNI, p. 1.761, 2019), Paulo Nader (NADER, 2016, p. 442), e outros.

Todavia há forte doutrina, mesmo na época antiga, contra tal entendimento. Pontes de Miranda (MIRANDA, 2012a, p. 64) é enfático ao dizer que não se trata de “destaque” mas de “restrição”:

No art. 713, o Código Civil define o usufruto: Constitui o usufruto o direito real de fruir as utilidades e frutos da coisa, enquanto temporariamente destacado da propriedade”. As expressões “utilidades”, “frutos” e “destacado” são ambíguas, e a última, atécnica. O usufruto, como todos direitos reais limitados, não limita o direito de propriedade, nada lhe destaca. O direito de propriedade continua a ser tal como lhe concebeu o sistema jurídico. O uso e fruto não se atribuíram ao usufrutuário como algo que se cortou à propriedade, de modo que o domínio passasse a ser menos. O que passou a ser menos foi o exercício do direito de propriedade, o poder de usar e fruir. Restringiu-se o direito de propriedade, no que concerne a isso. O domínio permaneceu o que era.

Essa noção é desenvolvida por Pontes de Miranda (MIRANDA, 2012b, p. 66 - grifos nossos, itálico do autor da obra) da seguinte forma:

2. LIMITAÇÃO E RESTRIÇÃO DE CONTEÚDO. - Quando se faz direito real limitado, não se limita o conteúdo do direito de propriedade, porque o domínio é o direito sobre todo o conteúdo embora esse se restrinja (quanto ao exercício), pelo fato de ser direito real limitado. O conteúdo do domínio é usus, fructus e abusus ainda que se haja constituído enfiteuse, usufruto, uso ou habitação. Por isso é que, cessado qualquer um deles, a restrição é riscada e se dá o que se assentou chamar consolidação. Passa-se o mesmo quanto às servidões: o conteúdo do domínio continua o mesmo, mas “restringe-se” pela retirada de elemento com que se compõe o direito de servidão. Esse é ponto da maior importância. Nem usufruto, nem uso, nem habitação, nem servidão, e, até mesmo, nem enfiteuse

limita, isto é, diminui o direito de propriedade: só o restringem no

tocante ao exercício . O dono do prédio perde o usus em favor do usufrutuário, ou do usuário, ou perde a habitatio, a favor do habitador

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- mas o que ele perde é exercício do direito de domínio, não “conteúdo”. Restrição a conteúdo é restrição a exercício, porque não se dá a cisão, o corte do conteúdo, somente ocorre a determinação de linha que corresponde à restrição. Muito diferente é o que acontece quando a lei limita o conteúdo, quando o conteúdo diminui : era c passou a ser c menos 1. (grifos nossos)

Pontes de Miranda apresenta, pois, uma tese bastante peculiar e elegante, embora discutível. Ele desenvolve, pois, uma tese bastante peculiar e elegante, embora discutível, principalmente em relação a efeitos práticos. Para o autor o emprego da palavra limitação, ou “destaque” no texto legal, implica na noção errada de que haveria um corte no direito de propriedade, ou seja uma perda de parte dele, com se tirasse uma fatia do todo. Pontes de Miranda acha que na verdade o que ocorre é uma suspensão, ou restrição, ao exercício de alguns direitos sobre ela em desfavor do proprietário, mesmo quando - vê-se quando ele menciona a enfiteuse - essa restrição é, em princípio - perpétua. Sob tal prisma, afirma esse autor:

Quando se constitui direito real limitado, ou é por ato de disposição do elemento que lhe faz conteúdo, ou por ato disposição do domínio, isto é, dos outros elementos, que compõe o domínio. Para Ulpiano (omissis…) e Paulo (omissis…) constituir enfiteuse, usufruto, uso, habitação ou servidão, não é dividir o domínio, nem parti-lo, é detrair-lhe ao conteúdo elemento, sem que o domínio sofra, como direito (mundo jurídico). Quem tem domínio não tem usufruto, uso, ou habitação, mas tem elementos com que tais direitos se fazem: o dono não é usufrutuário, mas usa; não é habitador, mas habita. Quem tem servidão de caminho não tem um pedaço de prédio alheio, nem a propriedade do locus serviens. (MIRANDA, 2012b, p. 66)

Há um esforço de Pontes de Miranda em consolidar esse conceito. Os atualizadores da obra dele, Tratado de Direito Privado, Nelson Nery Jr. e Luciano de Camargo Penteado afirmam “o domínio é mais extenso e é a partir dele que se formam os direitos reais limitados, por detracção na terminologia ponteana, se formam os direitos reais limitados” (MIRANDA, 2012b, p. 78) . Em outro tomo da obra atualizada, eles afirmam “o direto real de usufruto é derivado do domínio e, sempre que constituído por negócio jurídico, devidamente registrado na matrícula do imóvel, ou por outro título negocial, é uma restrição ao direito de propriedade. Se decorrer da lei é limitação.” (MIRANDA, 2012a, p. 70). Aqui cabe uma dúvida, sobre a expressão “se decorrer de lei é limitação” . Tanto o usufruto instituído por lei quanto o decorrente de vontade não têm diferenças que autorizem

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essa distinção somente pela diversidade de constituição. O instituto em ambas situações é, com poucas diferenças, o mesmo. O que lhe muda em relação ao direito de vizinhança (esse, na visão ponteana, seria sim, um direito limitador da propriedade), não é o fato de este instituto decorrer de lei em contraposição ao negócio jurídico privado originador do usufruto, mas daquele consistir numa limitação que aderiu ao direito de propriedade, condicionando, na verdade, todas propriedades; ou seja, não é um direito real sobre coisa alheia, mas uma condicionante da propriedade e de seu uso, fazendo-a se submeter ao direito de vizinhança. Da mesma forma são as limitações de área construída, ou de uso conforme planejamento urbano etc.

Também voltando-se contra a ideia de fracionamento de propriedade, há a tese de Cunha Gonçalves (GONÇALVES, s/d, p. 478):

1.684. RELAÇÕES GERAIS ENTRE O USUFRUTO E A

PROPRIEDADE NUA. – Posto que os arts. 2.188 e 2.189 6 nos

apresentem o usufruto como fracção do direito de propriedade, – concepção cujo erro o próprio legislador se encarregou de desmentir, – é certo que o direito de propriedade se conserva íntegro, embora transitoriamente onerado com o usufruto; pois a própria definição deste, no art. 2.197, nos mostra que a coisa usufruída é alheia, e nos restantes artigos sobre esta matéria, a cada passo, se fala no

proprietário, nos seus direitos e obrigações. O conceito de

propriedade não é determinado pela soma das faculdades que o proprietário pode exercer; e a atribuição de uma ou mais destas faculdades a outrem, embora implique a subtracção temporária das mesmas faculdades ao proprietário, não pode ter-se como uma

fracção da propriedade. No patrimônio do proprietário, os direitos

correspondentes às obrigações do usufrutuário vêm substituir as faculdades de que aquele se vê privado.

Em primeiro lugar, pois, cumpre-nos reconhecer que entre o usufruto e a chamada propriedade nua não existe um estado de indivisão ou copropriedade. O usufruto é um jus in re aliena, mas não é propriedade.

Em segundo lugar, quanto à posse da coisa, o usufrutuário fica numa singular situação; pois, de um lado, é possuidor em nome próprio do

seu direito real, ou, por outras palavras, possui a coisa em nome

próprio naquilo que implique o exercício do usufruto; mas, por outro

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Antigo Código Civil Português, de 1868. Atualmente o Decreto-Lei nº 47.344/66 institui o vigente Código Civil naquele país. Como se trata de tese doutrinária , julgamos útil trazê-la ao estudo.

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lado, é um possuidor em nome alheio da coisa usufruída, que tem o seu proprietário.

O argumento é claro e convincente. Aliás, M. I. Carvalho de Mendonça partilha de tal entendimento (MENDONÇA, 1920, p. 26 - grifos nossos):

3 – Já tivemos oportunidade de nos manifestar contra o conceito, segundo o qual, os direitos reais nada mais são do que um desmembramento do domínio .

É um erro generalizado que precisa ter seu termo definitivo no conceito positivo dessa ordem de relações jurídicas.

A propriedade não se desmembra; consistente na soma de todas as utilidades que se podem retirar das cousas do mundo externo, ela continua inteira, a despeito dos gravames diferentes que a podem paralisar por momento no exercício de um de seus direitos elementares.

Conceito contrário equivaleria a afirmar que um homem adormecido ou paralítico deixa de ser um homem; que a eletricidade deixa de ser eletricidade, porque produzindo luz, calor e força, é aplicada num momento dado a um só desses efeitos.

Os direitos reais e, portanto, o mais importante de entre eles – o usufruto – constituem, por consequência, não um desmembramento, mas uma paralização, para o proprietário de um dos elementos do domínio, aliás o mais vasto e importante, qual o uso da cousa e o gozo dos frutos.

Tanto assim é, tão estranha é a idéia de desmembramento a essa classe de direitos, que, enquanto alguém os exerce, o proprietário exerce também uma partícula qualquer de seus direitos gerais, ora em maior, ora em menor escala.

Disso nos fornecerá o usufruto largas e irrefutáveis demonstrações. (grifos nossos)

Há, na sequência, outro ponto importante que deve ser esclarecido.

De um modo geral, as definições dadas por alguma doutrina, parecem sofrer da falta de um aspecto importante: o respeito à coisa usufruída. Com efeito , como observado acima, o nu-proprietário permanece com direito exclusivo ao que se chama de “substância da coisa”, esse direito não é cedido ao usufrutuário, de modo que esse importante aspecto , inclusive primordial para a solução de algumas questões em Direito Comercial, precisaria ser ressaltado na definição. É certo que a definição da lei antiga contida no artigo 724 do Código Civil de 1916 , vislumbrava esse fato quando afirmava, enter os deveres do usufrutuário, o respeito à cultura

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agrícola pré-existente no imóvel cedido não podendo mudá-la. Esse dispositivo tem correspondência com o artigo 1.399 do atual Código Civil, mas que, agora, apenas faz referência à mudança de “destinação econômica” .

Embora os autores reconheçam, efetivamente, a regra do respeito à substância da coisa - como assinalado acima na definição proposta por Tupinambá Miguel de Castro Nascimento - esse conceito necessita de algumas precisões, até por suas consequências jurídicas.

Na verdade, nesse tema, também o debate na doutrina é antigo no sentido de sua exata compreensão, e, diga-se, alguns juristas reportam-se a ele, muitas vezes sem aprofundamento ou por meio de circunlóquios, mesmo tratando-se, a nosso ver, de uma questão ligada, constantemente, a debates profundos nos Tribunais, sobre limites do uso ou dos direitos do usufrutuário em contraposição aos do nu-proprietário, inclusive os limites da eventual mudança de destinação do bem. Por exemplo, o antigo art. 9077, do Código Civil de 1916, abria exceção, na sua segunda parte, para realizar mudanças no emprego da coisa usufrutuária, mesmo sem previsão no instrumento de constituição ou posterior autorização do nu-proprietário, com base algum outro título de direito atribuível ao usufrutuário, como, exemplificava, o direito do pai ou ou marido. Informava a doutrina que esse texto tratava de direto de família, portanto, referir-se-ia a usufruto do do pai ou à mãe sobre bens dos filhos, conforme Santos (1982) e Bevilacqua (1917). A jurisprudência, volta e meia, ainda enfrenta essa questão de qual seriam os limites do usufruto em função da chamada substância da coisa , como veremos mais à frente.

Iremos demonstrar as posições sobre o assunto fazendo um pequeno apanhado do exame da doutrina .

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Art. 724 CC/1916: O usufrutuário pode usufruir em pessoa, ou mediante arrendamento o prédio, mas não pode mudar-lhe o gênero de cultura, sem licença do proprietário ou autorização expressa no título; salvo se, por algum outro, como os de pai ou marido, lhe couber tal direito.

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A despeito de sua importância em nosso ver, é de se notar a explicação de Clóvis Bevilacqua (BEVILACQUA, 1917, p. 264) sobre o que julgava ser uma desnecessidade: a menção à substância no Código Civil brasileiro, ressaltando inclusive que essa omissão seria uma virtude de nosso código contra, dizia, um defeito do Código Civil francês:

1.ª Seria necessário definir a substância da coisa em direito, e distingui-la da forma, para saber se esta pode ser alterada e destruída e aquela não, o que aliás pouco adiantaria. 2ª Não se atenderia a que o usufruto umas vezes abrange todas as utilidades da coisa e outras se limita a algumas delas, nem tampouco se abriria espaço à possibilidade do quase-usufruto.

Todavia, ao comentar o art. 724 do diploma civil de 19168, Bevilaqua (1917, p. 278) afirma que “por substância, neste caso, entende-se a forma que a coisa apresenta, sob o ponto de vista econômico no momento da constituição do usufruto”. Mas ressalva que como “essa significação do termo não corresponda à usual, dando motivo a dúvidas, não a quis empregar o Código” (1917, p. 278). Aqui o jurista procurou ser coerente com a escolha defendida por ele de fugir da palavra substância, como visto acima.

Na doutrina estrangeira encontraremos exemplos do laconismo supra citado, como na obra do jurista germânico Wolf que simplesmente menciona “substância” na definição apresentada por ele de que o usufruto é o direito real de disfrutar de um objeto na totalidade de suas relações, sem alterar sua substância (WOLF in ENNECERUS, KILP e WOLF, 1970, p. 78).

Planiol e Ripert (1946, p. 640) também meramente mencionam o conceito na definição que propõem: “el usufruto es um derecho real de disfrute, ejercitado sobre uma cosa ajena, con la obrigación de conservar su substancia, extinguiéndose necessariamente con la muerte del usufrutuario”. Albaladejo (apud GARBI, 2008, p.

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Art. 724. O usufrutuário pode usufruir em pessoa, ou mediante arrendamento, o prédio, mas não mudar-lhe o gênero de cultura, sem licença do proprietário, ou autorização expressa no título; salvo se por algum outro, como os de pai ou marido, lhe couber no título.

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194) pontua na sua explicação do conceito: “Usufructo es el derecho real a disfrutar completamente uma cosa sin alterar su modo de ser”.9

Na obra Tratado de Direito Civil do jurista português Luiz da Cunha Gonçalves, vemos a definição do antigo Código Civil de 1868: “Art. 2197. Usufruto é o direito de converter em utilidade própria o uso ou produto de coisa alheia, mobiliária ou imobiliária”. O Código Civil português de 1966 modificou a texto da norma, alocando no art. 1439: “Usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância”, de modo a seguir o conceito tradicional. Ácidas críticas ao texto anterior proferiu Cunha Gonçalves à definição legal. Nas críticas, ele discorreu sobre sua visão da melhor definição de usufruto e da palavra substância. Tratou a norma de “definição incorreta”, pois ela confundia o usufruto com posse e locação, as quais conferem ao seu titular também uso e fruição de coisa alheia; disse que a norma lançava mão de frase prolixa e incorreta, pois “converter em utilidade própria o uso” era pensamento que se exprimiria simplesmente com a palavra “gozo”; condenava o emprego do expressão alternativa “uso ou gozo”, pois “uso” é outro instituto e usufruto demanda existir também o “gozar”; seria, também incompleta a definição por não abranger a temporariedade; e, afirmava, ao final, não “se sabe que direito é esse nem seu modo de uso” (GONÇALVES, s/d, p. 474). Para Gonçalves (s/d, p. 476), a palavra substância deveria ser substituída pelo direito de “gozar como bom proprietário”, proposta na definição por ele construída10, “porque a alteração da substância da coisa exorbitava absolutamente o simples gozo”. Além disso, o autor lusitano lembrava a existência de “transformações forçosas, determinadas por causas independentes da vontade do usufrutuário” (s/d, p. 476), exemplificando com o perecimento de um vinha muito velha ou a que seja arrancada por obrigação legal, o que facultaria ao usufrutuário transformar em o terreno em pomar ou pasto.

Uma análise interessante é sobre a praga da filoxera que obrigou proprietários de quase todos vinhedos a arrancar as plantas no continente europeu

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“Usufruto é o direito rela de desfrutar completamente uma coisa sem alterar seu modo de ser”. (tradução nossa)

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Usufruto é o direito real de gozar uma coisa alheia, temporariamente e como um bom ou prudente

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na tentativa de erradicar a praga. A solução foi, geralmente, transformar em cultivo de outra modalidade, até a solução do enxerto das antigas vinhas em plantas trazidas da América, imunes ao afídio (MONTAGUE, 1986, s/p). Nesse caso, imaginando a hipótese de um usufruto de um bem com videiras afetadas pela praga, ao usufrutuário, antes do enxerto, restaria pouca alternativa, salvo arrancar as vinhas e mudar a destinação do imóvel; isso modificaria a substância da coisa usufrutuária de modo a incidir em extinção, ou estaria no conceito de transformação forçosa de Gonçalves?

Luciano de Camargo Penteado (CAMARGO, 2013, pg. 283) observa a noção sob exame sob o seguinte ângulo : “O usufruto consiste no direito real sobre coisa alheia que abrange a possibilidade de extração e aproveitamento da coisa, seus frutos e utilidades”.

Tupinambá Miguel de Castro Nascimento (NASCIMENTO, 1986, p. 12) refere-se ao direito à configuração física e estética como sendo a ideia da substância da coisa , entendida pelos antigos, segundo esse autor, com o jus abutere:

Com o usufruto, o exercício passa a ser exclusivamente do usufrutuário, destituído o proprietário deste direito. Contudo o proprietário não deixa de ser proprietário, porque é um dominus desvestido da utilidade da coisa. O que é usável e fruível se afasta de sua dominação jurídica, enquanto durar o usufruto. Mas alguma coisa após o destaque resta com o dono. De um lado permanece ele com a substância da coisa, o direto à configuração física da coisa e estética do bem, aquilo que os antigos chamavam de ius abutare. Já Wagner Barreira (BARREIRA, 1977, p. 235) vê a substância da coisa como “uma obrigação de restituição da coisa íntegra, ou seja como a recebeu o usufrutuário”. Marcelo Aurélio S. Viana (VIANA, 2003, p. 616) assinala que “salva rerum substantia” é, primordialmente, a submissão do usufrutuário ao dever de conservação do bem.

Maria Helena Diniz (DINIZ, 2009, p. 431), já citada, nesse ponto entende ser substância o próprio conteúdo do direito de propriedade que permanece na

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nua-propriedade; argumenta ela que “o proprietário tendo o conteúdo do domínio possui o direito de disponibilidade do bem, o chamado jus disponendi, exercitável nas formas da lei” . Parece ser esse o entendimento de Washington de Barros Monteiro (MONTEIRO, 1970, p. 290) que, com certo laconismo, afirma: “Embora a propriedade tivesse em Roma feição absoluta e exclusiva, reconheciam-se contudo, a vantagem e a utilidade de ceder-se a outrem o gozo de uma coisa, conservando o dono, para si, a propriedade da substância”. Arnoldo Wald (WALD, 2011, p. 277), ao descrever os limites do uso e gozo do usufrutuário, apresenta um conceito de substância: “deve respeitar a sua substância, não podendo alienar o bem, nem modificar o seu modo de utilização e aproveitamento, estando impedido de transformá-lo ou deteriorá-lo”.

Orlando Gomes prefere abordar a possibilidade do desfrutar da coisa o usufrutuário em estreita correlação com o dever de não alterar a substância dela (GOMES, 2012, p. 309); em verdade, ele não enxerga a substância exatamente como um direito remanescente ao nu-proprietário . Com efeito, para esse autor, os direitos reais sobre coisa alheia seria direitos ao valor da coisa , para que desta possa se extrair uma vantagem pecuniária, já aqueles (tal qual os direitos reais próprios) seriam direitos à substância da coisa, para utilização de suas vantagens (GOMES, 2012, p. 352). Esse ponto, salta aos olhos, diverge da doutrina majoritária vista acima, que destaca a substância da coisa como direito remanescente do proprietário.

De modo contrário, Lafayette Rodrigues Pereira afirma que a palavra substância no caso significa a “forma atual, o caráter principal, o modo de ser dela com as qualidades inerentes ao tempo de constituição do usufruto” (PEREIRA, 1943, p. 20). Explica ele que : “Neste sentido a substância, por exemplo, duma casa, não consiste na natureza dos materiais de que é composta, mas na disposição e forma dada a esses materiais.” (“op. cit., loc. cit.”, no final da nota de rodapé número 11).

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No momento em que o usufrutuário adquire o direito de usar e fruir a coisa, ela se acha necessariamente sujeita a algum destino compatível com sua natureza, e no qual é ou tem sido aproveitada. Este destino é o resultado jurídico da vontade do proprietário sobre a coisa, e a vontade manifestada legalmente se presume continuar a subsistir. Ao usufrutuário, pois, não é permitido violar aquela vontade, isto é, mudar o destino da coisa (1943, p. 20).

Dídimo Agapito da Veiga liga a restrição de “não poder mudar o gênero de cultura” à substancia, explicando (VEIGA, 1925, p. 20) :

Afirmação do salva rerum substantia aplicado à conservação formal do jus fruendi, que presume aceito pelo nu-proprietário, como elemento fundamental e acento da modalidade da fruição, que ao usufrutuário não é lícito alterar.

Pontes de Miranda destaca que o conceito advém do direito romano e do direito comum, reconhecendo o “ius utendi fruendi” do usufrutuário desde que não se atinja a substância do bem (MIRANDA, 2012, p. 77). Afirma o jurista que a expressão “substantia” “trazia em si certa dose de metafísica e prestava-se a discussões” , informando que os códigos civis lusitano e brasileiro (referia-se ao antigo de 1919) haviam se “livrado” da referência à “substância”. E conclui : “Os direitos reais em regra não atingem a coisa, em sua natureza e em seu destino” (“op. cit.”, 2012a, p. 78)

Manuel Inácio Carvalho de Mendonça entende que embora a definição supra, contida no diploma civil antigo, seja “rigorosamente verdadeira”, ela o é “em parte” (“op. cit.”, “loc. cit.”) ; sua crítica levanta dúvida sobre o significado da palavra “substância” , afirma ele que o conceito de substância da coisa foi introduzida em diversos códigos civis alienígenas e não tem ela significado claro. O que seria, indaga, essa “salva a substância da coisa” ?

Na sua tese, Manuel Inácio Carvalho de Mendonça informa que romanistas viam no vocábulo “substância” uma alusão às obrigações de cuidado do

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usufrutuário consistente em “usar seu direito como bom pai de família” e por isso a palavra significaria a “duração de tal obrigação” , correspondente à própria “duração da coisa” . Rebate o autor essa tese sob argumento de ser “ o direito do usufrutuário um direito real, que não implica obrigação alguma” (“op. cit.”, “loc. cit.”). Explica que no direito romano as obrigações do usufrutuário formavam-se em um ato separado, na forma de um pacto demandado pelo nu-proprietário por meio do pretor, mas que “não era implícito no instituto do usufruto” . Rebate as correntes que se propõe a explicar o emprego do termo, enumerando-as . Nesse apanhado, ele informa julgar ser o pensamento dos então juristas, encarregados de consolidar normas e textos do direito romano por Justiniano, informado que eles assinalaram nos “Instituta”, em de usufructu , que a locução “substância” significaria realmente “enquanto durar a coisa”, afirma Carvalho de Mendonça teriam os juristas, ao coligir, aproximado duas partes de fragmentos de texto. Um desses fragmentos era, primeiro, de Paulo e, o último, de Celsius , de modo a atingir essa interpretação. Entretanto, contesta-o Carvalho de Mendonça com a afirmação de que o fragmento original de Paulo, isolado, não trazia essa ligação pretendida pelos consolidadores de Justiniano; na verdade , Paulo, no seu texto, referir-se-ia, no conceito de substantia, à ideia de usar e gozar uma coisa que possa ter uso e gozo sem ser consumida, reclamando ainda que os juristas de Justiniano ampliaram o conceito, distorcendo a ideia de Paulo por excesso, ao afirmar que o usufruto seria o direito de gozar sem consumir. (MENDONÇA, 1922, pg. 31). Mais à frente, M. I. Carvalho de Mendonça explica que juristas modernos passaram a entender que a palavras “substância” refere-se “ao que é principal, o que constitui o caráter essencial no modo de ser da coisa , da qual deva se servir o usufrutuário, mas de forma que ela se conserve e fique sempre salva ao proprietário, findo o usufruto” (MENDONÇA, 1922, pg. 32). Nesse mesmo sítio de sua preleção, o referido autor explica com mais precisão :

Não se trata, pois, de uma abstração e sim de uma ideia concreta, da coisa usufrutuária em si, com sua forma, seu destino, seu modo de ser resultante da vontade do proprietário sobre ele, no momento que o usufruto se constitui: o conjunto das coisas com suas qualidades, enfim (1922, p. 32).

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Na doutrina estrangeira, Messineo (1979, p. 466), de outro lado, procura explicar, melhormente, a noção de substância:

Con otras palabras, es el poder de haver proprio el derecho (en sentido amplio y compreensivo del goce y del uso en especie y dos los frutos) sobre la cosa (arg. art. 1008), salvo los limites estabelecidos por la ley, en todo caso, salvaguardo el destino

econômico: “salva rerum substantia” (art. 981, primer apartado), tal

como lo haya impreso al bien-capital la voluntad del proprietario, o

como resulta de la naturaleza del mismo.11

Como se vê, a maioria dos autores que a aborda, ressalta um aspecto do que seria a substância, ora grifando o dever de restituição, ora associando-o ao do próprio domínio, ou ainda à destinação, em maior ou menor grau, da coisa, sua natureza etc. Todos esses aspectos devem ser considerados e trabalhados, mas, parece-nos que, a despeito das críticas de Mendonça (1922) e de Miranda (2012a), a supra citada definição clássica é ainda norte importante: “jus rebus alienis utendi fruendi salva rerum substantia” (1922, p. 30).12 Aliás, no mesmo sentido, Pereira (2009, p. 248), ao invocar tal definição clássica, diz não destoar da contida no antigo Código Civil.

É possível contrapor-se a essa visão, com base na lição de Teppedino, Monteiro Filho e Renteria (2020). Esses autores, ao classificar, por eles chamadas, três características do usufruto, afirmam ser uma delas “a conexão com a substância da coisa alheia” (2020, p. 327) e definem a substância como:

A preservação das qualidades essenciais, sem o que o mecanismo se torna impossível. A garantia da integridade do bem em usufruto resulta, pois, da perspectiva de reintegração ao domínio, das faculdades a ele inerentes. Dessa maneira, atende, também, como salientou San Tiago Dantas, “ao desejo de que a fortuna do usufrutuário, garantida pelo nu-proprietário mediante o usufruto, não fique exposta às infelicidades de uma administração desvairada”.

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Em outras palavras, é o poder de fazer próprio o direito (no sentido amplo e compreensivo do gozo e do uso em espécie e dos frutos) sobre a coisa (arg. art. 1008), salvo os limites estabelecidos pela lei, em todo caso, salvaguardado o destino econômico: salva rerum substancia” (art. 981, § 1º), tal como o havia imprimido ao bem-capital a vontade do proprietário, ou como resulta da natureza do mesmo. (tradução nossa)

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Ou seja, o conceito de substância da coisa usufrutuária é a somatória de sua essência, ou natureza - no conceito que parece emergir da crítica de Miranda (2012) - com a destinação dada pelo proprietário ao tempo do usufruto. Todavia, essa destinação pode ser objeto de convenção, no ato de sua constituição, ou posterior.

É importante notar que a ideia de substância da coisa como visto acima é afastada no chamado quase-usufruto, em que o bem é consumível ou fungível. Iremos examinar mais à frente.

Afirmamos no início desse estudo é que tem ele grande utilidade ao Direito Comercial e à prática empresarial. Pode parecer contraditório que um instituto supostamente concebido para alimentar, dar guarida, enfim, alguma renda passiva , possa servir de instrumento para circular e alavancar riquezas. Alguns aspectos das suas raízes históricas ajudarão a compreender melhor essas observação, como passaremos a expor.

2.2 Noções Históricas

De um modo geral os autores ligam a criação do usufruto à necessidade alimentar ou de prover a família, geralmente a viúva (mas não só a ela !), de meios de subsistência, inclusive moradia , sem tirar a propriedade de seu titular ou a expectativa de recebê-la por seu futuro titular. Mas não só esse fato era preponderante no instituto. Como mƒecanismo de transferência de proveitos da utilidade econômica da propriedade a quem não fosse o titular dela, mas, fazendo essa transferência temporária, seja em função de prazo determinado, termo ou condição, de modo a voltar a quem seria seu titular, ele prestava-se a outras finalidades que não só à renda. Nesse mecanismo, com certo caráter previdenciário , consoante visão da época, mantinha-se a perpetuação da propriedade , assegurando a herdeiros seu recebimento, porque acresciam-se alguns deveres a quem recebesse a coisa usufrutuária de modo a garantir ao máximo o recebimento de volta da coisa na sua integridade. Deveres de cuidado (a que chamavam de

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“bonus pater familias” e hoje diríamos “dever de diligência e probidade”), proibição de alienar, direito d’o proprietário buscar de volta a coisa, caso ela caísse em mãos estranhas (oponibilidade, pois, “erga omnes”) foram atribuídos ao instituto , para assegurar as finalidades , num processo histórico.

Descrevem os autores a gênese do instituto de maneira quase convergente, ressaltando sempre o caráter alimentar. Ebert Chamoun descreve (CHAMOUN, 1957, p. 273) :

As servidões pessoais são o usufruto, o uso, a habitação e o direito às operae de um escravo ou animal doméstico. No direito moderno desapareceram evidentemente as operae bem como a designação de "servidões" para os direitos reais de usufruto, uso e habitação, que constituem institutos autônomos, não tendo de comum com as servidões senão a natureza real.

Sua função econômica consistia em assegurar a alguém os meios de subsistência: tinha finalidade alimentar.

O usufruto podia constituir-se apenas sobre coisas inconsumíveis, móveis ou imóveis; escapam-lhe as coisas consumíveis por ser impossível preservar a sua substância já que, com respeito a elas, o gozo se confunde com a destruição. Por conseguinte, se fosse legado o usufruto de um patrimônio ou de uma parte dele, as coisas consumíveis consideravam-se excluídas. Para evitar, porém, que as disposições dessa natureza sofressem uma tal diminuição, um senatus-consulto do início do Império admitiu que se pudesse legar também o usufruto das coisas consumíveis. Nasceu, assim, o quase-usufruto (quasi usufructus). O quase-quase-usufruto torna-se proprietário das coisas sujeitas a seu direito, mas presta caução (satisfatio) de que as restituirá no fim do quase-usufruto. Analogicamente permitiu-se o quapermitiu-se-usufruto de um crédito: permitiu-se a dívida é paga, o quapermitiu-se- quase-usufrutuário percebe os juros do capital obrigando-se a restituí-lo no fim do quase-usufruto.

Dídimo Agapito da Veiga (VEIGA, 1925, p. 8) retroage na história para identificar a separação do domínio do proveito da propriedade, em institutos assemelhados :

Os fragmentos da história antiga a que faz referencia Pastoret (“apud” Dalloz), parecem indicar que nos tempos primitivos já existiam institutos de direito, que tinham grandes semelhanças com o usufruto; somente, o direito romano imprimiu a este a sua última e verdadeira feição, ao menos a que exprime a deslocação dos dois

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atributos do domínio - o direito à substância e à fruição das coisas sujeitas à propriedade, para coloca-las no patrimônio de duas pessoas diferentes, conforme a asserção da Hannequin (Tratado da Legislação) reproduzida por Dalloz (Repert. verb. Usufruit, n. 2). Certo que a partilha das terras entre as tribos de Israel com concessão, por tempo determinado - a cada uma das famílias, que deviam explorar o quinhão das mesmas terras, que possuíssem, e que lhes houvessem cabido em partilha, tendo elas a faculdade de aliená-las, com a cláusula de restituição, que a lei estabelecia, e se operava, segundo o Levítico, ao fim de sete vezes sete anos, para que no ano do jubileu, isto é, no quinquagésimo, cada um reassumisse a posse dos bens alienados, por efeito da venda, do legado, ou da doação temporária feita pelo concessionário da parte das terras, não aparentavam senão cessões de usufruto e de fruição das terras, por isso que estas legadas e doadas, deviam no ano jubilar voltar à posse dos filhos do doador ou testador, e si tais filhos não existissem, ao herdeiro que a lei indicasse, para nele se encabeçar a posse; se não tem assim, bem nítida a figura do usufruto as concessões que Pastoret, apoiado nas autoridades de Dedotoro de Sicília e de Tenéu, referem terem sido feitas das rendas das pescas do lago Moeris, ou do território d'Anthyla, pelos reis do Egito e da Persia, às suas mulheres, para suas despesas particulares, o facto é que revelam que já naquelas épocas remotas, reconhecia-se a faculdade de isolar a fruição da coisa, do domínio da mesma.

Em uma outra perspectiva à que usualmente os autores descrevem , julgamos necessário situar o significado do patrimônio na antiguidade em seu caráter político , inclusive de cidadania, bem como socialmente como fator de enobrecimento ou distinção social, mas também para ressaltar outro aspecto , o de aprimoramento de sua função produtora de riquezas. Nessa perspectiva, a propriedade seria mais dinâmica e isso implicava, ao menos, em certa medida na sua circulação. Mas nem sempre foi assim, houve uma evolução até esse aspecto dinâmico se sobressair nas sociedades antigas.

Como narra Foustel de Coulanges, primitivamente, em alguns povos, como os germanos, a colheita era individual, mas não o solo; entre tártaros o rebanho era do indivíduo mas não o solo; contrariamente, entre alguns gregos, a colheita era comum, ou parte dela, mas a propriedade era individual. Desta forma, notável avanço econômico e social, foi o reconhecimento da propriedade individual e de seus frutos por alguns povos. A gênese de tal propriedade foi a divindade. Ela era um concessão dos deuses aos povos, ou local de assento dos antepassados

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mortos, eis o vínculo sagrado da terra à família : “Nessa casa a família é senhora e proprietária. A divindade doméstica lhe assegura tal direito” (COULANGES, 2002, p. 69). Era tão forte esse vínculo que usualmente a venda era proibida; essa imobilidade tinha efeitos contundentes de um modo geral (resquícios que formam a raiz do conceito de “erga onmes” em todo direito real) (COULANGES, 2002, p. 75 e 76) :

Se o homem não podia, ou só com dificuldade, desligar-se da terra, com muito mais razão não deviam privar dela contra sua vontade. Entre os antigos, a expropriação motivada por utilidade pública era desconhecida. O confisco só se praticava como consequência da sentença de exílio, isto é, quando o homem, privado do título de cidadão, já não podia exercer nenhum direito na cidade. A expropriação por dívidas também é desconhecida pelo antigo direito das cidades. A Lei das Doze Tábuas seguramente não poupa o devedor, mas não permite que a sua propriedade seja confiscada em proveito do credor. O corpo do homem responde pela dívida, não o faz terra, porque esta é inseparável da família. Era mais fácil escravizar o homem do que lhe tirar o direito de propriedade, que pertencia mais a família do que a ele próprio; o devedor está nas mãos do credor; a sua terra, contudo, de modo algum o acompanha na servidão. O senhor que, em seu proveito, usa das forças físicas do homem, goza também dos frutos da terra, mas não se torna seu proprietário. Como o direito de propriedade é inviolável e superior a qualquer outro direito

As modificações da sociedade humana alteram esse quadro, trazendo à tona a circulação de bens. Coulanges nos dá notícia do processo de passagem para a ampliação da alienação de terras, ressaltando alguns aspectos (“op. cit.”, p. 76) :

Hoje só conhecemos o direito romano a partir das Doze Tábuas; está claro que, nessa época, já se permitia a venda da propriedade. Mas há forte razões para acreditar que, nos primórdios de Roma, e na Itália anterior a sua fundação, a terra foi considerada tão inalienável quanto na Grécia. Se não nos resta testemunho escrito antigo dessa antiga lei, percebem-se pelo menos as alterações que foi sofrendo aos poucos. A Lei das Doze Tábuas, embora conservando ao túmulo a

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inalienabilidade, isentou desse princípio o campo. Em seguida, permitiu-se a divisão da propriedade quando existissem vários irmãos, mas sob a condição de que a partilha só se consumasse mediante cerimônia religiosa: só a religião poderá dividir o que ela própria proclamara indivisível. Por fim, permitiu-se a venda das terras; mas exigia-se também, nesse caso, formalidades de natureza religiosa. Essa venda só podia se realizar perante o libripens e com obediência de todos os ritos simbólicos da macipação. Observa-se fato análogo na Grécia: a venda de uma casa ou de bens de raiz fazia-se sempre acompanhar por sacrifícios aos deuses. Parece que toda a mudança de propriedade, para ser efetiva, devia ser autorizada pela religião.

Do vínculo absoluto e indissociável à família, a propriedade, de certa forma, transformou-se em instrumento de acúmulo de riqueza, seja pela colheita de seus frutos, como fonte de renda ou de extração de produtos, como metais, pedras preciosas etc. Gradativamente, como é natural, passou ela também a ser alienável, no todo em parte. E, como efeito colateral desse quadro, gerou uma nova espécie de diferenciação social e mudança, seja para ascensão, seja para declínio dos atores.

Sob o fator social da propriedade e da capacidade de permitir o fazer negócios, inclusive como elemento para formação da elite local, as palavras de Paul Veyne assim descrevem-no já em Roma (VEYNE, 1990, p. 141) :

“ Todos homens são iguais em humanidade, até os escravos, porém os que possuem patrimônio são mais iguais do que os outros. Esse mesmo patrimônio desempenha na economia antiga um papel tão central quanto da empresa entres nós, o da sociedade anônima; no entanto, para bem compreendê-lo precisamos deixar de lado as ideias que seriam verdadeiras no Ancien Régime. Fazer negócios em Roma não significava aviltar-se; a usura e o comércio não eram apanágio de exclusivo de uma classe ou ordem especializadas, burguesia, libertos ou cavaleiros; a nobreza e os notáveis não eram todos proprietários absenteístas, senhores indolentes; a autarcia, o mito filosófico, não constituía a finalidade de sua gestão e eles não se limitavam a explorar superficialmente seus domínios para tirar aquilo com que mantinham sua posição: queriam aumentar seu patrimônio, ganhar dinheiro por todos os meios. A grande palavra não era autarcia, nem indolência, nem

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