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Poesia em Fotografia: uma leitura intersemiótica de poemas de Manoel de Barros

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Academic year: 2023

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Julliana Barra Silva

Poesia em Fotografia: uma leitura intersemiótica de poemas de Manoel de Barros

Mestrado em Comunicação e Semiótica

São Paulo

2022

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP

Julliana Barra Silva

Poesia em Fotografia: uma leitura intersemiótica de poemas de Manoel de Barros

Mestrado em Comunicação e Semiótica

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica sob a orientação da Profa. Dra. Leda Tenório da Motta.

São Paulo 2022

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FICHA CATALOGRÁFICA

Sistema para a geração automática de Ficha Catalográfica de Teses e Dissertações com dados fornecidos pelo autor.

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Julliana Barra Silva

Poesia em Fotografia: uma leitura intersemiótica de poemas de Manoel de Barros

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica sob a orientação da Profa. Dra. Leda Tenório da Motta.

Aprovada em: ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________

Profa. Dra. Leda Tenório da Motta – Orientadora ______________________________________

Prof. Dr. Fernando José Reis de Oliveira

______________________________________

Profa. Dra. Elizabeth da Penha Cardoso

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) –

Código de Financiamento 001.

Número de processo 88887.595857/2020-00.

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) –

Finance Code 001.

Process Number 88887.595857/2020-00.

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A minha mãe Silvana e meu pai Jefferson, que sempre foram os grandes incentivadores das minhas aventuras. A meus irmãos Gabriel e Miguel,

que vocês possam sempre alçar voos altos,

e a estrelinha lá no céu.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeço aos meus pais Silvana e Jefferson, por serem essas pessoas incríveis e sempre me incentivarem a acreditar em mim, abraçando todas as minhas aventuras, e tornar possível a realização dos meus sonhos.

Sou eternamente grata à minha família. Às minhas tias Aninha, Kátia e Itália, por sempre estarem do meu lado vibrando a cada conquista minha, e à tia Cynthia, por todos os abraços apertados e por me apresentar ao maravilhoso mundo de Manoel de Barros. À minha avó Lenny, que me passou o seu dom da arte, e a meu avô, que me ensinou que com foco e dedicação podemos chegar a qualquer lugar. Aos meus irmãos, Gabriel e Miguel, por sempre servirem de inspiração. E à Cissa, por sempre estar ali me ajudando quando preciso.

Gostaria, também, de agradecer ao professor Fernando Oliveira, por sempre incentivar e apoiar a minha caminhada acadêmica, desde a graduação, onde este estudo se iniciou sob sua dedicada orientação. E por aceitar, mais uma vez, participar da minha caminhada no papel de examinador.

Sou muito grata também à minha orientadora Leda Tenório da Motta, por compartilhar seu conhecimento comigo e abraçar a criação desta dissertação, como também, me animar a ir além, cada vez mais adentro no mundo das imagens.

Quero agradecer à professora Elizabeth Cardoso, por aceitar com animação participar da banca examinadora e pelas palavras de incentivo durante a qualificação.

A todos os professores que cruzaram meu caminho, e me presentearam com suas trocas e conhecimentos.

Deixo aqui um agradecimento especial ao meu querido grupo de escrita acadêmica. A Luís, nosso professor querido, que não mede esforços para nos ajudar a atingir nosso potencial máximo através

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da escrita; às minhas colegas e amigas, Audrey, Julia e Karina, por sempre compartilharem comigo palavras de acolhimento e incentivo. Ao grupo, sou muito grata por todas as nossas trocas, choros e risadas.

E aos tantos amigos que me apoiaram e me ajudaram nessa montanha russa que foi escrever a minha dissertação. Em especial agradeço à Raphaella, à Gigi e à Marina, as maiores incentivadoras do meu trabalho com a fotografia.

A Manuel de Barros, por me proporcionar enxergar e vivenciar o mundo de uma forma nova. E à todas as autoras e autores, que, por meio de suas obras, me proporcionaram grandes reflexões.

À CAPES, cujo apoio financeiro me possibilitou a existência dessa pesquisa e a vivência na PUC- SP.

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Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.

Manoel de Barros

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RESUMO

SILVA, Julliana Barra. Poesia em Fotografia: uma leitura fintersemiótica de poemas de Manoel de Barros. 2022. Dissertação (Mestrado) – Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2022.

O presente trabalho volta-se a uma reflexão acerca da linguagem poética de Manoel de Barros do ângulo de seus processos fotográficos em poemas selecionados do livro Ensaios Fotográficos (2000). Partindo da teoria da tradução intersemiótica estudada por Julio Plaza e da transcriação elaborada por Haroldo de Campos, buscaremos assinalar o trânsito entre os signos verbais e visuais que, por hipótese, atribuímos ao estilo do poeta. Entendemos com Plaza que traduzir signos verbais poéticos em signos visuais fotográficos é passar livre e criativamente de sistema a sistema num processo de semiose infinita, criando assim um outro sistema. Assim, trata-se aqui mais precisamente de partir do volume poético Ensaios Fotográficos para uma proposta de tradução criativa, de autoria própria, através de um laboratório de experimentação de traduções intersemióticas. Nesse caminho, adentraremos também o campo da fotografia, e seus diversos tipos de signos, com ênfase na iconicidade, apelando para autores como Vilém Flusser, Roland Barthes, Philippe Dubois, para elaborar uma análise sígnica fotográfica do exercício experimental de criação e execução das traduções intersemióticas.

Palavras-chave: Semiótica; Tradução Intersemiótica; Fotografia; Poesia; Manoel de Barros.

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ABSTRACT

SILVA, Julliana Barra. Poetry as Photography: an intersemiotic perusal of Manoel de Barros’poems. Postgraduate Studies Program in Communication and Semiotics of the Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2022.

The current research focuses on a reflection around Manoel de Barros’ poetic language from the angle of his photographic processes in poems selectes from the book Ensaios Fotográficos (2000).

Starting from the theory of intersemiotic translation studied by Julio Plaza and the transcription elaboratd by Haroldo de Campos, we will try to point out the transit between verbal and visual signs that, by hypothesis, we attribute to the poet’s style. We understand in conjunction with Plaza that to translate poetic verbal signs into photographic visual signs is to pass freely and creatively from system to system in a process of infinite semiosis, thus creating another system. Hence, it is here more precisely to start from the poetic volume Ensaios Fotográficos for a proposal of creative translation, of our own authorship, through a laboratory of experimentation in intersemiotic translations. On this path, we will also enter the field of photography and its various types of signs, with emphasis on iconiticy, appealing to authors such as Vilém Flusser, Roland Barrthes, Philippe Dubois, to develop a photographic sign analysis of the experimental exercise of creation and execution of intersemiotic translations.

Keywords: Semiotics; Intersemiotic Translation; Photography; Poetry; Manoel de Barros.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Tabela 1 – Categorias da percepção relacionadas as tricotomias...39

Figura 1 – Posfácio de Macunaíma em quadrinhos...45

Figura 2 – Poema O Fotógrafo I...59

Figura 3 – Poema O Fotógrafo II...60

Figura 4 – Poema Gorjeios...63

Figura 5 – Poema O Vento...66

Figura 6 – Poema Despalavra...70

Figura 7 – Poema O Aferidor...73

Fotografia 1 – Revelográficos...61

Fotografia 2 – Gorzeância...64

Fotografia 3 – Água Crinalizada...67

Fotografia 4 – Desimagendoscópio...71

Fotografia 5 – Obturador em Tom Maior...74

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...15

1. IDIOLETO MANOÊLES: A LÍNGUA DOS BOCÓS...17

1.1 A estética poética de Manoel de Barros...18

1.2 Ensaios Fotográficos: a imagem da imagem fotográfica...20

1.2.1 Poemas escolhidos...21

1.2.1.1 O Fotógrafo...21

1.2.1.2 Gorjeios...23

1.2.1.3 O Aferidor...24

1.2.1.4 Despalavra...24

1.2.1.5 O Vento...25

1.3 O lúdico arejamento das palavras...26

2. TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA...31

2.1 Classificação dos signos dentro da Tradução Intersemiótica...32

2.2 Categorias da percepção relacionadas as tricotomias sígnicas...39

2.3 Transcriação: Signo Estético...46

2.3.1 Transcriação da poesia como signo estético...47

2.3.2 A fotografia como signo estético...52

3. ILUMINURAS FOTOGRÁFICAS...56

3.1 Transcriação I...59

3.1.1 Nota sobre a fotografia...61

3.2 Transcriação II...63

3.2.1 Nota sobre a fotografia...64

3.3 Transcriação III...66

3.3.1 Nota sobre a fotografia...67

3.4 Transcriação IV...70

3.4.1 Nota sobre a fotografia...71

3.5 Transcriação V...73

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3.5.1 Nota sobre a fotografia...74

CONCLUSÃO...76

REFERÊNCIAS...80

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR...83

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INTRODUÇÃO

Uma nova teoria da Tradução Intersemiótica vem sendo formulada por teóricos e estudiosos acadêmicos há algum tempo. É possível encontrar estudos de tradução do livro para a tela, da poesia para a música, do textual para a ilustração, como é o exemplo da Elisa de Freitas Wiemann Gergull (2015), que apresentou um trabalho de mestrado sobre Alice no país das maravilhas: uma análise comparativa das ilustrações à luz da tradução intersemiótica. Em seus estudos, Gergull busca entender quais efeitos de sentido da ilustração, através das relações entre o texto verbal e as ilustrações em Alice no país das maravilhas. No presente projeto, em se tratando de objetos abstratos como é a poesia, buscaremos estudar os signos e os efeitos de sentido para compreender os impactos estéticos da poesia, e como se daria, e se é possível uma tradução intersemiótica dessa para a fotografia com similar impacto estético. Pode a Tradução Intersemiótica explorar a semelhança entre signos estéticos verbais e signos estéticos visuais?

Como chegar a realidade abstrata de uma poesia através do ato fotográfico e criação artística?

Como traduzir com força estética signos poéticos verbais em signos poéticos fotográficos? Em que medida é possível manter o impacto estético que esses tipos de signos afloram? Essas são as hipóteses levantadas com esse estudo.

Toda tradução estética possui um caráter autônomo próprio, porém mesmo que todo original detenha um caráter de plenitude, a tradução não deixa de estar comensurada a um original, que não se pode rasurar. Ou seja, para que possa haver a tradução é preciso penetrar-se e apropriar- se do original, sempre mantendo uma conexão com este por similaridade e referência. Como Plaza salienta (2003, p. 32), “assim, a tradução como signo enraizado no icônico tem no princípio de similaridade a única responsabilidade de conexão com seu original”. Ou seja, a tradução jamais pode ser uma cópia do original, mas sim apontar para ele. É também através da tradução que o original atinge uma nova existência. Daqui tiramos que ambos, tanto tradução quanto original se complementam em suas funções.

A ideia de traduzir poemas de Manoel de Barros surgiu de um encantamento pelas poesias do escritor e a escolha pela Tradução Intersemiótica, como enaltece Plaza (2003), dá luz “a reflexão teórica relativa a este tipo de operação artística”. A importância deste trabalho prede-se à relevância da obra de Manoel de Barros, ao tipo de reinterpretação proposta e à passagem a uma prática fotográfica que a translitere. A ideia é levar adiante um exercício de tradução que coloque

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em evidência a importância de uma obra original, lançando-a mais uma vez à esfera do reconhecimento, ao tempo em que promoveremos uma aproximação com a semiose e a Tradução Intersemiótica, caracterizada como tradução criativa. Ademais, a construção de uma pesquisa científica de Tradução Intersemiótica dará luz a mais encontros entre obras poéticas e outros exercícios de traduções, elevando o nível da pesquisa e do debate sobre a natureza das significações nesse processo.

No presente trabalho pretende-se, então, desenvolver uma reflexão à luz da Tradução Intersemiótica como trânsito criativo de linguagens, estudada por Julio Plaza. Através da tradução de signos verbais em signos não verbais, utilizaremos também da teoria da transcriação de Haroldo de Campos, como ferramenta para subsidiar a tradução icônica, assim como da linguagem fotográfica e do exercício criativo da fotografia para fazer a leitura fotográfica de poemas selecionados do livro Ensaios Fotográficos (2000), do poeta mato-grossense Manoel de Barros.

A ênfase na passagem de uma forma estética para outra apoia-se não apenas na importante referência do trabalho de Plaza, mas em teorias da tradução criativa aí inscritas e subscritas como as de Roman Jakobson e Haroldo de Campos. O foco no trabalho no trabalho dos signos leva-nos ainda às sutilezas das distinções peirciana, índice, ícone e símbolo, para chegarmos ao processo de semiose da tradução criativa e ao entendimento da natureza do signo verbal poético e do papel da iconicidade na composição semiótica da imagem, bem como da fotografia. Noutra frente teórica, comparecem ainda a semiótica aplicada ao estudo da literatura e o devido estado da arte da obra de Manoel de Barros. Segundo Rossoni (2016, p.65) Manoel de Barros possui uma vontade primitiva de lidar com a palavra, ao des-palavrar a língua e demostra um prazer pela invenção de vital realidade. Ao reativar uma realidade perdida pelo exercitar humano, Barros cria um mundo de significância original.

Dessa forma, assumimos o compromisso de elaborar, como exercício criativo no formato de laboratório experimental, de autoria própria, traduções intersemióticas de poemas selecionados de Manoel de Barros em fotografia no corpo da dissertação a partir da livre composição fotográfica e leituras semióticas dos signos poéticos de Manoel de Barros e sua tradução em linguagem fotográfica. Para compor o laboratório experimental, serão escolhidos cinco poemas do livro Ensaios Fotográficos (2000) do poeta Manoel de Barros, para compor os exercícios criativos de tradução intersemiótica.

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1. IDIOLETO MANOELÊS: A LÍNGUA DOS BÓCOS

Manoel Wenceslau Leite de Barros (1916 – 2014), ou Manoel de Barros como é mais conhecido, foi um poeta mato-grossense considerado um dos mais expressivos autores da poesia contemporânea brasileira. Manoel de Barros, ainda muito criança, mudou-se com sua família para Corumbá – MS, passando a viver sua infância em uma fazenda no pantanal. Na escola, não gostava muito de ler os livros que lhes eram oferecidos, até entrar em contato com os textos do Padre Antônio Vieira, cuja qualidade estética e alcance plástico causaram-lhe admiração. Através dessas leituras, ele compreendeu que poetas não precisam ter compromisso com a verdade, e assim se descobriu como um.

Já em sua maturidade, Manoel de Barros passou a ser reconhecido por grandes escritores e poetas, como Guimarães Rosa, Mário de Andrade e Carlos Drummond como um dos grandes poetas da contemporaneidade. Ao todo são 34 obras publicadas e milhares de cadernos de rascunho em que o poeta escrevia suas ideias e pensamentos. Dente os seus livros publicados estão Gramática Expositiva do Chão (1966); Livro de Pré-Coisas (1985) e Livro Sobre Nada (1996).

Ao longo dos anos que passou no Pantanal com sua esposa, ele conseguiu fazer com que sua fazenda tivesse renda e passou a ficar, como ele próprio denomina, à toa, onde acrescenta,

“significa o seguinte, pra ficar à toa, é ficar à disposição da poesia. Então eu comprei o ócio. Aí eu pude ser um vagabundo profissional” (Cezar, 2009). A vida de Manoel de Barros era a sua poesia, tudo se transformava em material para seus pequenos cadernos. No entanto, o que o poeta tinha de mais poético era a simplicidade com que enxergava a vida e as coisas ao seu redor. Como ele mesmo se definiu em um dos seus poemas, do livro Poemas Rupestres:

Eu sou dois seres.

O primeiro é fruto do amor de João e Alice.

O segundo é letral:

É fruto de uma natureza que pensa por imagens, Como diria Paul Valéry.

O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu e vaidades.

O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades, frases.

E aceitamos que você empregue seu amor em nós (BARROS, 2006, p. 45)

Manoel de Barros brinca com as temáticas de suas poesias, ao falar que todas elas são baseadas em lembranças de suas memórias de infância, suas sensações. Memórias estas que fazem parte do fruto de sua imaginação. No que o próprio poeta confessa “noventa por cento do que

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escrevo é invenção, só dez por cento é mentira”; “tudo que não invento é falso” e “invenção serve para aumentar o mundo” (Cezar, 2009). Em seu baú de memórias inventadas, Manoel de Barros sempre buscou a linguagem da infância para compor suas poesias, porque, segundo o poeta, é na infância que a imaginação está em sua forma mais ativa. Para Barros, a infância é o melhor lugar para se buscar poesia, pois é onde ficam as primeiras sensações, os primeiros cheiros, os primeiros ruídos. Em sua escrita, Barros recria assim, o que dita, de sua primeira, segunda e terceira infância, pois declara que só teve infância ao longo da sua vida.

Na escrita de Manoel de Barros, a razão deve ser a última coisa a entrar em uma poesia. A sua poesia se dirige a sensibilidade, a percepção sensível do leitor. O poeta brinca com a troca de sensações, inventa diversos inuntencílios, como o “abridor de amanhecer” e enxerga coisas que ninguém antes havia enxergado, como uma “cobra de vidro” que passava por detrás de sua casa.

Em suma, Manoel de Barros transpassa encantamento através de sua escrita sensível e subjetiva. Nos faz enxergar o mundo com mais sensibilidade, nos faz aprender a ver as coisas pelo idioleto manoelês e através da língua dos bocós, como o mesmo autointitula, descobrimos os pequenos encantamentos que o mundo tem a nos oferecer.

1.1 A estética poética de Manoel de Barros

A estética poética de Manoel de Barros está principalmente em selecionar as miudezas do mundo, como ciscos, formigas, musgos, lesmas, passarinhos etc. Através da linguagem poética ele recria esses objetos de forma a imaginá-los fora de padrões, exaltando-os e atribuindo-lhes novas significações, que nada tem a ver com as obviedades da razão. Através das palavras, o poeta brinca, desconstruindo-as e renovando-as até que se cria o próprio idioleto manoelês.

Em vista disso, pode-se afirmar que a poesia de Barros é construída por metáforas imagísticas, onde se percebe uma sabedoria mineral. Segundo Rossoni:

(...) a poesia de Barros não deia de se afeiçoar à narrativização; permitindo entrever um tom precoce de conversa de beira d’estrada, como ao longe, casal de aves desovando matagais em ritmo-exercício prosa(ico) de composição. O mesmo parece se dar com os restos que – de gosma e lesma – desenham registros de passagem no tempo e no espaço da letra. Ou ainda, nas infindas evoluções que compõem a casa-palavra dos caramujos. A poesia de Barros copula-se em sutil desabamento para a prosa. E quanto mais prosa(ico) se manifesta, mais se evidencia fértil em grandeza poética (ROSSONI, 2016, p. 65).

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A estratégia de escrita do poeta, nos leva ao mundo do imaginário, onde a liberdade poética toma asas e nos faz crer no impossível, nas operações contrárias à lógica e à razão. O poeta com seus versos desconstrói verdade, verdade estas que nos são impostas pelas regras gerais de uma sociedade. A invenção para Barros, significava a sua imaginação criadora.

Como colocado anteriormente, o maior campo de pesquisa para suas poesias é a infância.

Manoel de Barros no documentário Só Dez Por Cento É Mentira de Pedro Cezar (2009) diz ter tido apenas infância, ao que seus livros parecem confirmar, como em Memórias Inventadas (a infância); Memórias Inventadas II (a segunda infância); e Memórias Inventadas III (a terceira infância), dos anos de 2003, 2005 e 2007 respectivamente. Sua ligação com a infância era tão grande, que dedicou um livro, intitulado Poeminhas Pescados Numa Fala de João (2001), as observações que fazia das falas de seu filho João, como “escutei a cor daquele passarinho”. É justamente dessa forma, que o poeta descobre diferentes lugares na língua e na gramática, e imagina situações inusitadas.

Outro elemento muito corriqueiro em sua poesia é o elemento sinestésico. A estética manoelina brinca com diferentes sensações, como no registro da obra Ensaios Fotográficos (2000), a saber: “tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado. Fotografei o perfume”.

Sob a lógica da razão seria impossível fotografar algo que não se vê, ou não se toca, apenas se sente. Porém Barros leva nossa compreensão além de qualquer lógica, nos dá o presente de ter nossos sentidos acordados por um choque sinestésico que encanta. Ainda sobre a poética barrosiana, Rossoni acrescenta:

(...) a poética barrosiana faz-se do desgaste contínuo de fantásticas sinestesias associadas a imagens apreendidas pela observação atenta das torpezas do chão: visgos que gosmam, rastros que rastejam e melejam e procriam estercos, charcos e luarais. A retórica de linguagem engendra a desconstrução de sentidos comuns para inaugurar a palavra em status de líquida natividade. Prima ainda pela ordem às avessas, por orbitação simples e inaugural até o profundo silenciamento. Nele, espaço e tempo revisitam-se e se entregam aos próprios acontecimentos intratextuais. A eternidade que emana da poesia de Barros é a duração irreparável do instante consagrado em mediações desconvencionalizadas (...) (ROSSONI, 2016, p. 84).

Como Rossoni salienta, Manoel de Barros possui uma vontade primitiva de lidar com a palavra, ao des-palavrar a língua e demonstra um prazer pela invenção de vital realidade. Ao reativar uma realidade perdida pelo exercitar humano, Barros cria um mundo de significância original. O poeta utiliza-se de palavras que há muito estavam esquecidas ou isoladas da língua coloquial. Ao utilizar-se dessas palavras de maneira inusitada, e ao misturar muitas vezes os

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sentidos, ele provoca uma certa estranheza ao leitor. Por isso por muitas vezes, a compreensão do poema dá-se por imagens lúdicas, que vagueiam pelo absurdo.

A repetição também faz parte da estrutura poética de Manoel de Barros, é possível notar em seus livros, personagens, versos e situações se repetindo. Da mesma forma como o autor se repete, ele também gosta de ilustrar em seus poemas o inacabado, o sujo, o empoeirado, o insignificante, e o indeterminado associados ao acaso. Manoel de Barros somente escrevia seus poemas em livrinhos de rascunho, e eram esses livrinhos justamente que viravam livros publicados. Escrever com um fim elaborado é não dar luz a imaginação do leitor. Percorrer o inacabado é muito mais interessante para que novos entendimentos e significações surjam a todo momento, a cada leitura, a cada olhar sobre sua poesia. Através da repetição também, o poeta por vezes, acaba citando a si mesmo e fazendo referência a seus próprios livros passados, criando assim, certa espacialização do tempo. O poetar de Manoel de Barros possui um estilo, barrosiano, próprio, e essa seria exatamente, como Maiakóvski coloca, o sentido de ser poeta: “Damos nome de poeta justamente à pessoa que cria essas regras poéticas” (1971, p.169).

1.2 Ensaios Fotográficos: a imagem da imagem fotográfica

Escolhemos o livro Ensaios Fotográficos (2000) de Manoel de Barros, como objeto para nossa pesquisa pois é o livro que mais encanta esta autora, que também tem grande fascínio pelo universo da imagem e consequentemente pela imagem fotográfica. Com a obra Ensaios Fotográficos (2000), como expõe Bianca Ramoneda no prefácio da última edição do livro lançada em 2021 pela editora Alfaguara, “você tem em suas mãos uma pequena joia de imenso valor: um livro de fotografias composto de palavras”. Ao longo do livro, Barros se apropria do reino das imagens, ou da despalavra como ele descreve. Assim como um fotógrafo que capta cenas e objetos, o poeta capta através da palavra em versos, muitas vezes até aquilo que para a própria imagem fotográfica, a princípio, seria impossível de captar. Manoel de Barros, com essa obra, nos faz perceber o mundo de uma nova forma, nos acaricia com novas lentes e novos focos, no impulsiona a experimentar a integração do homem com seu meio natural, e todas suas formas ou desformas de encantamentos da natureza e da alma.

A obra em questão, é estruturada em duas partes: “Ensaios Fotográficos”, distribuído em quinze poemas; e “Álbum de família”, com onze poemas. O livro, à priori, enuncia-se liricamente

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em primeira pessoa, onde poeta e fotógrafo se entrelaçam, carregado por um olhar que se revela e revela acontecimentos intrigantes, imagens visuais/poéticas, como uma câmera imaginária. A identificação com a atividade do fotógrafo, uso de pronome indefinido, o diálogo sustentado pelo

“eu” e objetos, muitas vezes criados, caracterizam uma relação dialética em que a fotografia é chamada a registrar imagens do eu e do imaginário do poeta.

Nos ateremos aqui, assim, a primeira parte do livro Ensaios Fotográficos (2000), de mesmo nome, onde o poeta promove o re-encontro entre imagem e palavra poetizada através da associação da imagem poética ao registro imagético da fotografia.

1.2.1 Poemas escolhidos 1.2.1.1 O Fotógrafo

Difícil fotografar o silêncio.

Entretanto tentei. Eu conto:

Madrugada a minha aldeia estava morta.

Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.

Eu estava saindo de uma festa.

Eram quase quatro da manhã.

Ia o Silêncio pela rua carregando o bêbado.

Preparei minha máquina.

O silêncio era o carregador?

Estava carregando o bêbado.

Fotografei esse carregador.

Tive outras visões naquela madrugada.

Preparei minha máquina de novo.

Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.

Fotografei o perfume.

Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.

Fotografei a existência dela.

Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.

Fotografei o perdão.

Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.

Fotografei o sobre.

No poema O Fotógrafo (2000), o escritor vai desenrolando uma sequência de cenas em que acontecem com o eu lírico. Nessas cenas o sujeito e o objeto se confundem, com o eu lírico oscilando entre a primeira e a terceira pessoa. No poema, Manoel de Barros, ao descrever seu modo de pensar, utiliza a palavra para construir imagens/ fotografias a serem reveladas pelos olhos

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do autor. Fotografar o silêncio, o perfume, a existência, o perdão, o sobre. “Difícil fotografar o silêncio. Entretanto tentei”, conta Barros no poema. Aqui, palavras de conceito abstratos são transformadas em concretas pela lente manoelina. Há uma busca pela imagem congelada do imaterial. O silêncio é transformado em personagem, no papel de carregador do bêbado, e é este carregador que é fotografado, e por assim dizer, eternizado pelas lentes do poeta. Nesse sentido vemos que, a palavra capta no poema o que o ato fotográfico não seria capaz, de antemão, reter, fotografar. Segundo Rossoni:

Eclode o elemento transgressor que permite a passagem da projeção visual para o (des)encantamento da palavra: a palavra – sim – é capaz de capturar o silêncio, pois de lá provém e o tem por raiz. O poeta age pelo jogo no/entre esses códigos. Percebe-se também fotógrafo e confere vida ao sentido mais íntimo e vital do poema: “Ia o Silêncio pela rua carregando o bêbado/ Preparei minha máquina/ O silêncio era um carregador? / Estava carregando o bêbado. / Fotografei o carregador.” (p.11). Basta um clic e a palavra captura o que dela não se vê, sugerindo – fugidiamente – assaltar quando não motivada para este fim. Pelo avesso, fixa a eternidade de um instante transitório e passageiro (ROSSONI, 2007, p.24).

Vê-se aqui um paralelo com o ato fotográfico, onde o fotógrafo retém um momento, um instante, através de suas lentes e equipamentos fotográficos a fim de congelar cenas. O ato de fotografar no poema desdobra-se na captura do invisível, naquilo que foge ao olhar, o poeta busca capturar pela palavra a abstração da fotografia.

Em A Câmera Clara, Roland Barthes (1984, p.85) destaca um elemento denominado

“punctum”, que determina como o elemento subjetivo da fotografia, um elemento que punge o sujeito, e por muitas vezes é invisível, capaz de atrair o olhar do espectador por um instante de atração e inquietação. Esse elemento no poema é o “silêncio”, o subjetivo, a sinestesia, a fotografia do invisível, o abstrato, o universo da ausência da convenção, a “despalavra”, o deslocamento de objetos para objetos-coisas. Ao invés de se fotografar o bêbado, fotografa-se o carregador; ao invés de fotografar o jasmim, fotografa-se o perfume. As imagens aqui são uma construção da lente poética do escritor, que muitas vezes brinca com a imagem, vai além do visual e beira o sensorial através de conceitos abstratos. Através da câmera (seu olhar), Manoel de Barros, como salienta

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Rossoni (2007, p.24), “repercute a materialização do agente transgressor. O elemento mecânico humanizado pela interferência aguda do poeta”.

Barros busca assim, a sensibilidade muitas vezes escapada ao olhar, humanizando, através das palavras sua câmera fotográfica imaginária.

1.2.1.2 Gorjeios

Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se inclui a sedução.

É quando a pássara está enamorada que ela gorjeia.

Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.

Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.

É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.

É por isso que as árvores deliram.

Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.

E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.

As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas. (BARROS, 2000), p. 13)

O poema, como salienta Rossoni (2007, p.27), “constrói-se na sonoridade do canto”.

Através do efeito fotográfico, o poeta procura registrar pela palavra sentido polissêmico das sensações, como sons, gemidos, ruídos alucinantes, cantos de toda ordem. Sons capturados pelas lentes fotográficas imaginárias do poeta. Nesse sentido, o motivo poético aqui sugere tonalidades e sentido de audição, um verdadeiro concerto a céu aberto que traduz cores, sensações e criaturas.

Ao longo do poema, as sonoridades multiplicam-se e adquirem texturas. Segundo Rossoni (2007, p.31), “as tonalidades turvam os olhos, comprometem os sentidos sujeitos as novas experiências”, pela quase-sinestesia, o poeta, através do exercício fotográfico no poema, capta sensibilidades e sensualidades, quase como signos seduzidos. Peguemos o elemento “árvore” como exemplo, elemento que contém maior teor estático no poema. Barros transforma “árvore” em signo refratado, como Rossoni (2007, p.29) coloca, “[...]dinâmico, pelo processo de humanização de que é acometido”, torna-se coisa de outra coisa, sentido de outro sentido, ao mesmo ponto que, “moça”

e “pássaro” sofrem passagem de sujeito a objeto unificado, de único sentido.

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1.2.1.3 O Aferidor

Tenho um Aferidor de Encantamentos.

A uma açucena encostada no rosto de uma criança O meu Aferidor deu nota dez.

Ao nomezinho de Deus no bico de uma sabiá O Aferidor deu nota dez.

A uma fuga de Bach que vi nos olhos de uma criatura O Aferidor deu nota vinte.

Mas a um homem sozinho no fim de uma estrada sentado nas pedras de suas próprias ruínas O meu Aferidor deu DESENCANTO.

(O mundo é sortido, Senhor, como dizia meu pai. (BARROS, 2000, p.19)

O exercício fotográfico no poema se dá através do poeta, assim como a máquina dispara, o Aferidor dispara. O Aferidor é medido por encantamentos, ao ponto que uma coisa só ocorre em função direta da outra, e assim como a máquina fotográfica capta e apreende a imagem, o Aferidor aferi pela captação da coisa pretendida, ao ponto que designa sentido as coisas que aparentemente pouco sentido visualizam, como Rossoni (2007, p.43) sinaliza, “deflagra ensejo de encantamento ao que não está à vista da consciência primeira, mas só capta pelos olhos descansados do poeta”.

A iconização do olhar do poeta está na desenvoltura do canto, no des-encanto, no de-cantamento, aprofundar, volver, cair, ser, Barros olha para as coisas e vê o invisível que nelas persiste e afere- lhe tonalidades e ressignificações.

1.2.1.4 Despalavra

Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra.

Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas.

Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades de pássaros.

Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades de sapo.

Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvore.

Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros.

Daqui vem que todos os poetas podem humanizar as águas.

Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo com as suas metáforas.

Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes,

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podem ser pré-musgos.

Daqui vem que os poetas podem compreender o mundo sem conceitos.

Que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto. (BARROS, 2000, p.23)

Barros aqui, ao brincar com as palavras, promove a criação de um mundo outro no interior do texto, nos revela dois universos que estão em constante diálogo e interpretação. O universo de origem manifesta-se pelo emprego planejado da palavra, organiza acontecimentos no tempo e espaço, o outro surge através da manifestação poética do escritor, ao gerar pluralidade de sentidos, sensações e significados. A palavra então adquire estatura de despalavra, e como afirma Rossoni (2007, p.52) “no reino do ‘des’, tudo é possível”. Tempo e espaço perdem sentido originário, coisas ganham corpo e alma, veiculam estranhamento. Despalavrar a palavra, não significa aqui mudar sua forma, mas conferir alteração em seu espírito, conferindo-lhe assim desvios espaciais, manifestações sígnicas transgredidas. Por exemplo, entre o “hoje” do poema e o “hoje”, tempo no chronos, existe, como Rossoni (2007, p.53) coloca, um abismo. Há um impulso temporal transgredido, afinal quando é hoje? A cada leitura, o hoje especifica uma situação, condição, estado. O “hoje” do poema é condicionado por uma fixação temporal de condicionantes vividos pelo poeta, dessa forma o hoje pode significar sempre, ou até mesmo nunca, ao ponto que essa pluralidade criada pelo poeta só é possível, assim como Barros (2000, p.23) coloca no poema, “no reino das imagens, o reino da despalavra”. No reino da despalavra, as coisas adquirem vida independente de razão pré-concebida, desorbita o esperado e previsível. Palavras como “pedra” e

“sapo” mantêm-se na escrita, mas despalavram-se por inteiro na construção do poema, e torna-se um com a poesia. Através do espírito de ser poeta, “[...] o homem-todo poetiza-rá” (Rossoni, 2007, p.56).

1.2.1.5 O Vento

Queria transforma o vento.

Dar ao vento uma forma concreta e apta a foto.

Eu precisava pelo menos de enxergar uma parte física do vento: uma costela, o olho...

Mas a forma do vento me fugia que nem as formas de uma voz.

Quando se disse que o vento empurrava a canoa do índio para o barranco

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Mas essa imagem me pareceu imprecisa ainda.

Estava quase a desistir quando me lembrei do menino montado no cavalo do vento – que lera em

Shakespeare.

Imaginei as crinas soltas do vento a disparar pelos prados com o menino.

Fotografei aquele vento de crinas soltas. (BARROS, 2000, p.27)

Manoel de Barros retoma nesse poema sentido semelhante experienciado no poema O Fotógrafo. Assim como no primeiro poema, o poeta/fotógrafo se monta com a máquina de registrar imagens em punho, e pelo mesmo viés, confere espaço para capturar a imagem da imagem fotográfica através da imagem poética, porém aqui, o poeta não mais se debate com a dificuldade de registrar algo, mas sim, registrar, pelo advento da poesia a transformação de algo, e o vento é esse algo. Porém a pergunta que beira é: Como transforma o vento? E em quê? Na busca para a solução, o poeta trava uma batalha consigo mesmo, perde-se de si e das coisas para assim encontrar-se a si e nas coisas. Peguemos “costela” e “olho”, apesar de parecerem índices aleatórios, indicam o feminino, advento da mitologia cristã, e a porta de entrada da alma, respectivamente.

Ao aprofundar a própria investigação, Barros mergulha ainda mais nas palavras e imaginação, pensa em capturar a imagem do vento conferindo-lhe tonalidade, o que só ocasiona na possibilidade da imagem fotografada e não da imagem da imagem fotográfica. No final, ao transformar “crina” e “vento”, ou melhor, despalavra-las, porém sem perder as particularidades intrínsecas de cada uma, Barros, atinge seu real resultado esperado, como afirma Rossoni:

O poeta – pela imaginação – rompe com as imagens parciais determinantes de finitudes de uma e de outra e disponibiliza para o fotógrafo a imagem da imagem-fotográfica, infinitamente projetada. Não na realidade resultante, mas a outra, a terceira, a nunca ausente. A primeira, a nati-viva e perene: “o vento de crinas”. O poeta prepara as palavras.

E, de máquina em punho, dispara: “fotografei aquele vento de crinas soltas” (ROSSONI, 2007, p.68).

1.3 O lúdico arejamento das palavras

Ao ler a poesia de Manoel de Barros somos pegos de surpresa pelas palavras, ou melhor, sofremos o encantamento da despalavra. As palavras ditas “acostumadas” pelo poeta, não servem para fazer poesia. Para Barros (2010) poesia é “a loucura das palavras, o delírio verbal, a ressonância das letras e do ilogismo”. Misturar sensações, capturar o abstrato através da palavra, desviar sentidos, dar sentido novo a palavra, fazer com que o absurdo seja sensatez, humanizar

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coisas e coisificar homens, deslocar o foco, metamorfosear a palavra. É través do casamento, do corpo sônico das palavras, do arejamento das palavras que Manoel de Barros compõe seus poemas:

Considero importante para a poesia as palavras porque não gosto de palavras acostumadas. Aquela que se vicia no lugar de sempre. Isso que chamamos de lugar comum. O mesmal me faz mal. Temos de salvar as palavras da mesmice. Na poesia, os despropósitos são muito mais acertados que os cabimentos. As nossas contradições se aliviam mais com os absurdos, com os paradoxos. As antíteses nos curam. Temos que atrapalhar as significâncias até o arejamento total das palavras. Eis o que nos consagra (BARROS, 2010, p.111).

Para Barros o papel da poesia não é informar, e nem contar histórias, mas decantar encantações. Poesia deve ser essência, a palavra poética deve chegar aonde à informação não alcança, “poesia é essência, informação é casca”. A criação é papel da poesia, e apesar do homem precisar da informação para se cumprir, ele também precisa da poesia para se completar, “[...]

porque a gente é incompleta. Porque a gente é uma falta. Informação preenche a necessidade de estar. Poesia preenche a necessidade de Ser” (Barros, 2010, p.157). E é através do acerto dos sons com os sentidos das coisas, que o poeta cria seus versos. Para fugir do “mesmal”, busca na voz da criança, usa seu “olho torto”, para desentender o mundo e a si mesmo com clareza e escrever o

“desanormal”. Nesse sentido, para Manoel de Barros, cabe ao poeta a função de arejar as palavras, fugir de clichês, aprender a errar a língua, retornar à inocência da fala, perverter a linguagem, molecar o idioma, “O nosso paladar de ler anda com tédio. É preciso injetar nos verbos insanidades, para que eles transmitam aos nomes os seus delírios” (Barros, 2010, p.54).

Seus livros são compostos por mais ou menos 400 versos. O Livro sobre nada, por exemplo, nasceu de um caderno de ter infância onde o poeta escreve suas fantasias, peraltices de memórias inventadas, frases capengas, “dementes”. Para parafrasear Maiakóvski (1984, p.201),

“um bom caderno de notas e a capacidade de usá-lo são mais importantes que a capacidade de escrever sem erro”. Um poeta, segundo o estudioso, deve apreciar cada encontro, cada acontecimento, criar imagens através da invenção, tudo isso se torna material para a realização vocabular. Um dos dados indispensáveis para o início do trabalho poético, segundo Maiakóvski (1984, p.173), são as palavras, “fornecimento constante aos depósitos, aos barracões de seu crânio, das palavras necessárias, expressiva, raras, inventadas, renovadas, produzidas, e toda outra espécie de palavras”, essa invenção de processos para a elaboração de um trabalho poético, é o que fazem de um escritor, um profissional, um poeta. Os versos, então, para Maiakóvski não deve seguir regra alguma, e é justamente esse o papel do poeta, criar suas próprias regras poéticas.

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Para Manoel de Barros, os versos vêm depois que consegue umas trezentas frases, “cada verso há de ter uma unidade rítmica com ideias desencontradas” (Barros 2010, p.133). É a partir daí que um livro seu nasce, quando sente que seu imaginário não quer mais desabrochar, e seus versos já estão plenos do nada. Segundo Maiakóvski:

O esforço de organizar o movimento, de organizar os sons ao redor de si, depois de determinar o caráter destes, as suas peculiaridades, são um dos mais importantes trabalhos poéticos permanentes: são as preparações rítmicas. Não sei se o ritmo existe fora de mim ou somente em mim, provavelmente só em mim. Mas para o seu despertar é necessário um empurrão – assim, não se sabe por obra de que violinista, surge uma zoada no ventre de um piano; assim também, ameaçando ruir, balança uma ponte, em consequência da marcha sincrônica de numerosas formigas. O ritmo é a força básica, a energia básica do verso. Não se pode explicá-lo, disto só se pode falar como se fala do magnetismo ou da eletricidade, o magnetismo e a eletricidade são formas de energia. O ritmo pode ser um só em muitos versos, até em toda a obra de um poeta, isto não torna o trabalho monótono, pois o ritmo pode ser tão complexo e difícil de materializar que não se consiga alcançá- lo mesmo com alguns poemas longos (MAIAKÓVSKI, 1984, p.187).

Tanto para Manoel de Barros quanto para Maiakóvski, podemos perceber que a expressividade do verso deve ser levada ao limite, ou ao deslimite das palavras, da imagem, da imaginação. A imagem, para o estudioso, deve ser um dos recursos de maior criação para a poesia.

Ao que Manoel de Barros também afirma:

Acho que a língua da poesia é a da imagem. Li algures e não me lembro de que autor que:

Poeta é aquele que pensa com imagem. Também a nossa querida Nize da Silveira me disse uma vez: os poetas e os loucos são aqueles que caíram no mundo das imagens. Essa é a minha opinião: poeta que ainda não caiu no mundo das imagens, ainda não está poeta.

O que não aprendeu ainda a renunciar ao desejo de informar, ao desejo de narra, não aprendeu a cantar. Quem canta é músico, passarinho, pintor, vento, poeta, chuva. Poeta não precisa informar sobre o mundo. Poeta precisa de inventar outro mundo. E o instrumento para inventar outro mundo é a imagem, a metáfora e outros descomportamento linguísticos (BARROS, 2010p. 149).

Para Barros, são os poetas que percebem as imagens, ao ponto que os sentidos que percebem as contiguidades verbais. O poeta imagina não pela razão, mas pela sabedoria que vem do ser, pelos cheiros, pelos tatos. Nesse sentido as palavras são arrumadas pelo sentido estético, através da tarefa do ouvir e do ver, “o olhar do poeta é sem princípios. A coisa muito lógica o embaça” (Barros, 2010, p.118), como já pronunciava Maiakóvski (1984, p.170), “não há razão para se inventar regras para a contagem de estrelas sobre uma bicicleta em alta velocidade”. Para Maiakóvski:

Algumas palavras simplesmente pulam fora e não voltam nunca mais, outras se detêm, reviram-se e revolvem-se algumas dezenas de vezes, antes que você sinta que a palavra ficou no lugar certo (é a este sentimento, que se desenvolve a par da experiência, que se dá o nome de talento). O mais das vezes, o que surge primeiro é a palavra mais importante, aquela que caracteriza o sentido do verso, ou a palavra a ser ritmada. As demais palavras

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vêm e são colocadas no lugar, na dependência dessa palavra mais importante. Quando o essencial já está concluído, vem-se de repente a sensação de que o ritmo se quebra: falta a pequena sílaba, um pequeno som. Você passa a cozer de nôvo tôdas as palavras, até o frenesi. É como se experimentasse do dente cem vezes uma coroa, e finalmente, depois de cem tentativas, ela é apertada e assentada no lugar. A semelhança é ainda redobrada, quando a mim pelo menos, pelo fato de que, no momento em que esta coroa “assentou”, tenha literalmente lágrimas nos olhos – de dor e de alívio (1984, p. 187).

Nesse sentido, percebemos que a palavra poética vem mais dos sentidos que da mente.

Através da linguagem poética, se expõe o mundo refletido em palavras. As palavras com significações adormecidas, com formas enterradas, palavras também ainda a serem inventadas são de grande agrado para Manoel de Barros. Para o poeta, “o escritor de um modo geral, tem que recuperar algumas adormecências de certas palavras, ou mesmo algumas feiuras delas” (Barros, 2010, p.135). Despalavrar, arejar a palavra, encontrar nela novos significados fora do seu uso comum:

Quase sempre as invenções se fazem a partir de coisas adormecidas e não de coisas inexistentes. Na casa da memória a gente está quem foi antes. A gente está quando era pedra, quando era chuva. Então se o poeta fala a partir das coisas adormecidas das pedras, a partir das árvores, ele pode trazer para a sua expressão poética coisas que não fazem tédio (BARROS, 2010, p. 135).

Para Barros o poeta deve partir do inominável, dos mistérios iniciais que engloba a fala, precisa reaprender a errar a língua como nos germínios da fala. Nesse sentido, a visão poética aproxima-se da visão de mundo da criança. A esfera poética de Barros vem exatamente do exercitar ser criança, do desconhecer o mundo para conhecer tudo de novo, do colocar olho virgem nas coisas, do aprender a se desconhecer, por isso o poeta consegue escutar a voz dos peixes, escutar na flauta um aroma de violeta, fazer do absurdo sensatez, atrapalhar as insignificâncias. Falar sobre nada para o Barros é algo crucial, pois o nada é cheio de muitas coisas, ao mesmo tempo que pode também não ser, como em seu Livro sobre nada, “que é cheio de tudo que é nada”. Através da metalinguagem, Barros faz com que o personagem principal em seus poemas seja a palavra ao expressar-se pela forma de dizer. Sua poesia, assim como sua forma de criar poesias, é muito intuitiva, e seu fascínio vem de explorar o ser humano, assim como as coisas e seres desimportantes:

Todos os elementos são matéria de poesia, mas pra mim o ser humano é a grande matéria para poesia. É do ser humano que sai o canto, que sai a dor, o amor, a dúvida, o ciúme, a morte. Não precisamos de terras nem águas nem paisagens para poesia. Shakespeare só serviu do ser humano e suas paixões. Cristo, Marx e Freud só se ocuparam do ser humano.

Proust era tão chegado que gozava só de ouvir a voz de Albertine. Nós, seres humanos, carregamos o essencial dentro de nós: o sol, a água, o verbo, os nomes e as limitações.

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Com as palavras nós somos onipotentes. Chegamos até a lugares que não existem (BARROS, 2010, p.150).

A poesia de Manoel de Barros é atravessada, desde seu primeiro livro, por seres humanos, principalmente por aqueles que “moram debaixo do chapéu: poque não têm casa”, por andarilhos e por “loucos de água e estandarte”, e pessoas que “moram no abandono da sociedade”. Como manobreiro de palavras, Barros não se preocupa em expor verdades, elas são muito relativas para o poeta. O poeta prefere voltar a criança que foi, ou até mesmo ao moleque que gostaria de ter sido, manobrando palavras, pode chegar aonde quiser. Ao manobrar, brincar, fazer peraltagens com as palavras, pode virar cambalhotas, saltar obstáculos, voltar a infância, é dessa forma que o poeta encontra o tatibitate, a forma embrionária da palavra. As crianças podem dizer coisas poéticas, os pássaros podem cantar bonito, borboletas podem desenhar novas cores, mas para que isso se torne arte é preciso que haja uma consciência artística e poética. Sobre a natureza da poesia, Huizinga discorre:

[...] a função do poeta continua situada na esfera em que nasceu. E, na realidade, a poesis é uma função lúdica. Ela se exerce no interior da região lúdica do espírito, num mundo próprio para ela criada pelo espírito, no qual as coisas possuem uma fisionomia inteiramente diferente da que apresentam na “vida comum”, e estão ligadas por relações diferentes das da lógica e da casualidade. Se a seriedade só pudesse ser concebida nos termos da vida real, a poesia jamais poderia elevar-se ao nível da seriedade. Ela está para além da seriedade, naquele plano mais primitivo e originário a que pertencem a criança, o animal, o selvagem e o visionário, na região do sonho, do encantamento, do êxtase, do riso. Para compreender a poesia precisamos ser capazes de envergar a alma da criança como se fosse uma capa mágica, e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto (HUIZINGA, 2000, p.88).

Ao experimentar as possibilidades da língua e sua fruição estética, o poeta leva o leitor ao prazer da imaginação. Segundo Barros (2010, p. 111), “só a imaginação revela nosso imo. Somos o que está mais no fundo”, por isso desaprender-se para chegar ao degrau da infância, onde os sentidos se misturam, afinal de contas “a imagem de um vidro mole” ou “uma cobra de vidro” é muito mais interessante que o nome enseada. O rio que dá volta atrás da casa, não era mais visto com encantamento, como disse o poeta, “o nome empobreceu a imagem. E é nesse sentido que Barros celebra os bocós, e até cria um idioleto para se expressar melhor, o idioleto manoelês arcaico, o idioma, segundo o poeta, usado para falar com as paredes e moscas. Dessa forma entende-se que o idioleto manoelês não serve para comunicar, informar, mas para comungar. O estilo do barrismo então se dá na combinação de sentidos e sons, vem das ancestralidades do poeta, do que o falta, esse é o estilo de Manoel de Barros, obter a linguagem que o complete, disso o

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poeta afirma que não pode fugir. Seu entendimento não é linear, pelo contrário, escreve pelo seu avesso in-verso, sobre natências e pré-coisas. A imaginação poética, segundo Paz (1996, p. 102), não é invenção, mas a descoberta da presença, é descobrir os fragmentos da imagem do mundo, é

“devolver à linguagem sua virtude metafórica: dar presença aos outros”. O poeta, vive então em constante estágio de primeiridade com as coisas do mundo. Ainda segundo Paz (1996, p.109),

“andamos perdidos entre as coisas, nossos pensamentos são circulares e percebemos apenas algo que emerge, ainda sem nome”, esse é o movimento da poesia de Manoel de Barros, os signos que o poeta traz em sua poesia são o reflexo da sua interação com o mundo através da mais pura qualidade de sentimentos.

2. TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA

A Tradução Intersemiótica (TI) é um estudo que deriva dos aspectos linguísticos da tradução, através de práticas crítico-criativas, como leitura, metacriação, diálogos entre signos, trânsito de signos e transcriação de formas. Segundo Jakobson (2003), linguista russo e pioneiro nos estudos de TI, há três maneiras de interpretar o signo verbal, sendo elas, a tradução intralingual, onde signos são interpretados por meio de signos da mesma língua; a tradução interlingual, onde signos são traduzidos por meio de signos pertencentes a outra língua; e a tradução intersemiótica, onde signos são traduzidos para outros sistemas de signos, no caso signos não verbais. Através desses estudos interlinguísticos, é possível encontrar traduções de narrativas literárias para o audiovisual, da poesia para a música, do textual para a ilustração, dentre outras.

Segundo o semioticista C. S. Peirce, o pensamento é um processo sígnico. Todo pensamento é, de certa forma, um processo de tradução de signos em outros signos, que gera novos pensamentos, o que corresponde a noção de semiose. Na teoria peirciana, o signo estabelece uma relação triádica, que nada mais é do que um processo gerativo em cadeia, onde o signo cresce através da autogeração e desenvolve-se em um interpretante ou outro signo, que desencadeará outras interpretações e signos, e assim por diante. Em suma, na teoria peirciana, o signo (ou representamem) é um sistema de três elementos incluindo o próprio signo, um objeto e um interpretante (a mente interpretadora). Vejamos como o estudioso elabora a noção de signo em uma de muitas de suas interpretações:

Um representamem é um assunto de uma relação triádica há um segundo, chamado de objeto, com um terceiro, chamado de interpretante, sendo que em tal relação triádica o

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representamem determina seu interpretante que está dentro da mesma relação triádica com o mesmo objeto com algum interpretante (PEIRCE, 1994, CP 1.541, tradução nossa).

O representamem enquanto signo é determinado pelo objeto, porém essa relação entre o signo e seu objeto é quem determina o interpretante. Uma mesma relação triádica, com o mesmo signo e objeto é possível gerar novos e diferentes interpretantes, que podem ser considerados como signos. Por assim dizer, a mesma relação composta dos mesmos signos e objetos podem criar interpretantes diferentes nas mentes dos sujeitos interpretadores ou da interpretação. Com isso, ao entendermos signo como aquilo que de certo modo representa algo para alguém, podemos entender também que este mesmo signo pode criar na mente de uma pessoa um signo equivalente – o interpretante – ou até mesmo um signo mais desenvolvido e elevado. Ou seja, ao percebermos um signo, imaginamos que ele exista por algum motivo possuindo assim um caráter representativo.

Ainda sobre a natureza do signo, Jakobson salienta:

Para o linguista como para o usuário comum das palavras, o significado de um signo linguístico não é mais que sua tradução por outro signo que lhe pode ser substituído, especialmente um signo ‘no qual ele se ache desenvolvido de modo mais completo’, como insistentemente afirmou Peirce, o mais profundo investigador da essência dos signos (JAKOBSON, 1975, p.64).

De fato, Peirce apud Plaza (2003, p. 18) considera o próprio pensamento uma forma de tradução, ou seja, “traduzimos aquilo que temos presente à consciência, sejam imagens, sentimentos ou concepções” em outras representações sígnicas.

2.1 Classificação dos signos dentro da Tradução Intersemiótica

Peirce procurou fundar a origem do conhecimento na fenomenologia da percepção. Todo signo possui um significante (objeto) que se constitui na percepção; e um significado (interpretante) que gera entendimento. E essas duas facetas do signo juntas produzem a significação. Voltando a nossa atenção para a teoria da percepção, adverte Santaella (2008, p. 51) que três ingredientes constituem a teoria da percepção; o percepto, algo externo que atrai a atenção do intérprete; o julgamento perceptivo, diz ou dita o que o intérprete percebe; e o percipuum, tal como o percepto é imediatamente interpretado no julgamento da percepção, ou seja, é o percepto tal como este se apresenta a quem percebe.

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Através do estudo da percepção, conclui-se que só é possível perceber algo que é externo a nós e que estamos equipados para interpretar. Digamos que há um objeto diante de nós, ele está no papel do percepto, só somos capazes de percebê-lo a partir do momento que focamos em algum de seus detalhes, nesse momento é seguro afirmar que estamos usando o nosso julgamento perceptivo para entender o que vemos, a partir do momento em que entendemos, percebemos o percipuum do objeto. Com essa explicação, pode-se entender que o percepto não transmite nada para o intérprete, apenas o chama a atenção, para que assim possa ser transformado em percipuum no momento em que chega à compreensão do intérprete. Colocando-nos no papel do intérprete, somente ficamos cientes da existência do percepto através do nosso julgamento perceptivo, e embora o percepto pareça indubitável e incontestável, podemos julgá-lo erroneamente, corrigindo- o depois.

Em relação ao percipuum, segundo a teoria peircina da percepção, este apresenta-se em três níveis fenomenológicos ao intérprete ou quem percebe o objeto, a saber: o primeiro nível é chamado de primeiridade e constitui o primeiro instante do contato entre o intérprete e o objeto possuindo de imediato uma qualidade qualitativa. Esse nível desperta a consciência de quem percebe a partir de uma qualidade de sentimento vaga e indefinida, como a sensação de ver algo pela primeira vez. É isento da necessidade de representação, pois esse nível se enquadra na categoria de qualidade, por assim dizer, pura enquanto elas próprias e não enquanto são representadas na mente. Resumindo, a primeiridade é constituída de signos de possibilidade. O segundo nível da percepção é chamado de secundidade, baseia-se em puro choque, ou seja, uma experiência irracional onde o objeto se apresenta sem considerar a expectativa do intérprete.

Constitui-se na ação e reação baseada no conflito com relação aos conhecimentos já adquiridos, o que acarreta no pensamento a presença da binaridade existente na linguagem e na percepção: bom ou mal, alto ou baixo, vivo ou morto, dentro ou fora, identidade versus oposição, etc. Como por exemplo a compreensão de alguém lendo algo, há sempre duas forças que provocam a reação que interrompe o fluxo da consciência e faz a pessoa pensar. A secundidade sempre possui relação com a resistência, a força bruta e interrupção. O terceiro nível da percepção está relacionado à terceiridade, é onde ocorre a mediação entre julgamento perceptivo e percepto, resultando em uma interpretação do percepto. Esse é o nível que nos diz algo sobre o que é percebido, onde há uma representação e interpretação de mundo. Diante um fenômeno, a consciência produz um signo e a pessoa conecta o signo a sua experiência de vida, a seus conhecimentos prévios.

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O julgamento perceptivo é o julgamento constituído por hábitos e princípios condutores pertencentes àqueles que percebem. As experiências prévias dos intérpretes ajudam a formar o julgamento diante um fenômeno, o tornando falível. Ao entrar em contato com algo, é o julgamento perceptivo que toma conta sendo forçado a corresponder a seu objeto e expondo as primeiras premissas do intérprete. Porém é importante lembrar que assim como os hábitos e princípios condutores, o percepto também ajuda a determinar o julgamento, já que é este que chama a atenção para assim poder ser julgado e depois determinado.

Após estabelecer os elementos da tríade genuína (signo, objeto e interpretante), C. S. Peirce estabelece tríades compostas através do comportamento de cada elemento posto em evidência, a ponto de analisar seu comportamento e efeito para o processo de significação. Conforme registrado pelo autor em seus Collected Papers1 (1994):

Agora estou preparado para dar a minha divisão dos signos, assim que apontei que um signo tem dois objetos, o objeto como é representado e o objeto dentro dele mesmo. Que também tem três interpretantes, o interpretante como é representado ou destinado a ser compreendido, o interpretante a medida que é produzido e o interpretante em si. Agora signos podem ser divididos quanto à sua própria natureza material, no que se refere às suas relações com seus próprios objetos, e às suas relações com seus próprios interpretantes (PEIRCE, 1994, CP 1.588, Tradução nossa).

Cada tricotomia apresentada por Peirce, surge a partir da ênfase colocada em cada elemento dentro da tríade, ou seja, o signo em si mesmo; o signo em conexão com o objeto; e o signo como representação para o interpretante. O signo ou representamem está imerso em uma relação triádica entre objeto e o interpretante do signo. O signo é o primeiro elemento da tríade e, também, é o primeiro a estabelecer uma relação genuína com seu objeto que vem em segundo e determina assim o terceiro elemento que é o seu pensamento interpretador. Um signo só́ é considerado como tal pois transmite algo para alguém. Logo aquilo que o signo representa é o objeto, a mensagem que ele transmite é o seu significado e a ideia que ele cria na mente do indivíduo é o interpretante. A causação lógica do signo dentro da relação triádica dá-se pelo fato do signo estar fadado a autogeração de novos signos no processo de evolução da comunicação e dessa forma pode-se dizer

1 Collected Papers são manuscritos de estudos peircianos, que podem ser encontrados na página online do Departamento de Filosofia da Universidade de Harvard, USA. Disponível em:

<http://www.hup.harvard .edu /results-list.php?search=Collected+Papers&submit=Search>.

Acesso em: 15 de ago. de 2015.

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que o objeto possui vários signos, sendo impossível chegar-se ao Interpretante Final. Segundo Santaella (2008, p.24) “a ação do signo é funcionar como mediador entre o objeto e o efeito que se produz numa mente atual ou potencial, efeito este (interpretante) que é mediatamente devido ao objeto através do signo”. Sendo assim, se profetizamos que existem vários signos para um mesmo objeto, é correto dizer que dessa relação também surjam vários interpretantes. Ou seja, o signo determina o interpretante como sendo signo do mesmo objeto e sua propriedade de auto geração lhe dá o poder de produzir interpretante atrás de interpretante. Concluísse então que todo interpretante é de natureza sígnica.

É importante lembrar que apesar do signo ser o primeiro elemento da tríade peirciana, este porém é determinado pelo objeto, que é o único elemento real ou que existe realmente, sendo ele abstrato ou não. Porém o objeto só se torna manifesto através da mediação do signo, que gera uma interpretação capaz de qualifica-lo em algumas de suas características. É importante lembrar, todavia que o signo por si só nunca substituirá o objeto, mas apenas representa-lo para que uma ideia sobre este seja criada. O signo também é por natureza incompleto no sentido de que nunca poderá representar o objeto como um todo, mas apenas aspectos deste.

O papel do signo como mediador faz com que ele contenha uma ação crucial dentro da relação triádica. É somente por intermédio dele que a relação acontece. É claro que sem algum outro elemento a relação triádica também não aconteceria, porém é seguro dizer que sem o signo a mensagem não seria transmitida e não geraria nenhuma ideia ou compreensão. Então, em Pierce apud Santaella (2008, p. 29) o signo tem origem em três referênciais: 1) Ele é signo para algum pensamento que o interpreta; 2) É signo para algum objeto que se equivalha; e 3) É signo sob algum aspecto de qualidade que o ligue ao objeto.

O objeto é o elemento que determina a sua própria representação, através da representação do signo. Apesar de está classificado como vindo em segundo na concepção triádica do signo, é o objeto que provoca a ação do signo. Ou seja, o signo só representa aquilo que o objeto permite representar, apesar de ser o signo o primeiro gerador de seu significado na ordem triádica peirciana.

Vale salientar também que o signo só representa parte do objeto e nunca o objeto inteiro, pois ele apenas pressupõe uma familiaridade com o objeto, podendo somente referir a este e nunca substituí-lo. Peirce elegeu o signo como o primeiro elemento da tríade pois o objeto por si só não gera interpretantes, mas somente pela mediação do signo, logo é o signo que primeiro se apresenta

Referências

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