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Falar na Língua dos Mortos: Wenceslau de Moraes e Paulo Rocha

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Academic year: 2021

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Morte e Espectralidade

nas Artes e na Literatura

FERNANDO GUERREIRO JOSÉ BÉRTOLO

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Morte e Espectralidade nas Artes e na Literatura

Edição: Fernando Guerreiro e José Bértolo Capa: Sal Studio, a partir de fotografia espírita de William Hope, c. 1920.

Revisão: Moirika Reker (CEC) Paginação: Margarida Baldaia © 2019, Autores e Edições Húmus Edições Húmus, Lda., 2019 Apartado 7081

4764-908 Ribeirão – V. N. Famalicão Telef.: 926 375 305

humus@humus.com.pt ISBN:

978-989-Impressão: Papelmunde, SMG, Lda. – V. N. Famalicão 1.ª edição: Março de 2019

Depósito Legal:

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UID/ELT/0509/2019.

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FALAR NA LÍNGUA DOS MORTOS

WENCESLAU DE MORAES E PAULO ROCHA

José Bértolo*

At the coming of twilight

I invited him to return with me —! Now to sleep alone

In the shadow of the rushes of Akanuma

Lafcadio Hearn, “Oshidori”

Inscrevendo-se numa vasta tradição de cinema que toma a literatura como um ponto de partida, A Ilha dos Amores (1982) e A Ilha de Moraes (1984), de Paulo Rocha, constituem aproximações cinematográficas particulares à figura literária de Wenceslau de Moraes, não estabelecendo com a obra deste, contudo, uma relação de adaptação.

Para além de tematizarem o Oriente, os escritos do autor são também sobre a sua vida e os seus mortos, daí resultando que a matéria essencial da sua escrita é, em última instância, ele mesmo. Assim sendo, o primeiro dos filmes de Rocha, A Ilha dos Amores, pode considerar-se – enquanto o biopic que, no fim de contas, é – uma recriação cinematográfica da figura de Wenceslau de Moraes. Comentando a tendência autobiográfica, ou auto-representativa, que se faz sentir na obra do escritor, Rocha afirmou que “[a]s biografias de W. de Moraes continuam os textos que ele escreveu sobre si próprio”

* Centro de Estudos Comparatistas, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa. Este artigo resulta de investigação financiada por Fundos Nacionais através de uma Bolsa de Doutoramento da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PD/BD/113726/2015), com o acolhimento do Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa, no âmbito do PhD-COMP – Programa Internacional de Doutoramento FCT em Estudos Comparatistas.

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(Rocha 1996, 111). Podemos, então, tomar em consideração os dois filmes de Rocha – que se localizam ambos, não obstante diferenças evidentes entre si, no campo lato da biografia – como um prolongamento possível dessa obra já à partida (auto)biográfica.

Com esta hipótese no horizonte da análise, este ensaio atentará particu-larmente, numa primeira parte, no modo como Wenceslau conceptualiza a escrita como um meio de invocação de (ou, mais concretamente, dos seus) fantasmas, e, numa segunda parte, na forma como Rocha recorre à figura e ao universo literário do autor para dar seguimento a um trabalho da mesma ordem, deslocando o questionamento de partida para o campo específico do cinema.

INVOCAÇÕES (WENCESLAU DE MORAES)

O livro que mais notoriamente informa A Ilha dos Amores é Ó-Yoné e Ko-Haru, publicado em 1923. Depois de perder Ó-Yoné, a primeira mulher com quem viveu no Japão, Wenceslau demite-se da posição de cônsul em Kobe e viaja para a pequena cidade de Tokushima, unindo-se aí a Ko-Haru, sobrinha da primeira mulher. Ko-Haru morre alguns anos depois, votando Wenceslau a uma dupla viuvez, ostensivamente solitária, que se prolongaria até à morte do escritor em 1929. Ó-Yoné e Ko-Haru formula-se como o resultado para-digmático dessa solidão. Os textos que compõem o volume – uma espécie de antologia de contos – são em parte autónomos, porém interdependentes, uma vez que partilham duas características fulcrais: por um lado, a narra-ção na primeira pessoa, que tem origem na efectiva assunnarra-ção da autoria por parte de Wenceslau; e, por outro lado, a presença das figuras titulares (as duas japonesas), que se faz sentir, explícita ou implicitamente, em cada um dos textos que compõem o volume.

Ó-Yoné e Ko-Haru é um livro fúnebre e elegíaco, e a sua ligação à temática

da morte, e, em particular, a remissão para as esposas mortas, manifesta-se desde logo em dois elementos paratextuais: o título, composto exclusiva-mente pelos nomes das duas falecidas, em vincada conjunção, e a reprodu-ção dos retratos destas mulheres nas páginas do livro. A capa da primeira edição continha um retrato oval de Ó-Yoné, ao passo que, no verso da capa, se encontravam os retratos de Ó-Yoné e também de Ko-Haru. Esta opção gráfica responde, na verdade, simultaneamente à matéria narrativa do livro (como referi, a presença das duas mulheres mortas nos contos é constante) e a uma dimensão simbólica que o livro, uma espécie de memento mori, possui

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também. Ainda antes de iniciar a leitura, o leitor é desta forma sensibilizado para o inusitado parentesco arquitectónico entre o livro em mãos e uma pedra tumular. Com este efeito de analogia sugere-se, ainda antes de se entrar no texto, que dentro do livro podem ser encontrados os restos mortais daquelas que ele lapidarmente apresenta. Considerado enquanto livro-túmulo, o livro instaura, assim, um princípio de trasladação, que não corresponde apenas a uma deslocação, mas também, e essencialmente, a uma metamorfose: do túmulo para o livro, a carne, a pele, os ossos ou os cabelos são transmutados em linguagem, e a literatura (e, em particular, o livro) adquire aqui o estatuto especial de morada dos mortos, tornando-se uma alternativa efectiva aos cemi-térios, “antiga[s] cidade[s] de mortos, densamente povoada[s]” (Moraes 2018, 187), que Wenceslau conta visitar amiúde em O Bon-Odori em Tokushima.

Na introdução à edição mais recente de Ó-Yoné e Ko-Haru, publicada pela Imprensa Nacional, Tereza Sena defende que o volume pode ser considerado um “ritual de invocação da memória das […] mortas” de Wenceslau de Moraes (Sena 2006, 43). Contudo, e perseguindo a poderosa analogia entre livro e túmulo, dir-se-ia que a tematização obsessiva da proximidade entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos, da porosidade destes domínios, e especial-mente da possibilidade da sua interpenetração, permite-nos ousar considerar a hipótese de o livro se formular como um ritual de invocação, não tanto da

memória das mortas, mas mais, de certo modo, das mortas elas mesmas. No

fim de contas, ao escrevê-las, Wenceslau convoca efectivamente para junto de si, para o seu quotidiano de escrita, as mulheres ausentes, recompondo-as por palavras. Deste modo, a escrita deixa apenas de descrever e passa a criar, tornando-se um instrumento que permite suspender a distância à partida intransponível que a morte criou entre este homem e as suas esposas.

A própria matéria narrativa dos textos que compõem Ó-Yoné e Ko-Haru parece consubstanciar esta ideia, tematizando as supracitadas proximidade, permeabilidade e interpenetração dos mundos dos vivos e dos mortos. No conto inicial, “Ko-Haru”, que documenta a doença que levou a mulher epó-nima à morte, Ko-Haru diz, pouco antes de morrer, “[e]sta noite, regresso” (Moraes 2006, 78). O narrador, que devemos confundir com o autor, prossegue: “Kaerimasu, regresso… Deixai-me, vós que me lereis, fixar a vossa atenção particularmente neste termo, ungido de mística beleza […] regresso… regresso, isto é, regresso ao sítio donde vim, regresso ao céu, regresso a Buda…” (Moraes 2006, 78). Numa análise literal, o regresso de que fala o narrador é aquele que reconduz os seres a um lugar primordial, fora do mundo, no momento da sua morte. Contudo, e valorizando a retoma constante de Ko-Haru ao longo das

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páginas do livro, a promessa de retorno pode ser entendida também como o anúncio de que esta morte – localizada, significativamente, no início do livro – não constitui, no fim de contas, inteiramente o fim do ser; hipótese esta que o texto vai corroborar, oferecendo um segundo entendimento da promessa de Ko-Haru (regresso aqui). Depois de morta, Ko-Haru regres-sará ao livro e, por conseguinte – se acreditarmos na sugestão anterior de que, para Wenceslau, a escrita se operacionaliza como ritual de invocação –, ao mundo dos vivos. O conto termina, aliás, com o anúncio inequívoco de que, de facto, a morte não é o fim, e não precisaria sequer da literatura para ser emendada: “em cada ano, o espírito de Ko-Haru descerá do céu à terra, penetrará no lar familiar, conservando-se por algumas horas em companhia dos pais e dos irmãos…” (Moraes 2006, 83).

A noção de que os limites do mundo dos vivos e do mundo dos mortos não são estanques é desenvolvida de forma particularmente eloquente em “Será Ó-Yoné?… Será Ko-Haru?…”, em cujo primeiro parágrafo se lê que “neste mundo… como no outro […] grande coisa é estar a gente em boas relações com os mortos e grande coisa é estar a gente em boas relações com os bichos!…” (Moraes 2006, 89). A explicitação do parentesco entre mortos e bichos é realizada de seguida, em passagens nas quais o autor reflecte sobre o fenómeno da metempsicose, descrito nos termos de “visitas sucessivas à terra, após mortes sucessivas, do mesmo indivíduo humano, mas transformado num outro ser, num quadrúpede, numa ave, num insecto”, o que permite, por fim, que “[m]ortos e bichos [possam] oferecer, por este modo, muitas afinidades de relação, de parentesco” (Moraes 2006, 90). O autor narra então um suposto episódio experienciado por si: ao regressar a casa após uma nova visita aos dois túmulos, não consegue abrir a porta de entrada, pois a escuri-dão da noite não lhe permite encontrar a fechadura. Nesse momento surge, porém, um pirilampo que, ao alumiar a fechadura, lhe permite finalmente entrar em casa. A reflexão acerca da metempsicose nas primeiras páginas do conto prepara o leitor para a conclusão inevitável avançada por Wenceslau, de que o pirilampo pode ser, na verdade, Ó-Yoné ou Ko-Haru.

A descrição destas mulheres como um pirilampo reluzente que per-turba a escuridão da mesma noite que torna as formas do mundo indistintas não pode deixar de recordar, num primeiro nível, uma certa iconografia do fantasma. Este detalhe perturba a lógica supostamente racionalizante da metempsicose, e acrescenta-lhe uma nova carga simbólica; afinal, as mortas não aparecem na forma de um gato ou de um pássaro, isto é, transmutadas na concretude material de seres que coexistem de maneira não problemática

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com os humanos. Pelo contrário, elas aparecem sob a forma de um pirilampo, uma criatura de pequena dimensão que se torna perceptível, na escuridão da noite, através da irradiação de luz. Por outro lado, a luz através da qual o pirilampo se torna perceptível é ténue, contendo em si o apagamento em devir que o invisibilizará e, de certa forma, reduzirá a sua existência a nada, uma vez que – valorizando a própria etimologia do seu nome (pyris [fogo] e

lampis [luz]) – o pirilampo se define através da luz que gera. Ele é, em suma,

um ser de natureza instável, na fronteira entre visibilidade e invisibilidade, e, como consequência – dado que ele é definido, enquanto ser, pela sua própria luz –, a existência e a não existência. Torna-se assim particularmente rele-vante que Wenceslau recorra ao pirilampo enquanto figura representativa das mortas, uma vez que, à semelhança destes bichos, também elas, enquanto

fantasmas, são seres de ontologia complexa, que dependem da faculdade

humana de as ver.

Se o conto tem este primeiro nível – de cariz demonstrativo e ontológico, digamos – mais estritamente relacionado com o estatuto dos mortos, há um outro que deve ser valorizado, e que diz respeito ao próprio Wenceslau, à relação que este mantém com os mortos, e ao lugar que a escrita desempe-nha neste trânsito. A dado momento, num passo em que o autor se reporta à popularidade destes insectos no Japão, partilha também a lenda de

um estudante chinês, depois notável nas letras, tão aplicado ao estudo e tão pobre, que passava as noites de Verão a folhear e a consultar os livros; mas, como nem os recursos lhe chegassem para adquirir umas gotas de azeite com que guarnecesse a sua lâmpada, era com a luz dos pirilampos, colhidos previamente pelas suas mãos experientes e retidos em gaiolas, que ele se ia alumiando… (Moraes 2006, 92)

Perspectivando esta história em função da ideia central do texto, que con-siste no estabelecimento de uma correspondência entre as mulheres mortas e os insectos, pode extrair-se a ideia, fundamental para a compreensão de todo o livro, de que, tal como para o notável das letras chinês a existência de pirilampos (de “bichos”) é a condição que possibilita a leitura, para Wenceslau é a existência dos mortos aquilo que possibilita, “alumiando-a”, a escrita.

O efeito literário desta poética é o de um realismo fantasmagórico que se afigura especialmente perturbador se valorizarmos a primeira pessoa na qual todos os textos são escritos, e que encena a confluência entre autor e narrador. No seguimento desta afinidade, resultante da dimensão autobio-gráfica comentada por Tereza Sena e Paulo Rocha, dir-se-ia que o livro é

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fantasmagórico porque a experiência da vida de Wenceslau também o é a partir do momento em que Ko-Haru morre e ele renuncia ao mundo, pas-sando a viver para (e portanto, com, ou entre) os mortos. É deste modo que o registo destas histórias se constrói no domínio de um realismo com um tanto de onírico. E o motivo do sonho, aliás, é explicitamente mobilizado no livro desde a dedicatória inicial, onde é introduzido enquanto uma noção que integra a realidade e a vigília, não se lhes opondo. O livro é dedicado justamente, e apenas, não àqueles que sonham, mas àqueles “que vivem do sonho” (53), ou seja, àqueles que – daydreamers, tal como o autor – vivem uma vida decisivamente contaminada pelo onirismo.

O conto “Sonhando”, dedicado aos “ex-camaradas do mesmo curso,

com-panheiros a bordo da corveta Paciência” (225), é, a este respeito, o exemplo

mais eloquente. A abrir o texto, Wenceslau dirige-se aos ex-camaradas, perguntando-lhes o que sonham eles, para que possa “comparar os sonhos [deles] com os [seus]” (227). Logo depois, lê-se:

Eu bem quisera ser feliz em sonhos, sonhar serenidades de lar e doces conche-gos de gente amiga ao pé de mim, já que a realidade da vida não me beneficiou com este regalo. Ou então, se pedir tanto, mesmo em sonhos, fosse muito, eu já me contentara em ir sonhando com os meus mortos, com os entes que amei e já se foram deste mundo; ter a ilusão dos seus vultos, do som das suas vozes, dos seus carinhos, numa ressurreição fantasmagórica, que atravessasse o meu cérebro irrequieto durante algumas horas, enquanto o corpo ia dormindo… (228)

Nesta abertura, propõe-se um cenário em que a realidade da vida e o domínio do sonho parecem perfeitamente destrinçáveis. O sonho é primei-ramente apresentado como o lugar no qual, em alternativa ao mundo real, a felicidade é possível, e depois caracterizado como o espaço em que o autor pode ter a “ilusão” do contacto com aqueles que perdeu, e com quem não pode contactar no mundo real. A progressão do texto, no entanto, tratará de problematizar esta cisão. A dado momento, Wenceslau menciona uma possibilidade lendária de “ver para além dos sentidos” (230), e anuncia, numa primeira inversão do paradigma racional do início, que “sonha com [os mortos] acordado, quase que hora por hora, minuto por minuto, em cada dia” (230). Se nos primeiros parágrafos o sonho corresponde ao espaço da ilusão, formulando-se, consequentemente, como alternativa à experiência do real, neste passo o sonho já é apresentado como uma possibilidade efectiva de vida, numa recuperação do entendimento complexo destes temas para o

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qual apontara a dedicatória. Não se trata apenas, porém, de uma questão de experiência subjectiva. Quando o autor diz que “quando me encontro esten-dido sobre as colchas e prestes a adormecer, as alminhas dos meus mortos, que foram meus convivas durante o dia inteiro, retiram-se discretamente do casebre, vão não sei para onde” (230), está a asseverar que os mortos habitam efectivamente o real, consubstanciando o sonho em vida.

O conto termina com a narração de um sonho em que Ó-Yoné desempe-nhara um papel de destaque. Nesse sonho, Wenceslau conversava com ela, não em português ou japonês, mas “na língua dos mortos”, que o homem vivo, “por simpatia, compreendia” (231). Durante a conversa sonhada, ele diz: “Olha, Ó-Yoné, tu estás aqui, a meu lado; estou vendo-te, estou ouvindo-te!… Não morreste, portanto; ou, se morreste, voltaste à vida novamente… Não morras pois, de novo; fica aqui, vivendo, amenizando o meu isolamento” (232), e então, o vulto da mulher começa a desfazer-se, fugindo; “mas eu continuei vendo o seu sorriso… E, quando acordei, dissipada a visão, cônscio da vida real em que entrava, ainda continuei, por algum tempo, a ver o seu sorriso, nada mais…” (232, ênfase do autor), numa sugestão definitiva de que o sonho se prolonga para além dos seus limites, passando a integrar – ainda que, aqui, por um curto período de tempo – a “vida real”.

Neste livro dedicado a mulheres falecidas1, no entanto, os espectros

presentes não são apenas os dos mortos. Ao falar na primeira pessoa, colo-cando-se inexoravelmente no livro enquanto matéria do mesmo, Wenceslau apresenta-se perante uma audiência de leitores, não apenas como autor, mas como personagem disponível para ser lida. Presentifica-se, porém, enquanto, também ele, um fantasma, uma espécie particular de fantasma, menos

apari-ção – este é o caso de Ó-Yoné e Ko-Haru que, como vimos, precisam do texto

para serem convocadas – do que desaparição. Assim, em Ó-Yoné e Ko-Haru, Wenceslau produz uma obra em que a convocação de si mesmo enquanto figura em desaparecimento – à partida, uma estranha aporia – está na ori-gem de um igualmente estranho efeito de leitura: lemos o remanescente da eloquência de alguém que, tendo morrido com os seus mortos, parece abandonar lentamente o mundo dos vivos. Esta ideia é sugerida pelo próprio autor, em passos como o seguinte:

1 Num estabelecimento de parentesco, voluntário ou involuntário, com alguma literatura

decadentista e finissecular que tematiza a viuvez, de que são exemplos “Vera”, de Villiers de l’Isle-Adam (1874), Bruges-la-morte, de Georges Rodenbach (1892), ou “The Altar of the Dead”, de Henry James (1895).

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Uma pessoa amiga pediu-me um conto japonês, para ser publicado na Lusa. Ora, eu já não sei escrever contos japoneses, a não serem, se tanto, os meus, os meus contos. É o que geralmente acontece […] com todos aqueles que rabiscaram prosa para o público e se sentem um belo dia […] prestes a desaparecer de cena. (Moraes 2006, 91, ênfase final minha, restantes ênfases do autor)

Esta desaparição de cena pode ser, em suma, a consciencialização de um

trabalho da morte, para retomar a formulação de Jean Cocteau, que passou a

afectar Wenceslau a partir do momento em que este se encontrou sozinho, após o falecimento da segunda mulher. Este trabalho, que se resume à cons-ciência do autor de que vive uma espécie de morte em vida, transita livremente para o livro, dada a estreita dependência entre a matéria narrada e a vida do autor. Morto para a vida, é como se Wenceslau vivesse principalmente pela escrita e para a escrita.

Num livro com estas características, torna-se inevitável atentar nas diferentes estratégias de auto-representação do autor. Num passo do conto “Rindo e chorando” particularmente relevante para esta discussão, lê-se, a propósito de Lafcadio Hearn (“o escritor que mais estimo” [250]):

Releio frequentemente os seus livros […] mas, se quiser exprimir com mais rigor a impressão que tiro disto, direi melhor, que não são os seus livros que releio, mas sim o próprio autor que oiço discorrer, como se ele tivesse vindo a Tokushima, ao meu albergue, falar-me do Japão […] Hoje, amanhã, em qualquer dia, quando releio uma página qualquer dos livros de Lafcadio, é e será, mais do que tudo, a aparição carinhosa do grande amigo, que veio de longe visitar-me e que eu saúdo… (250)

O passo citado denuncia uma conceptualização do autor como alguém que se presentifica perante o leitor durante o acto de leitura, que se corporiza através da escrita, ou, em termos consonantes com o que venho argumentando, que é como um fantasma invocado pela escrita. Conhecendo-se a influência de Lafcadio Hearn em Wenceslau de Moraes, que foi uma espécie de duplo lusófono do original anglo-saxónico representado por Hearn, é forçoso ver nesta caracterização de Hearn um reflexo de Wenceslau. O autor português pode ser, assim, o amigo que vem de longe visitar-nos. O uso da primeira pessoa, que diversas vezes assinalei, reforça esta ideia, mas há outros ele-mentos dignos de nota no que toca a esta questão. A já referida dedicatória do livro, bem como as dedicatórias particulares e a datação de cada conto,

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contribuem para inscrever no livro um regime comunicacional, e mesmo uma ideia de circuito, se valorizarmos o facto de estarmos perante contos escritos em português, no Japão, dedicados a personalidades portuguesas, e que estão à partida votados a viajar de um espaço para o outro, do Extremo Oriente para o extremo oposto do continente europeu, para aí serem final-mente publicados e lidos.

O trabalho sobre a auto-representação atinge um nível particularmente intenso em “O barril do lixo do cemitério de Chiyo On-Ji”, no qual, ao deam-bular pelas ruas de Tokushima, o narrador-autor avista ao longe um velho homem ocidental, que decide perseguir silenciosamente até ao seu destino, o cemitério. Aí chegados, o homem perseguido inicia um diálogo com aquele que o perseguiu, explicando-lhe o que o levou àquele lugar: “Quero mostrar-lhe dois túmulos de duas mulheres, que eu muito conheci. Ei-los. À direita, é o túmulo de Ó-Yoné, morta há sete anos; aqui cerca, é o túmulo de Ko-Haru, sua sobrinha, morta há perto de três anos” (151). Antes de se separarem, sucede o seguinte: “[e]stendi-lhe a mão em sinal de despedida, dei-lhe o meu nome e perguntei-lhe o seu. Sem hesitação, respondeu-me: – WENCESLAU DE MORAES” (152). Num post scriptum, o autor faz notar que “o velho e eu somos uma e a mesma pessoa”, e classifica o conto como uma resposta à tentativa de “exteriorizar-[s]e, duplicar-[s]e, constituir-[s]e o observador imparcial do sujeito” (153).

Atentando no conto, percebemos, no entanto, que a tentativa de atingir a exteriorização, a duplicação, a imparcialidade, é frustrada: quando o autor dá voz ao outro, o verdadeiro, aquilo que o ouvimos dizer está em perfeita consonância com o resto deste livro. Isto é, quando o outro fala, não há dife-rença entre a matéria do seu discurso e a matéria do discurso do eu, que seria aqui o narrador-autor. Assim se dá conta da impossibilidade da observação “imparcial”, da entrega a uma subjectivação obsessiva, aquilo que num dos textos coligidos o autor define como o “Eu psíquico”, comparável a “uma flo-resta virgem, selvática, impenetrável, onde desabrocham ao acaso… todas as florescências do estranho, do exótico, do inesperado, do surpreendente e do inverosímil” (127, ênfase do autor). Esta marca de interioridade, que parece filtrar qualquer tentativa de representação do mundo (e de si no mundo) que aqui se possa ler, é constitutiva de uma poética particular. Na sua introdução, Tereza Sena recorre a uma carta de Moraes enviada a um jovem escritor, na qual o autor denuncia a falência do realismo e propõe uma nova forma de escrita impressionista:

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Ponha a sua alma toda no que escreve […]. Não tenha vergonha do que disser. […] Vibre todo inteiro quando escrever, faça vibrar o coração de todos os que o lêem. O realismo de Zola, nu e cru, não presta, fez banca rota. Quer-se mais, quer-se a observação psicológica, quer-se a nota aguda, aguda como um punhal, que nos fira e vá ferir os outros. Nojo, cólera, asco, ódio, horror, amor, paixão, enlevo, idolatria, desespero, tristeza, etc., etc., etc., tudo serve; o que se quer é que exprima a impressão do que vê com uma palpitante emotividade do sentir, de maneira a ir comover fortemente os leitores. […] Para se escrever, é preciso a gente encontrar-se num estado especial, de concentração, de êxtase, de hip-notismo. Afinal de contas, exige-se que o escritor, como qualquer outro artista, seja um doente de espírito. […] O indivíduo acostumado a escrever consegue, sem auxílio de drogas, esse estado vibrátil, subtil, impressionável, sem o qual não se pode escrever nada com jeito. Repito, o escritor impressionista tem que ser um doente; a arte impõe isto. (Moraes apud Sena 2006, 38-39)

Este anti-realismo, realismo fantasmagórico, ou impressionismo literário, é justamente aquilo que parece ter migrado para os filmes que Paulo Rocha realizou a partir da figura de Moraes.

Caracterizados nesta primeira parte alguns pontos-chave da obra literária de Wenceslau, interessa-me agora considerar o modo como Rocha lida com a herança de Moraes nos seus dois filmes, designadamente no que diz respeito à temática da morte, à figura do fantasma, e à representação e à figuração de Wenceslau. Os dois filmes são construídos em regimes bem distintos – o fic-cional de cariz biográfico em A Ilha dos Amores, e o documental realista em

A Ilha de Moraes –, e, no entanto, veremos que eles oferecem respostas

com-plementares ao mesmo conjunto de questões. Em particular, interessa-me daqui em diante reflectir sobre de que modo Paulo Rocha trabalha a ideia de Wenceslau de que a escrita – e, por extensão, a arte (aqui, o cinema) – pode constituir um meio efectivo de re-apresentação, mas, essencialmente, de invocação e produção de fantasmas.

ENCARNAÇÕES (PAULO ROCHA)

A Ilha dos Amores responde ao modelo do biopic ficcional, estruturando-se

sobre uma série de quadros da vida de Wenceslau de Moraes, justapos-tos cronologicamente desde a partida de Lisboa até aos seus dias finais em Tokushima. No entanto, o filme demarca-se significativamente dos moldes mais reconhecíveis da biografia ao adoptar, enquanto elementos

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determinantes da sua constituição, uma estética não-naturalista e uma dimensão ritualística.

No início, uma legenda anuncia que o filme é uma “obra em 9 partes ins-pirada nas 9 Canções de Chu Yuan”. Rocha comentou que as canções do poeta chinês ofereceram uma solução para “o problema da forma e do fundo” do filme (Rocha 1996, 81). Ao nível da forma, o filme divide-se assim em nove partes, à semelhança das canções; porém, aquilo que aqui se afigura relevante tomar em consideração é o modo como esta obra chinesa resolve o “problema do fundo”. O recurso às nove canções de Chu Yuan serve essencialmente para inscrever no filme, desde logo (i. e., desde a forma), uma noção de ritualismo xamânico, prolongando e evidenciando a constelação temática e teórica que argumentei ser crucial na poética de Wenceslau.

Sugeri, na esteira da sugestão inicial de Tereza Sena, que Ó-Yoné e Ko-Haru funciona metaforicamente como um ritual de invocação de mortos. Por seu turno, as canções de Chu Yuan são-no efectivamente, uma vez que foram concebidas visando uma performance em que seriam entoadas por xamãs que, ao cantá-las, se ofereceriam à possessão de espíritos. Discutindo esta familiaridade insuspeita, Rocha afirma justamente que “o tema da viagem dos espíritos que voltam a este mundo para um encontro amoroso” (Rocha 1996, 81), que encontramos nas canções de Chu Yuan, ecoa tópicos trata-dos tanto no teatro Nô, quanto na obra de Wenceslau, particularmente em

O Bon-Odori de Tokushima e Ó-Yoné e Ko-Haru.

Num artigo recente sobre A Ilha dos Amores, Mário Avelar (2012) debruça-se sobre o modo como, a partir do uso de espelhos, o filme tematiza o processo de representação como ritual. Enquanto figura visual paradigmática de A Ilha

dos Amores, o espelho tanto pode ser entendido como figura de religação e

(mais ou menos deformada) duplicação, quanto pode ainda ser compreendido como uma figura da interface, que não só promove contactos entre diferentes dimensões, como também, fundamentalmente, permite atravessamentos.

Se analisarmos o funcionamento do espelho em Rocha à luz do traba-lho desenvolvido por Jean Cocteau com os espetraba-lhos em Le Sang d’un poète (1932) ou Orphée (1950), por exemplo, torna-se possível recuperar dos contos de Ó-Yoné e Ko-Haru a tematização da tenuidade das fronteiras entre matéria e espírito, visível e invisível, sonho e vigília, vida e morte. A poesia xamanística de Chu Yuan, que o filme convoca, funciona justamente como ponte entre essas forças opostas. A este respeito, lembro ainda a hipótese, anteriormente lançada, de que a escrita, para Wenceslau, também pode ser um meio de materializar fantasmas.

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A acrescer a estes elementos, Rocha reconheceu ainda a influência do teatro Nô no seu filme, dizendo, a propósito dessa relação, que “[u]ma das coisas bonitas do teatro Nô são os espíritos que voltam à terra e são supostos

entrarem nos corpos dos actores para representarem [note-se que, segundo

Rocha, são os espíritos que representam, e não os actores] factos dolorosos das suas vidas passadas” (Rocha 1996, 87, ênfase minha)2. Inscrevendo-se

firmemente nesta herança multifacetada, Rocha parece reivindicar para o seu filme esta qualidade de ponte efectiva entre esferas em princípio antagó-nicas. A propósito da corporização dos espíritos no teatro Nô, o cineasta faz notar que não se trata de “uma simples ‘representação’ de coisas passadas, mas [d]a sua repetição efectiva sob forma ritual” (Rocha 1996, 87, ênfase minha). Um plano inicial de A Ilha dos Amores torna claro que Rocha orquestra o seu filme como se este fosse, de alguma forma, uma peça Nô, nos termos segundo os quais o cineasta descreve esta forma teatral. Os actores estão de frente para a câmara, junto a uma série de retratos sobre uma mesa. Acerca deste plano, Rocha escreve o seguinte: “Nesta cerimónia chamam-se à terra os espíritos dos mortos. Os actores vão pedir aos espíritos de Moraes, de Ko-Haru e de Ó-Yoné para regressarem e reencarnarem neles” (Rocha 1996, 87). Ficamos assim a saber que nestes retratos figuram Moraes, Ko-Haru e Ó-Yoné, num prolongamento do uso da efígie inicialmente levado a cabo por Wenceslau no seu livro.

Em A Ilha dos Amores, um dos ingredientes essenciais é precisamente a figura do actor, uma vez que são os actores que, por definição, oferecem o

corpo às personagens. Mas o ritual de invocação a que assistimos neste plano

revela que estes corpos não têm o mesmo estatuto dos corpos de outros

biopics, em que os actores simplesmente representam as personagens. Aqui,

os actores tentam subsumir-se, não nas personagens, mas nos espíritos das pessoas reais que eles interpretam e que os ocupam durante as filmagens. Como consequência desta operação, e se tomarmos este ritual literalmente – algo que Rocha parece solicitar –, podemos dizer que testemunhamos a presença vicária de Wenceslau, Ó-Yoné e Ko-Haru, nos corpos dos actores, tal como nos rituais chineses veríamos, por uma espécie de efeito anamórfico,

2 Para além deste aspecto, que é mais determinante no âmbito da reflexão aqui em curso, deve

notar-se ainda que a influência do teatro Nô reverbera também na estética explicitamente artificiosa do filme, em particular na caracterização e nos cenários, o que evoca outras assi-milações do Nô no cinema japonês, das quais Trono de Sangue (1957), de Akira Kurosawa, é o exemplo mais emblemático.

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os espíritos a possuírem o corpo do xamã. Desta forma, embora a matéria prima de A Ilha dos Amores seja aquilo que é matérico (esta é a fatalidade do cinema enquanto meio fotográfico que depende, em larga medida, da contingência do mundo imanente), aquilo que Rocha visa aqui é, em última instância, tocar algo que esteja para lá da imanência, o invisível. Deste modo,

A Ilha dos Amores ensaia a possibilidade de ser um “filme de fantasmas” em

sentido literal, ou, ao menos, tão literal quanto possível.

Na “folha da Cinemateca” dedicada a A Ilha de Moraes, também José Manuel Costa se centra na ideia de espelho. Em particular, Costa usa o verbo “espelhar” para veicular a ideia de que A Ilha de Moraes constitui uma espécie de duplo de A Ilha dos Amores.

Note-se, a título de curiosidade – que não é, no entanto, despicienda –, que os dois títulos contêm quase exactamente os mesmos elementos, não obstante as palavras finais distintas. O anagrama (amores/moraes) evidencia a paridade absoluta entre os dois filmes, que diferem radicalmente um do outro em termos formais e estilísticos, mas que se aproximam de maneira determinante na partilha de uma mesma matéria, o universo literário de Wenceslau de Moraes. Para além disso, o anagrama não só sublinha – enquanto jogo de palavras – a dimensão arbitrária e combinatória da linguagem, como enfatiza também a complexidade dos processos de significação – o que é importante perceber numa análise comparada destes dois filmes. Verificar que um mesmo conjunto de letras pode ter significados discrepantes quando disposto em diferentes combinações reflecte a ideia de que os filmes de Rocha partem de uma série de elementos comuns, para atingirem – através de um processamento particular desses elementos – formas singulares e distintas.

Ao interrogar a razão da viragem de Rocha para o documentário em A Ilha

de Moraes, Costa avança a hipótese de que o cineasta poderia estar a pôr em

prática “[o] desejo de exorcizar a carga fantasmática acumulada em densos percursos ficcionais” (Costa 1996, 164). Esta asserção parece implicar que, em primeiro lugar, o domínio da ficção pertence ao reino das sombras, e, em segundo lugar, que, se a ficção cria fantasmas, o real é o lugar onde estes podem ser exorcizados. Com este raciocínio, o autor argumenta que A Ilha

dos Amores é um fantasma que A Ilha de Moraes pretende exorcizar. Ao passo

que o primeiro filme ofereceria fantasmagoria e ilusão, o segundo proporia um encontro com a verdade.

Embora a argumentação de José Manuel Costa seja lógica e pertinente, a cisão que lhe subjaz merece ser alvo de um aprofundamento, uma vez que, no fim de contas, nem o primeiro filme é puramente um “tratamento

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Méliès” (teatral, artificioso, apelando ao imaginário) da vida de Wenceslau, nem o segundo filme é um “tratamento Lumière” (realista e documental) da mesma matéria.

Talvez A Ilha de Moraes pareça tratar-se, ao início, de um exorcismo dos fantasmas do filme que o precedeu, uma versão “positiva” do “negativo” pro-posto pelo filme anterior, concebido mais na linha da estética decadente da obra ficcional de Moraes. No entanto, rapidamente se percebe que o segundo filme pode não ser muito mais do que uma variação do primeiro – muito pró-xima deste, na verdade –, na medida em que ambos pretendem, em poucas palavras, tão-só uma aproximação, de certa forma inevitavelmente frustrada, ao “enigma moraesiano” (Sena 2006, 28). No fim de contas, no confronto com o filme anterior, talvez A Ilha de Moraes acabe por denunciar a realidade como sendo tão, ou mais, fantasmática do que a ficção.

De facto, A Ilha de Moraes aponta repetidamente para a ideia de que o acesso dado ao escritor é marcadamente indirecto. Isto prende-se com o próprio género cinematográfico no qual se constrói o filme, e que é, tal como refere José Manuel Costa, o do documentário. Estando morto, Wenceslau surge como um objecto impossível de representar nos termos de um realismo documental, simplesmente porque não está presente.

O acesso à figura do autor dá-se através de diversos elementos: docu-mentos históricos, tais como fotografias, cartas ou manuscritos; os relatos presenciais de indivíduos que contactaram com o escritor enquanto este vivia; imagens captadas nas ruas de Tokushima, do cemitério, da pedra tumu-lar do lendário Atsumori, etc. Isto é, o acesso a Wenceslau dá-se através da apresentação de coisas e lugares com os quais ele contactou directamente, nos quais tocou e em que terá deixado algum tipo de marca. O peso material destes lugares e objectos é naturalmente da ordem do fantasmagórico, porque a sua subsistência no tempo não pode senão evocar fugazmente o autor, rea-firmando a sua ausência no momento presente. Como consequência, filmar no Japão torna-se um meio deceptivo de materializar cinematograficamente Wenceslau de Moraes, contrariando a vocação para a verdade deste segundo filme. A sua elaboração no âmbito do real, por oposição ao da ficção, evidencia assim a inevitável obliquidade da representação (em sentido abstracto), que se torna ainda mais aguda ao processar-se, tal como se fazia já nas histórias de Wenceslau sobre as suas mortas, com a presentificação deficitária de um referente extinto.

Contudo, como referi, em Wenceslau – e em particular em Ó-Yoné e

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de, não apenas representar, mas também convocar efectivamente os fantasmas, que encontram na literatura uma nova realidade. É também neste sentido, como vimos, que as propriedades xamanísticas da representação operam em

A Ilha dos Amores. Torna-se então necessário averiguar por fim se também A Ilha de Moraes pode ser considerado uma meditação sobre a possibilidade

de o cinema realizar os fantasmas.

Em primeiro lugar, e seguindo as pistas nos títulos, convém lembrar que o primeiro filme era sobre os Amores, incluindo assim no seu “tema” as mulheres por quem Wenceslau se apaixonou. O segundo filme, por seu turno, é exclu-sivamente sobre Moraes. Wenceslau de Moraes é, assim, o único fantasma a ser convocado por Paulo Rocha na sua segunda incursão na vida do escritor. Num passo do seu texto, José Manuel Costa faz pertinentemente notar que, “plano a plano, A Ilha de Moraes cerra-se em torno do seu [realizador]” (Costa 1996, 165), assim explicitando um aspecto que julgo ser central na obra: a afinidade entre Paulo Rocha e Wenceslau de Moraes. Resumindo o argumento do estudioso, o filme teria começado por ser sobre Wenceslau de Moraes, para se tornar, no seu desenvolvimento, num filme sobre Paulo Rocha. Na verdade, a hipótese de Costa é corroborada por uma série de ele-mentos ou passos específicos em que essa sobreposição se torna clara, e dos quais selecciono três: 1) a certa altura, uma japonesa anciã diz a Rocha que a sua voz lhe faz lembrar a de Wenceslau; 2) na sequência final do cemitério, a bonza budista lembra-se de que, há muitos anos, se sentara nas mesmas escadas em que se senta agora, com a diferença importante de, nos velhos tempos, estar acompanhada por Wenceslau de Moraes, sendo Paulo Rocha quem se senta com ela no momento presente; e 3) o próprio percurso geo-gráfico que o filme documenta acaba por duplicar exactamente os caminhos traçados pelo escritor exilado, entre Macau, Kobe e Tokushima, com Lisboa a cumprir o papel de cidade-fantasma no horizonte.

A convergência entre Wenceslau e Rocha3 pode levar-nos a acreditar que

este filme é, de facto, sobre Rocha, como sugere José Manuel Costa. Porém, a lógica de significação estabelecida pelos dois filmes, tais como os tenho vindo a considerar desde os seus títulos anagramáticos, convida-nos a negar

3 Uma convergência para a qual já apontara, por exemplo, Serge Daney, ao referir-se aos dois

autores como “monomaníacos talentosos” (Daney 2015, 168), isto é, denunciando um carác-ter obsessivo partilhado por ambos, e que está no centro das suas obras artísticas. Um outro aspecto partilhado, só em certa medida extrínseco aos filmes e aos textos, é o evidente interesse especial que ambos desenvolveram pelo Oriente, e em particular pelo Japão, tendo os dois, por exemplo, aprendido a língua (cf. Cunha 2014, 17-19).

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a rasura de Wenceslau nesta aproximação entre os dois criadores. O filme é, desde o título, sobre Moraes. Mas se tudo nele (os lugares, os objectos, as pessoas) está indicialmente ligado a Wenceslau, talvez devamos atentar naquilo que, à partida, não possui qualquer ligação com ele, mas que, na verdade, é a primeira razão pela qual o filme existe: Paulo Rocha, que vemos frequentemente em campo ao longo do filme.

Observámos que, tanto em Ó-Yoné e Ko-Haru como em A Ilha dos Amores, Wenceslau e Rocha procuraram que a reprodução de situações e figuras que existiram realmente não se materializasse apenas de acordo com um mero processo de representação ou de imitação aproximativa. Em ambos, é no acto de escrever e de representar e filmar que, por meio da invocação, as situa-ções e as personagens históricas aparecem, adquirindo uma (certa forma de) realidade. Em Rocha, como em Wenceslau, a arte não é fundamentalmente um resultado da mimese, incluindo em si uma componente de invocação e possessão. Tal como o corpo de Luís Miguel Cintra se torna o depositário do espírito de Wenceslau de Moraes em A Ilha dos Amores, talvez o corpo de Paulo Rocha aspire a ser o depositário do espírito do autor em A Ilha de

Moraes; assim se sublinha a parcela mediúnica subjacente ao trabalho de um

“documentarista” que faz um filme sobre um morto, repisando as suas pegadas. A certa altura, Rocha lê em voz over palavras escritas na primeira pessoa por Wenceslau. Juntando este exemplo aos que mencionei antes, podemos considerar a hipótese de que, tal como houve uma invocação efectiva numa das sequências iniciais de A Ilha dos Amores, um processo análogo pode estar a acontecer em A Ilha de Moraes, embora desta vez já não abertamente ritua-lizado. Neste caso, porém, o processo adquire uma complexidade acrescida, uma vez que Rocha não é apenas actor no filme (como eram Luís Miguel Cintra e os restantes), mas também o seu autor. Seguindo a mesma lógica de análise do primeiro filme – baseada, convém lembrar, no próprio recurso de Rocha às canções de Chu Yuan e ao teatro Nô –, isto significa que, se Wenceslau possui Rocha neste filme, ele está a ocupar simultaneamente o lugar de actor e de realizador.

O primeiro caso não nos causa estupefacção, porque sabemos – pelo menos desde que vimos a sequência dos retratos em A Ilha dos Amores à luz dos comentários do cineasta – que uma personagem pode possuir um actor. O segundo caso, porém, parece mais desafiante. No seu texto, José Manuel Costa sugere que Rocha pode estar a ser “dirigido […] por Moraes” (Costa 1996, 165). Esta ideia permite uma nova perspectiva sobre a assimilação entre Wenceslau e Rocha que comentei antes. Se considerarmos que Rocha

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é também Wenceslau em A Ilha de Moraes, este filme marca o regresso do escritor, do mundo dos mortos ao mundo dos vivos. E ele está a fazer aqui – numa arte radicalmente diferente e através de Rocha, em quem encarna – aquilo que sempre fizera na sua escrita, isto é: autor-personagem (e realiza-dor-actor), falar na primeira pessoa do singular (aqui tornada, bizarramente, uma primeira pessoa do plural).

Mediando este colóquio com os mortos, Paulo Rocha, “procurador dos defuntos e dos ausentes”, como diz Camilo Pessanha em A Ilha dos Amores – interpretado pelo próprio realizador –, sugere que o cinema pode ser efec-tivamente entendido e praticado como um ritual xamânico da modernidade. Referências

Avelar, Mário. 2012. “Atos biográficos na sedução da imagem – A Ilha dos Amores, de Paulo Rocha”. Comunicação & Cultura n.º 13: 117-127.

Costa, José Manuel. 1996. “A Ilha dos Amores” (folha da Cinemateca, 19/12/1986). In Jorge Silva Melo (dir.), Paulo Rocha: O Rio do Ouro. Porto: Cinemateca Portuguesa, pp. 164-165. Cunha, Paulo. 2014. Enquadramento 3: Paulo Rocha. Guimarães: Cineclube de Guimarães. Daney, Serge. 2015. “Exílio, amor e tatami portugueses” [1982]. O Cinema que Faz Escrever:

textos críticos (org. Clara Rowland, Francisco Frazão, Susana Nascimento Duarte; trad.

de Ana Eliseu e Joana Frazão). Coimbra: Angelus Novus, pp. 165-168.

Melo, Jorge Silva (dir.). 1996. Paulo Rocha: O Rio do Ouro. Porto: Cinemateca Portuguesa. Moraes, Wenceslau de. 2006. Ó-Yoné e Ko-Haru (int. e org. Tereza Sena). Lisboa: Imprensa

Nacional-Casa da Moeda.

———. 2018. O Bon-Odori em Tokushima: Caderno de Impressões Íntimas. S.l.: Livros de Bordo. Rocha, Paulo. 1996. “A ilha dos amores: O diário das ilhas”. In Jorge Silva Melo (dir.), Paulo

Rocha: O Rio do Ouro. Porto: Cinemateca Portuguesa.

Sena, Tereza. 2006. “Introdução”. In Wenceslau de Moraes, Ó-Yoné e Ko-Haru (org. Tereza Sena). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pp. 15-45.

Yuan, Chu. 1955. The Nine Songs (trad. e comentários de Arthur Waley). In Arthur Waley, The

Nine Songs: A Study of Shamanism in Ancient China. Londres: George Allen and Unwin

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