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12º Encontro da ABCP. 19 a 23 de outubro de Evento online. Área Temática: 08. Participação Política

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12º Encontro da ABCP 19 a 23 de outubro de 2020

Evento online

Área Temática: 08. Participação Política

CONTANDO AS MORTES: transnacionalização e produção de conhecimento no movimento trans brasileiro

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Resumo

Até muito recentemente o movimento social de travestis, mulheres transexuais e homens trans brasileiros não tinha como foco prioritário o desenvolvimento de estratégias ou cooperações transnacionais de forma mais sustentada. Isso vem mudando nos últimos anos, o que culminou na criação de um observatório latino-americano de violências transfóbicas. Tal observatório busca estimular a produção de políticas públicas por meio da produção de dados sobre violência. O presente trabalho investiga esse processo específico de transnacionalização, buscando compreender como algumas mudanças recentes possibilitaram e impulsionaram tal processo. Sigo a hipótese de que a produção de dados quantitativos sobre assassinatos de pessoas trans é o fio condutor dessa história e que seria ainda afetada por 5 processos/eixos de influência. Trata-se de uma pesquisa empírica, de caráter etnográfico.

Palavras-chave: Movimentos Sociais; Transnacionalização; Produção de Conhecimento; Transexualidade

Abstract

Until very recently, the brazilian social movement of travestis, transsexual women and trans men did not focus on developing transnational strategies or cooperation in a more sustainable way. This has been changing in recent years, culminating in the creation of a Latin American observatory of transphobic violence. Such an observatory seeks to stimulate the production of public policies through the production of data on violence. The present work investigates this specific process of transnationalization, seeking to understand how some recent changes have enabled and driven such a process. I follow the hypothesis that the production of quantitative data on murders of trans people is the guiding thread of this story and that it would still be affected by 5 processes/axes of influence. It is an empirical research, using an ethnographic approach.

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O movimento brasileiro de travestis, mulheres transexuais e homens (movimento trans) está caminhando em direção a sua quarta década de existência institucional no Brasil. Há versões concorrentes que disputam o pioneirismo de determinadas ativistas que atuaram individualmente ou em organizações do movimento LGBT mais amplo, mas é consenso entre ativistas e a literatura (CARVALHO; CARRARA, 2013; COACCI, 2018; FACCHINI, 2003) que a primeira organização institucionalizada específica para representar a luta política de travestis, a Associação de Travestis e Liberados (ASTRAL), foi fundada no Rio de Janeiro em 1993. De lá para cá, o movimento se expandiu, se consolidou e passou por uma série de reconfigurações em suas pautas, estratégias e até mesmo nas identidades que busca representar.

Atualmente, existem organizações do movimento trans em todos os estados da federação, em todas as capitais e em diversas cidades do interior. Algumas cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, existem até mais de uma organização em âmbito local em atuação. Os formatos institucionais se multiplicaram desde a tendência ao formato juridicamente institucionalizado das ONGs que predominou nos anos 90, até os coletivos informais e as vezes até mesmo virtuais que vem se consolidando nos últimos anos. Além disso, esse movimento social foi capaz de estabelecer um diálogo fértil com o Estado e a sociedade em geral e obteve resultados impressionantes e relativamente rápidos. Dentre esses, se destaca com mais facilidade o processo transexualizador, uma política pública que integra o SUS e oferece gratuitamente uma ampla gama de procedimentos de saúde como hormonização, acompanhamento psicoterapêutico e cirurgias para as pessoas trans (TEIXEIRA, 2013; TENENBLAT, 2014), ou a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que autorizou a retificação de nome e gênero direto em cartório e sem a exigência de laudos.

Apesar disso ou talvez justamente por ter conseguido esse sucesso, o movimento trans brasileiro institucionalizado1 - representado principalmente pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA)2 - se manteve relativamente afastado de redes 1 Como demonstrei alhures (COACCI, 2014), outros setores menos institucionalizados do movimento, como o coletivo transfeminismo, que teve na internet seu locus principal de atuação e articulação, teve uma proximidade maior com discursos e ativistas estrangeiros. Isso inclusive ajuda a explicar parcialmente determinados conflitos entre diferentes setores do movimento trans. Todavia, essa aproximação era mais discursiva do que parcerias efetivas entre ativistas ou organizações.

2 ANTRA é a primeira e atualmente a maior associação nacional de pessoas trans do país. Foi oficialmente fundada em 2000, todavia suas ativistas argumentam que a história da associação deve ser contada a partir

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inter/transnacionais e organizações de outros países. Não havia um desconhecimento das redes e organizações de outros país. A língua não era uma barreira insuperável. Muitas lideranças do movimento trans, inclusive, tiveram a experiência de morar parte da vida na Europa ou outro país3, como é o caso de Keila Simpson4 que morou na Itália (CARRIJO; SIMPSON, 2017). Todos esses fatores pareciam apontar na direção de facilitar as relações de parceria e cooperação transnacional, mesmo assim, a parcela institucionalizada do movimento trans brasileiro optou por articular suas ações e parcerias quase exclusivamente dentro do âmbito nacional e sem realizar grandes parcerias internacionais. Como alguns estudos antropológicos já demonstraram, esse desinteresse e às vezes rejeição explícita a determinadas tendências dos movimentos trans internacionais como o uso da categoria transgênero esteve ligado a centralidade da identidade travesti, de caráter local, na construção do sujeito político do movimento (BARBOSA, 2015; CARVALHO, 2011).

Esse relativo afastamento da arena e de ativistas internacionais foi a posição majoritária até pelo menos a segunda metade da década de 2010. Nos últimos anos, as organizações do movimento trans começaram a perceber os organismos internacionais e os sistemas internacionais de proteção de direitos humanos como uma arena interessante para suas demandas e buscaram acioná-los, mesmo que ainda de forma pouco sistemática. Além disso, começaram a surgir novas redes e projetos que agora são encabeçados justamente por organizações situadas no Brasil, como é o caso do Observatorio de violencia

contra las personas trans y género no binário de América Latina y el Caribe (Observatório

LAC), que monitora os assassinatos de pessoas trans na América Latina. Mas, como isso ocorreu? O que se alterou para que o movimento que já buscou efetivamente se afastar de organizações estrangeiras, agora as busque? E por que justamente agora?

Essa é uma pesquisa que dá continuidade ao trabalho que desenvolvi durante o doutorado (COACCI, 2018) e se encontra ainda em estágio inicial de elaboração. Ao longo do meu trabalho anterior explorei a relação entre a produção de conhecimento e o movimento trans brasileiro. Acompanhei a produção do relatório de assassinatos de

da história dos encontros do ENTLAIDS, que ocorrem desde meados da década de 1990.

3 É importante ressaltar que essa experiência de migração está muito ligada ao trabalho sexual. Durante esse período que vivem no exterior, muitas vezes em situação de ilegalidade, nem sempre essas ativistas buscam se integrar no movimento trans daquele país. Para uma análise mais detalhada dessa experiência de migração de travestis brasileiras para a Europa ver: Larissa Pelúcio (2009) e Julieta Vartabedian (2014). 4 Keila Simpson é uma das principais lideranças travestis do Brasil. Já ocupou cargos em diversas redes

nacionais do movimento LGBT e especificamente do movimento trans. Atualmente é presidenta da ANTRA (Gestão 2016-2020).

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pessoas trans por Sayonara Nogueira5 e analisei como essa estratégia se multiplicou por

outras organizações e redes em nosso país. Ao fazer isso, percebi as conexões transnacionais que estavam sendo traçadas nesse processo, mas pelo foco do trabalho não pude explorá-las adequadamente. Após minha saída de campo, as conexões transnacionais se multiplicaram e renderam a fundação de uma nova organização transnacional específica para realizar o monitoramento da violência transfóbica na região: o Observatório LAC. Dessa maneira, a hipótese que avanço é a de que a produção de um relatório de assassinatos de

pessoa trans, inicialmente realizada por uma professora travesti do interior de Minas Gerais e que posteriormente foi absorvida pelas principais organizações trans brasileiras, foi o fio que possibilitou que esse movimento social reatasse alguns laços internacionais e criasse novos.

Me interesso em proceder metodologicamente construindo uma narrativa que permita colocar os movimentos sociais, a produção de conhecimento e as instituições políticas em um mesmo plano, percebendo os processos mútuos de coprodução, ainda que ao fim um dos eixos possa vir a ter uma magnitude maior na determinação dos sentidos dos acontecimentos. Tal maneira de operar se deve a uma influência híbrida dos STS (JASANOFF, 2004; LATOUR, 2009) e dos estudos de gênero e sexualidade (HARAWAY, 1994; VIANNA; LOWENKRON, 2017). Operando, assim, na fronteira entre a ciência política interpretativa e a antropologia. Desde 2014 venho combinando o uso de três métodos/técnicas para me relacionar com o campo, acompanhar o cotidiano das produções de dados e as relações entre ativistas e organizações que compõe o movimento trans brasileiro e mais recentemente o Observatório LAC, são elas: (i) etnografia de atividades, encontros, bem como das páginas virtuais de ativistas e organizações; (ii) análise documental dos relatórios, atas de encontros, notícias e outros documentos; (iii) entrevistas em profundidade com ativistas trans e outras pessoas relacionadas ao campo.

5 Sayonara Nogueira é uma ativista travesti radicada em Uberlândia, Minas Gerais. Entre os anos de 2015 e 2017 foi filiada a Rede Trans Brasil, uma associação nacional de pessoas trans do Brasil que surgiu como dissidência da ANTRA. Foi responsável por iniciar o mapeamento específico de assassinatos de pessoas trans Brasil. A partir de 2017 funda Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE) e se aproxima mais da ANTRA, chegando a unificar o seu projeto de mapeamento com o projeto similar que a ANTRA passou a realizar. Descrevi detalhadamente esse processo em minha pesquisa de doutorado.

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Figura 1: síntese da proposta do argumento

Fonte: elaboração própria

Sendo assim, ao seguir o fio da contagem dessas mortes em direção ao processo de constituição de uma organização internacional, é revelado o quanto esse processo é complexo e nesse estágio inicial da pesquisa vislumbro, pelo menos, cinco eixos ou dimensões fundamentais que participam da explicação do fenômeno: (i) as reconfigurações das estruturas de oportunidade nacional e internacional a partir da segunda metade da década de 2010; (ii) um processo progressivo de dataficação da vida e da política, que coloca a estatística e os dados quantitativos como a língua franca da política; (iii) a reconfiguração dos enquadramentos e das identidades representadas pelo movimento trans necessário para a transformação de pessoas e identidades em números; (iv) a legitimidade moral presente na demanda por direitos sustentada em denúncias de violência e de assassinatos; (v) uma mudança geracional no movimento trans que mais recentemente

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passa a ser composto por ativistas que se apropriam de conhecimentos acadêmicos e de tecnologias de comunicação como as redes sociais para atuar. Anuncio esses vários eixos mais como um projeto do que pretendo explorar futuramente, do que algo que consigo já elaborar adequadamente aqui. A Figura 1 sintetiza a maneira provisória pela qual tento explicar o fenômeno.

Além disso, acredito ser necessário dividir o processo de transnacionalização do movimento trans brasileiro em dois momentos. Um primeiro (representado na Figura 1 pelas setas 2 e 3) em que ocorre o contato e a parceria entre Sayonara Nogueira, que realizava o mapeamento de assassinatos para a Rede Trans6, e Lukas Berredo7, representante da Transgender Europe. Esse momento foi importante para fornecer a Sayonara uma série de recursos como dinheiro, conhecimento técnico e uma rede de contatos global. Todavia é marcado menos como uma aliança e mais como um caráter contratual. Os recursos financeiros e o treinamento são oferecidos pela TGEU, em troca se espera que a organização beneficiada realize o mapeamento e forneça os dados dentro dos padrões ensinados, para garantir a comparabilidade com os dados europeus.

O segundo momento (representado na Figura 1 pelas setas 4 e 5) ocorre mais recentemente. À medida que os relatórios produzidos no Brasil circulam globalmente junto com suas autoras, permitem encontros com ativistas latinas que já faziam trabalhos similares ou que gostariam de iniciar. Tais encontros e os laços que são por eles produzidos culminam, em 2018, com a fundação do Observatório LAC, uma rede que congrega organizações de diversos países da América Latina para monitorar os assassinatos de pessoas trans. Atualmente, o Observatório LAC é oficialmente composto por 5 organizações, são elas: ANTRA (Brasil); Colectivo Trans del Uruguay (Uruguay); Convocatoria

Federal Trans y Travesti (Argentina); Instituto Brasileiro Trans de Educação (Brasil); Otrans

(Argentina). Conta ainda com a colaboração de ativistas de outros países como Bolívia, Colombia, Costa Rica e Cuba. Entre essas organizações não há transferência de recursos financeiros, apenas o compartilhamento de conhecimentos e de dados para um fim comum, mas parece ainda haver algum tipo de hierarquia ou ao menos de coordenação pelas organizações brasileiras. Esse segundo momento parece se aproximar do que Rose Spalding (2016) tem chamado de transnacionalismo lateral. Segundo a autora, as relações

6 A Rede Trans Brasil é uma associação nacional de pessoas trans do Brasil que surgiu, em 2009, como dissidência da ANTRA.

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de aliança com organizações do norte global tendem a possuir um maior grau de assimetria, hierarquia e controle do processo pelas organizações do norte, dessa maneira organizações da América Latina buscariam construir alianças com organizações da mesma região que possuiriam padrões culturais e de acesso à recursos similares e tenderiam, assim, a possuir um menor grau de assimetria.

A seguir, passo a descrever mais detalhadamente o primeiro momento do processo de transnacionalização. A análise mais detalhada do segundo momento ainda está em fase de desenvolvimento.

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A ideia da produção de um mapeamento específico dos assassinatos e violações de direitos humanos de pessoas trans surge a partir do trabalho de Sayonara Nogueira como professora de geografia. Como me relatou em entrevista, em suas aulas realizava uma atividade chamada cartografia da resistência, em que dividia a sala em grupos e pedia para cada um produzir mapas específicos sobre assassinatos de mulheres, pessoas negras, pessoas LGBT e outros grupos subalternos. Durante a realização de uma dessas atividades, um de seus alunos teria apontado problemas nos dados do Grupo Gay da Bahia, que estavam sendo utilizados para a tarefa: havia uma subnotificação de pessoas trans, que eram catalogadas incorretamente como gays ou lésbicas. O problema não era exatamente desconhecido e já era discutido por organizações de pessoas trans há alguns anos. Aquilo disparou em Sayonara a vontade de fazer algo. A professora, que naquele momento ocupava o cargo de Secretária de Comunicação da Rede Trans Brasil, resolveu levar para sua organização a ideia de realizar um mapeamento específico para pessoas trans e recebeu o aval da Rede para iniciar as atividades.

No mesmo período, a organização europeia Transgender Europe (TGEU), buscava uma pessoa para coordenar o projeto TvT – Transrespect Versus Transphobia Worldwide no Brasil. A TGEU funciona como uma think tank em prol dos direitos das pessoas trans, atuando quase exclusivamente por meio da produção de conhecimento. Em 2008, a TGEU percebeu uma precariedade no conhecimento sobre mortes de pessoas trans e gênero diversas no âmbito internacional. Segundo seu diagnóstico, até aquele ano, a única fonte de dados existente sobre essas mortes era o site americano do Transgender Day of

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Remembrance (TDOR), que contabilizava 28 assassinatos para o ano de 2008. Naquele

mesmo ano, o Grupo Gay da Bahia, fonte de dados utilizados pelo TGEU para seus relatórios sobre o Brasil, contabilizava 59 assassinatos.

É importante dar um passo ao lado aqui e destacar que a violência transfóbica produz o ativismo transnacional da TGEU e a conecta discursivamente ao Brasil desde os primórdios dessa organização. A primeira campanha internacional coordenada pela TGEU foi a Justice for Gisberta, uma campanha motivada pelo assassinato brutal de Gisberta Salce Júnior, uma travesti brasileira residente em Portugal, assassinada em 2006. Para essa campanha, produziram uma série de ações como manifestações em embaixadas portuguesas e o documentário Gisberta – Liberdade, tornando a travesti brasileira um símbolo da luta contra a violência transfóbica na Europa. O Brasil figura ainda como uma presença constante em todos os relatórios de assassinatos da organização, serve como um instrumento discursivo para mostrar a agudez da violência transfóbica pelo mundo e demandar ações urgentes. Nenhum país é mencionado tantas vezes quanto o Brasil nesses documentos. Apenas para exemplificar, no relatório de 2016, o Brasil é mencionado 42 vezes. Em comparação, o México, país que ocupa o segundo lugar no número bruto de mortes, é mencionado apenas 17 vezes.

Até 2015, a TGEU utilizou os dados de assassinatos fornecidos pelo GGB. Por acreditar que não eram completamente confiáveis e pela magnitude dos assassinatos no Brasil - 40% do total de assassinatos de pessoas trans no mundo -, o coordenador do projeto TvT, Lukas Berredo - homem trans brasileiro radicado na Alemanha – buscou uma pessoa trans brasileira que estivesse disposta a realizar o levantamento por aqui. Segundo o ativista me afirmou em entrevista, até aquele momento desconhecia o trabalho de Sayonara e a existência da Rede Trans Brasil. Foi por intermédio de Luísa Stern – mulher transexual e ativista da Rede Trans Brasil – que Lukas e Sayonara se conheceram. Luísa ficou sabendo pelas redes sociais do processo seletivo da TGEU e sabendo que Sayonara já realizava esse trabalho pela Rede, se apressou a colocá-la em contato com Lukas. Após o contato inicial, foi celebrada uma parceria entre as organizações. Sayonara, como representante da Rede Trans, assinou um contrato de cooperação em que cederia seus dados para a TGEU, em troca receberia uma remuneração e participaria de capacitações periódicas para aprimorar e homogeneizar a coleta de dados nos diversos países. Ao longo do ano de duração do contrato, Sayonara participou de quatro workshops metodológicos,

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cada um deles realizado em um país diferente: Itália, Tailândia, Guatemala e outro no Brasil.

Dessa maneira, a produção de dados quantitativos sobre a morte de pessoas trans é o que ativa uma conexão transnacional entre a Rede Trans e a TGEU. Conexão essa que fornece uma série de recursos para a Rede Trans Brasil como: uma pequena verba para apoiar a realização do mapeamento; treinamento metodológico; divulgação internacional; e, talvez, mais importante, insere a Rede Trans Brasil numa rede transnacional de ativistas trans. Sayonara afirma que os workshops ofereciam uma base densa de conhecimento metodológico, mas destaca ainda que funcionavam para fazer networking e trocar experiências entre organizações.

Como analisei em outros trabalhos, essa estratégia foi tão eficaz que se espalhou por outras organizações do movimento social de pessoas trans como a ANTRA. Além disso, no final de 2017 Sayonara se desfiliou da Rede Trans Brasil e fundou junto com Andreia Lais Cantelli e Bruna Benevides o Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), que passa a sediar em 2018 o projeto Observatório Trans unificando os projetos de mapeamentos de Sayonara e o da ANTRA.

A estratégia de produção de dados ainda fomentou outras estratégias como a denúncia e exposição do Brasil na arena internacional. Como argumenta Della Porta e Tarrow há nas últimas décadas uma ampliação da força das instituições transnacionais sobre as esferas nacionais e é comum que movimentos sociais busquem realizar essa

mudança de escala para promover o constrangimento institucional através de organizações

internacionais e também ferir a honra do país na comunidade internacional. A articulação entre mobilização nacional e internacional tem se mostrado eficaz em outros casos para pressionar o Brasil, como na mobilização pela Lei Maria da Penha.

Segundo Sayonara, a Rede Trans Brasil não chegou a levar os dados na ONU, como prometido pela presidenta da Rede, todavia uma integrante da Rede o fez por meio de outra associação que compunha. A ANTRA aproveitou uma cerimônia na ONU Brasil, em Janeiro de 2018, para apresentar os dados do seu relatório para diversas autoridades e entregar uma cópia física diretamente a Jaime Nadal, representante no Brasil do Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA)8. Na ocasião, Bruna Benevides ainda afirmou que 8 O Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) é a agência de desenvolvimento internacional da ONU que trata de questões populacionais, seu foco principal são os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e outras pessoas jovens.

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utilizaria do mesmo relatório para denunciar o Brasil na Organização dos Estados Americanos (OEA).

Os relatórios não ficaram restritos ao Brasil e circularam por todo o mundo. Com isso, Bruna e Sayonara têm sido chamadas para apresentar esse trabalho em diversos países, seja em eventos promovidos por organizações internacionais como a ONU e a OEA, em universidades ou em encontros de movimentos sociais. Esse trânsito das ativistas e dos relatórios pelo mundo tem permitido criar novos laços de solidariedade, inspirado organizações estrangeiras a adotar uma estratégia similar de produção de dados sobre assassinatos de pessoas trans e mais recentemente resultou na criação do Observatório LAC, uma versão latinoamericana do Observatório de Violências do IBTE. Atualmente, o Observatório LAC é oficialmente composto por 5 organizações, são elas: ANTRA (Brasil); Colectivo Trans del Uruguay (Uruguay); Convocatoria Federal Trans y Travesti (Argentina); Instituto Brasileiro Trans de Educação (Brasil); Otrans (Argentina).

É difícil afirmar que esses relatórios produziram algum tipo de alteração nas instituições internacionais ou mesmo que por meio dessas conexões transnacionais recentes já conquistaram alguma mudança institucional no Brasil. De toda maneira, esses documentos são conhecidos e utilizados por essas agências como parte da fundamentação de algumas de suas ações. Um exemplo é o projeto Trans-formações, criado em 2017, pela ONU Brasil. Tal projeto visa “fomentar as redes de pessoas trans do DF e Entorno” e entre as justificativas apresentadas no edital da segunda edição, realizada ao longo de 2018, se encontram os dados produzidos pelas redes brasileiras e o comparativo produzido pela TGEU. Esses mesmos dados tem sido acionados também pelos ministros do Supremo Tribunal Federal para fundamentar suas decisões recentes tanto na ação que permitiu a retificação de nome e gênero de pessoas trans, quanto a sobre a criminalização da LGBTIfobia. Não quero com isso traçar uma relação forte de causalidade entre essas ações da ONU e do STF e esses dados, mas demonstrar como essa produção de dados tem sido um repertório fundamental no diálogo socioestatal,

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Dentre suas ações está o auxílio no uso de dados populacionais para fomentar políticas públicas. Para mais informações:

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Por enquanto, essa breve descrição do primeiro momento da transnacionalização do movimento trans é o que consigo oferecer de mais robusto. Por enquanto dou conta de descrever o como essa transnacionalização ocorreu, mas acredito que a partir da exploração dos eixos de influência conseguirei avançar um pouco no porque. Esse caso é especialmente curioso por se diferenciar de outros tantos casos de movimentos sociais brasileiros que se transnacionalizaram anteriormente, principalmente nas décadas de 1990 e 2000, impulsionados pelos Foruns Sociais Mundiais e outras experiências de ativismo transnacional. No entanto, parece apontar para uma tendência que talvez ocorra com outros movimentos sociais que buscarão outras maneiras de influenciar no âmbito nacional, mesmo com o progressivo fechamento das estruturas de oportunidade nacionais a partir de meados das décadas de 2010. Me parece também que as cooperações transnacionais para a produção de dados deve ser uma tendência a ser encontrada em outros movimentos e que merece ser melhor explorada analiticamente.

Referências

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