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Valores do passado: tradição e nostalgia no Bloco da Saudade

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTE E COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

VALORES DO PASSADO: TRADIÇÃO E NOSTALGIA NO

BLOCO DA SAUDADE

MARIA ISABELLE DOMITILIA BARROS PEREIRA

Recife 2013

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VALORES DO PASSADO: TRADIÇÃO E NOSTALGIA NO

BLOCO DA SAUDADE

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, da Universidade Federal de Pernambuco, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Comunicação.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Felipe da Costa Trotta

Recife 2013

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Catalogação na fonte

Bibliotecária Maria Valéria Baltar de Abreu Vasconcelos, CRB4-439

P436v Pereira, Maria Isabelle Domitilia Barros

Valores do passado: tradição e nostalgia no Bloco da Saudade / Maria Isabelle Domitilia Barros Pereira. - Recife: O Autor, 2013.

128 f.

Orientador: Felipe da Costa Trotta.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. Centro de Artes e Comunicação. Comunicação Social, 2013.

Inclui referências.

1. Carnaval. 2. Blocos carnavalescos. 3. Nostalgia. 4. Frevo. 5. Tradições. I. Trotta, Felipe da Costa (Orientador). II.Titulo.

302.23 CDD (22.ed.) UFPE (CAC 2013-111)

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VALORES DO PASSADO: TRADIÇÃO E NOSTALGIA NO

BLOCO DA SAUDADE

Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do título de Mestre em Comunicação e aprovada em sua forma final pelo Orientador e pela Banca Examinadora.

Recife, 25 de março de 2013.

______________________________________________________ Professor e orientador Felipe da Costa Trotta, Doutor.

Universidade Federal de Pernambuco

______________________________________________________ Prof. Jeder Silveira Janotti Júnior, Doutor.

Universidade Federal de Pernambuco

______________________________________________________ Prof. Júlio César Fernandes Vila Nova, Doutor.

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AGRADECIMENTOS

À minha família, sempre: a Isailda, minha mãe, pelo apoio incondicional; a Edson, meu padrasto, pela ajuda em procurar fontes bibliográficas para a minha pesquisa; às minhas primas, Karolina e Máira, pela tolerância em dividir o mesmo espaço com pilhas de livros e artigos acadêmicos; e especialmente às minhas tias Isailma e Maria, toda a minha gratidão e amor por me darem força nos momentos de dúvida e desânimo. Sem elas, nada seria possível.

Ao meu orientador, Felipe Trotta, pela paciência e generosidade demostradas nesses últimos dois anos;

Aos colegas de PPGCOM Victor de Almeida e Eduardo Dias, pela amizade e pela companhia nos momentos de enriquecimento acadêmico vividos na UFPE;

Aos músicos e professores Cesar Berton e Nilson Barza, pela enorme contribuição que deram às análises musicais presentes nesta dissertação;

A Marco Cesar, Sérgio Godoy e ao maestro Edson Rodrigues, músicos competentíssimos e pesquisadores abnegados, por tirarem várias das minhas dúvidas a respeito do frevo-de-bloco;

A Carol Jordão, minha amiga-irmã, por estar ao meu lado em todos os momentos. A Mariana Nepomuceno, Maria Carolina Santos, Talles Colatino, Paulo Carvalho, Paulo Faltay e Luís Fernando Moura, amigos queridos, pelo estímulo;

Aos pesquisadores Thiago Soares e Carolina Leão, por me cederem, gentilmente, livros fundamentais para a conclusão deste trabalho;

Aos funcionários da Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco, que sempre me atenderam com toda a simpatia e educação;

E, em especial à Facepe, pela concessão da bolsa que possibilitou a continuação desta pesquisa.

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It isn't necessary to imagine the world ending in fire or ice. There are two other possibilities: one is paperwork, and the other is nostalgia.

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RESUMO

A partir da década de 70 do século XX, o Carnaval de Pernambuco passou a registrar o surgimento de novos blocos mistos, que tinham como objetivo resgatar os folguedos carnavalescos que animaram a classe média do Recife durante a primeira metade do século passado, antes de caírem no ostracismo, na década de 50. O objetivo do presente trabalho é discutir de que forma as noções de tradição e nostalgia são utilizadas por esses blocos para legitimar sua existência no presente. Para isso, tomamos como referência o Bloco da Saudade. Criado em 1973 e sediado na capital pernambucana, ele foi o primeiro a propor o resgate do modelo utilizado pelos blocos carnavalescos mistos. Sua atuação inspirou, em maior ou menor grau, o surgimento de dezenas de agremiações nos mesmos moldes ao longo dos anos 80, 90 e 2000. Para atingirmos essa meta, dividimos a dissertação em três capítulos. O primeiro contém uma contextualização histórica do Carnaval pernambucano e do contexto que permitiu o surgimento do Bloco da Saudade. O segundo capítulo engloba a análise textual e sonora das canções que embalam a agremiação. Na terceira parte, por fim, são detalhadas as estratégias do Bloco da Saudade para granjear valor simbólico no presente, focando principalmente seus mecanismos de validação social a partir das relações de classe e poder entre a agremiação e a sociedade local.

PALAVRAS-CHAVE: BLOCO DA SAUDADE, TRADIÇÃO, NOSTALGIA, FREVO-DE-BLOCO

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ABSTRACT

Since the 70s, the Carnival of Pernambuco started to have new blocos mistos, which aimed to rescue the carnival amusements that animated the middle class of Recife during the first half of the last century, before falling in ostracism, in the 50s. The aim of this research is to discuss how the concepts of tradition and nostalgia are used by these blocos to guarantee their existence nowadays, and, for that, we will analyze the Bloco da Saudade. Created in 1973 and headquartered in Recife, it was the first one to propose the recovery of the framework once used by blocos mistos. Its creation has inspired the emergence of dozens of similar associations over the years 80, 90 and 2000. The analysis shown here is divided in three chapters. The first contains an historical overview of Pernambuco Carnival and the context that allowed the emergence of Bloco da Saudade. The second chapter covers an analysis of the repertoire of the bloco‘s songs. In the third chapter, the strategies that Block da Saudade used to garner symbolic value in the present will be detalied, focusing primarily on its validation mechanisms from social class and power relations between the bloco and the society of Pernambuco.

PALAVRAS-CHAVE: BLOCO DA SAUDADE, TRADITION, NOSTALGIA, FREVO-DE-BLOCO

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

1. CARNAVAL PERNAMBUCANO: CONTEXTOS DE TEMPO E DE CLASSE ... 14

1.1 – DO ENTRUDO À MASCARADA: OS FESTEJOS MOMESCOS ANTES DO FREVO ... 14

1.2 – A INVENÇÃO DE UM CARNAVAL POPULAR: O SURGIMENTO DO FREVEDOURO ... 18

1.3 ALEGRES BANDOS – ASCENSÃO E QUEDA DOS BLOCOS CARNAVALESCOS MISTOS ... 28

1.4 - O FREVO COMO MÚSICA POPULAR MASSIVA ... 35

1.5 – RELEMBRANDO O PASSADO: A VOLTA DOS ALEGRES BANDOS A PARTIR DO BLOCO DA SAUDADE ... 42

2. ASPECTOS MUSICAIS DO BLOCO DA SAUDADE: NOSTALGIA, LIRISMO E TRADIÇÃO NO FREVO-DE-BLOCO ... 55

2.1 - O BLOCO DA SAUDADE E SEU REPERTÓRIO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS ... 55

2.2 - O FREVO-DE-BLOCO COMO GÊNERO MUSICAL ... 57

2.3 ASPECTOS SEMIÓTICOS DO FREVO-DE-BLOCO: ELOS DE MELODIA E LETRA ... 64

2.3.1 - Canções de saudade, evocação e desencanto ... 67

2.3.1.1 - Evocação nº 1 ... 67

2.3.1.2 - Relembrando o Passado ... 70

2.3.2 - Canções de Resistência ... 72

2.3.2.1 - Madeira que Cupim não Rói ... 73

2.3.2.2 - Último Regresso ... 76

2.3.3 - Canções de euforia e exaltação ... 79

2.3.3.1 - Bloco da Vitória ... 79

2.3.3.2 - Sabe lá o que é isso ... 82

2.3.4 - Canções de Recado e Rivalidade ... 84

2.3.4.1 - Xô, Xô, Páraquedista e Quá, Quá, Quá, Quá ... 84

3. ASPECTOS SOCIAIS DO BLOCO DA SAUDADE: RELAÇÕES DE CLASSE E PODER ... 89

3.1 – PANORAMA DE FOLIÃO: ASPECTOS DESCRITIVOS DA ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DO BLOCO DA SAUDADE ... 89

3.2. “VAMOS CAIR NO PASSO SEM ALTERAÇÃO”: OS BLOCOS CARNAVALESCOS COMO “BRINCADEIRA SADIA” ... 96

3.3 – A PERFORMANCE CARNAVALESCA: CORPO, GESTO E INDUMENTÁRIA NO BLOCO DA SAUDADE ... 102

3.4 – O CARNAVAL EM DISPUTA: NEGOCIAÇÕES E TENSÕES NOS BLOCOS CARNAVALESCOS DO RECIFE ... 109

3.5 - O JOGO DA LEGITIMAÇÃO INSTITUCIONAL – A NOÇÃO DE PATRIMÔNIO APLICADA AO FREVO E AO BLOCO DA SAUDADE ... 116

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 121

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INTRODUÇÃO

Nos primeiros anos do século XX, o Carnaval de Pernambuco era um caldo de cultura no qual começava a despontar uma característica que, até hoje, define culturalmente sua capital, Recife: o frevo. Criado no seio das bandas de música que animavam os clubes carnavalescos pedestres, o gênero musical, chamado inicialmente de marcha carnavalesca pernambucana, exercia forte atração entre as classes populares com seu andamento acelerado e sincopado, tomando de assalto o espaço público durante o tríduo momesco. No entanto, os trabalhadores urbanos pobres não seriam os únicos a ocupar as ruas por ocasião do Carnaval. A partir dos anos 20, profissionais liberais e outros integrantes da classe média também passaram a se organizar em agremiações chamadas de blocos carnavalescos mistos, que nasceram de reuniões festivas comuns naquela época, como saraus, serenatas e pastoris.

Essas agremiações saíam às ruas em uma divisão bem definida: os homens se encarregavam da parte musical nas orquestras de cordas, madeiras e palhetas, chamadas popularmente de pau-e-corda, enquanto as mulheres compunham o coro feminino e desfilavam protegidas por um cordão de isolamento, formado por parentes e amigos. A música ouvida nessas ocasiões tinha cadência mais lenta e se tornaria posteriormente conhecida como frevo-de-bloco. Já o passo rasgado que caracterizava o frevo não era permitido, apenas evoluções nas quais o pé arrastava suavemente no chão. Durante três décadas, os blocos carnavalescos mistos foram parte integrante do Carnaval do Recife, mas, nos anos 50, transformações sociais e urbanísticas fizeram com que essas agremiações começassem a desaparecer, restando poucas remanescentes.

Em 1973, um grupo de amigos – artistas, jornalistas e estudantes universitários - tomou para si a tarefa de resgatar o tipo de música tocado nos antigos blocos carnavalescos mistos, criando, para isso, uma agremiação que tinha a função de recriar esses grupos existentes na primeira metade do século. Surgia assim o Bloco da Saudade, cujo mote assumido era partir da nostalgia, do sentimento de falta por um tempo impossível de recuperar, para reconstituir, na medida do possível, uma prática cultural local que era vista como tradição a ponto de se perder. O bloco se tornou referência por motivar o surgimento de outras agremiações nos mesmos moldes, com ao menos uma diferença: a mudança de nome para blocos líricos, em alusão aos supostos romantismo e inocência dos Carnavais passados.

Mas de que forma a nostalgia dos carnavais do início do século XX e a evocação de uma tradição local são acionadas pelo Bloco da Saudade pra legitimar sua atuação hoje em

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dia? Por meio da escolha do repertório e de sua forma de organização, postulamos que a atuação da agremiação é utilizada como estratégia de distinção social pelos seus integrantes, oriundos de setores da classe média, que procuram classificar o Carnaval do Bloco da Saudade como ―sadio‖, tradicional, de valores familiares.

Para contextualizar o surgimento dos blocos líricos, o primeiro capítulo está reservado a uma recapitulação histórica do Carnaval desde o século XVI até os dias atuais, sem deixar de considerar a complexidade das tensões sociais que influenciaram a fruição do período momesco. Citamos o entrudo, brincado durante o período colonial e posteriormente proibido; os bailes de máscaras e os clubes de alegoria e crítica, atrações refinadas do tempo do Império; o surgimento dos clubes carnavalescos pedestres e, com eles, do frevo; o aparecimento dos blocos carnavalescos mistos; o amadurecimento do frevo como gênero musical e sua difusão pelo mercado fonográfico na primeira metade do século XX e o panorama carnavalesco local a partir da criação do Bloco da Saudade.

Consideramos que a atuação do Bloco da Saudade se dá em duas frentes: a musical e a social, e são esses os assuntos dos dois capítulos seguintes. O segundo se debruça sobre as especificidades do frevo-de-bloco como gênero musical, diferenciando esse tipo de música do frevo-de-rua e do frevo-canção, associados primordialmente às troças carnavalescas e clubes pedestres. O capítulo também contém uma análise musical de oito canções do repertório do Bloco da Saudade, a partir de uma adaptação livre da metodologia de análise semiótica da canção proposta pelo músico e linguista Luiz Tatit. As canções foram divididas em quatro diferentes categorias: saudade, evocação e desencanto; resistência; euforia e exaltação; recado e rivalidade.

O terceiro capítulo, por sua vez, diz respeito à atuação social da agremiação, demonstrando quais estratégias o Bloco da Saudade utiliza para afirmar sua importância no Carnaval pernambucano. A intenção é detalhar seu modo de organização interna, sua distribuição de atividades ao longo do ano, o perfil de seus integrantes, seus códigos de vestimenta e de movimentação corporal, suas relações com outros blocos líricos e sua interação com outras instâncias de legitimação social, como órgãos governamentais. Para entender como tal fenômeno acontece, além da revisão de literatura e da realização de entrevistas, recorreu-se à pesquisa de campo de matiz etnográfica, que incluiu a presença nos acertos-de-marcha promovidos pelo Bloco da Saudade no início de 2013, bem como em seus desfiles da rua.

Ao iniciar as leituras relacionadas ao presente projeto, percebemos dificuldades persistentes para encontrar referências bibliográficas sobre o frevo-de-bloco na área de

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Comunicação Social. No entanto, o mesmo tema já havia sido objeto de dissertações de mestrado e teses de doutorado em outras áreas do conhecimento como Música e Linguística. Essa multidisciplinaridade prova que o objeto se presta a variadas contextualizações, restando ao pesquisador demonstrar interesse e iniciativa em explorá-las.

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1.

CARNAVAL PERNAMBUCANO: CONTEXTOS DE

TEMPO E DE CLASSE

1.1 – DO ENTRUDO À MASCARADA: OS FESTEJOS MOMESCOS ANTES DO FREVO

As primeiras festas realizadas em território brasileiro que podem ser historicamente associadas ao Carnaval foram trazidas junto com as primeiras levas de portugueses a aportarem na colônia, ainda no século XVI. Essas festividades, realizadas nos três dias anteriores à quarta-feira de cinzas, eram chamadas de entrudo1, cujos primeiros registros na Península Ibérica remontam ao século XIII (DANTAS, 2000, p. 11). Tais datas, que antecediam a Quaresma, eram intimamente ligadas à vida religiosa e ao ciclo litúrgico católico (ARAÚJO, 1996, pp. 122-123), mas não tinham caráter oficial. Os festejos eram marcados por uma mesa farta e pelas batalhas, onde homens e mulheres jogavam, uns nos outros, itens que sujavam a roupa do adversário: ovos, farinha, água, laranjas e limas de cheiro2, lama, urina ou mesmo frutas podres. Essas comemorações, no entanto, não eram acompanhadas de nenhuma dança ou som musical característicos da época. Segundo Tinhorão (1978, p. 105), no entrudo do Brasil Colônia, ―não havia um mínimo de organização que exigisse um ritmo, e muito menos qualquer tipo de cantiga‖. As músicas e cortejos organizados eram reservados a festas oficiais, procissões e desfiles em outras datas do ano.

Desde o início da colônia até os primeiros anos do século XIX, o entrudo se fez progressivamente presente em todas as camadas sociais pernambucanas, tanto na zona urbana quanto na rural, mas, nas cidades e vilas, tais brincadeiras eram realizadas em dois espaços distintos: o público e o privado. As ruas, praças e chafarizes eram ocupados por negros e negras, fossem eles escravos ou libertos, além dos homens do pequeno comércio, soldados e trabalhadores braçais. Já o interior dos sobrados e das casas térreas eram os locais onde os integrantes das camadas média e alta poderiam brincar com parentes, agregados, vizinhos,

1 A palavra entrudo vem do latim introitus, que significa introdução, em uma referência ao período de abundância e licenciosidade que antecediam imediatamente a Quaresma, observada, em contraste, como tempo de penitência para os católicos. O Carnaval em si, na verdade, tem origens pagãs, sendo relacionado a antigos ritos de fertilidade celebrados ao fim do inverno no hemisfério Norte. Só depois essa festa foi integrada ao calendário cristão.

2

Produtos fabricados artesanalmente com cera, tintas e produtos perfumados, usados em casa e também vendidos nas ruas durante o entrudo (ARAÚJO, 1996, p. 124).

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amigos e visitantes. De acordo com a historiadora Rita de Cássia Barbosa de Araújo, esse tipo de comemoração intimista era usual até mesmo nas habitações das classes menos abastadas. A comunicação entre esses dois universos sociais, quando ocorria, ―estabelecia-se num clima carregado de tensões e [durante o entrudo] a troca, mesmo de projéteis de cera e ataques d‘água e pó, só era possível dentro de determinadas regras‖. (ARAÚJO, 1996, p.125)

Também era nos jogos de entrudo que as mulheres, principalmente das camadas média e alta, se viam um pouco menos sujeitas aos rígidos padrões de comportamento da sociedade patriarcal vigente no Brasil Colônia. Apesar de viverem em regime de semiclausura – as saídas à rua eram estritamente reguladas pelos homens e se resumiam, com raras exceções, à missa e a festividades públicas -, era permitido a elas brincar livremente o entrudo, desde que isso fosse feito dentro de casa. O relaxamento parcial das convenções relacionadas ao comportamento feminino e, ao mesmo tempo, a manutenção da estratificação social durante os Dias Gordos não escaparam a cronistas estrangeiros, como o francês Louis-François de Tollenare, que viveu no Recife entre 1816 e 1817:

As senhoras vos seguram, vos debateis, e, neste conflito, algumas vezes mais que bizarro, é difícil não esquecer um pouco que nos achamos em sociedade. Não desejaria ver nem minha irmã nem minha esposa no meio das recreações do entrudo. O que se passa nas ruas entre os escravos e a baixa plebe é ainda mais violento: depois das laranjadas vêm as garrafadas, as imundícies e as cacetadas (TOLLENARE apud SILVA, 2000, p. 15)

Tal juízo sobre o entrudo, como festa na qual era permitida ―toda laia de porcaria‖ (SILVA, 2000, p. 18) veio se fortalecer enormemente a partir da independência do Brasil, quando os jogos foram proibidos oficialmente – embora o entrudo, mesmo desprestigiado socialmente, ainda tenha sobrevivido, com o nome de mela-mela, ao longo do século XX. Avisos e alvarás proibindo sua existência eram divulgados na colônia desde o início do século XVII, mas o desagrado quanto aos jogos só veio a se tornar uma campanha orquestrada após 1822 (ARAÚJO, 1996, p. 155). Havia três argumentos para isso: a brincadeira seria a um só tempo uma herança pagã, bárbara e portuguesa. O Brasil passava a se constituir como nação independente, ou como ―comunidade imaginada‖3 no sentido que Benedict Anderson (1993,

3 Benedict Anderson (1993, p. 25) postula que a comunidade imaginada, enquanto nação, apresenta três características principais: se imagina limitada ―porque tem fronteiras finitas, ainda que elásticas, mas além das quais se encontram outras nações‖ (...), se imagina soberana ―porque o conceito nasceu em uma época na qual o Iluminismo e a Revolução Francesa estava destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico, divinamente ordenado‖, ou seja, a soberania também passava a dizer respeito ao povo, deixando de ser atributo exclusivo do

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p.25) dá ao termo, e o Carnaval teria papel cada vez mais importante no fomento das características que definiriam o país no futuro.

A partir dessa época, a elite nacional e a pernambucana passam a se ocupar da moralização e da organização do Carnaval, pois erradicar o entrudo seria fazer um movimento para aproximar o Brasil da ―civilização‖. Williams (1977, p. 19) lembra que, a partir do século XVIII, essa palavra passou a ter um duplo significado, oriundo de dois estados historicamente unidos: ela servia tanto para se contrapor à noção de ―barbárie‖ e caos social quanto para se referir a um estado realizado de desenvolvimento, que implicava progresso, refletindo uma concepção linear e evolutiva de história. Para tornar o período momesco mais ordeiro, cortês e refinado, o modelo seguido pelas classes mais altas foi o mesmo adotado nas comemorações da burguesia europeia, realizadas em cidades como Veneza, Roma, Nice e especialmente nos salões de Paris: os bailes de máscaras. A estratificação social do Carnaval brasileiro toma, então, novos contornos.

As mascaradas eram sofisticados bailes à fantasia, com comida, bebida, apresentações cênicas e musicais que começaram a acontecer nos salões da capital francesa a partir da década de 30 do século XIX. Além de exibirem seu poder econômico dentro dos salões, os ricos aproveitavam a ocasião para impressionar os transeuntes da cidade com as promenades, cortejos de carruagens ricamente decoradas que levavam foliões fantasiados a esses eventos exclusivos, abrindo caminho entre a multidão. A moda dos bailes iria, ainda, gerar uma forma de agrupamento peculiar, principalmente de membros da burguesia, na qual assembleias de foliões se organizavam de forma a extrair o máximo deleite durante o período carnavalesco: as sociedades (FERREIRA, 2005, pp. 60-61). Inicialmente reservado aos parisienses mais abastados, esse formato de festa se espalhou por todas as classes sociais da cidade e foi rapidamente exportado para outros locais, entre eles o Brasil Império.

A partir da década de 1840, começam a aparecer, no Rio de Janeiro, porta de entrada das novidades europeias na corte, os primeiros bailes de máscaras organizados à moda parisiense (TINHORÃO, 1978, p. 106). Esses eventos aconteciam em teatros, onde se cobrava ingresso para assisti-los, sem contar os custos extras da bebida e da indumentária. Tal como outras capitais brasileiras, como Salvador, Fortaleza e Desterro (atual Florianópolis), Recife não tardou a adotar a nova moda, mas, no Império, as classes menos abastadas eram mantidas longe dos bailes, em um modelo carnavalesco cuja tônica era a segregação social – apenas ricos ou, no mínimo remediados, eram bem vistos nesses eventos. Em 1847, a capital rei, (...), [e] por último, se imagina como comunidade porque, independentemente da desigualdade e exploração que porventura possam ocorrer, ―a nação se concebe sempre como um companheirismo profundo, horizontal‖.

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pernambucana já anunciava dois bailes públicos, um no Teatro Público e outro no Teatro Apolo (FERREIRA, 2004, p. 114). No interior das casas de espetáculo, bandas marciais da cidade eram contratadas para executar polcas, mazurcas, valsas e galopes, entre outros ritmos em voga. As atrações dessas festas eram companhias artísticas de procedência preferencialmente francesa e italiana. Em sua tese de doutoramento, o historiador Lucas Victor Silva anota que

os bailes ―luxuosos‖ do Recife serviam como máscaras para as permanências coloniais tais como a escravidão, o antiquíssimo monopólio da posse da terra por uma minoria de privilegiados, o poder discricionário dos senhores de terras e escravos sobre seus homens e mulheres (SILVA, 2009, p. 53)

Assim como em Paris, o ambiente das mascaradas propiciou o surgimento das associações ou sociedades carnavalescas em todo o Brasil. Diferentemente do que acontecia com os participantes do entrudo, as sociedades carnavalescas não se deslocavam aleatoriamente pela cidade, sendo, na verdade ―uma espécie de procissão, organizada em diversos setores dispostos em sequência, que seguia por um trajeto definido, indo de um ponto de partida a um ponto de chegada preestabelecidos‖ (FERREIRA, 2004, p. 160). O esplendor dos bailes passava dos salões para os espaços públicos, a partir da organização de cortejos que traziam carros, estandartes e insígnias. Uma das sociedades mais famosas era o Congresso das Sumidades Carnavalescas, criada em 1855, no Rio de Janeiro, por um grupo de amigos bem-nascidos, tendo como um de seus fundadores o escritor José de Alencar. Pouco a pouco, esse tipo de agrupamento alcançou níveis cada vez maiores de organização, com ―sede própria, estatuto, e funcionavam de maneira semelhante a um clube recreativo‖ (GONÇALVES, 2007, p. 61), e ficaram conhecidos, ao menos na antiga capital federal, como Grandes Sociedades. No Recife, não foi diferente. Em dia de festa, ao cair da tarde, as sociedades carnavalescas, com seus integrantes devidamente mascarados,

saíam em cortejo pelas vias centrais da capital pernambucana, para mostrar seu poderio ao resto da cidade e, ao mesmo tempo, incitar o resto da população a participar do baile, encantando-a com as já citadas máscaras, bandas de música, estandartes, insígnias e alegorias (ARAÚJO, 1996, p. 205).

Essas sociedades, por sua vez, originaram os clubes de alegoria e crítica, também oriundos da elite e da burguesia citadina, com forte apelo para a crítica de costumes, apontando defeitos da sociedade de então. ―A crítica fina e espirituosa – porém respeitadora

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da moral familiar e da vida privada – tornou-se sinal de distinção sociocultural‖ (ARAÚJO, 1996, p. 263). Em todo o Brasil, os mascarados, protegidos pelo anonimato, se viam mais desembaraçados das amarras sociais, podendo assim fazer críticas por meio de máscaras, fantasias ou mesmo de carros alegóricos4 com sátiras direcionadas tanto a categorias profissionais ou tipos sociais genéricos, seja nominalmente a membros da Igreja ou do Estado. No Recife, esses comentários sociais eram feitos também em jornais carnavalescos, onde abundavam caricaturas.

Esse Carnaval de inspiração europeia, feito apenas para a burguesia, excluía grande parte da população, que ficou sem opções de diversão após a proibição do entrudo. Mas, como aponta Ferreira, o projeto da burguesia em manter o resto da população como espectador passivo de uma festa ―civilizada‖ não foi inteiramente bem-sucedido. Enquanto parte da população desafiava mais abertamente o interdito oficial, outra parte ―procuraria participar da nova brincadeira de todos os modos possíveis, seja inspirando-se neles para criar novos divertimentos ou ainda torcendo pelos grupos e ‗dialogando‘ com seus desfilantes através de seu velho arsenal entrudístico‖ (FERREIRA, 2005, p. 155). Assim, as classes populares também passaram a se organizar para brincar o Carnaval, seja formando grupos para ornamentar as ruas onde viviam, seja contratando bandas de música, seja reunindo-se em clubes carnavalescos, à semelhança do que viam acontecer com as camadas mais abastadas da sociedade. ―A partir da década de 1870, o Carnaval de rua do Recife assegurou um estilo de festa que, com importantes mudanças, perdura até os tempos atuais‖ (ARAÚJO, 1996, pp. 209-210).

1.2 – A INVENÇÃO DE UM CARNAVAL POPULAR: O SURGIMENTO DO

FREVEDOURO

Além das mascaradas, o século XIX também viu surgir uma nova forma de organização social em Pernambuco, oriunda das classes populares: os clubes carnavalescos

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De acordo com Lucas Victor Silva (2009, p. 59), ―A imprensa registrava a existência de dois tipos de carros: as alegorias e as críticas. As alegorias eram os carros decorados com figuras e personagens fantasiados fazendo referências à literatura e à cultura europeias, à cultura greco-romana, à commedia dell‟arte ou a ícones e invenções tecnológicas do mundo moderno e a aspectos e personagens de países tidos como exóticos. As alegorias poderiam também fazer homenagens a figuras políticas nacionais como o então candidato Hermes da Fonseca, ou o recém falecido Barão do Rio Branco, ou ainda ao então General e Governador Dantas Barreto. As alegorias procuravam produzir o deslumbramento estético dos espectadores. Já os carros críticos deveriam provocar risos, pois traziam figuras e fantasiados satirizando personagens e costumes da vida política e social local e nacional da época‖.

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pedestres. Eles eram uma forma de associação civil, ―formal e legalmente constituídos, [e] possuíam estatutos que regiam os compromissos e o funcionamento interno da instituição‖ (ARAÚJO, 1996, p. 341). Para sair às ruas, deveriam tirar licença da polícia. Sua atuação se estendia ao ano inteiro: essas agremiações também comemoravam datas cívicas e nacionais, realizavam piqueniques, passeios a arrabaldes e municípios vizinhos, além de organizar saraus e festas de aniversário para os sócios ou para o próprio clube (ARAÚJO 1996, pp. 344-345). Estavam ligados, também, à vida religiosa e prestavam assistências ao sócio e à sua família.

Os clubes carnavalescos pedestres começaram a se espraiar pelas classes populares do Recife na década de 80 do século XIX, com aumento substancial a partir da Proclamação da República, em 1889. A forma de exibição predominante desses grupos, na virada do século XIX para o século XX, era baseada em cantos, danças e manobras que tomavam longas noites de ensaios e eram feitas no chão, sem carros e alegorias (ARAÚJO, 1996, p. 339). Este também era mais um indicador da diferenciação social entre estes e os clubes de alegoria e crítica, que ―costumavam desfilar ricamente trajados, acompanhados por carros alegóricos, ‗estandartes de veludo bordado a ouro e pedrarias, fanfarra de clarins, orquestra‖ (VILA NOVA, 2007, p. 38).

Ao longo do tempo, os triângulos e violões usados para animar os desfiles dos clubes de alegoria e crítica foram substituídos por ―marchas5

vibrantes, executadas pelas bandas de música6, intercalando-as com árias, tangos, polcas, dobrados e valsas‖. (ARAÚJO, 1996, p. 338). As bandas de música eram, por sinal, muito presentes na vida social do século XIX, não apenas na capital pernambucana, mas em todo o Brasil. Em uma época na qual ainda não existiam meios mecânicos de gravação e reprodução sonora, era por meio desses conjuntos - cujas apresentações em público ocorriam o ano inteiro, especialmente em locais ao ar livre, como os coretos das praças e jardins - que boa parte da população tinha acesso à música popular e instrumental. A especificidade de sua presença no Carnaval do Recife se deu com o papel central que esses grupos tiveram em moldar um gênero musical específico para a folia

5

Em seu Dicionário Musical Brasileiro (1999, p. 307), Mário de Andrade define a marcha como ―gênero de composição caracterizado pela escrita em compasso binário, ou mais raramente quaternário, com o primeiro tempo fortemente acentuado, principalmente instrumental. No Brasil, a marcha popularizou-se (...) como marcha-rancho e marcha de salão e segue a fórmula introdução instrumental e estrofe-refrão‖.

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De acordo com Saldanha (2008, p. 34), os primeiros registros da existência de bandas de música em Pernambuco datam da época da colonização holandesa, no século XVII, com o surgimento de bandas marciais que tocavam em recitais para o conde Maurício de Nassau. No entanto, assim como no resto do Brasil, esses conjuntos só tomaram maior impulso no século XIX, a partir da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro. No final do século XIX, ―as bandas de música pertenciam ao corpo de polícia e aos batalhões militares aquartelados na cidade ou organizavam-se em sociedades civis: as sociedades ou clubes musicais (...) [que] atuavam nas mais diversas situações e eram contratadas para tocarem em praças e ruas ou para incorporarem-se aos préstitos dos clubes, troças e sociedades carnavalescas‖. (ARAÚJO, 1996, p. 239).

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momesca da cidade, a partir da mistura desses vários gêneros já executados pelas bandas. Tal tipo de música seria conhecido primeiramente como marcha carnavalesca pernambucana e, posteriormente, como frevo.

Apesar da desaprovação das elites, a gente comum7 - que, nos primeiros anos da República, passou a incluir a nascente classe operária do Recife – também começou a brincar o Carnaval de forma relativamente organizada. Para tanto, esses estratos sociais se valeram de associações populares urbanas já existentes. Desde os tempos coloniais, tanto os trabalhadores livres quanto os escravos se reuniam em corporações de ofício, companhias de negro8 ou irmandades religiosas. Não raro, os clubes carnavalescos pedestres surgiram como sucessores ou extensões dessas organizações e, geralmente, reuniam pessoas que conviviam intensivamente: colegas de trabalho, representantes de uma mesma profissão, parentes, amigos e vizinhos.

Nesse contingente, também se incluíam as maltas ou partidos de capoeiras, que, apesar de não terem o caráter de associação profissional, desempenhavam papel coercitivo na sociedade de então. Os capoeiristas eram temidos por sua associação com elementos das classes conservadoras, atuando como capangas na defesa dos interesses destes últimos (ARAÚJO, 1996, p. 333). Posteriormente, várias facções dessas maltas transferiram suas rivalidades já existentes para as bandas militares em atividade no Recife à época. Uns apoiavam, por exemplo, o 4º Batalhão de Artilharia; outros eram defensores do Espanha, banda do corpo da Guarda Nacional.

O costume dos valentões abrirem caminho de desfiles de bandas fora comum em outros centros urbanos, como o Rio de Janeiro e Salvador, principalmente na saída de procissões. No caso especial do Recife, porém, a existência de duas bandas rivais em importância serviu para dividir os capoeiras em partidos. E estabelecida essa emulação, os grupos de capoeiras passaram a demonstrar sua agilidade (...) em verdadeiras competições coreográficas facilitadas pela multiplicação das síncopas, que os músicos entraram a providenciar para lhes incentivar o virtuosismo (TINHORÃO, 1998, p. 181)

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No início do século XX, a gente comum era chamada dessa forma em oposição à gente bem, ou seja, à gente da sociedade, pertencente às camadas privilegiadas. Essa parte menos favorecida da população era composta por ―patéticos mendigos, comedores de caranguejos e outros residentes em infames favelas, mas também os industriosos artesãos, caixeiros de lojas, trabalhadores especializados‖. Tal diferenciação vigorava especialmente no período anterior à I Guerra Mundial (LEVINE apud ARAÚJO, 1996, p. 305).

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Os negros africanos e seus descendentes se reuniram tanto em irmandades religiosas quanto nessas companhias, que eram organizações profissionais que funcionavam sobre a direção de um mestre ou capataz e estruturavam-se segundo uma ordem hierárquica própria.

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Até o início do século XX, quando passaram a ser reprimidos pela polícia, os capoeiras ―costumavam seguir à frente, abrindo passagem, fazendo esgares‖ (ARAÚJO, 1996, p. 334), em disputas para ver quem perfurava primeiro o bombo das bandas de música. Os movimentos de luta, ataque e defesa se tornaram precursores do passo, a dança associada ao frevo atual. Sobre a relação entre música e dança, Teles (2000, p. 41) anota que ―não é difícil imaginar que, influenciados pelos capoeiristas, (...) os músicos tenham alterado os compassos de seus dobrados com colcheias ou semicolcheias‖, acelerando-os. A adoção desse andamento mais vivo nos desfiles de rua, fruto da interação entre músicos e capoeiras, deixava os foliões em tal estado de ebulição que a massa humana presente no desfile dos clubes passou a ser conhecida como frevedouro.9

Os clubes pedestres, mormente nas duas primeiras décadas da República, eram malvistos pelas elites locais por seu caráter desestabilizador das relações sociais. Tanto a polícia quanto os foliões que acompanhavam o cortejo atuavam de duas formas, ambas causadoras de violência: enquanto as forças da ordem reprimiam a brincadeira, dispersando a população à base de cacetadas, alguns aproveitavam o ensejo para acertar contas com algum desafeto. A isso, se somavam rivalidades entre os clubes e entre as próprias bandas, que proporcionavam o fundo musical para desafios cantados como este dobrado: ―Não venha! / Chapéu de lenha / partiu, / caiu / morreu / fedeu‖ (SILVA, 2000, p. 99).

Havia momentos (...) em que a violência, as brigas e os conflitos estouravam em meio ao desfile das troças10 e dos clubes carnavalescos. (...) As agressões e os insultos, a princípio verbais e gestuais, facilmente degeneravam em lutas sangrentas (...). A violência era uma constante no cotidiano da cidade, e mais ainda, por ocasião das grandes aglomerações populares como no Carnaval. Desfilar num clube era um ato de prazer, satisfação e orgulho, mas também o era de desafio e coragem (ARAÚJO, 1996, p. 354-355).

O passo, junto com as músicas e manobras, se tornou parte central do Carnaval de rua recifense, ao mesmo tempo em que os membros da classe dominante da época e da classe média ilustrada se aferravam ao espírito das mascaradas, para não interagirem com o público apreciador do frevedouro - homens avulsos, sem suas mulheres e filhas, operários, desordeiros, trabalhadores braçais, prostitutas, moleques desocupados - ―toda uma malta de gente considerada, naqueles tempos, perigosa‖ (SILVA, ibid., p. 87). Ou seja, ―poder-se ia

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Ainda de acordo com Araújo (1996, p. 376), a explicação mais aceita a respeito desse termo define-o como uma corruptela do verbo ferver (ou fervedouro), utilizada na época pelas classes populares.

10 Segundo o Dicionário do Frevo (2000, p. 100) a troça é um ―conjunto ligado, às vezes, às corporações do passado. Sai pela manhã, com orquestra de fanfarra, ricas em fantasias, estandartes e cordão misto, e faz o passo‖. As troças, normalmente, são mais informais que os clubes carnavalescos e, muitas vezes, apresentam nomes jocosos.

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dizer que para o povo comum, para a arraia-miúda, o Carnaval estava mais próximo da carne e do corpo; enquanto que, para a elite, o Carnaval era, idealmente, um exercício do espírito e da razão‖. (ARAÚJO, 1996, p. 364).

Na verdade, não eram apenas os clubes carnavalescos pedestres que sofriam vigilância. Segundo Araújo (2009), as camadas populares continuaram a ocupar as ruas com seus brinquedos e suas diversões, sendo objeto de desprezo das elites, de críticas da imprensa e de repressão policial — segmentos que os viam como sinal de ignorância, de atraso socioeconômico e como um potencial perigo à ordem pública. No Recife, além doentrudo, o dito populacho entregava-se a outros folguedos cada vez mais associados ao período carnavalesco, fossem eles de matriz africana, como os sambas, os maracatus e as cambindas; indígenas, como os caboclinhos; ou danças dramáticas como os fandangos (também conhecidos como marujadas) e o bumba-meu-boi.

Tal situação se repetia em outras cidades, pois as manifestações carnavalescas que não se encaixavam nos parâmetros das elites da época – especialmente os folguedos preferidos pela população negra - eram classificadas como ―bárbaras‖ ou promotoras de desordem. Em Salvador, ainda de acordo com Araújo (2009), a partir de 1905, a fim de evitar o chamado processo de ―africanização‖ do Carnaval da cidade, foi intensificada a repressão aos folguedos populares carnavalescos de rua, que incluíam os batuques, sambas e candomblés. Tais manifestações só voltariam a florescer na capital baiana a partir da década de 30.

Já no Rio de Janeiro, os elementos desestabilizadores do projeto civilizatório do Carnaval encampado pelas classes altas da época, que brincavam nas Grandes Sociedades, eram os cordões carnavalescos. Gonçalves (2007, p. 64) define tais grupos como reuniões de mascarados fantasiados, conduzidos por um mestre, cujo instrumento de comando era um apito. Inicialmente, o conjunto instrumental dos cordões era apenas de percussão, incluindo pandeiro, cuíca e reco-reco, acompanhados por cantigas de no máximo quatro versos, com o objetivo principal de anunciar sua chegada. No fim do século XIX, esses cordões, cujos integrantes eram predominantemente trabalhadores pobres dos subúrbios cariocas, passaram a ocupar as ruas dos bairros centrais da cidade, trazendo o ―batuque e o berreiro‖ para o espaço onde desfilavam as sociedades carnavalescas. E, não raro, durante o cortejo, também ocorriam brigas ou mesmo mortes, assim como nos clubes carnavalescos pedestres do Recife.

Embora, nos primeiros anos dos clubes pedestres no Recife, a postura tomada pela polícia tenha sido de repressão, o panorama mudou a partir da primeira década do século XX. Percebeu-se, na época, que os laços profissionais e familiares que formavam a tessitura dos clubes pedestres poderiam fazer deles entes passíveis de serem cooptados socialmente pelas

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classes sociais mais abastadas da época. ―A organização dos clubes centrada numa ordem hierárquica rígida e a disciplina interna que tentavam impor aos associados (...) fazia das agremiações carnavalescas possíveis aliadas do Estado no exercício da dominação‖ (ARAÚJO, 1996, pp. 367-368).

No caso dos clubes carnavalescos do Recife, dirigidos por operários e trabalhadores propensos a se reunirem em associações profissionais, como alfaiates ou garis, viu-se também que tais clubes poderiam funcionar, ao menos para seus membros, como mecanismo de busca de reconhecimento social. Os clubes poderiam fornecer elementos de coesão e, ao mesmo tempo, proporcionarem uma diferenciação da classe perigosa, cuja heterogeneidade e situação de marginalidade social impediam uma maior organização interna. A adoção dos valores burgueses na hora da folia traduzia-se em mudanças práticas: ―Os chitões com que se vestiam os sócios dos cordões foram trocados pelo cetim, pela seda e a pelúcia. Os triângulos e violões pelas orquestras. Requintaram-se os estandartes (...) [e] alguns clubes pedestres passaram a apresentar carros em seus passeios‖ (ARAÚJO, 1996, p. 372).

A organização desses segmentos sociais no Carnaval poderia servir também a propósitos políticos, como a consolidação da identidade local em um momento de profundas mudanças, no qual o Brasil acabava de sair de um regime econômico baseado na escravidão e tinha de se afirmar como república. ―Liberdade e direito de brincar nas ruas – fruto da resistência secular e da luta dos segmentos populares – eram redefinidos por um discurso ideológico que os via como exemplificação da democracia racial e social do país‖ (ARAÚJO, 1996, p. 405). O frevo seria, então, encampado como manifestação ―democrática‖ e símbolo da força cultural do povo recifense.

A partir de então, o carnaval seria manobrado não como espaço de segregação, mas de convivência e ―horizontalização‖ das relações sociais na Primeira República e de superação do atraso nacional que o novo regime havia herdado do Império. (...) Os intelectuais da Belle Époque produziram imagens de uma nação onde a mestiçagem e o clima tropical seriam nossos traços definidores, mas que representavam também a condenação do país no discurso naturalista. O carnaval, neste sentido, será representado como símbolo da procura da ―regeneração‖ do país (SILVA, 2009, pp 53-54)

A ideia de Carnaval como época de integração e participação coletiva, onde há um apagamento das tensões e disputas sociais em nome de uma suposta inversão de papéis ou de um engajamento geral nessas festividades, é abordada por alguns autores. Um dos que pesquisaram o tema foi Mikhail Bakhtin, que, em suas pesquisas sobre a cultura popular na

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Idade Média e no Renascimento, trouxe à tona o conceito de carnavalização, que se relaciona com a celebração do riso festivo, do cômico, do exagero e do grotesco, em contraste à ordem e à seriedade instituídas no cotidiano. O Carnaval seria o auge dessa liberdade e igualdade temporárias que os indivíduos desfrutariam, pois esse tipo de festa seria vindo do povo e estaria livre da ordenação e hierarquização impostas aos eventos promovidas pela Igreja ou pelos atores políticos. Para Bakhtin, as festividades carnavalescas tinham uma perspectiva generalizante: os tabus eram ignorados e tudo era permitido a todos. O mundo ficaria, então, de ponta-cabeça.

A festa marcava, de alguma forma, uma interrupção provisória de todo o sistema oficial, com suas interdições e barreiras hierárquicas. Por um breve lapso de tempo, a vida saía de seus trilhos habituais, legalizados e consagrados, e penetrava no domínio da liberdade utópica. O caráter efêmero dessa liberdade apenas intensificava a sensação fantástica e o radicalismo utópico das imagens geradas nesse clima particular. O ambiente de liberdade efêmera reinava tanto na praça pública quanto no banquete festivo doméstico (BAKHTIN, 1993, p.77)

No entanto, é preciso fazer uma diferenciação: a carnavalização, ou seja, a subversão do cotidiano durante épocas festivas pode ocorrer a qualquer tempo e em qualquer lugar. Isso significa dizer que, a partir da concepção de Bakhtin, todo Carnaval tem carnavalização, mas nem toda carnavalização está relacionada ao Carnaval.

No Brasil, o antropólogo Roberto da Matta defende, em certa extensão, ideias semelhantes às de Bakhtin ao também definir o Carnaval como tempo de inversão do cotidiano, ou, como o autor define, um rito de passagem. Da Matta (1979, p. 46) classifica o período momesco como uma festa nacional, um ritual no qual ―toda a sociedade deve estar orientada para o evento centralizador daquela ocasião, com a coletividade ‗parando‘ ou mudando radicalmente suas atividades‖. Tal ―acontecimento extraordinário‖ seria uma festa do povo, ou seja, ―sem dono‖, no qual o exibicionismo destrona a modéstia e o recato, onde a moral sexual e as hierarquias sociais são temporariamente postas de lado. Homens se fantasiam de mulher, e vice-versa; a nudez em público se torna moralmente viável; o pobre se fantasia ricamente, enquanto o rico pode muito bem se vestir com andrajos.

No Carnaval, a ocasião é de desmanchar os grupos elementares. Neste ritual sem donos, o indivíduo desgarrado é que é tomado como ponto de partida. (...) É o ‘folião‘ que decidirá o modo como brincar o Carnaval: se só ou acompanhado, se permanentemente acasalado ou buscando a cada dia uma nova parceira, se com roupa ou sem roupa, se usando vestes cotidianas ou

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com uma fantasia, se individualmente ou incorporado a uma individualidade maior (DA MATTA, 1977, p. 147)

No entanto, há outros olhares sobre essa concepção. Peter Burke, ao escrever sobre a cultura popular na Idade Moderna, afirma que a contribuição de antropólogos sociais como Max Gluckman e Victor Turner para esse debate foi a de considerarem o Carnaval e outras festividades populares como ―válvulas de escape‖. Em outras palavras, rituais que aparentemente expressam um protesto contra a ordem social podem, no entanto, serem interpretados como contribuições a essa mesma ordem. A estrutura social era, então, confirmada e reforçada justamente por meio de sua suspensão temporária.

A consciência [das classes altas] de que a sociedade em que viviam, com todas as suas desigualdades de riqueza, status e poder, não pudesse sobreviver sem uma válvula de segurança, um meio para que os subordinados purgassem seus ressentimentos e compensassem suas frustrações (BURKE, 1995, p.225).

No entanto, como o próprio Burke aponta, há limites para esse tipo de abordagem. O autor afirma que tal linha de pensamento desfrutava de considerável proeminência até meados dos anos 60, quando os antropólogos ―se interessavam mais pelo consenso do que pelo conflito‖ (BURKE, 1995, p. 226), algo defendido, por exemplo, na visão idealizada de Roberto da Matta quanto à confraternização popular durante o período momesco. Como diria Burke, nem sempre havia um relaxamento das tensões sociais em festas populares como o Carnaval, ao menos na Europa da Idade Moderna, pois ―o protesto se expressava de forma ritualizada, mas o ritual nem sempre bastava para conter o protesto. Às vezes, o barril fazia saltar a tampa‖. (BURKE, 1996, p. 226) Além disso, como completa Araújo, a teoria da ―válvula de escape‖ não seria suficiente para se compreender as relações de classe e poder que se manifestam e estão presentes também nas festas, já que, em uma sociedade moderna, caracterizada pela complexidade e pluralidade, o sentido de uma festa como Carnaval seria polissêmico. Ou, ―mais que polissêmico, o Carnaval era ambivalente, ou seja, provavelmente possuía diferentes sentidos para a mesma pessoa‖ (ARAÚJO, 1996, p. 34).

Voltando ao Carnaval recifense, nos primeiros anos do século XX, o período momesco passaria, então, a ser visto como época de mistura festiva e apaziguamento de tensões sociais. Os clubes pedestres passavam a ter seus folguedos valorizados, pois passavam a representar a face ordeira e organizada do ―povo‖. A imprensa da época era um espaço privilegiado de observação dessa mudança de foco. Os jornais se tornaram instâncias de legitimação do

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Carnaval como festa ―democrática‖, pois eram veículos acessíveis a uma parcela cada vez maior da população e, ao mesmo tempo, meio de difusão das ideias de intelectuais oriundos das classes mais abastadas. Jornalistas e pensadores locais passaram a se tornar defensores do Carnaval popular, encorajando o reconhecimento de um fenômeno supostamente bom em si mesmo por ser autóctone, pernambucano, ao contrário do que se via até o fim do século XIX.

O papel da imprensa também foi fundamental para o processo de absorção dos clubes pedestres, com suas músicas e danças, no tecido cultural da cidade: iniciativas de colunistas isolados em defesa do Carnaval popular no início do século XX se tornaram comuns a ponto de tornarem essa festa parte da linha editorial dos periódicos locais. ―O frevo é representado como tradição cultural de Pernambuco, prática distintiva de sua identidade ‗guerreira‘11 e ‗heroica‘ desde a expulsão dos holandeses e, posteriormente, as ‗revoluções libertárias‘‖ (SILVA, 2009, p. 128). Os grandes matutinos da capital passaram a abrir espaço para as notícias carnavalescas, e não era raro ver notícias sobre as festas de Momo circulando desde dezembro do ano anterior. ―Os jornais divulgavam os ensaios dos clubes, os desfiles, as letras de música (e, não raro, as partituras)‖ (TELES, 2007, p. 19).

Foi em um jornal, aliás, que se deu a primeira menção registrada da palavra frevo, encontrada pelo pesquisador Evandro Rabello. Na edição de 9 de fevereiro de 1907, o Jornal Pequeno publica o repertório da agremiação Empalhadores do Feitosa, que continha as marchas ―Priminha, Empalhadores, Delícias, Amorosa, O Frevo e Luiz do Monte‖. Note-se que o termo não foi criado pelo jornalista, mas era o título de uma marcha (TELES, 2000, p. 42), mostrando que o termo já era de uso corrente entre a população. Na época de seu surgimento, o vocábulo não se referia a um gênero musical específico, mas poderia significar tanto um aglomerado, confusão ou rebuliço (TELES, 2000, p.42) quanto ―um movimento único de toda uma massa em desfile, trazendo os passistas numa só onda‖ (SILVA, 2000, p.

11 A historiografia sobre Pernambuco aponta a ocupação holandesa (1630-1654) e o consequente esforço de reconquista do território estadual, conhecido como Restauração Pernambucana, como momentos cruciais para a criação do imaginário local. Uma dessas características seria a de resistência e bravura, demonstrada especialmente pela disposição dos nativos em encarar a luta armada. No livro Pernambuco em Chamas: revoltas e revoluções de Pernambuco (2009), por exemplo, é relatada a existência de 34 revoltas, ações de guerrilha, rebeliões e lutas na história do Estado desde o século XVI até o século XX. A etnicidade pernambucana se afirmaria, portanto, a partir de situações de conflito, seja contra holandeses, contra os colonizadores lusitanos, contra os mascates portugueses ou mesmo contra o Império. Outra das peculiaridades locais, apontada pelo historiador Evaldo Cabral de Mello em Imagens do Brasil Holandês (1987, p. 26), seria a noção de autossuficiência: durante a Restauração Pernambucana, por exemplo, havia a convicção de que a vitória havia sido obtida "graças ao esforço de gente da terra, nada devendo à metrópole por que teria sido, de fato, abandonada nos momentos mais difíceis". Outra dessas particularidades seria, paradoxalmente, a reabilitação da ocupação holandesa, construída ideologicamente a partir do século XIX como forma de crítica à dominação de Portugal. Ainda segundo Cabral de Mello, em seu livro Rubro Veio: O Imaginário da Restauração Pernambucana, a nostalgia do ―tempo dos flamengos‖, nos quais Recife ganhou variadas obras públicas e uma relativa prosperidade comercial, enraizou-se na imaginação popular, que representou o período holandês ―com as cores do maravilhoso e até do sobrenatural" (MELLO, 1986, p. 34)

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105). Por outro lado, ―a difusão da palavra frevo era expressão também do anseio das classes dominantes e de outras camadas da sociedade de apreender e dominar o desconhecido, de domesticar o monstro popular” (ARAÚJO, 1996, p. 384).

Ao mesmo tempo, com a disseminação e o fortalecimento dos clubes pedestres, parte da elite local se afastou das vias públicas durante o Carnaval, preferindo se refugiar em bailes de clubes ―como o Helvetica, onde se tocava um repertório bem diferente do que o que se ouvia nas ruas (...) valsas, tangos, maxixes, foxtrote‖ (TELES, 2007, p. 37). Ao mesmo tempo, os clubes de alegoria e crítica¸ veículos preferenciais dos ricos para a ocupação do espaço público até o fim do século XIX, entravam em decadência. As razões para isso eram econômicas e sociais: a ―falta de auxílio financeiro dos comerciantes do Recife12

– essencial devido ao alto custo dos carros alegóricos – e a censura que a polícia vinha impondo às críticas alusivas à política e aos costumes‖ (ARAÚJO apud VILA NOVA, 2007, p. 38). Outra razão estava na mudança das mentalidades. Tais clubes de alegoria e crítica, cuja origem estava nas mascaradas importadas da Europa, deixavam, progressivamente de responder aos anseios de um país cuja busca pela sua identidade passava pela definição de seu Carnaval. Esse fato demonstra como a aceitação do frevo pelas classes mais abastadas continha fissuras: embora a imprensa, ligada financeiramente e ideologicamente às classes média e alta, já funcionasse como instância de legitimação dos clubes carnavalescos pedestres, não havia um compartilhamento de fato das ruas.

Este é apenas um dos exemplos que contradizem a ideia de que o Carnaval sublimaria as tensões e disputas sociais, a partir da ideia de ―festa democrática‖ ou inversão da vida cotidiana. A repressão ao entrudo e a desaprovação inicial com relação aos clubes pedestres também mostram que as hierarquias presentes no cotidiano não deixam de existir durante os quatro dias da folia momesca. Mesmo a adoção da sátira e da paródia nos clubes de alegoria e crítica não tinham a função de engendrar uma verdadeira subversão social, mas sim oferecer diversão temporária. A legitimação do frevo por mediadores simbólicos como intelectuais e jornalistas foi um movimento de cima para baixo: só aconteceu quando interessou às classes mais abastadas como forma cultural apropriada para um país e uma cidade que buscavam enaltecer suas características locais.

O processo de reconhecimento institucional das manifestações populares do Carnaval do Recife ganhou impulso redobrado com a criação, em 1935, da Federação Carnavalesca

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Tal situação estava diretamente relacionada à crise econômica pela qual o cultivo da cana-de-açúcar, passava naquela época. Essa dificuldade financeira também mudou a face do Recife, por causa do êxodo rural que se seguiu, afetando principalmente os ex-empregados das usinas de cana, em sua maioria pretos e pardos.

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Pernambucana, em atividade até hoje. Idealizada por executivos de companhias estrangeiras, com destaque para a Tramways, companhia inglesa de eletricidade e transportes e apoiada por jornalistas (TELES, 2007, p. 23), a entidade tinha como objetivo reunir em seu seio todas as associações de foliões do Estado e, principalmente, do Recife. Entre suas atividades, estava a realização de concursos carnavalescos em várias categorias, como clubes de alegorias, clubes, troças, blocos, caboclinho e bumba-meu-boi. Os mesmos folguedos que, no século anterior, eram relegadas a um plano marginal nas comemorações carnavalescas da capital pernambucana passaram, a partir daí, a ser reconhecidos como parte de um Carnaval ―democrático‖ e ―popular‖, mas, ao mesmo tempo, rigidamente controlado. Além das competições, a entidade passou a coordenar um amplo espectro de atividades, como a criação de concursos de músicas carnavalescas, chegando inclusive a sugerir modelos de fantasias para clubes e troças. Tal linha de ação tinha objetivos políticos: o estabelecimento de regras e diretrizes para seus integrantes e a mediação de conflitos entre eles tinham a ver com o assentamento de um Carnaval ordenado, vinculado ao interesse do Estado, da imprensa e das elites urbanas.

1.3 ALEGRES BANDOS – ASCENSÃO E QUEDA DOS BLOCOS

CARNAVALESCOS MISTOS

Durante o Carnaval, enquanto a classe mais abastada se fechava nos salões mais exclusivos do Recife, como o Clube Internacional e o Jóquei Clube, e o populacho fervia nas ruas ao som da marcha carnavalesca pernambucana, a classe média da cidade, notadamente os profissionais liberais e a pequena burguesia, desenvolvia a sua própria maneira de aproveitar o tríduo momesco.

A partir da década de 20 do século passado, começaram a aparecer os primeiros blocos carnavalescos mistos, cujo surgimento é fruto de várias influências. De acordo com Silva (2000, p. 133), eles apresentam uma ―certa similitude com os ranchos carnavalescos do Rio de Janeiro‖, e são oriundos tanto da reelaboração profana dos pastoris como das reuniões festivas (saraus e serenatas) feitas nas casas dessas famílias de classe média. Segundo o autor, tanto os blocos mistos quanto os ranchos carnavalescos devem muito de sua formação aos folguedos do ciclo natalino, que aconteciam entre o Natal e o dia 6 de janeiro, englobando o presépio familiar, a queima da lapinha e as procissões na noite da festa dos Santos Reis, louvando o

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nascimento do Menino Jesus. Essas festividades eram apreciadas tanto nos bairros centrais de São José, Santo Antônio e Boa Vista – já consolidadas como pólo dos clubes pedestres – quanto nos subúrbios e povoações mais distantes que, com o crescimento populacional do Recife, se tornaram bairros completamente integrados à capital, como Torre, Tejipió, Beberibe, Afogados, Madalena e Rosarinho.

A apropriação carnavalesca dos festejos do ciclo natalino não era exclusividade pernambucana. Em outras cidades brasileiras, como Salvador e Rio de Janeiro, tais festividades eram chamadas de ranchos e ganhavam feição cada vez mais momesca, culminando, nesta última cidade, com a transferência das comemorações do dia 6 de janeiro para o Carnaval, por obra do baiano Hilário Jovino Ferreira (SILVA, 2000, p. 133).

Segundo Tinhorão (1998, p. 269), embora já houvesse comemorações do ciclo natalino na antiga capital federal, tais folguedos eram muito ligados à herança europeia dos pastoris e vilancicos. A contribuição de Jovino foi a estilização dos ranchos cariocas, ao trazer ao Rio de Janeiro características dos ranchos de reis baianos, influenciados pela cultura negra, que incluíam uma forte presença feminina – algo pouco visto nos cordões carnavalescos - e o uso de um estandarte. A música consistia de chulas ou quadrinhas cantadas em ritmo binário, de marcha, ao som de violas, violões, cavaquinhos, violões, ganzás e pratos com faca. No entanto, os ranchos carnavalescos cariocas só tomaram sua feição definitiva a partir da fundação, em 1908, do Ameno Resedá. Do núcleo de migrantes baianos pobres, de mão-de-obra não qualificada, os ranchos foram apropriados pela baixa classe média carioca, ligada ao funcionalismo público e ao trabalho qualificado em fábricas.

A organização do Ameno Resedá era mais complexa e serviu de modelo para os grupos que vieram depois, levando tal agrupamento a receber a alcunha de rancho-escola. O rancho apresentava um enredo fixo, que integrava o conjunto de seus componentes. Musicalmente, além da seção de cordas, foi adicionada uma seção de sopros e um coro ensaiado de pastoras, que cantavam marchas e trechos de óperas e canções italianas. A ênfase no trabalho com a melodia e a harmonia das músicas do repertorio, incluindo a existência de um mestre de coro e um mestre de harmonia, era um fator de diferenciação com relação ao ―batuque desordenado‖ (TINHORÃO, 1998, p. 269), de manifestações carnavalescas como os cordões.

De acordo com Gonçalves (2007, p. 198), outra diferença entre os ranchos carnavalescos cariocas e os ranchos de reis de origem baiana era a expressão corporal de seus integrantes. Os movimentos cadenciados de dança, chamados de evoluções, substituíram as lutas e danças dramáticas dos antigos reisados. Além disso, os ranchos, também chamados de

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Pequenas Sociedades, começaram a ―recorrer à colaboração de cenógrafos de teatro, escultores e pintores para enfeitar com painéis e figuras seus carros alegóricos‖ (TINHORÃO, 1998, p. 273), embora, ainda assim, tais carros não chegassem ao luxo visto nos carros das Grandes Sociedades. Tal organização processional e estrutural seria aproveitada pelas futuras escolas de samba, das quais os ranchos seriam vistos como precursores.

O Ameno Resedá e ranchos similares gozavam de uma posição privilegiada em comparação aos cordões carnavalescos e ao entrudo, por serem expressões tidas como mais ―avançadas‖ e ordeiras, compostas por pessoas com o mínimo de respeitabilidade para os padrões sociais da época. Gonçalves (2003, p. 248) cita um texto do cronista Jota Efegê para ilustrar a suposta superioridade dessa manifestação carnavalesca, regularizada pela polícia e aprovada pelo poder público, tendo sido recebida no Palácio Guanabara, em 1911, pelo presidente da república na época, Hermes da Fonseca. ―Tinham os ranchos a graciosidade, a musicalidade encantatória, farta de vocábulos precisos, de palavras difíceis exumadas dos dicionários‖. Nesse e em outros sentidos, a folia dos ranchos carnavalescos cariocas se aproxima muito da dos blocos carnavalescos mistos da capital pernambucana, como veremos a seguir.

Os primeiros blocos carnavalescos mistos apareceram no Recife a partir de 1920. Um dos mais conhecidos, fundado neste mesmo ano, era o Bloco das Flores Brancas, cujo nome foi posteriormente modificado para Bloco das Flores. Esta foi uma das pioneiras entre as ―agremiações ‗de família‘, cujos desfiles poderiam envolver ‗caminhões lindamente ornamentados‘ ou um ‗garrido caminhão enfeitado‘ (...), sob o signo da ordem e do apoio de intelectuais‖ (BEZERRA; VICTOR, 2006, p. 79). Lucas Victor Silva atenta para a nova função que tais agremiações desempenhavam no Carnaval da capital pernambucana.

Os blocos devem ser entendidos como prática que representava a aproximação entre as elites urbanas e o povo dos clubes pedestres. Em época de valorização do popular e da sua elevação à ícone da nacionalidade, as elites do Recife criaram uma manifestação que as diferenciavam do povo, ao mesmo tempo em quem as inscrevem como parte da cultura nacional-popular. Os blocos carnavalescos apareceram neste contexto de (re) instituição do carnaval e da identidade brasileira. E apareceram também como uma nova forma de manifestação carnavalesca bem adaptada à nova ordem festiva que se desejava implantar (SILVA, 2009, p. 146)

A composição social dos blocos mistos era mais heterogênea do que a palavra ―elites‖, utilizada por Lucas Victor Silva, faz parecer. Embora de maneira geral, os blocos fossem compostos por elementos de classe média, há casos nos quais tal concepção deve ser relativizada. Katarina Real (1967, p.49) também afirma que os integrantes dos blocos, em

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geral, eram de uma camada social mais alta do que os clubes pedestres, mas, ao mesmo tempo cita o caso do Batutas da Boa Vista. Fundada em 1920, a agremiação tinha em seus quadros um contingente expressivo de alfaiates, em uma composição que evocava as antigas corporações de ofício e lembrava a origem dos antigos clubes. O Banhistas do Pina, por sua vez, foi fundado em 1932, na Ilha do Bode, seio de uma comunidade de marujos e pescadores. No entanto, tal aproximação entre os foliões ―distintos‖ dos blocos carnavalescos mistos e os seguidores dos clubes carnavalescos pedestres era ambivalente. Ambos utilizavam o espaço público, mas não se misturavam nele, em uma proximidade distante que denotava as tensões de classe vigentes na época. Com precauções como a adoção de cordões de isolamento, ―a pequena burguesia dessa forma podia brincar o Carnaval com esposas, irmãs, sem ter que se imiscuir com o poviléu que ‗frevia‘ nas ruas do Recife no compasso frenético da marcha pernambucana‖ (TELES, 2007, p. 18).

Quanto às características desses blocos mistos, tais agremiações saíam às ruas com um enredo e um percurso definidos, assim como os ranchos carnavalescos. Seus integrantes usavam fantasias mais leves que as dos então decadentes clubes de alegoria e crítica, com vestidos e camisas estampadas de um mesmo tecido, chapéus de palha para os homens e flores na cabeça das mulheres, tendo na abertura um artístico cartaz (...), depois denominado de flabelo, onde aparecia vazado o nome da agremiação, de acordo com Leonardo Dantas Silva (2000, p. 136). Os blocos mistos, por sua vez, tinham esse nome por ―proporcionar condições ao elemento feminino de participar do Carnaval das ruas centrais do Recife‖ (SILVA, 2000, p.136), mas, ao mesmo tempo, tal mudança era conduzida sob códigos rígidos. A ala feminina saía protegida por um cordão de isolamento e tinha uma função bem definida. ―[As senhoras e moças] (...) habituadas aos pastoris, presepes, ranchos de reis e procissões, formavam o coral do bloco. Já a ala masculina dedicava-se à formação da orquestra e a tomar conta de suas filhas, esposas, irmãs, noivas, noras e amigas‖ (ARAÚJO apud VILA NOVA, 2007, p. 46).

A restrição à livre expressão dos corpos femininos à época também era observada durante os festejos carnavalescos organizados pela pequena burguesia recifense. ―O passo rasgado, como registrado nos cordões dos clubes e troças, não era permitido, mas tão-somente uma evolução bem característica às apresentações dos cordões azul e encarnado, nos tablados dos pastoris‖ (SILVA, 2000, p. 136). Não era de ―bom-tom‖ para uma moça ―de família‖ ser vista pulando no meio do frevedouro: este era um espaço essencialmente masculino, viril, violento e, ainda por cima, frequentado por gente pobre.

Referências

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