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A FLORESTA INTELIGENTE: UM ENSAIO À LUZ DAS PALAVRAS DO XAMÃ DAVI KOPENAWA

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Programa de Pós Graduação em Antropologia Área de Concentração em Antropologia Social

PEDRO PAULO VALERIO VAZ

A FLORESTA INTELIGENTE:

UM ENSAIO À LUZ DAS PALAVRAS DO XAMÃ DAVI KOPENAWA

Belo Horizonte 2019

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A FLORESTA INTELIGENTE:

UM ENSAIO À LUZ DAS PALAVRAS DO XAMÃ DAVI KOPENAWA

Dissertação apresentada como exigência para obtenção do título de Mestre em Antropologia Social, junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Área de concentração em Antropologia Social, Universidade Federal de Minas Gerais. Objetivo do trabalho, expor o xamanismo.

Orientador: Professor Dr. Ruben Caixeta de Queiroz

Belo Horizonte 2019

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RESUMO

Esta dissertação tem o objetivo de fazer uma reflexão junto às palavras do xamã yanomami Davi Kopenawa, contidas na obra A queda do céu. O texto em questão foi construído mediante o trabalho conjunto do antropólogo francês Bruce Albert e o xamã Davi Kopenawa. Esta pesquisa busca cooperar na exposição das consequências que esse trabalho “a quatro mãos” vem causando à teoria antropológica, principalmente aquela ligada ao xamanismo. A frase de Davi Kopenawa “a floresta é inteligente, ela tem um pensamento” será o centro de irradiação desta dissertação, e se buscará friccioná-la a diferentes textos ocidentais contemporâneos, para que caminhos e desvios surjam e para que as faíscas desses encontros sejam expostas.

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ABSTRACT

This dissertation aims to engage a reflexion regarding the words of the yanomami shaman, Davi Kopenawa, contained in the book The falling sky. The book in question was a result of a joint work between the french anthropologist Bruce Albert and the shaman Davi Kopenawa, and this research seeks to cooperate in exposing the consequences that this "four hands" work has been causing to anthropological theory, and especially to the anthropological theory linked to shamanism. David Kopenawa's sentence "the forest is intelligent, it has a thought" will be the point of dissemination of this dissertation, and we will try to friction this sentence into different contemporary western texts so that paths and deviations arise, and for the sparks to be exposed.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 8

1.1 CONTRA-ANTROPOLOGIA? ... 12

SEGUNDO CAPÍTULO - A MODERNIDADE E O PANPSIQUISMO ... 15

2.1 A MÁQUINA ANTROPOLÓGICA ... 19

2.1.1 O ZOOLÓGICO MACABRO: IDENTIFICANDO O ANTROPOMORFISMO INIMIGO ... 21

2.2 A FLORESTA QUE PENSA... 23

2.2.1 POR UMA POLÍTICA ANIMISTA PARA ALÉM DA PROJEÇÃO ... 25

TERCEIRO CAPÍTULO - OS LIMITES DO ANTROPOMORFISMO E A ANTROPOLOGIA ... 31 3.1 A NATUREZA E O PASSADO ... 31 3.2 DESCOLA E O ANIMISMO ... 33 3.3 O TERREMOTO PERSPECTIVISTA ... 40 3.3.1 XAMANISMO ... 45 3.3.2 A MÁQUINA PRONOME-POSICIONAL ... 47

3.4 VIVEIROS DE CASTRO (VS) DESCOLA ... 49

3.5 A FLORESTA XAMÂNICA ... 52

3.5.1 OS ESPÍRITOS E O EXTERIOR ... 55

3.6 OS XAPIRI ... 56

3.6.1 A HUMANIDADE FINGIDA ... 59

QUARTO CAPÍTULO - OS FINS E OS COMEÇOS DOS MUNDOS ... 62

4.1 OS FINS DOS MUNDOS XAMÂNICOS ... 67

4.2 O SER DO CAOS ... 71

4.3 DA ENTROPIA À ANTROPOLOGIA (E VICE-VERSA)... 75

4.3.1 OS DIFERENTES LÉVI-STRAUSS: ENTRE O FRIO E O QUENTE ... 77

QUINTO CAPÍTULO - PENSANDO KOHN A FLORESTA ... 81

5.1 A ANTROPOLOGIA CONTRA O ALÉM DO HUMANO ... 84

5.2 E O PENSAMENTO? ... 86

5.3 KOHN O PERSPECTIVISMO ... 88

5.4 OS LIMITES DO ALÉM DO HUMANO ... 92

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 99

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1 INTRODUÇÃO

O que fazer com o texto A queda do céu, construído em uma parceria entre o xamã Davi Kopenawa e o antropólogo Bruce Albert? Ou melhor, o que os antropólogos podem fazer com as palavras do xamã yanõmami tëpë1? Essa ainda é uma pergunta muito nova2, à qual esta

pesquisa busca trazer alguma luz. A presente pesquisa tem como principal intenção explorar as palavras, os insights, do xamã Davi Kopenawa, escritas na obra A queda do céu, e junto às palavras do xamã, e não menos importante, expor também questões ligadas ao xamanismo da teoria antropológica napë3. Resumidamente, o que tento fazer aqui é friccionar o texto

xamânico com outros textos ocidentais, de forma que surjam caminhos em comum, desvios, ou mesmo para que seja possível descrever as faíscas do atrito desses encontros. A questão é menos de explicar o xamã, e mais a de forçar pontes de saída e fuga para que suas palavras, suas intuições, atinjam o máximo de textos que puderem, seja direta ou indiretamente, chegando assim o mais longe possível. Busco menos fazer os textos ocidentais convergirem para as afirmações de Kopenawa, e mais expor as divergências entre os vários autores que serão apresentados, pensando os possíveis efeitos, tremores e tensões que as afirmações xamânicas implicam à tradição moderna antropológica escrita.

Esta pesquisa pretende, de uma forma geral, expor alguns pontos importantes para a tradição teórica antropológica, principalmente ligadas ao xamanismo. Para tal, contará com a ajuda das palavras do xamã, que poderão nos guiar ao encontro de pontos frágeis, vulneráveis ou mesmo normalmente invisíveis da estrutura teórica antropológica. Basicamente, pretendo expor algumas discussões que estão em pauta dentro da antropologia nos dias de hoje, com a companhia de Davi Kopenawa. Mesmo que pretendendo ser guiado pelo xamã, a intenção não é a de manter a análise sempre colada a suas indicações. Ou seja, em certos momentos estaremos tão perto de Kopenawa que o texto parecerá dentro de sua fala, já em outros momentos, iremos para longe dos gatilhos do xamã, em voos mais altos. Mas, mesmo distantes de suas palavras, em grande parte da discussão estaremos ainda sob sua influência indireta.

1 “Yanomami” é uma simplificação da palavra Yanõmami tëpë, que significa “humanos”, e que é utilizado por

algumas sociedades ameríndias, inclusive por parte dos Yanomami.

2 O livro teve sua publicação em uma língua ocidental em francês no ano de 2010.

3 A palavra napë é utilizada pelo xamã para se referir aos brancos, aos invasores da floresta. O napë é o “diferente”,

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O centro de irradiação dos problemas deste artigo é a simples frase: “A floresta4 é

inteligente, ela tem um pensamento”(KOPENAWA; ALBERT, 2016, p.497). Porém, isso não significa que devo me manter sempre perto do centro, ou começar o texto a partir do centro, ou mesmo que irei terminar a discussão no centro. A dissertação, aliás, se desenvolve primeiramente a partir de considerações sobre as bases teóricas da modernidade, que servem para situar o momento histórico no qual a frase do xamã aparece. Feito isso, iremos a pontos da teoria antropológica sobre o xamanismo, problematizando-os para, após esse percurso, chegarmos diretamente às palavras de Davi Kopenawa.

A afirmação que “a floresta pensa” é um centro ideal que retorna a meus argumentos de tempos em tempos neste trabalho. Este centro possui características de um buraco negro, como algo que atrai tudo para ele, e que também, ao mesmo tempo, distorce tudo o que está ao seu redor, exercendo influência mesmo que distante. Logo, todas as discussões expostas neste texto são consequências, mesmo que distantes, dessa afirmação tão estranha ao ocidente.

Umas das partes desta dissertação irá se concentrar em expor aquilo que só os xamãs veem, sabem, conhecem, que é o sobrenatural/extranatural/supernatural, o mundo animado, povoado com seres que inundam a floresta por todos os cantos. Iremos vislumbrar uma floresta mágica com a sua multidão de seres em complexas relações, iremos assim nos aproximar do tempo dos sonhos. Tentaremos expor a floresta nos termos do próprio xamã.

As palavras do xamã são diferentes. Elas vêm de muito longe e falam de coisas desconhecidas pelas pessoas comuns (KOPENAWA; ALBERT, 2016, p.461). Se quisermos conseguir essas palavras de sabedoria, temos que responder aos espíritos [...] estudando sob a orientação de nossos xamãs mais velhos não temos a menor necessidade de olhar para as folhas de papel (KOPENAWA; ALBERT, 2016, p.460). Nós somos habitantes da floresta, nosso estudo é outro (KOPENAWA; ALBERT, 2016, p.458).

A floresta, junto ao seu pensamento e ao seu lado espiritual, foi encarada desde cedo pela antropologia em meio às questões da antropomorfia5, ou seja, se a floresta pensa, ela deve

4 Em um encontro que tive com Davi Kopenawa na cidade de Brasília, surgiu a ideia de usar esta frase do livro

como centro para a minha dissertação. Na ocasião, ele indicou um conjunto de árvores, uma especie de bosque, de jardim, enquanto andavamos pelo campus da Universidade de Brasília (UnB), chamando-o de “pequena floresta”. Isso propõe que a floresta que o xamã conhece não é apenas a amazônica, mas, sim, as florestas no sentido amplo da palavra, ou seja, qualquer floresta que exista em qualquer lugar. É como se a floresta na cidade estivesse enfraquecida, escondida, mas ainda estivesse lá. Na hora que ele apontou a “pequena floresta” meus pensamentos ficaram atordoados, pois já admirava a floresta do livro, mas nunca tinha imaginado que ela estava tão perto de mim. Partindo deste encontro, decidi colocar a floresta no centro da minha dissertação, e de expor argumentos que explicassem como lidar com a floresta xamânica.

5 As questões que envolvem o antropomorfismo atravessam a antropologia desde seu início até os dias atuais,

desde Edward Tylor e James Frazer, até Viveiros de Castro e Philippe Descola. Maiores detalhes podem ser encontrados na coletânea de texto The hand book of contemporany animism (Org. Graham Harvey)

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pensar como o humano, ela deve ter algo de humano. Dentro dessa problemática, imagina-se uma floresta que pensa, sobretudo, por intermédio de características humanas. Somado a isso, vê-se também a afirmação de que uma floresta pensa enquanto um erro de cálculo desses povos, que confundem partes que na verdade são separadas, a humanidade e a natureza. Esta dissertação se propõem a fazer uma exposição dos diferentes significados que esta palavra – antropomorfia – representou nos últimos tempos, dentro da teoria de diferentes antropólogos e filósofos.

“Animism is the doctrine of all men who believe in active spiritual beings” (TYLOR, apud SEGAL, 2013 p.58). Essa é a primeira definição dada ao conceito antropológico de

animismo6. Então, acreditar em seres espirituais é o que “characterizes tribes very low in the

scale of humanity” (TYLOR, apud SEGAL 2013, p.58), ou seja, o animismo é algo que tende a ser ultrapassado. A definição do conceito é a própria definição das religiões em geral, que tenderão a se extinguir quando a ciência moderna conseguir explicar tudo, ou basicamente conseguir explicar que tudo o que se pensa espiritual é material na realidade. Tylor se aproxima de um programa fisicalista que até hoje repercute em diferentes áreas de estudo, que é aquele que sonha em um dia conseguir explicar todo o espiritual, mas não sem o eliminar ao mesmo tempo, por meio de sua redução ao físico (BENSUSAN, 2017, p.123). Todos os espíritos então um dia serão encarados como obedecendo às leis da física, de forma que explicar é prender os seres espirituais aos fenômenos físicos, é a fé que a ciência física um dia irá explicar tudo e todos.

O animismo enquanto conceito de certa tradição antropológica, se alicerça na ideia básica de que existe animação, pensamento, agência7, para além dos humanos (BENSUSAN,

2017, p.11). E o conceito vem sendo repensado atualmente por influentes escritores, como os antropólogos Philippe Descola, Eduardo Viveiros de Castro e Eduardo Kohn, e também por

6 Palavra do Latim animus: “the mind, in a great variety of meanings: the rational soul in man, intellect,

consciousness, will, intention, courage, spirit, sensibility, feeling, passion, pride, vehemence, wrath, etc., the breath, life, soul” (Animus, In; Wiktionary. Disponível em: https://en.wiktionary.org/wiki/animus . Acesso em; 5

maio.2019)

7 A palavra agência vem sendo amplamente usada nos debates da antropologia atual. Em termos muitos gerais, ter

agência é ter capacidade de começar algo, ou seja, não ser um simples prosseguimento de algo já começado, mas sim ter comando para originar algo. As palavras “espontâneo”, “iniciativa”, e, de alguma forma, a palavra “decisão” são chaves para se entender o conceito (BENSUSAN, ALVES DE FREITAS, 2018, p.20). A agência é um ponto de partida, que não apenas continua algo que já começou em outro ponto. Nos debates atuais, a definição da palavra se aproxima à definição de individuo consciente, um agente consciente, ou seja, como aquilo que tem “habilidade para construir e reconstruir a si mesmo” (OVERING; RAPPORT, 2000, p.1), como aquilo que pode ser a fonte de uma ação, a origem de uma ação. “Atribuir agência a algo seria nesse sentido, atribuir mente ou intuição, não importa se a pessoas ou coisas” (SZTUTMAN, 2005, p.75).

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filósofos brasileiros, como Hilan Bensusan e Marco Valentin, e por fim, também pelo filósofo argentino Fábian Romandini8.

Estes autores deram um novo fôlego à problemática que o conceito envolve e trouxeram-no de novo para o centro dos debates antropológicos. Para despontarmos as discussões sobre o antropomorfismo neste artigo, acompanharemos as relações de concordância e discordância entre esses diferentes arranjos teóricos. Os autores citados conversam entre si em seus próprios textos, o que tanto facilita quanto torna a sua análise conjunta mais potente. As críticas que eles endereçam uns aos outros marcam pontos que discorreremos sobre.

Busco diluir o máximo possível a intuição xamânica de uma floresta encantada, alcançada através das viagens oníricas, em outros textos antropológicos que tive contato e pesquisei durante os dois anos do mestrado. Tento traçar desvios apoiado na afirmação xamânica, dentro da literatura/tradição ocidental, que permitam trazer mais densidade e mais tensão aos argumentos. Afinal, pensa o moderno convicto: por que levar em conta que uma floresta pensa? Por que especular que/com/como uma floresta pensa? Isso não seria coisa de conto

de fadas, crenças de um passado longínquo? Enquanto primeira provocação, a resposta mais simples e direta a essas questões é: devemos levar em conta que as florestas pensam, justamente porque elas pensam (KOHN, 2013, p.22). Os espíritos sabem disso, Davi Kopenawa sabe disso, outros xamãs sabem disso, vários povos também sabem disso, e de acordo com as últimas previsões do tempo, logo a modernidade será obrigada a saber disso.

Propor que a floresta pensa é ir além das preocupações com o pensamento humano e, por esse motivo, este trabalho está situado ao lado da escola pós-humanista. De forma geral, essa escola aposta que a maior contribuição das ciências sociais, ou seja, a cultura/sociedade enquanto “the delimitation of a separate domain of socially (human) reality” (KOHN, 2013, p.7), é também sua grande maldição. Como Eduardo Kohn (2015) coloca, o conceito de cultura/sociedade acompanha um movimento maior da tradição filosófica moderna, a virada epistemológica e correlacional9, que concentrou suas atenções exclusivamente para as

8 Bensusan e Valentim são dois filósofos brasileiros, não por um acaso, que lançaram livros nos últimos anos sobre

o tema xamanismo. Já filósofo argentino Romandini escreveu nos últimos tempos livros relacionados a história dos espíritos no ocidente. Iremos durante a dissertação expor algumas das ideias deles que têm influência direta nos debates atuais da antropologia.

9 Como Quentin Meillassoux (2008) coloca, o primeiro correlacionista foi Kant (1781), para quem a natureza é

encarada como “para-nós(humanos)”, sempre mediada, então a “Natureza só aparece como natureza para nós humanos” (BENSUSAN, 2017, p.40), e dessa forma é como se a natureza não tivesse poder nenhum, pois ela é vista como determinada pelos humanos. E assim só os humanos exercem influência na natureza, enquanto o contrário não ocorre.

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condições que delimitam como os humanos conhecem o mundo, e proibiu/esqueceu as questões sobre o mundo e sua substância (KOHN, 2015, p.318). Nas ciências sociais, essa virada é melhor compreendida enquanto uma virada linguística.

Em Emile Durkheim e Franz Boas, explícita ou implicitamente se pensa a cultura dentro de característica da representação linguística, enquanto “circular, reciprocal, co-constitutive” (KOHN, 2015, p.313), ou seja, sistemas que são construídos socialmente. Em Geertz, a importância da realidade simbólica é explícita em sua Interpretação das culturas. Na antropologia francesa, o giro linguístico também ocorre com Lévi-Strauss e sua utilização da semiologia do linguista Saussure. O resultado fundamental dessa influência é a divisão que se cria entre o mundo dos signos e o mundo ao qual esses signos se referem. Se cria então uma espécie de realidade humana que torna tudo o que está fora dessa “cultura linguista” difícil de se pensar, ou mesmo impossível de se pensar10.

A antropologia moderna é terreno inimigo para a floresta, como próprio nome da disciplina deixa claro. A antropologia é dominada pelos napë, que para o xamã são os principais inimigos da floresta, pois são aqueles que estão arrastando tudo o que existe para uma queda cataclísmica. Se a floresta pensa, a antropologia é convidada também a pensar com, junto, e até através dela. Que consequências são geradas à antropologia a partir da afirmação de que a floresta também pensa? A floresta pensa exatamente como os humanos ou de outro modo? Se a floresta pensa, o que mais pensa? Os jardins, os bosques, as flores, os bonsais, as arvores, os arbustos, as estufas de plantas, os campos de golfe, a plantinha de um vaso? Somente a floresta yanomami pensa? Ou qualquer floresta pensa? Então, até a floresta dos brancos pensa? Só uma floresta pensa ou todas as florestas pensam? E se existe um além dos humanos, o que mais pensa? Então tudo pensa? Ou melhor, todos pensam? Os desertos, os rios e os furacões pensam? Se tudo pensa, tudo pensa igual ou diferente?

1.1 CONTRA-ANTROPOLOGIA?

Para Bruce Albert (2016), o xamã realiza uma “contra-antropologia histórica do mundo branco, a partir da comparação de esferas culturais que, em suas viagens, ele percebera como pontos de embate cruciais entre o seu mundo e o nosso (a mercadoria, a guerra, a escrita e a natureza)” (KOPENAWA; ALBERT, 2016, p.542). A minha estratégia de escrita se desenvolve

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apoiada em uma diferença marcante entre os Yanomami e os napë, “forasteiros, inimigos” (KOPENAWA; ALBERT, 2016, p.610). Ou seja, há de um lado o povo da floresta (índios, xamãs, outros), e do outro os brancos (ocidentais, urbanos, modernos). Sigo inspirado nas ideias de Kopenawa e em seu próprio método de comparação que divide os humanos em diferentes grupos, que às vezes de tão diferentes entre si indicam uma possibilidade de diferentes espécies humanas (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p.106). Se o céu já caiu, ou se está caindo, e muito provavelmente irá cair de novo (ou não), o que o está derrubando e está pesado demais é justamente o mundo dos napë. Se já se disse que o modo de vida dos brancos, o capitalismo, iria se desmanchar no ar, em um otimismo típico do moderno, ao que parece, o mundo branco irá se tornar na verdade mais pesado que o céu.

Apenas a transformação11 do branco, no caso específico de Kopenawa, através das

palavras dos xamãs (que por consequência são as palavras do xapiri), pode permitir que algum futuro de convivência ainda exista entre as diferentes culturas/mundos (KOPENAWA; ALBERT, 2016, p.64). Não pretendo neutralidade em minhas palavras, elas têm um lado, e é o lado dos povos da floresta. Para firmar essa posição, minha aposta começa com tratar o xamanismo como algo prioritário, sobretudo, tratando as suas prioridades enquanto prioritárias. Estaremos mais próximos dos espíritos, dos xamãs, da magia, das bruxas, da yãkoana, do tempo dos sonhos, do que dos estados-nações, do cristianismo, do direito-constituição. Iremos tratar o mundo moderno como uma parte do mundo xamânico (VIVEIROS DE CASTRO, 2015b), uma parte que hoje se mostra grande e destruidora, mas nem por isso deixa de ser apenas uma parte. A intenção desta dissertação se apoia na inspiração de um ataque reverso à tradição ocidental, uma espécie de desconstrução reversa (HOLBRAAD; PEDERSEN, 2017, p.294). Reverso, pois a base de nossas intervenções parte de caminhos apontados pelo xamã Davi Kopenawa. Então, são intervenções de fora para dentro, do mundo do xamã para o mundo dos napë. Como indica o conceito “contra-atropologia” de Albert, grande parte do discurso de Davi Kopenawa se dá seguindo uma estratégia de uma comparação de culturas/mundos, que parte de um ponto xamanocêntrico, de um mundo a priori xamânico, para então realizar uma comparação com o mundo napë. Esta dissertação apresenta assim uma estratégia argumentativa que se desenvolve de constantes idas e vindas, entre os diferentes lados.

11 “É por isso que eu gostaria que eles ouvissem minhas palavras através dos desenhos que você fez delas, para

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Iremos primeiramente expor os fundamentos da modernidade, buscando localizar exatamente o que é esse conceito, para que coisas diferentes dela possam aparecer, de forma que outros sistemas não modernos de pensamentos e mundos sejam encontrados . O mundo de Davi Kopenawa, e por consequência o mundo xamânico, o tempo dos sonhos, sera tratado enquanto tão real quanto o nosso mundo. Ou melhor, como diferentemente real, talvez até mesmo “mais” real (HOLBRAAD; PEDERSEN, 2017, p.294). Estamos então de olho em uma interessante transformação que afeta a disciplina antropológica nos dias atuais, pois, se os antropólogos já foram acusados de atribuir cultura apenas para os outros e se verem como “sem cultura”, hoje são os antropólogos que parecem circunscritos por seus próprios contextos socioculturais, enquanto os outros “simply live with, say, earth-beings” (KOHN, 2013, p.281). A intenção não é a de impor ao texto do xamã Kopenawa as convicções de algum sistema ocidental sobre o que possivelmente é uma floresta que pensa, ou seja, não é impor ao discurso do xamã uma ideia já predeterminada e fixa sobre o assunto. Não queremos chegar com uma constituição pronta e forçar o xamã a aceitá-la, mas, sim, iremos nos basear em uma fraca e simples ideia do que significa uma floresta, e acompanhar o que realmente importa aqui, que é como a floresta se constitui nos próprios termos do xamã. Iremos procurar nas palavras de Kopenawa a organização e a composição da floresta, para repensar o que ela é ou quem ela é. Essa é a intenção que guia esta pesquisa (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p.115).

Ao acompanhar a constituição da floresta com as palavras do xamã, estaremos também realizando comparações com diferentes textos de diferentes tradições ocidentais, buscando expor os efeitos e as consequências desse encontro. O texto do xamã e o xamanismo de forma geral propõem vários paradoxos para o ocidente, que para serem explorados forçam-no a sair do lugar comum de suas doutrinas mais populares (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p.122). Em suma, o que acontece quando o xamanismo empurra os argumentos dos antropólogos para lugares ainda desconhecidos? O que acontece quando as palavras do xamã incidem nos argumentos dos antropólogos, de modo a gerar efeitos sobre esses argumentos? (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p.115).

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SEGUNDO CAPÍTULO - A MODERNIDADE E O PANPSIQUISMO

A exposição de bases lógicas fundamentais da modernidade tem como objetivo, nos planos desta dissertação, possibilitar que se veja além dela. Sendo o mais simples possível, iremos dizer precisamente o que é a modernidade, para podermos encontrar, ver e tocar o que está para além do moderno. Não iremos pensar essas bases enquanto a única verdade e sequer iremos buscar confirmá-las ou reforçá-las. Pelo contrário, a intenção é de revirar e torcer essas bases para que se vislumbre coisas novas, para que coisas diferentes apareçam e possam ser vistas.

A constituição teológica-política moderna nesta dissertação é definida como aquela que busca construir uma fronteira entre os humanos e a natureza, entre o futuro e o passado, uma fronteira que separa completa e irreversivelmente dois polos (BENSUSAN, 2017, p.35). Um esforço de bifurcação entre o cosmos/universo/natureza e os humanos/cultura/pensamento marca a constituição moderna. Em suma, a modernidade é uma ruptura (LATOUR, 2013, p.15). A origem da palavra modernus se encontra século X, sendo utilizada para marcar a separação entre uma nova Roma cristã, que estava então surgindo, e a antiga Roma pagã, que estava sendo ultrapassada (HABERMAS, 2001, p.168). O que há em comum entre as definições da modernidade, que são muitas, é que todas se referem a uma passagem no tempo, a uma ruptura, que de um lado deixa aqueles que perderam a disputa, que são a natureza, os antigos, o passado, e do outro lado coloca aqueles que venceram, os humanos, o novo, o futuro (LATOUR, 2013, p.15).

A divisão dos lados ocorre também obedecendo a uma específica distribuição de poderes entre os polos, em um cenário no qual é dado ao humano o poder sobre a natureza (BENSUSAN, 2017 p.34). Ou seja, a separação entre os lados não delega uma igualdade de poderes, mas constrói uma hierarquia, na qual o humano é o senhor e a natureza é a escrava. A natureza é aquilo que não tem poder sobre si mesmo, é heterodeterminada, pois segue leis já preestabelecidas. Os humanos, por sua vez, são aqueles que controlam seu próprio destino, são autodeterminados, criam as próprias leis (BENSUSAN, 2017, p.39). De um lado estão os humanos com a liberdade nas mãos, já do outro está a natureza enquanto elemento que obedece sempre ao mesmo ritmo, pontual como um relógio (HARMAN, 2009, p.57).

Os humanos são “autodeterminados” (BENSUSAN, 2017, p.39, grifo nosso), ou seja, tanto determinam as próprias leis que vão seguir quanto apenas se sujeitam às leis criadas por eles mesmos. São políticos, sobretudo porque criam as próprias leis. O estado de direito é uma

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boa imagem desse contexto, no qual existe um contrato estabelecido por partes e fundamentado em uma constituição de leis escritas que irão guiar as ações dos cidadãos da cidade. Esse conjunto de leis pode ser trocado pelos humanos em um processo constituinte ou em uma revolução. Enquanto os humanos criam as próprias leis, a natureza está sujeita a leis predeterminadas não por ela mesma, ou seja, a natureza é “heterodeterminada” (BENSUSAN, 2017, p.39). Entre Newton e Einstein, o que houve foi uma mudança da teoria desses cientistas, e não das leis da natureza, que estão presentes desde sempre e para sempre. Política nesse sentido é participar do processo constituinte das próprias leis, e não apenas ser determinado por uma força estrangeira (BENSUSAN, 2018, p.17).

Então, divididos entre política (humanos) e ontologia (natureza) estão a maioria e os mais conhecidos modos de pensar e de agir do ocidente (BENSUSAN, 2017, p.35). De um lado está a área do quem, e do outro a área do quê. De um lado estão todos aqueles que pensam, são animados, tem agência; do outro lado está a natureza, tudo o que restou, o que está nos arredores, às margens do humano. O antropocentrismo é, primeiramente, o ato de colocar o humano no centro e, em seguida, a natureza para fora do centro, em seus contornos. Nesse sentido, a ontologia é disposta ao redor da política, dando-lhe um limite periférico (BENSUSAN, 2017, p.35). Separa-se a natureza do humano e, por consequência, separa-se a natureza daquilo que se torna exclusivamente humano. Essa exclusão, que é central para grande parte da tradição moderna escrita, se constitui por meio da possibilidade de uma natureza separável da política (BENSUSAN, 2017, p.37).

As maneiras de pensar hegemônicas, que são mais comuns na modernidade, sempre se esforçaram para deixar essa diferença clara e perfeita. São duas equipes bem definidas que o jogo moderno pede. Como já foi dito, as duas regiões são divididas e, ao mesmo tempo, hierarquizados (MARQUES, 2011, p.41). Ou seja, não somente se separa, mas se coloca em posição inferior umas das partes. Não temos uma simples diferença, mas sim uma diferença exclusiva (MARQUES, 2011, p.41). Outro modo de pensar essa inferioridade é pressupor primeiro, por baixo, uma camada de natureza pura; depois, por cima, uma camada de natureza racional, cognitiva, ou seja, uma camada humana. Em suma, a natureza não é apenas diferente, mas é inferior, definida negativamente como aquilo que não tem o que o outro (humano) tem. A formação da modernidade/ocidente se confunde com a formação do humano, de modo que pode ser definida como a “insistência histórica e contingente na fabricação do humano como processo milenário” (ROMANDINI, 2012a, p.6).

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Enquanto a natureza não tem a parte exclusivamente humana, o humano tem a parte natural, ou é em parte natural. Não podemos negar que ser um humano na modernidade é ter muitas exclusividades, tais como o pensamento, a cognição, o interior, a alma, a história, a linguagem, a ciência, o futuro. Nesse sentido, ser humano sempre foi um ser um super-humano para a modernidade, sempre foi ter poderes sobre a natureza, seja sobre a natureza humana, ou sobre a própria natureza “natural”, pois é parte de sua constituição humana estar acima da natureza.

De um lado está a política, o pensamento, os humanos, o sujeito, a subjetividade, o interior, a alma, o eu, todos aqueles que podem conhecer, o lado do quem. Do outro lado está todo o resto, aquilo que apenas pode ser conhecido, a ontologia, o não-humano, o objeto, a natureza, o ambiente, o lado do quê. Um em primeiro plano, o outro em segundo. Um protagonista, o outro coadjuvante. Conhecer é um ato de mão única nesse paradigma, sempre partindo do sujeito para o objeto, ou, do humano para a natureza (BENSUSAN, 2017, p.39). A natureza nesse cenário é aquilo que nunca conhece, mas que pode ser conhecido, ou melhor, que pode ser completamente conhecido, pois obedece a determinadas leis imutáveis. Ela é sobretudo heterodeterminada, uma vez que não faz as próprias leis, e sim está presa às leis naturais, que são as mesmas desde sempre. Enquanto isso, os humanos são aqueles que podem conhecer, mas nunca podem ser completamente conhecidos, são os seres autodeterminado, pois constroem as próprias leis em que vivem. Por estar sempre a se transformar, nunca a humanidade é completamente conhecida.

Nos últimos tempos, no entanto, muitas suspeitas foram levantadas sobre esse cenário. Todas as coisas que o moderno buscou e busca colocar ao lado da natureza parecem não mais se encaixar nos ideais por ele criados. Isso porque, enquanto os sonhos modernos expressam uma natureza servil, uma natureza sobrecontrolada, uma natureza em segundo plano, o que vem acontecendo é que a sensação de insatisfação de tudo aquilo que restou do lado natural só aumenta. Se a natureza já foi tratada como um plano de fundo, repentinamente ela se tornou uma protagonista descontrolada que se sobressai e não se permite mais ser excluída, enquanto paisagem muda e constante (STENGERS, 2005, p.42). E mais, a natureza que se revolta contra sua exclusão já está com muitas marcas humanas para que a separação seja tão clara como um

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dia foi. Existem detritos que não se encaixam em nenhum dos lados, que conspiram contra a modernidade, e que hoje parecem estar viralizados. Estamos falando do antropoceno12.

Os efeitos produzidos pelas sociedades no clima da Terra nos últimos anos, ou talvez nos últimos séculos, apontados pelos últimos estudos de diferentes áreas (filosofia, geologia, física), têm mostrado uma imbricação entre os humanos e a natureza, tornando difícil traçar o limite entre eles. A problemática poderia ser exemplificada na forma de uma questão urgente: todo o lixo radioativo criado é natural ou humano? O antropoceno é o início de um período geológico no qual os humanos têm influência decisiva em sua origem. Esse novo período diz que não mais enfrentamos uma natureza pura, mas sempre uma conexão entre os humanos e o resto, um cenário no qual a diferença entre cosmologia e antropologia se mostra borrada, pois ao que tudo indica “os seres humanos, em outros termos, se tornaram atualmente uma força natural” (CHAKRABARTY, 2013, p.17). Estamos de frente então com espécies de forças geoantrópricas. A crise que está envolta dos humanos, já não permite não duvidar que algo na separação cheira mal, pois o gosto de plástico no ar já é muito forte (BENSUSAN, 2017, p.35). A palavras do xamã além de descreverem o mundo Yanomami, um mundo que os brancos não conhecem, também são uma crítica a civilização dos brancos, o “povo da mercadoria” (KOPENAWA; ALBERT, 2016, p.365) que está empurrando planeta terra para uma catástrofe natural, o que a ciência ocidental vem entendendo como o Antropoceno (KELLY, 2017, p.1).

Existem também maneiras de pensar que nunca foram hegemônicas entre os modernos, que invocam a possibilidade de agência, pensamento ou animação para além dos humanos, desviando-se assim do fluxo do pensamento dominante. As monadologias, sempre deixadas de lado na modernidade, distribuem agência por tudo o que existe, então os elos sociais se distribuem para além dos humanos (BENSUSAN; ALVES DE FREITAS, 2018, p.125), são escolas que confundem os lados tão bem separados pelos modos usuais de pensar no ocidente. As monadologias parecem propor que existem coisas, seres, que habitam as proximidades do limite, e não parecem se encaixar tão facilmente em nenhum dos lados. Apresentam e expõem a visão desconfortável de um limite tênue entre os humanos e a natureza, o que os tornam confundíveis, misturados, nem completamente humanos, nem completamente naturais, e por isso difíceis de serem vistos ou notados.

12 Aqui me refiro ao Antropoceno que foi proposto pelo biólogo Eugene F. e pelo químico Paul Crutzen, enquanto

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Apostamos que o animismo é uma “plataforma de distribuição da animação – para além do protagonismo humano” (BENSUSAN, 2017, p.11), que antes de pressupor um limite claro entre nós e todo o resto, apresenta um mundo onde todas as coisas que existem alcançam às outras, onde todos alcançam a todos, um mundo onde humanos e não humanos estabelecem relações íntimas demais, e por isso estranhas às doutrinas do ocidente. E assim, abrem a possibilidade de uma relação diferente entre os humanos e aqueles que estão para além dos humanos (BENSUSAN, 2017, p.11). Ao que parece, os humanos modernos se distanciaram rápido demais da natureza, desde o século XVII, e o clima dos últimos tempos apontam para a corrosão dessa distância.

Latour (2012), enquanto herdeiro de bases monadológicas13, rejeita o cenário perfeito

dos modernos, pois jamais a modernidade conseguiu purificar os dois lados, humanidade e natureza completamente, prometendo sempre algo que nunca conseguiu fazer (LATOUR, 2013, p.17). Para Latour (2013), a modernidade é a impossível tentativa de se criar uma cisão entre o natural-objetivo-passado e o humano-subjetivo-futuro (HARMAN, 2009, p.31). Como um político clássico, a modernidade promete muitas coisas mas não as cumpre, e dessa forma a constituição moderna é como uma lei que nunca pega, uma lei pra inglês ver (BENSUSAN, 2017, p.36). Latour expõe a falsa promessa dos modernos, que dizem largamente realizar uma separação/purificação, mas nunca realmente a concluem. Nesse sentido, os modernos jamais foram modernos, pois espalham mistura de natureza e humanidade por todos os cantos que passam. A radical separação entre os lados acontece na teoria moderna, mas não acontece para quem a vive na prática.

2.1 A MÁQUINA ANTROPOLÓGICA

A máquina antropológica é o conceito de Agamben (2011) para explicar antropogênese moderna. A humanidade não é “nem uma substância nem uma espécie claramente definida” (AGAMBEN, apud, VASCONCELOS, 2011, p.22) e então é preciso de uma máquina, um

13 Bruno Latour no livro Reagregando o social, deixa claro ter sido influenciado pelas mônadas, através da sua

ligação com Gabriel Tarde, que é um representante das monadas dentro da ciências sociais, e para quem, por exemplo, as sociedades humanas dependem de elos extrassociais com outras sociedades não humanas devido à sua natureza “inteiramente superficial de modo nenhum volumosa, quase sem espessura, e pelas dispersões extrema de seus elementos” (TARDE, apud, BENSUSAN; ALVES DE FREITAS, 2018, p.88). As sociedades humanas têm uma baixa densidade populacional e “fracas relações intrassociais” (BENSUSAN; ALVES DE FREITAS, 2018, p.124), o que as conferem uma “variabilidade e inconstância” (BENSUSAN; ALVES DE FREITAS, 2018, p.124), de forma que seus indivíduos devem participar de “outras associações – com a microbiota, a flora, o solo” (BENSUSAN, ALVES DE FREITAS, 2018, p.124) para se manterem. Tarde (1985) desenha a sociedade humana cercada de várias outras sociedades não humanas, atravessadas por elas, e assim dependente destas sociedades.

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artifício, para que o reconhecimento do homo sapiens seja constantemente articulado. A máquina antropológica trabalha incessantemente para afastar e criar distinções entre o time dos humanos e o time dos não humanos. Juntamente, acaba por também criar os sub-humanos. A máquina que é feita para gerar e manter a humanidade distinta do resto apenas “natural” não funciona perfeitamente, e gera também a sub humanidade (BENSUSAN 2017, p.17), que é aquilo que podemos chamar de resto da produção da máquina, elementos ou seres que não atingem o patamar para se tornarem seres humanos completos, ou mais completos, mas que também já não são uma pura natureza.

A função principal da máquina é a produção da humanidade por meio da oposição homem/animal (VASCONCELOS, 2014, p.22). Ou seja, a função da máquina é produzir a humanidade por meio de uma espécie de oposição, uma articulação entre o homem e o animal. Porém, a máquina funciona de um modo específico, no qual a articulação entre o humano e o não humano ocorre sempre com um humano já pressuposto. Sendo assim, a antropogênese se dá a partir de um corte articulado de dentro do humano, um corte que acontece dentro do próprio humano (VASCONCELOS, 2014, p.81). O perigo dessa máquina (VASCONCELOS, 2014, p.23) é justamente que a marcação da fronteira entre os humanos e os animais é sempre executada e mantida por dentro, por quem se diz humano, por quem se “autointitula autodeterminado” (BENSUSAN, 2017, p.36), e como consequência dessa engrenagem predeterminada, tudo o que está fora do limite se mostra de certa forma inferior, como que jogado fora. A política humana é fundada quando a vida animal, a zoé, é rebaixada, restringida a simples vida puramente biológica, ao puro substrato biológico, entregue às leis da natureza e ao ciclo infinitamente repetido da natureza (MASSUMI, 2017, p.129).

A vida humana, a bios, é “uma vida qualificada, um modo particular de vida [...] porque fundada, através de um suplemento de politização ligado à linguagem” (AGAMBEN, 2002, p.9-10). Agamben (2002) encontra já em Aristóteles a linguagem enquanto característica que define a diferença entre o animal e o humano. A vida na cidade pode ir além de uma disputa entre a dor e o prazer, pois tem a linguagem, podendo então decidir entre o bem e o mal, entre o justo e injusto. É uma vida reconhecida juridicamente, que constitui um sujeito de direitos. Para Agamben, já entre os gregos, mais exatamente em Aristóteles, está em funcionamento a construção de uma barreira fixa entre o resto e a vida humana, uma oposição entre “o simples fato de viver” (AGAMBEN, 2002, p.9) e a vida política humana. Desse ponto de vista, pode-se pensar em antropotecnologias (ROMANDINI, 2012a, p.5), que pode-seriam as técnicas que envolvem a criação da humanidade a partir de ações sobre a “natureza animal com intuito de

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guiar, expandir, modificar ou domesticar seu substrato biológico” (ROMANDINI, 2012a, p.5), em um processo de se tornar humano que normalmente é visto enquanto irreversível, um processo impossível de se lutar contra, pois é como se o moderno já fosse humano demais para voltar atrás.

Agamben apresenta outros argumentos para explicar o funcionamento da máquina antropológica, que, por exemplo, opera “excluindo de si como não (ainda) humano um já humano, isto é, animalizando o homem” (AGAMBEN, 2011, p.56). Opera então criando algo como humanos atrofiados. O primeiro homem de todos, aquele que a paleontologia tem controle sobre a criação, o homo alalus, o homem macaco, é a primeira criação dessa máquina, algo já além dos animais, mas não à altura dos humanos que ainda virão a existir (AGAMBEM, 2011, p.56). O primeiro humano já é um ser que tem sinais, faíscas, de humanidade, mas ainda não completou o processo de constituição. Os judeus são como que irmãos dos primeiros homens dentro desse paradigma (VASCONCELOS, 2014, p.31). São também resultado da máquina em funcionamento, mesmo que já fora da paleontologia, mas ainda com a mesma engrenagem que permite a animalização de certos humanos.

Trazendo para o contexto deste trabalho, os índios seriam outros humanos que ficam como que no meio do caminho do processo de humanização. Ao que parece, não existe uma máquina antropológica apenas (VASCONCELOS, 2014, p.23), mas várias, em diferentes tempos, sempre operando dentro dos mesmos polos, que garantem a produção do não homem dentro do homem, enquanto escravo, servo, não dono de si mesmo. Desse ponto de vista, a política é aquilo que guia o animal para que ele se torne um humano, de forma que chamar a política moderna de política humana se torna um pleonasmo.

2.1.1 O ZOOLÓGICO MACABRO: IDENTIFICANDO O ANTROPOMORFISMO INIMIGO

“O zoológico é um exercício da soberania humana sobreposta ao animal” (MASSUMI, 2017, p.139), e é um exemplo da máquina antropológica em ação, exposta para qualquer um que pagar o ingresso. Nos zoológicos está exposto o enredo do filme de terror que os seres humanos mais se vangloriam, os privilégios de ser um humano contra todo o resto, ou seja, a separação animal/humano. A divisão entre aqueles que estão do lado de dentro da jaula e os que

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estão de fora é fixa e grita aos olhos do espectador. Em um cenário que lembra o pan-óptico14

a céu aberto, onde está o animal enjaulado para que todos os humanos possam ver, em pequenos cubículos, sequestrados de sua terra de origem, expostos enquanto um objeto, lutando para sobreviver frente a condições tão degradantes. Podemos concluir disso que as paredes da soberania humana que rebaixam os não humanos estão postas firmes e fortes no zoológico (MASSUMI, 2017, p.139).

Mas também no zoo-lógico, a rigidez da separação não deixa de permitir que fissuras apareçam, ou mesmo que essas fissuras sejam encorajadas. Por exemplo, por cima da parede da soberania humana, buscam colar um papel de parede fino e frágil, que é sobreposto à parede por meio de várias estratégias para se humanizar os animais, para dar-lhes um rosto humano, uma humanização que permita aos espectadores se reconhecerem nesses animais, o que suporta a diversão nesses locais (MASSUMI, 2017, p.141). Pensemos nos pandas chineses, que estão sempre nos noticiários subsidiados por pesados investimentos de políticas públicas. Eles recebem, por exemplo, nomes humanos, e são selecionados segundo um grau de maior docilidade. Além disso, têm a sua vida exposta em uma espécie de Big Brother animal absoluto, pois tudo é noticiado, desde seu nascimento, seus romances, até suas mortes, normalmente precoces e sem reprodução. Toda uma encenação para que as pessoas se identifiquem com o animal, e seja possível obter mais dinheiro para novos investimentos em jaulas ainda mais sofisticadas. A máquina antropológica, que define os animais com menor valor que os humanos, nos zoológicos é como contraefetuada por uma humanização dos animais, que por mais intensa que seja, não pode demolir a parede da soberania humana.

A humanização dos animais (antropomorfismo), que acontece segundo uma espécie de confusão de detecção, só se dá alicerçada em uma diferença primeira, que é a distinção zoé/bios, a separação animal/humano. Logo, a soberania humana continua intacta. Por mais que a inclusão sentimental dos animais seja uma plataforma política da própria administração do zoológico, ela não consegue apagar a distinção que os tornam objetos de exposição, de forma que os animais nunca são e nunca serão reconhecidos enquanto sujeitos morais, realmente dignos de direitos, dignos de viver na cidade ou de viver fora das jaulas. No zoológico, está em ação o acobertamento da estrutura da soberania humana através de uma película, que fornece um plus de humanização, e que acaba funcionando apenas para refundar a parede da soberania.

14 Termo criado no ano de 1785, pelo jurista inglês Jeremy Bentham, que designa uma prisão caracterizada pela

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Ou seja, é uma ação de projeção, que parte da divisão, o que está na base desse antropomorfismo. “É uma encenação do cinismo estrutural da política humana” (MASSUMI, 2017, p.140) o que se vê. É cínica, pois, ao contrário da hipocrisia, não se desmancha quando as contradições são apontadas, já que está tudo a céu aberto, todas as contradições são expostas, e mesmo assim tudo funciona perfeitamente. Todos sabem que a humanização se dá para manter a separação. Todos sabem que o plano do zoológico não é libertar os animais, o que seria torná-los humanos, no caso, mas sim alcançar um jeito mais sofisticado de aprisioná-torná-los. Esse antropomorfismo deve ser rejeitado enquanto um antropomorfismo de estado, ou moderno, aquele que mantém intacto a soberania humana.

No zoológico, a tentativa de humanizar os animais mediante uma projeção emocional (MASSUMI, 2017 p.138), que tenta ser estabelecida quando se cria uma novela na qual os animais são aproximados dos humanos, não tem a força para derrubar as grades que separam os lados. Os animais são então humanizados através de uma projeção, em uma operação que dá rostos humanos a eles apenas para divertir os humanos que ali estão. Talvez, sem essa projeção, o horror da degradante vida dos animais seria impossível de se aguentar. O animal criado pela máquina antropológica, o animal sub-humano, o humano atrofiado, no zoo-lógico é tampado por um papel de parece que busca sempre dar um rosto mais humano para os animais que ali estão.

2.2 A FLORESTA QUE PENSA

“A floresta é inteligente, ela tem um pensamento” (KOPENAWA; ALBERT, 2016, p.497), diz o xamã yanomami. Essa é uma afirmação que leva a curto-circuito os dois lados separados inteiramente pelos principais e mais influentes modos de pensar/agir do ocidente. É uma afirmação que aproxima subitamente o humano do não humano, tornando-os próximos demais, parecidos demais, causando assim um súbito mal-estar para a tradição ocidental. Ter a floresta como algo que pensa – então alguém e não mais algo – liga polos que no ocidente foram afastados para que a própria humanidade pudesse ser definida, pois neste caso separar é definir, e como vimos, é determinante para a tradição ocidental que a natureza não pense, não tenha agência. Nós – humanos – somos aqueles que pensamos, temos alma, interior, agência e, então, definimo-nos em contraste com aquilo que não pensa.

A afirmação xamânica incide diretamente nos limites traçados pela tradição ocidental para definir o nós, no limite do antrhopos, e assim, nos limites que nos apoiamos para nos

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reconhecermos enquanto humanos (BENSUSAN, 2017, p.18). O limite parece não ter valor para o xamã, ou mesmo não existir. Se não existe limite, então o pensamento está espalhado por todos os cantos, e o nós alcança muito mais que os humanos, levando-nos a imaginar que pode alcançar tudo o que existe. Assim, estamos de frente com um esboço de uma cosmopolítica (STENGERS, 2005, p.995), uma política cósmica (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p.120), de forma que tudo aquilo que acreditávamos estar para fora do limite político, ou seja, a natureza, se apresenta enquanto um ou vários agentes políticos que acenam para além dos humanos. São vários outros seres, espíritos e espectros que habitam o cosmos além dos humanos para o xamanismo, e que formam outras tantas comunidades políticas. Sendo assim, longe de ser uma exclusividade dos humanos, a política é disseminada em tudo. Ou seriam todos?

Esse é um mundo onde tudo é político, onde tudo pensa, onde a natureza antes excluída retorna enquanto um sujeito político, estabelecendo outra relação com os humanos, e lembrando que os humanos ocidentais não mais estão sozinhos neste mundo, se é que um dia já estiveram. Grande parte da cosmopolítica xamânica se dá na relação com espectros15, espírito, que

Kopenawa sabe desenvolver. Espectros que formam eles mesmos grupos políticos em constantes negociações com outros grupos, sejam humanos ou não humanos (KOPENAWA; ALBERT, 2016, p.494)

O panpsiquismo enquanto intuição/insigth que alicerça as palavras xamânicas, que a frase citada expressa, traz à tona um universo (múltiplo-verso) onde tudo pensa, onde qualquer coisa é um quem, onde o todo são todos, onde tudo é política (VIVEIROS DE CASTRO, 2015b). E o que o xamã quer dizer, quando diz que tudo é político/todos são políticos, não é o mesmo que um jovem que mora em algum centro de uma grande cidade quer dizer quando diz o mesmo. Não é difícil ouvir da boca de uma pessoa da cidade, que vive em uma “democracia”16, que “tudo é política”, no sentido de que qualquer conversa entre dois humanos

já é um ato político, um comportamento político. Nesse aspecto, fazer política é basicamente a comunicação entre dois pontos de vistas distintos (humanos), que defendem seu respectivo lado, seus próprios argumentos, na busca de convencer o outro a mudar de ideia, ou de chegar

15 Como Valentim coloca, baseado em Romandini, ao invés de usar a palavra “fantasma”, ele opta pela palavra

espectro, devido à perda de credibilidade ôntica que a palavra fantasma viveu nos últimos temos (VALENTIM, 2018, p.214), período no qual a palavra fantasma ganhou o sentido da percepção de uma realidade falsa.

16 Como Jacques Rancière coloca de forma direta “a sociedade democrática é apenas uma figura fantasiosa,

destinada a sustentar a tal ou tal princípio do bom governo, as sociedades tanto no presente quanto no passado são organizadas pelo jogo das oligarquias [...] se exercem da minoria sobre a maioria” (RANCIERE, 2014, p.68).

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a um acordo em que ambos abram mão de algo para alcançar um ponto intermediário. Nesse sentido do tudo é política, qualquer conversa ou encontro entre humanos é uma política.

“Para nós, a política é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou” (KOPENAWA; ALBERT, 2016, p.37). Já para o xamã, tudo é político, porque até o que não é humano, ou está para além do humano, faz política ou é político. Especificamente, para o xamanismo até as pedras fazem política e conversam entre si em seu próprio mundo. Tudo é política para o xamã, justamente porque a política não está só entre nós (humanos). Os humanos, assim, são atravessados por políticas exteriores. A política entre os humanos está dentro de um cenário maior, o que os tornam apenas uma das partes dos seres potencialmente políticos. A constatação de que tudo é político no xamanismo levaria a modernidade a uma intensificação expansiva paradoxal de sua restritiva base política (humana), o que faz a máquina antropológica moderna desviar para um limite impossível, no qual nada mais seria excluído. Veremos a seguir essa questão mais de perto:

Trata-se, verdadeiramente, do fato de que os espectros habitam e formam, eles mesmos, uma comunidade política. A politicidade, no mundo pré-moderno, não era, em absoluto, um patrimônio exclusivo do homem. Ao contrário, em certo sentido, as formas políticas, em muitos casos, eram estrangeiras a ele e surgiam como uma forma de imitação de alguma societas infra ou supra-humana que determinava as formas e os modelos de seu exercício (ROMANDINI, 2015, p.17).

Mesmo que o filósofo utilize a expressão pré-moderno de forma não problematizada, a comparação feita por Romandini, autor do livro A comunidade dos espectros, é interessante pra se pensar as implicações de políticas para além dos humanos. Para o xamanismo, como a frase de Kopenawa sugere, a política não é, e jamais foi, um assunto só dos humanos, só entre humanos. Em suma, a política não é uma propriedade exclusiva dos humanos. Os seres da floresta são também políticos, são para Kopenawa os primeiros políticos, como que os verdadeiros políticos. Em vez de reservar a política apenas para os humanos, o xamanismo propõe um aprendizado político por meio da relação com o que, ou melhor, com quem existe para além dos humanos. O xamã é então aquele que aprende a fazer política com/através de seres políticos que estão fora do alcance da maioria dos Yanomami e também dos napë. Em suma, a política não é só humana, como também é apreendida de fora. Como aprender política com os xapiri? E com os demais espíritos/espectros? E com os animais, com as plantas, com o vento, com as pedras? Essa é uma intenção que move os xamãs e o xamanismo, de forma que fazer política é pensar com o fora. Fazer política nesse sentido é, então, pensar com as florestas. 2.2.1 POR UMA POLÍTICA ANIMISTA PARA ALÉM DA PROJEÇÃO

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No recente livro Linhas de animismo futuro, o filósofo Hilan Bensusan (2017) explora diferentes autores, inclusive da antropologia, que vêm repensando o animismo e seus possíveis desenvolvimentos futuros. A afirmação panpsiquista de Kopenawa pode ser vista como responsável por gerar um efeito de dilatação do nós (humanos) para as doutrinas do ocidente (BENSUSAN, 2017, p.18), argumenta o filósofo. O nós, então, englobaria não só os humanos, mas a floresta, englobando também o que não é humano. Isso abre a possibilidade de se pensar em uma politização de tudo, de pensar direitos para tudo o que há, e não apenas em direitos humanos. O gesto xamânico espalha o protagonismo político por toda parte, e pode ser visto como um condutor da dilatação sucessiva das esferas do nós, como se espalhasse vários protagonistas políticos para além do humano, indicando assim outra possibilidade de distribuição da agência. O gesto pede uma revisão das razões e dos procedimentos que usamos para definir o campo da política, nos levando a questionar: por que nós ocidentais precisamos traçar uma fronteira entre os humanos e o restante? Como traçamos esta divisão? É possível imaginar outras políticas? É possível uma outra política, ou então, uma política dos outros? É possível pensar que essa divisão não é universal?

Pensando nos efeitos que a afirmação que a floresta pensa causa na tradição ocidental, o filósofo propõe que se analise a questão através de uma dilatação do nós, que ocorre por meio do movimento de sucessivas esferas em expansão. O movimento proposto por Bensusan abre espaço para que o limite que separa os humanos do resto seja deslocado, movido para diferentes pontos. A partir do momento que pensamos um aumento do raio político, somos levados a pensar até onde essas esferas podem ser dilatadas. Afinal, além dos humanos, o que mais pode ser político? Digo, a dilatação vai até os animais mamíferos, ou são todos os animais? Tudo o que é vivo? Até o que não é vivo? E as pedras?

A dilatação proposta pelo filósofo, quando levada a seu limite, nos encaminha para os fundamentos da separação. Não basta apenas projetar o que está do lado de dentro (política humana) para o lado de fora, é preciso observar o limite e seu deslocamento. Ao se estender o limite para tudo o que existe, se alcança um paradoxo, uma situação crítica, pois o limite some nas mãos daquele que o estende. Se tudo é político, o sentido de pensar em uma política somente humana se perde, e por consequência, surge uma política dos outros. Então, uma política além dos humanos pode começar a ser pensada e vislumbrada. Quando se pensa os extremos da antropomorfização, de uma diluição do humano sobre o resto, é como se a separação de algum modo retirasse o sentido de se falar em uma política humana, já que tudo é humano. Quando o limite é levado ao seu extremo, é como se não existisse mais um dentro para projetar para fora,

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já que o dentro é do tamanho do fora, ou vice-versa. Em vez de uma projeção zoo-lógica, que mantém a parede intacta, o que o gesto da dilatação coloca em xeque é a pretensão humana de ser “o político” por excelência. Funciona então enquanto um explosivo político, e não enquanto uma fachada cínica.

Ainda na obra de Bensusan, no primeiro capítulo denominado Animismo, ancião ciborgue, temos os rascunhos de uma possível política animista. A questão é que a divisão moderna entre os humanos e a natureza se dá primeiramente com a criação de um nós ainda mais restrito e limitado, um nós dentro do nós, formado pelos humanos verdadeiros, os homens, brancos, ricos, adultos, héteros e cissexuais (BENSUSAN, 2017, p.18), que continuam sendo a essência do humano ocidental nos dias de hoje. E então, quando se diz que existe agência, ou política, ou direito, para além deste restrito círculo, já se tem uma semente de uma política animista. No entanto, o gesto animista é realmente alcançado quando a agência é levada para além das fronteiras dos humanos (BENSUSAN, 2017, p.18). Ao contrário da projeção que conserva, temos uma diáspora que transforma. A política animista trai os processos naturais e coloca os processos políticos em primeiro plano, e funciona como que desnaturalizando a própria natureza, ou então, politizando a natureza (BENSUSAN, 2017, p. 30).

As esferas dilatantes do animismo podem ser vistas como se estivessem realizando o movimento de tornar capacitado para fazer política tudo aquilo que não era. Começam, assim, por um movimento para além do homem branco que vai em direção às minorias entre os humanos, que são os “imigrantes, negros, índios, mulheres, população trans, crianças, loucos, doentes” (BENSUSAN, 2017, p.53). Depois, seguem para os não-humanos, “o alimento, o animal, a paisagem, as populações vegetais, os ecossistemas, a biodiversidade, a terra” (BENSUSAN, 2017, p.53). Este modo de analisar o efeito que o animismo causa na modernidade tem a força de implodir a divisão entre os humanos e o resto, e não apenas conservá-la, e assim permite questionar a opção que mantêm que apenas alguns seres sejam “o locus exclusivo de toda política” (BENSUSAN, 2017, p.53). O movimento causa uma implosão na fronteira moderna que permite, que de relance, se observe o íngreme penhasco que se abre. Toda política é cósmica para o animismo. A cosmo-política animista, em seus primeiros passos, é uma fórmula que apresenta um caminho simples para se pensar as consequências da afirmação xamânica para além da projeção, mas enquanto uma simplificação bruta não pode ser o fim da linha. Ou seja, a fórmula simples de uma dissipação descentralizante é um começo para se pensar os efeitos do xamanismo, e não o fim. Deve-se fugir da estabilização que o

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conceito traz quando se pensa em uma humanidade difundida por tudo, e deve-se buscar forçar a perturbação que este insight traz. Em suma, a política animista é só o começo do problema. A fórmula simples da política animista pan-experencial acaba por trazer, após o primeiro choque de sua formulação, uma estabilização. Então, acredito ser interessante manter em vista o movimento que ela propõe, e não exatamente seu fim, no qual tudo se torna político.

A política animista nos força a pensar no que há além dos humanos. E uma coisa parece certa: ir além do humano para encontrar algo exatamente como nós (humanos), ou parecido demais conosco, não é radical o bastante.

ou seja, um mundo com capacidades conceituais, propósitos, agências17, alianças

políticas ou senso de importância, ainda que não sejam as capacidades conceituais, propósitos, agencias, alianças políticas ou senso de importância humanos. Os animistas invocam a possibilidade de uma animação não humana, e isso é o que provoca muito desconforto, já que invocar a possibilidade não é apenas uma outra animação, é também uma animação dos outros (BENSUSAN, 2017, p.23).

Se aquilo que não pensava agora pensa, talvez ele não pense exatamente igual àquilo que pensava sozinho antes. Ou seja, pensar em outros pensamentos implica também pensar o pensamento dos outros. O que é importante destes argumentos, é provocar o leitor para uma interpretação do animismo que não seja uma simples projeção do humano por tudo. Descobrir algo novo, para depois dizer que já se sabia o que estava lá, ou então dizer que as novas políticas são políticas humanas, não é o fim da linha. O movimento de dilatação, conforme vai se intensificando, torna a política cada vez mais estranha ao se imaginar o seu movimento gradativo de expansão. O que quero dizer é que a expansão da política para os macacos parece fácil, para todos os mamíferos ainda continua parecendo fácil. No entanto, para formas mais simples de vida, como os vírus, começa a se mostrar atordoante, e ao se pensar nas pedras, por exemplo, fica difícil de compreender. Afinal, o que seria uma política das pedras? Ao que parece, quanto mais se dilata a fronteira, mais o movimento nos inclina a imaginar uma política estranha o suficiente para conseguir vislumbrar uma política não humana (BENSUSAN, 2017, p.19).

A expansão do político pode abrir a possibilidade de novas formas de animação, novas velocidades, outros tipos de capacidades (BENSUSAN 2017, p.19). Em vez de propor uma

17 Como Sztutman coloca, a tendência do debate atual de utilizar a palavra “agência” e não a palavra “poder” se

dá em parte devido à confusão entre um sentido geral da palavra “poder”, que seria a “capacidade de produzir efeitos sobre o mundo” (SZTUTMAN, 2005, p.75), e, em um sentido mais específico de poder, ligado à ciência jurídica, onde ele é entendido enquanto “monopólio dos meios de coerção” (SZTUTMAN, 2005, p.75). A agência está ligada ao primeiro significado e não ao segundo.

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animação igual à humana por tudo, a questão está mais próxima de uma procurara por características de uma animação mais geral, que não se resuma à animação humana, mas na qual o humano também esteja incluso. Ou seja, não é a animação ocidental. Pensar que o panpsiquismo leva à proposição de que tudo pensa tão complexamente como os humanos é um argumento frágil, e que leva a muitos mal-entendidos (BENSUSAN, 2017, p.24). A proposta de que elétrons, por exemplo, têm pensamentos, problemas existenciais, escrevem livros e fofocam entre si não é defendida por nenhum autor que assume o panpsiquismo18 (GOFF, 2017,

p.1), que na verdade estão mais próximos de um panpsiquismo constitutivista, que propõe que a consciência existe de uma forma mais básica, menos complexa, mesmo em seres mais simples, ou mesmo no físico (GOFF, 2017, p.1). Assim, pode-se pensar que animais, de forma geral, têm uma consciência mais básica que os humanos, as plantas têm consciência mais básica ainda, as pedras, por sua vez, têm uma consciência novamente mais básica que a do reino vegetal, mas que nunca a brasa da consciência se apaga completamente. Então, olhando por esse ângulo, a consciência humana se torna apenas uma das derivações possíveis de consciência.

O instrumento que Bensusan propõe para se alcançar a possibilidade de uma animação que não seja a nossa, é a especulação obtida por intermédio de uma experiência corporal. Se a experiência sensorial nos leva a imaginar a natureza enquanto imóvel, fixa, uma das saídas possíveis é a procura de uma animação mais ampla, que mesmo que também entre os humanos, não seja exclusivamente humanos, como “ocorrências associadas a encontrar comida e saciar a fome, a se cansar, envelhecer” (BENSUSAN, 2017, p.26), que são espécies de processos corporais. O autor pensa esses passos acompanhando a monadologia de Whitehead (1938), que funde o físico ao vivo19, e assim pensa o caráter físico/vivo como “direcionado a

autossatisfação, promovendo um avanço criativo, tendo um senso de propósito” (BENSUSAN, 2017, p.26). Assim, deve-se pensar o físico como um mundo de fluxo constante, onde nada é fixo e imóvel. Na verdade, o que se tem é uma desintegração e uma composição constante, o que traz a ilusão de imobilismo. O que acaba por enganar a experiência sensorial, que pensa o mundo físico enquanto concreto, é a “falácia do concreto malcolocado” (BENSUSAN; ALVES DE FREITAS, 2018, p.140), então tudo o que existe “está constantemente em formação” (BENSUSAN; ALVES DE FREITAS, 2018, p.142). A permanência é assim explicada “através

18 O conceito de panpsiquismo vem crescendo nos últimos tempos dentro dos textos de escritores no ocidente

(GOFF, 2017, p.2). Grande parte destes autores não tem contato com a antropologia, e sendo assim, seus argumentos não sofrem influência das questões xamânicas.

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dos muitos pontos de criatividade e geração de novidade” (BENSUSAN; ALVES DE FREITAS, 2018, p.142). Fundir a física ao vivo é um jeito de permitir encontrar animações não-humanas, animações outras.

A dificuldade do moderno para pensar uma consciência junto ao físico está ligada às meditações de Descartes, que é representante de um dualismo que marca uma diferença irreconciliável entre a humanidade (consciência) e a natureza (corpo), e que influência radicalmente a modernidade de forma intensa. A ontologia de Descartes é famosa. São dois tipos de substâncias que existem: “a alma (ou substância pensante) e o corpo (substância extensa) [...] uma coisa extensa é não-pensante, e uma coisa pensante é não extensa” (MENEZES ROCHA, 2004, p.352). Nessa formulação, o corpo se torna um simples “autômato mecânico”. A experiência humana, para Descartes (1644), revela que o humano é feito de pensamento, enquanto o resto fica só com a parte corporal. A metafísica de Whitehead (1938) é um possível desvio a essas indagações, pois, em vez de dar o pensamento apenas aos humanos, ele coloca que o mundo é também do mesmo conteúdo da experiência, ou seja, a experiência (pensante) é constituída dos mesmos elementos daquilo que compõe o que é experenciado (extenso), e assim, um fundo de experiência ou de pensamento aparece por todo o físico. A aposta de Whitehead (1938) é que o pensamento forma tudo no mundo e não apenas os humanos. Dentro da modernidade o panpsiquismo é raro, mas esta lá.

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TERCEIRO CAPÍTULO - OS LIMITES DO ANTROPOMORFISMO E A ANTROPOLOGIA

Então, chegamos no ponto das discussões do antropomorfismo. Há tempos os índios são considerados povos próximos ao antropomorfismo, mas de um modo caricatural e simples, em uma visão que os compara a crianças, que ainda não sabem diferenciar os objetos dos sujeitos. Tentaremos mostrar aqui que o xamanismo não se baseia em um erro de cálculo da distância entre nós e o resto, e a cosmologia apresentada por Kopenawa (2016) será nosso principal instrumento para esse percurso, sempre lida junto aos antropólogos que já discutiram o tema. O antropomorfismo vulgar/moderno, ou seja, a simples projeção, se baseia na concepção do ocidente do que é o humano. Mas, para o xamanismo, a questão se mostra outra, e o que pensamos ser o humano não é a mesma coisa que eles pensam ser o humano, pois, “uma das características que os tornam outros consiste, precisamente, no fato de que seus conceitos de ‘humanos’ são outros” (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p.90). A questão é mais complexa que uma simples projeção do humano sobre a natureza, como se vislumbra tanto nas palavras de Bensusan (2017) quanto nas de Kopenawa (2016). A verdade é que pensar que o xamã projeta o eu sobre tudo é pensar que o xamã pensa em bases modernas, pensa nas bases da máquina antropológica. Mas, podemos dizer que existe uma máquina antropológica em funcionamento no xamanismo?

3.1 A NATUREZA E O PASSADO

A palavra grega physis, que veio a ser traduzida enquanto natureza/físico, é discutida há tempos na literatura ocidental. Durante a passagem dos anos, séculos, seu significado nem sempre foi o mesmo. Parte dos gregos20, por exemplo, tinham na palavra physis sua questão

central, mas para eles a palavra não significava o mesmo que significa hoje. Enquanto nos dias atuais a palavra natureza sugere o significado de algo externo a todos, comum em tudo o que existe, enquanto a própria extensão, com uma forte tendência universal, como aquilo que está em todo o universo literalmente, desde o começo e também para sempre, no tempo dos gregos a physis era vista enquanto algo específico de cada coisa, como algo intrínseco das coisas, de forma que a natureza indicava a especificidade (BENSUSAN, 2017, p.122). Então, é como se o fogo tivesse uma natureza, a água outra e o amor outra, ou seja, a natureza é algo que permite

20 Para uma discussão detalhada dos diferentes argumentos dos pré-socráticos, ver o livro The Greek concept of

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