CARINE VALERIANO DAMASCENA
DANO AO PROJETO DE VIDA:
FUNDAMENTO PARA A REPARAÇÃO DA LESÃO AO PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL.
MESTRADO EM DIREITO
CARINE VALERIANO DAMASCENA
DANO AO PROJETO DE VIDA:
FUNDAMENTO PARA A REPARAÇÃO DA LESÃO AO PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL.
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação da Professora Doutora Regina Villas Boas.
DAMASCENA, Carine Valeriano.
Dano ao projeto de vida: fundamento para a reparação da lesão ao princípio da paternidade responsável / Carine Valeriano Damascena. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2008.
fls.
Dissertação (mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2008.
1. Responsabilidade Civil. 2. Dano ao projeto de vida. 3. Princípio da Paternidade Responsável.
BANCA EXAMINADORA
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A painho, Carol e Camile, que suportaram resignados a decisão de mainha de apoiar meu sonho; e fizeram ainda mais, demonstraram seu apoio incondicional.
A minha irmã de escolha, Ana Carolina, e meu cunhado postiço, Rica, que se transformaram em fortaleza, me acolheram e cuidaram de mim, estimulando a última tentativa de realização do meu sonho.
Aos meus amigos pucanos:: Francisca Mattos, Márcia Arnaud, Camila Castanhato, Thaissa Gomes, Camila Moreira, Márcia Munari, Luciana Simões, Ednara Avelar, Taiane Lobato, João Azuma, Ricardo Salvador, Anna Santana, Márcia Munari ,Gisela Martignago. Lia Kanthack e Juliana Bonates.
Eu sei por quê você entrou em minha vida de forma inusitada: a Kaliny Abdala, a amiga rocha, que deu o sopro de inspiração para o diferencial deste trabalho.
À professora e orientadora Regina Vera Villas Boa, que acreditou em mim e me abriu as portas para o mundo acadêmico.
Ao professor Marcelo Gomes Sodré, que conheci durante as aulas de pós-graduação lato sensu e viabilizou o primeiro contato com a minha querida orientadora.
Aos professores Haydée Maria Roveratti, Maria Celeste Cordeiro Leite Santos, Cláudio De Cicco, Patrícia Miranda Pizzol, Marcio Pugliesi, Serio Seiji Shimura, Nelson Luiz Pinto, Maria Garcia e Paulo de Barros Carvalho que contribuíram com seus ensinamentos e tanto inspiram este trabalho.
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com a finalidade de alcançar os objetivos individuais visados por cada ser
humano. Essas inter-relações propiciam inúmeras situações de
constrangimento e atentados aos valores protegidos no plano da moralidade,
em particular aos direitos da personalidade.
Essa busca pela concretização dos objetivos íntimos pode
ensejar, nas relações de caráter pessoal, a invasão indevida da esfera jurídica
alheia, motivada por rivalidade, capricho, paixão e toda espécie de
manifestação emotiva.
No entanto, é preciso considerar a situação do homem, que no
exercício do seu direito de liberdade, faz a opção de não ser pai, por motivo de
convicção pessoal, e age com cautela, utilizando-se dos meios contraceptivos
que estão ao seu alcance, como o uso de preservativo e a opção por coito anal
ou oral.
Não obstante uma conduta cautelosa, este cidadão tem a sua
autonomia de vontade desprezada e descobre que seu material genético foi
utilizado para a concepção de um novo ser, sem o seu conhecimento e à sua
revelia. O pior, descobre ainda que foi induzido a erro através de falsificação de
exame pericial em DNA, como no caso real ocorrido no Estado de Sergipe
acima mencionado. É levado a acreditar que existe uma relação de filiação,
explicando, o que se pretende examinar é se de alguma forma o ordenamento
jurídico disciplina a situação de privação da oportunidade de se manifestar pela
paternidade ou maternidade e se a Ciência do Direito desenvolveu alguma
teoria aplicável ao caso.
Por isso, o presente estudo trata do princípio da paternidade
responsável, previsto nos artigos 226, §7° e 229 da Constituição Federal, que
determina o direito dos pais de decidir em que momento e se pretendem ter
filhos.
Estabelecido que o ordenamento jurídico reconhece a toda
pessoa o direito de decidir se quer ou não ser pai/mãe, é preciso apontar qual
seria a conseqüência para a lesão a este direito, com o objetivo de coibir as
práticas lesivas a este direito.
Enfim, com o objetivo de verificar qual é a forma aceitável de
regulação para as situações fáticas descritas inicialmente, o presente trabalho
convida o leitor ao estudo da Teoria da Responsabilidade Civil que permite
desenvolver uma nova teoria – o Dano ao Projeto de Vida. Como conseqüência
lógica, é imprescindível o estudo do princípio da paternidade responsável e a
The complexity of modern life imposes on individuals the
relationship with other people, with the community, or even with wealth, with the
aim of achieving the goals pursued by each individual human being. These
inter-relationships provide numerous situations of embarrassment and lack of
values protected in terms of morality, in particular the rights of personality.
This quest for achieving the goals intimate can ensejar in relations
personnel, the invasion of undue outside the legal sphere, motivated by rivalry,
whim, passion and all kinds of emotional expressions.
However, we must consider the situation of man, who in the
exercise of their right to freedom, is the option not to be father, for reasons of
personal conviction, and act cautiously, using means of contraception that are
at your fingertips Such as the use of condoms and opting for oral or anal sex.
Despite conduct a careful, this citizen has the autonomy of
neglected and will discover that their genetic material was used to design a new
being, without their knowledge and over their heads. Worse, even discovers
that the error was caused by forgery of a DNA expert examination, as in the real
case occurred in the state of Sergipe above. It led to believe that there is a
relationship of parenthood, changing completely the planning that was traced to
is whether some form of discipline by the legal situation of deprivation of
opportunity to express the paternity or maternity and the Science of Law has
developed a theory applicable.
Hence, this study deals with the principle of responsible
parenthood, under Articles 226, Paragraph 7 and 229 of the Federal
Constitution, which stipulates the right of parents to decide if and when they
want to have children.
Established that the legal system recognizes the whole person the
right to decide whether or not parent, we must point out what would be the
consequence for the injury to this right, aiming to curb the practices detrimental
to this right.
Finally, in order to verify what is the acceptable way of regulation
to the situations described fáticas initially, this work invites the reader to study
the theory of liability that allows developing a new theory - Damage to the Life
Project. As a logical consequence, it is essential to study the principle of
SUMÁRIO
1. APRESENTAÇÃO... 13
1. TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL APLICADA AO DIREITO DE FAMÍLIA... 23
1.1. Ato Ilícito: fundamento da obrigação de reparar. Distinção entre Responsabilidade Civil e Responsabilidade Penal... 23
1.2. Responsabilidade Contratual e Extracontratual... 27
1.3. Responsabilidade Civil Objetiva e Subjetiva... 28
1.4. Pressupostos da Obrigação de Reparar o Dano... 32
1.4.1. Conduta do Agente... 32
1.4.2. Nexo de Causalidade... 32
1.4.3. Dano... 33
1.4.3.1. Dano Patrimonial... 35
1.4.3.2. Dano Extrapatrimonial... 36
1.5. Causas de Não Configuração da Responsabilidade Civil... 38
1.5.1. Exceções de Imputabilidade... 39
1.5.2. Excludentes de Causalidade... 41
1.5.3. Excludentes de Antijuridicidade ou de Ilicitude... 45
1.5.4. Renúncia... 48
1.5.5. Cláusula de Não Indenizar... 49
1.5.6. Prescrição... 50
1.5.7. Erro... 50
1.6.Aplicabilidade da teoria da responsabilidade ao Direito de Família... 51
2. DANO AO PROJETO DE VIDA... 53
2.1. Origem da Corte Interamericana de Proteção dos Direitos Humanos. 54 2.2. Competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos... 60
2.2.1. Competência Consultiva... 61
2.2.2. Competência Contenciosa... 62
2.3. O Brasil diante do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos... 65
2.3.1. A repercussão das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos no direito brasileiro... 67
2.4. O Conceito de Dano ao Projeto de Vida... 70
3. PROTEÇÃO À DIGNIDADE HUMANA: VALOR-FONTE DO ORDENAMENTO JURÍDICO... 75
3.1. Breve relato histórico: dignidade humana fundamento da República Federativa do Brasil... 75
3.2. Dignidade Humana: noções fundamentais... 77
3.2.1. Origem e evolução da idéia de dignidade... 77
3.2.2. Conceito de dignidade humana... 81
3.3. Dignidade Humana: valor-fonte do ordenamento... 82
3.4. Dignidade Humana: violação e dano moral... 85
3.4.1 Direitos da Personalidade... 87
4. OESTABELECIMENTO DA FAMÍLIA... 93
4.1. Conceito de Filiação... 93
4.3. Critério de Estabelecimento da Maternidade... 98
4.4. Critério de Estabelecimento da Paternidade... 100
4.4.1 Presunção pater is est... 101
4.4.2. Verdade Biológica... 103
4.4.3. Verdade Sócio-afetiva... 105
5.A PROVA PERICIAL EM DNA... 110
5.1. Valoração da Prova Pericial em DNA... 110
6.PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL... 114
6.1. Esclarecimento Terminológico... 114
6.2. Planejamento Familiar: direito reprodutivo...
C
ONCLUSÃO...
118B
IBLIOGRAFIA...
122A
NEXOS...
131A
NEXOA:
Caso Loayza Tamayo, Reparaciones (art. 63(1) Convención Americana sobre Derechos Humanos), Sentencia de 27 de noviembre de 1998, Corte I.D.H. (Ser. C) No. 42 (1998)……….. 131APRESENTAÇÃO
A estrutura curricular da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo estabelece quatro exigências ao aluno para a obtenção de título de
Mestre em Direito: completar 36 (trinta e seis) créditos de estudos,
correspondentes a 6 (seis) disciplinas (5 créditos cada) e 6 (seis) créditos em
orientação, obter aprovação no Exame de Proficiência em uma Língua
Estrangeira e se submeter a Argüição e Defesa Pública de Dissertação de
Mestrado.
Dentre as disciplinas cursadas, fiz o crédito intitulado “Práticas de
Investigação da Ciência do Direito”, que me permitiu aprender sobre
Metodologia da Pesquisa Científica – uma das mais desprestigiadas disciplinas
pela maioria dos pós-graduandos em Direito. Muitos acham, erroneamente,
que Metodologia Científica é um simples detalhe, relativo apenas à formatação
do trabalho acadêmico. Durante as aulas constatei o quanto ela é
imprescindível à elaboração de um trabalho de qualidade.
Toda e qualquer produção científica nasce da inquietação do
pesquisador com uma situação ordinária da vida. O trabalho do pesquisador é
dar cientificidade ao fato concreto, desenvolvendo uma teoria com base nos
Certo dia, lendo o jornal, me deparei com um caso curioso: uma
mulher que se apropriou do sêmen do seu parceiro sexual, após a prática de
sexo oral, e conseguiu engravidar. Ela promoveu posterior ação pleiteando
pensão alimentícia em nome da criança (vide notícia transcrita a seguir).
Essa é uma situação que realmente me indigna: o popularmente
chamado “golpe da barriga”, que se configura quando uma mulher engravida
de um homem, sem o seu consentimento, com o objetivo de “prender o homem
a ela” – como se diz na linguagem popular – ou seja, com o objetivo de ter sua
vida ligada à dele através da criança, ou pior, com o objetivo de obter pensão
alimentícia.
Para o senso comum, a condição de gerar o filho, imposta pela
natureza à mulher, implica em concluir que a decisão de engravidar é
exclusivamente dela, assim o homem estaria à mercê da vontade feminina.
A revolução sexual da década de 70 foi alavancada pela criação
da pílula feminina como método contraceptivo, libertando as mulheres para o
sexo pelo prazer, sem o objetivo de procriação.
A descoberta da AIDS na década de 90 promoveu outra revolução
sexual, desta feita com a invenção do preservativo masculino, também
conhecido como “camisinha”, que foi criado para que as pessoas pudessem ter
relação sexual segura, mas também viabilizou ao homem a possibilidade de
um método contraceptivo próprio, independente da vontade feminina.
Até muito pouco tempo atrás só se vislumbrava uma única
assumia o risco de engravidar uma mulher ao ter relação sexual com ela sem
utilizar preservativo (camisinha), ou confiando na atitude feminina de alegar se
proteger com pílula anticoncepcional, pílula do dia seguinte, dentre outros. O
entendimento geral era de que o homem poderia ter a certeza de que utilizando
tal meio contraceptivo nunca engravidaria nenhuma parceira sexual. Se não o
utilizasse, estaria assumindo o risco da paternidade, posto que dependeria
exclusivamente da decisão feminina de não querer a maternidade.
A situação atual é bastante diversa. Leia-se as seguintes notícias:
Uma corte de apelação em Chicago, nos EUA decidiu, ontem, que um homem pode processar uma mulher por danos morais ao descobrir que ela usou seu esperma, sem autorização, para engravidar, mas não pode acusá-la de roubo, porque “uma vez produzido, o esperma se torna propriedade dela”.
A decisão manda a ação por danos morais - aberta pelo médico Richard O. Phillips contra a também médica Sharon Irons - de volta à primeira instância, para enfrentamento do mérito.
Philips acusa Irons de uma “traição calculada, pessoal e profunda” ao final do caso que mantiveram seis anos atrás. Ela teria guardado sêmen depois de fazerem sexo oral, e usado o esperma para engravidar. Ele diz que só descobriu a existência da criança quando Sharon ingressou com ação em nome da criança, exigindo pensão alimentícia. Testes de DNA confirmam a paternidade.
Philips então processou Sharon por danos morais, roubo e fraude. A ação foi preliminarmente recusada pela Justiça de primeira instância, mas agora o caso por danos morais deverá prosseguir. Os juízes da corte de apelação descartaram as pretensões quanto à fraude e ao roubo, afirmando que “a mulher não roubou o esperma”. O colegiado levou em consideração o depoimento da médica. Ela afirma que quando o então-namorado “entregou seu esperma, isso foi um presente”. O julgado reconhece que “houve uma transferência absoluta e irrevogável de título de propriedade entre doador e receptora”, diz o veredicto. “Não houve acordo de que o depósito teria de ser devolvido quando solicitado”. 1
Uma farmacêutica proprietária de uma clínica em Aracaju (SE) foi presa suspeita de falsificar resultados de ao menos 56 exames de DNA realizados a pedido da Justiça. De acordo com o Ministério Público Estadual, ela inventava os resultados e dava probabilidade de 66,666666%, quando o número poderia ser de apenas 99,999999%. O caso era investigado desde abril passado por dois promotores de Justiça que suspeitaram da probabilidade apresentada nos
1Esperma é propriedade da mulher que o recebe em relação sexual. O Estado de São Paulo. Disponível
resultados, de erros na grafia dos nomes dos envolvidos e da emissão de protocolos com números iguais.
Segundo o Ministério Público, a clínica da farmacêutica Priscilla Rodrigues Ordonez coletava sangue, mas não enviada as amostras ao laboratório DNA Vida de Goiânia (GO). Os resultados supostamente inventados acabaram enviados a setores da Justiça em Aracaju, Canindé do São Francisco, Barra dos Coqueiros, Itabaiana e Boquim; à Caixa dos Advogados de Sergipe; e a particulares.
O mandado de prisão expedido contra a farmacêutica foi cumprido no último dia 8. Ela permaneceu detida no Quartel da Polícia Militar, em Aracaju.
Por telefone, a reportagem não conseguiu apurar se a farmacêutica tem advogado.2
Conforme descrito na primeira notícia, o Dr. Richard só descobriu
a existência de um suposto filho quando a Dr.ª Sharon ingressou com ação em
nome da criança, exigindo pensão alimentícia. Ela própria relata que guardou
sêmen de Dr. Richard O. Phillips depois de fazerem sexo oral, e usou o
esperma, sem o conhecimento dele, para engravidar. Testes de DNA
confirmam a paternidade.
Com relação ao segundo caso, existe um processo-crime
(estelionato) de nº 2007314807 que tramita na 9ª Vara Criminal do Estado de
Sergipe, cujos autos estão anexos ao presente trabalho.
Verifica-se no julgado que exames de DNA foram falsificados com
o objetivo de imputar paternidade a supostos pais, para a produção de
sentença judicial declaratória de relação jurídica de filiação e conseqüente
fixação de pensão alimentícia.
O DNA é uma molécula presente no núcleo das células
somáticas, cujas seqüências são chamadas genes, que possuem como
principal função a codificação da informação genética.
2 Promotoria acusa mulher de inventar resultados de testes de DNA. Folha Online. Disponível em:
O desenvolvimento do teste em DNA, no final da década de 1980,
desencadeou o Projeto de Seqüenciamento do Genoma Humano, que fez a
sociedade contemporânea ingressar na Era Genômica, expressão utilizada por
Francisco Vieira Lima Neto.3
Sob a égide dessa nova era, a ciência deu um salto de evolução,
pois o Projeto Genoma desencadeou diversas pesquisas sobre a “nova”
molécula.
Cientistas concluíram que o exame pericial em DNA não tem
somente o caráter excludente de paternidade, como é o caso da perícia
hematológica. Comprovaram por intermédio de resultados obtidos por exames
em DNA, o seu caráter conclusivo de probabilidade de paternidade,
suplantando todas as perícias empregadas, até então, para a investigação da
paternidade.
Francisco Vieira Lima Neto ensina que descoberta do exame
pericial em DNA foi interpretada como o fim de um enigma, tornando-o
responsável pelo estabelecimento do paradigma4 da paternidade biológica. O
que antes era deduzido por determinação legal (paternidade oriunda do
casamento), ou por declaração judicial baseada em provas indiciárias
(paternidade declarada pelo juiz, fruto de seu estado subjetivo de convicção),
3 NETO, Francisco Vieira Lima. A maternidade de substituição e o contrato de gestação por outrem,
p.122.
4 Alberto do Amaral Júnior, na obra “Proteção do consumidor no contrato de compra e venda” (p. 17-19),
passou a ter base em um dado objetivo, marcado na força da perícia genética
em DNA.
Analisando-se decisões jurisprudenciais, relativas a ações de
investigação de paternidade, verifica-se que a esmagadora maioria utiliza a
paternidade biológica como único critério para a determinação da filiação. Esta
constatação revela que, atualmente, o Poder Judiciário segue o paradigma da
verdade biológica para a determinação da filiação, o qual informa ser pai
aquele que contribui com seu material genético para originar um novo ser
humano.
O exame em DNA deu mais substância às decisões judiciais, na
medida em que se passou a aceitar o entendimento de que, através da citada
perícia, se alcançaria a verdade real na determinação do vínculo entre pai e
filho. Esta situação gerou a “divinização”5 do exame pericial em DNA.
Os casos reais descritos pelas reportagens demonstram duas
situações: em primeiro lugar, como as técnicas de reprodução humana
assistida – desenvolvidas inicialmente com o objetivo de proporcionar o
exercício do direito de procriação a muitas pessoas impossibilitadas de fazê-lo
por questões fisiológicas – passaram a ser utilizadas de maneira oposta,
impedindo o pleno exercício da paternidade por contaminarem o direito de
opção livre e consciente pela filiação. E, em segundo lugar, como a descoberta
5 Reinaldo Pereira e Silva, no artigo “O exame de DNA e sua influência na investigação da paternidade
do DNA (ácido desoxirribonucléico) operou profundas transformações na
sociedade contemporânea.
Pois bem, decidi estudar como a Ciência do Direito trata estas
situações e se há alguma disciplina jurídica para o tema.
Assim, o objeto de estudo da presente dissertação é a lesão à
manifestação de vontade quanto à paternidade (em sentido amplo). Melhor
explicando: o que se pretende examinar é se de alguma forma o ordenamento
jurídico disciplina a situação de privação da oportunidade de se manifestar pela
paternidade ou maternidade e se a Ciência do Direito desenvolveu alguma
teoria aplicável ao caso.
Conseqüentemente, também é objeto de estudo do presente
trabalho o conflito entre direitos de personalidade, ou seja, verificado que nas
demandas investigatórias de paternidade, há direitos de personalidade
contrapostos, configurando-se o conflito de interesses entre o direito de
personalidade do homem que possui um posicionamento contrário à
paternidade, e o direito de personalidade do filho gerado à revelia, que busca a
declaração da paternidade judicial, é preciso estudar valor da dignidade do
suposto pai em contraposição ao valor da dignidade do filho.
Verificada a utilização de meios ardilosos para a obtenção de
material genético e posterior manipulação com as técnicas de reprodução
humana assistida, fica evidente o desvio de finalidade, porque referidas
técnicas passaram a ser utilizadas objetivando, primordialmente, efeitos
patrimoniais gerados pela paternidade – como o direito à pensão alimentícia e
Esta situação também deixa patente uma inversão de valores,
posto que a vida humana originada por uma eventual manipulação de material
genético obtido através de ato ilícito demonstra o desprezo ao valor da
dignidade humana em prol da busca por bens jurídicos patrimoniais.
O ordenamento jurídico nacional aponta a vida humana como
valor supremo, haja vista o artigo 1º inciso III da Constituição Federal de 1988,
que prevê a dignidade humana como princípio fundamental da República
Federativa do Brasil.
A gravidade da situação fica clara ao se constatar que as técnicas
de reprodução humana assistida passaram a ser largamente aplicadas. É
possível afirmar inclusive que se popularizaram6, em virtude dos custos serem
reduzidos com a sua larga utilização. Até hospitais públicos já realizam esses
procedimentos. Em razão disso, a problemática decorrente dessas práticas
tornar-se-á, a cada dia, mais comum nos tribunais pátrios.
Por isso, o presente estudo trata do princípio da paternidade
responsável, previsto nos artigos 226, §7° e 229 da Constituição Federal, que
determina o direito dos pais de decidir em que momento e se pretendem ter
filhos.
Estabelecido que o ordenamento jurídico reconhece a toda
pessoa o direito de decidir se quer ou não ser pai/mãe, é preciso apontar qual
seria a conseqüência para a lesão a este direito, com o objetivo de coibir as
práticas lesivas a este instituto.
6 GOMES, José Jairo. Reprodução humana assistida e filiação na perspectiva dos direitos de
A complexidade da vida moderna impõe aos indivíduos o
relacionamento com outras pessoas, com a coletividade, ou mesmo com bens,
com a finalidade de alcançar os objetivos individuais visados por cada ser
humano. Essas inter-relações propiciam inúmeras situações de
constrangimento e atentados aos valores protegidos no plano da moralidade,
em particular aos direitos da personalidade.
Essa busca pela concretização dos objetivos íntimos pode
ensejar, nas relações de caráter pessoal, a invasão indevida da esfera jurídica
alheia, motivada por rivalidade, capricho, paixão e toda espécie de
manifestação emotiva.
No entanto, é preciso considerar a situação do homem, que no
exercício do seu direito de liberdade, faz a opção de não ser pai, por motivo de
convicção pessoal, e age com cautela, utilizando-se dos meios contraceptivos
que estão ao seu alcance, como o uso de preservativo e a opção por coito anal
ou oral.
Não obstante uma conduta cautelosa, este cidadão tem a sua
autonomia de vontade desprezada e descobre que seu material genético foi
utilizado para a concepção de um novo ser, sem o seu conhecimento e à sua
revelia. O pior, descobre ainda que foi induzido a erro através de falsificação de
exame pericial em DNA, como no caso real ocorrido no Estado de Sergipe
acima mencionado. É levado a acreditar que existe uma relação de filiação,
modificando completamente o planejamento que havia traçado para a sua vida.
Portanto, com o objetivo de verificar qual é a forma aceitável de
convida o leitor ao estudo da Teoria da Responsabilidade Civil que permite
desenvolver uma nova teoria – o Dano ao Projeto de Vida. Como conseqüência
lógica, é imprescindível o estudo do princípio da paternidade responsável e a
1. TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL APLICADA AO DIREITO DE FAMÍLIA.
1.1. Ato Ilícito: fundamento da obrigação de reparar. Distinção entre Responsabilidade Civil e Responsabilidade Penal.
Um dos principais objetivos da ordem jurídica é proteger o lícito e
reprimir o ilícito e, para que esse fim seja alcançado, são estabelecidos
deveres jurídicos. A violação de um dever jurídico configura o ilícito, que quase
sempre causa dano a outrem, gerando um novo dever jurídico: o de reparar o
dano. É assim que surge a noção de responsabilidade civil, que consiste no
dever de ressarcir o prejuízo decorrente da violação de um dever jurídico
precedente. 7
Em outras palavras, a responsabilidade civil é a obrigação da
compensação de um ato ilícito, seja ele patrimonial ou moral. Esta é a previsão
do ordenamento jurídico, cuja norma basilar é a Constituição Federal, que
prevê o direito à indenização por dano material, moral ou à imagem.8 O seu
7 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
p. 26.
8 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
Inciso V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
(..)
objetivo principal é a restauração do estado anterior à lesão.9 Diante da
inviabilidade de restauração, busca-se a compensação pecuniária do dano.
O ato ilícito é aquele que em desacordo com a ordem jurídica –
por violar direitos – gera prejuízos a terceira pessoa. Conseqüentemente, é
fonte de obrigações decorrente do dever de indenizar os danos causados a
outrem. Essas obrigações são originárias de ações ou omissões culposas ou
dolosas do agente, praticadas com infração a dever de conduta ou violação a
direitos de que resultam danos para outra pessoa.
O conceito legal de ato ilícito é encontrado no artigo 18610 do
Código Civil, que tem o condão de viabilizar a idéia de que ninguém poderá
causar danos morais ou materiais a outrem. E a própria legislação propicia a
ampliação de referido conceito, posto que o artigo 18711 do mesmo diploma
legal consagra a teoria do abuso de direito (também conhecida como teoria dos
atos emulativos), ao imputar ao ato abusivo a natureza de ilícito.12
Dessa forma, o dever de reparar imposto ao agente causador do
dano resta configurado tanto quando há infringência a um dever legal (ato
praticado contra o direito), quanto quando seu ato,13 embora sem infringir a lei,
foge da finalidade social a que ela se destina.14
9 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
10 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e
causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
11 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente
os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
12 TARTUCE, Flávio. Direito Civil. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, v.2. p. 272.
13 É preciso mencionar que a obrigação do agente reparar o dano também pode ser ocasionada por ato de
Para a configuração do ato ilícito é preciso a presença de culpa
ou dolo, o que caracteriza o ilícito subjetivo. Em contrapartida, afere-se o abuso
de direito independentemente da constatação de dolo ou culpa, o que
caracteriza o ilícito objetivo. 15
A distinção entre responsabilidade civil e responsabilidade penal
decorre da distinção entre o ilícito civil e o ilícito penal, já que a base de ambos
os casos é a infração à ordem jurídica.
Inacio de Carvalho Neto16 ensina que a doutrina clássica promove
esta distinção sob o critério da norma atingida, ou seja, no ilícito penal a norma
atingida é de ordem pública com a conseqüente perturbação da ordem social;
enquanto que no ilícito civil a norma desrespeitada é de direito privado, cuja
conseqüência é a lesão apenas ao interesse da vítima.
Nesse sentido, é o entendimento de Sílvio Rodrigues:
No caso de crime, o delinqüente perturba a ordem social; por conseguinte, seu ato provoca uma reação do ordenamento jurídico, que não pode se compadecer com uma atitude individual dessa ordem. A reação da sociedade é representada pela pena.
Note-se que, na hipótese, é indiferente para a sociedade a existência ou não de prejuízo experimentado pela vítima.
No caso de ilícito civil, ao contrário, o interesse diretamente lesado em vez de ser o interesse público é o privado. O ato do agente pode não ter infringido norma de ordem pública; não obstante, como seu procedimento causou dano a alguma pessoa, o causador do dano deve repará-lo. A reação da sociedade é representada pela indenização a ser exigida pela vítima do agente causador do dano. Todavia, como a matéria é de interesse apenas do prejudicado, se este se resignar a sofrer o prejuízo e se mantiver inerte, nenhuma conseqüência advirá para o agente causador do dano. 17
sua guarda e companhia) e do artigo 938 (dano proveniente das coisas que caírem ou forem lançadas em lugar indevido de prédio), ambos do CCB.
14 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: responsabilidade civil. 13. ed..São Paulo: Saraiva, 1993, v.4, p.15. 15 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado e legislação
extravagante. 3.ed. rev.ampl. São Paulo; Revista dos Tribunais, 2005. p.282.
16 CARVALHO NETO, Inácio. Responsabilidade civil no direito de família. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2008,
p. 36-38.
Também segundo a doutrina clássica, é reconhecida a
possibilidade de um mesmo ilícito repercutir tanto na esfera civil quanto na
penal, porque se ocorrer infração a uma norma de ordem pública e, ao mesmo
tempo, for gerado prejuízo a terceiro, configurar-se-á ato ilícito nas duas
esferas.
José Aguiar Dias critica a teoria clássica e considera a distinção
com base na repercussão social ou individual infundada, vejamos:
O prejuízo imposto ao particular afeta o equilíbrio social. Não encontramos razão suficiente para concordar em que à sociedade o ato só atinge no seu aspecto de violação da norma penal, enquanto que a repercussão no patrimônio do indivíduo só a este respeita. Não pode ser exata a distinção, se atentarmos em que o indivíduo é parte da sociedade; que ele é cada vê mais considerado em função da coletividade; que todas as leis estabelecem a igualdade perante a lei. Fórmula de mostrar que o equilíbrio é interesse capital da sociedade18.
É neste sentido que dispõe a doutrina moderna, com
entendimento acertado de não haver distinção ontológica entre ilícito penal e
ilícito civil. Nas palavras de Miguel Maria de Serpa Lopes: “Atualmente é
insustentável o princípio de uma diferença essencial entre os dois tipos de
responsabilidade, pois o ilícito, tanto no caso de responsabilidade civil como no
da penal, é ONTOLOGICAMENTE O MESMO.”19
Portanto, a distinção entre responsabilidade civil e penal é meramente
didática.
1.2. Responsabilidade Contratual e Extracontratual.
A teoria monista ou unitária, apontada pela maioria da doutrina,
entende que pouco importa os aspectos sob os quais se apresente a
responsabilidade civil, porque os seus efeitos são uniformes20. Porém, em
atenção à diversidade de tratamentos, é preciso apontar as principais
classificações corriqueiramente adotadas pela doutrina, sob os mais diversos
critérios.
Assim, Maria Helena Diniz21 entende que a responsabilidade civil
pode ser classificada segundo seu fato gerador, dividindo-se em contratual22 e
extracontratual23.
A primeira é oriunda da inexecução de negócio jurídico bilateral
ou unilateral24, ou seja, ocorre quando uma das partes que realizou um contrato
não cumpre o acordado, gerando um prejuízo ao outro contratante. Assim, seu
resultado é um ilícito contratual, que estabelece entre as partes um vínculo
jurídico derivado da obrigação.
A responsabilidade extracontratual ou aquiliana é configurada
quando há infração a um dever legal, ou seja, não existe nenhum vínculo entre
a vítima e o causador do dano. Este tipo de responsabilidade pressupõe lesão
a um direto subjetivo e abrange a infração dos deveres gerais de abstenção ou
20 CAVALIERI FILHO, Sergio, op. cit., p.39.
21 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 16. ed. São Paulo:
Saraiva, 2002. v. 7. p. 7-8.
22 Prevista nos artigos 395 e seguintes e 389 e seguintes, todos do Código Civil Brasileiro. 23 Prevista nos artigos 186 a 188 e 927 e seguintes do mesmo diploma legal.
24 São exemplos de negócio jurídico unilateral: testamento, promessa de pagamento, descumprimento de
omissão, como os que correspondem aos direitos reais, direitos de
personalidade ou aos direitos autorais.
1.3. Responsabilidade Civil Objetiva e Subjetiva.
O Código Civil Brasileiro adotou dois sistemas jurídicos de
responsabilidade civil: o da responsabilidade objetiva e o da responsabilidade
subjetiva. Assim, respectivamente, são dois os fundamentos da
responsabilidade: a culpa ou o risco.
Apesar de Sílvio de Salvo Venosa afirmar que a responsabilidade
subjetiva é a regra geral e a responsabilidade objetiva é exceção ao regime do
Código Civil25, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery entendem
que não se pode falar em prevalência de um sistema sobre o outro26.Fato é
que os dois sistemas convivem no ordenamento jurídico posto.
Pode-se afirmar que a responsabilidade objetiva, fundada no
risco, é indício de evolução do instituto da responsabilidade, porque prescinde
da culpa e do dolo em alguns casos27, em privilégio da reparação do dano.
25 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: responsabilidade civil. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. 4. p.
12.
26 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade, op. cit., p. 535.
27 Por determinação do Código Civil, aplica-se a responsabilidade objetiva aos casos de: a) abuso de
Segundo Maria Helena Diz, a responsabilidade civil objetiva
consiste:
Na obrigação de indenizar o dano produzido por atividade exercida no interesse do agente e sob seu controle, sem que haja qualquer indagação sobre o comportamento do lesante, fixando-se no elemento objetivo, isto é, na relação de causalidade entre o dano e a conduta de seu causador. 28
A responsabilidade subjetiva pressupõe a existência de culpa lato
sensu, ou seja, o dolo (vontade consciente de violar o direito, dirigida à
consecução de um fim ilícito) e a culpa stricto sensu, que abrange a imperícia
(inabilidade ou inaptidão para a prática de um determinado ato), a negligência
(inobservância de normas que apontam um agir com atenção, capacidade,
solicitude e discernimento) e a imprudência (agir de forma precipitada e sem
cautela).
O dolo ocorre quando o resultado foi buscado deliberadamente
pelo agente com o objetivo de prejudicar alguém. É possível classificá-lo em
dolo direto ou indireto: o primeiro é caracterizado quando o agente quer o
resultado, o segundo, quando ele assume o risco de produzi-lo. Nas palavras
de João de Matos Antunes Varela:
A figura do dolo indireto é manifestamente abrangida pelo conceito genérico (moderno) do dolo, desde que passou entender-se por ação dolosa, não só a praticada com a intenção de violar a lei, mas também a atuação da pessoa com a consciência de violar a lei. 29
28 DINIZ, Maria Helena, op. cit., p. 49.
29 VARELA, João de Matos Antunes. Direito das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 224 (nota
A culpa caracteriza-se quando o agente, apesar de agir
voluntariamente, não visa o resultado alcançado. Nas palavras de Sérgio
Cavalieri Filho, ela consiste na “conduta voluntária contrária ao dever de
cuidado imposto pelo direito, com a produção de um evento danoso
involuntário, porém previsto ou previsível”.30
Note-se que o liame entre dolo indireto e culpa stricto sensu é
bastante estreito, porque em ambos há a conduta voluntária, mas, no primeiro,
o agente prevê a possibilidade de resultado danoso e assume o risco de
produzi-lo, enquanto que na segunda, o agente não vislumbra o resultado,
apesar de previsível.
Portanto, a culpa stricto sensu tem como traço marcante a falta de
cautela, que é exteriorizada pela imperícia, negligência ou imprudência. A
imperícia decorre de inabilidade ou inaptidão para a prática de atividade
técnica. A negligência é a falta de cautela ou cuidado por conduta omissiva, ou
seja, é a inobservância de normas que apontam um agir com atenção,
capacidade, solicitude e discernimento. E, por fim, a imprudência é a falta de
cautela ou cuidado por conduta comissiva, ou seja, é a ação desempenhada de
forma precipitada e sem cautela. 31
Existe, ainda, uma gradação da culpa stricto sensu. Ela pode ser
classificada em grave, leve e levíssima. Para tal classificação, o parâmetro
utilizado é o bom pai de família, ou seja, num critério abstrato de análise, o
padrão a ser considerado é daquele pai sensato, probo, cuidadoso e prudente.
Segundo ensina Jorge Mosset Iturraspe: “La culpa leve es la omisión de la
propia atención diligente padre de familia, de un hombre normal, ordenado y
cuidadoso en la gestión de su empresa o en actividad que corresponde a la
disposición de que este.”32
A culpa grave é aquela em que o agente se comporta
irrefletidamente, com falta de atenção ou cuidado que se reclamaria de uma
pessoa previdente. A culpa leve é aquela em que o agente não se dirige pela
diligência usual do bom pai de família, ou seja, a falta seria evitada com
atenção ordinária. E, finalmente, culpa levíssima é aquela em que ocorre um
pequeno desvio de conduta do agente, ou seja, a falta seria evitada apenas
com atenção extraordinária, o que configuraria a omissão de cuidado que teria
um diligente pai de família.
O artigo 94433 do Código Civil prevê a possibilidade de redução
eqüitativa do montante devido a título de indenização quando houver excessiva
desproporção entre a gravidade da culpa e o dano. Por isso, a gradação da
culpa stricto sensu é essencial no sistema jurídico pátrio.
32 MOSSET, Jorge Iturraspe. Responsabilidad por Daños. Buenos Aires: Ediar, 1982, tomo I. p. 73.
Tradução livre: “A culpa leve consiste na omissão de um cuidado próprio do diligente pai de família, de um homem normal, ordeiro e cuidadoso na gestão de sua empresa ou na atividade correspondente à prestação de que se trata.”.
33 Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
1.4. Pressupostos da Obrigação de Reparar o Dano.
A responsabilidade civil, seja ela objetiva ou subjetiva, deve
atender a alguns pressupostos que se decompõe em: conduta (positiva ou
negativa), dano (patrimonial ou extrapatrimonial) e nexo de causalidade ou
relação de causalidade.
1.4.1. Conduta do Agente.
O ponto de partida para se começar a falar em responsabilidade
civil é a conduta do agente, que lhe impõe o dever de reparar o dano. Para a
sua configuração há que se considerar a conduta humana voluntária34. Esta,
portanto, é positiva quando praticada com comportamento humano ativo
comissivo, causando um dano a terceiros; e, negativa quando se trata da
prática de omissão negativa que gera um dano a outrem.
1.4.2. Nexo de Causalidade.
O nexo de causalidade é a ligação entre o ato lesivo, o dano
causado e o lesado. Através dele, a responsabilidade é determinada, posto que
a obrigação de indenizar é verificada pelo liame entre a conduta do agente
(ação ou omissão) e o resultado danoso. Este é um pressuposto indispensável
a ambos os sistemas de responsabilidade civil. A responsabilidade objetiva
dispensa a culpa, mas nunca dispensará o nexo causal.35
Configurado o evento danoso em meio a várias circunstâncias
concorrentes, é preciso determinar qual dentre estas condições é a causa real
do resultado. As principais teorias adotadas para resolver esta questão são:
equivalência dos antecedentes e causalidade adequada. Segundo a primeira
teoria, todas as causas são equivalentes na produção do resultado danoso.
Para a segunda, deve ser levada em consideração apenas a causa que foi
mais adequada a produzir concretamente o resultado.36
Ao contrário do Código Civil de 1916, o Código Civil de 2002 não
faz nenhuma menção ao nexo de causalidade, assim, Sergio Cavalieri Filho
aconselha seguir os rumos traçados pela doutrina e pela jurisprudência desde
a legislação anterior, no sentido de que prevalece a tese da causalidade
adequada. 37
1.4.3. Dano.
Não se pode cogitar de responsabilidade civil sem a existência de
dano. Ele é o elemento essencial para configurar o dever de reparar. Sem ele,
não haveria que se falar em indenização, ou responsabilização pela ausência
do próprio fundamento. Nesse sentido, José de Aguiar Dias afirma:
O dano é, dos elementos necessários à configuração da responsabilidade civil, o que suscita menos controvérsia. Com efeito, a unanimidade dos autores convém em que não pode haver responsabilidade sem a existência de um dano, e é verdadeiro truísmo sustentar esse princípio, porque, resultando a responsabilidade civil em obrigação de ressarcir, logicamente não pode concretizar-se onde não há o que reparar. 38
Hans Albrecht Fischer entende que existem duas espécies de
dano: o dano vulgar, cujo prejuízo não gera o dever de indenizar e o dano
jurídico, que enseja o dever de indenização. 39 Por exemplo, quando certa
pessoa causa dano a si mesma, seja diminuindo o seu patrimônio, ou
provocando danos físicos ou psíquicos aÉ necessário registrar que há o
entendimento doutrinário minoritário de que apenas os bens apreciáveis em
dinheiro integram o patrimônio de uma pessoa. Por conseguinte, segundo esta
corrente, exclui-se da noção de patrimônio os direitos da personalidade, que
não podem ser aferidos em dinheiro. Assim, não seria possível classificar o
dano moral como extrapatrimonial.
o dano jurídico em patrimonial ou extrapatrimonial, por entender
que formam o patrimônio do indivíduo todos os seus bens, apreciáveis em
dinheiro ou não. Este é o entendimento de Silvio Neves Baptista:
Diz-se que o dano é patrimonial ou material quando atinge bens integrantes do patrimônio de uma pessoa, ou seja, bens materiais suscetíveis de apreciação econômica e, por exclusão, diz-se que o dano é extrapatrimonial ou moral quando a lesão agride bens imateriais insuscetíveis de avaliação em dinheiro e que compõem o núcleo dos direitos de personalidade.
38 DIAS, José de Aguiar, op. cit., p. 713.
A classificação do dano em patrimonial e extrapatrimonial tem como critério, como é evidente, a noção de patrimônio, definindo-se este como o conjunto de direitos e deveres economicamente apreciáveis, composto dos elementos ativos e passivos de uma pessoa, dos créditos e débitos, haveres e dívidas, os quais integram o campo específico do direito das obrigações, dos direitos reais, inclusive dos direitos patrimoniais de família. 40
Em verdade, esta é uma discussão doutrinária inócua em virtude
das previsões constitucional e infraconstitucional de reparabilidade tanto do
dano material quanto do dano moral. Assim, o dano jurídico pode ser
classificado em patrimonial ou extrapatrimonial.
1.4.3.1. Dano Patrimonial.
Dano patrimonial, também chamado dano material, abrange os
bens materiais suscetíveis de apreciação econômica integrantes do patrimônio
da vítima.
Maria Helena Diniz ensina que o dano patrimonial é medido pela
diferença entre o valor do patrimônio da vítima e aquele que teria se não
houvesse a lesão, assim, pode não somente acarretar sua diminuição ou
desvalorização, como também impedir o seu crescimento. 41
Com base na sua extensão, o dano patrimonial pode se
apresentar em duas modalidades: a) dano emergente; e b) lucro cessante42.
Segundo lição de Silvio Neves Baptista:
Se o dano consiste unicamente na ofensa contra a pessoa, na perda ou danificação de objeto, sem afetar a atividade do ofendido ou a sua possibilidade de ganho, diz-se que o dano é emergente ou positivo – damnum emergens; se além do dano emergente (material ou imaterial), a vítima deixar de ganhar ou de auferir vantagens em virtude do prejuízo, o dano é definido como cessante ou negativo – lucrum cessans. 43
1.4.3.2. Dano Extrapatrimonial.
Silvio de Salvo Venosa conceitua o dano extrapatrimonial ou dano
moral como o “prejuízo que afeta o ânimo psíquico, moral e intelectual da
vítima”44. Assim, o dano extrapatrimonial é aquele suportado pela pessoa em
razão de atos praticados por outrem contra aspectos de sua personalidade45,
conseqüentemente, ele revela-se na dor, aborrecimento, sofrimento, tristeza e
atinge sua moralidade e afetividade, elementos constituintes da dignidade
humana.
Resta frisar que, segundo Maria Helena Diniz, o dano
extrapatrimonial pode ser direto ou indireto: configura-se o direto quando há
lesão a um bem jurídico extrapatrimonial contido nos direitos de personalidade;
42 Ambas as modalidades estão previstas no Código Civil:
Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.
43 BAPTISTA, Silvio Neves., op. cit. p. 421. 44 VENOSA, Sílvio de Salvo, op.cit., p.94.
45 Os direitos da personalidade serão tratados com a necessária propriedade mais adiante no presente
e o indireto ocorre quando há lesão a um direito patrimonial e o prejuízo de um
direito extrapatrimonial46.
Infere-se da afirmação que o contrário também pode ocorrer, ou
seja, o dano extrapatrimonial pode repercutir na esfera patrimonial da vítima,
gerando danos dessa ordem. É o que Sergio Cavalieri Filho denomina de dano
moral de eficácia patrimonial.47
A situação descrita já foi regulada pela jurisprudência, que prevê a
possibilidade de cumulação de indenizações sempre que comprovados
prejuízos patrimoniais e extrapatrimoniais suportados.48
Há, ainda, que se fazer breve menção ao chamado dano reflexo
ou dano em ricochete, que diz respeito ao dano sofrido por uma pessoa em
razão do dano causado a outra. Caio Mário da Silva Pereira entende que é
reparável desde que seja certa a repercussão do dano principal, por atingir a
pessoa que lhe sofra a repercussão, e esta seja devidamente comprovada. Ele
exemplifica com o caso de falecimento de uma pessoa que é obrigada a
pensionar outra, como por exemplo, o ex-cônjuge que deve pensão aos filhos e
vem a falecer em conseqüência de dano sofrido. Vislumbra-se a possibilidade
dos filhos pleitearem reparação ao causador do dano.49
1.5. Causas de Não Configuração da Responsabilidade Civil.
46 DINIZ, Maria Helena, op. cit., p. 82. 47 CAVALIERI FILHO, Sergio, op. cit, p. 90.
48 Súmula n. 37 do STJ: “ São cumuláveis as indenizações por dano material e moral oriundas do mesmo
fato.”
Preliminarmente é preciso discorrer sobre a diversidade
terminológica, posto que as circunstâncias que ensejam a não configuração da
responsabilidade podem ser chamadas de excludentes da responsabilidade,
eximentes de responsabilidade50, ou, ainda, de causas de irresponsabilidade51.
Porém, no entendimento de Inácio de Carvalho Neto elas devem ser
entendidas como causas de não configuração da responsabilidade, porque não
há sequer responsabilidade a ser excluída52. Registre-se que a doutrina utiliza
habitualmente a terminologia excludente de responsabilidade. Desde já,
adotar-se-á a nomenclatura causas de não configuração da responsabilidade, por ser
a mais apropriada.
Desta feita, as causas de não configuração da responsabilidade
civil se subdividem em: exceções de imputabilidade, excludentes de
causalidade, excludentes de antijuridicidade ou de ilicitude, cláusula de não
indenizar e renúncia. Alguns autores apontam, ainda, a prescrição e o erro,
mais adiante, será possível esclarecer o equívoco.
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, que utiliza o termo
exclusão da responsabilidade, ensina que esta poderá ser configurada se não
houver imputabilidade e/ou culpabilidade do agente, ilicitude do ato; ou
cláusula de não indenizar – nos casos em que esta for válida. A autora assim
discorre:
50 Vide GRAMSTRUP, Erik Frederico. Responsabilidade civil na engenharia genética. São Paulo:
Editora Federal, 2006. p. 137.
51 Este é o entendimento de Rui Stoco e José de Aguiar Dias. Porém, Inácio de Carvalho Neto discorda da
terminologia por dar idéia de falta de juízo, ou falta de responsabilidade. Vide: CARVALHO NETO, Inácio, op. cit. p. 62.
O estudo das circunstâncias capazes de afastar ou elidir o dever de indenizar mostrará que elas têm causas diferentes, conforme excluam a ilicitude, ou a imputabilidade, ou a culpabilidade em sentido estrito, ou mesmo a relação de causalidade (...) e ainda a cláusula de não indenizar, outra situação capaz de escusar o dever de indenizar, como resultante do acordo de vontade prévio entre os partícipes de eventual e futura relação jurídica oriunda de dano ou prejuízo..53
1.5.1. Exceções de Imputabilidade.
Ao analisar a conduta do agente causador do dano é preciso
verificar a ocorrência da imputabilidade e da culpabilidade (esta última, apenas
no caso da responsabilidade civil subjetiva). Segundo Giselda Maria Fernandes
Novaes Hironaka, a primeira é pressuposto da segunda, porque somente
depois de verificar que o agente é plenamente capaz de discernir, é possível
auferir se ele agiu com culpa. 54
Segundo a condição juridicamente chamada de imputabilidade, é
preciso constatar se no momento de prática da ação/omissão o agente estava
livre e consciente, ou seja, se estava plenamente capaz de discernir ou
plenamente imputável.
Desta forma, a inimputabilidade é uma exceção que afasta a
culpabilidade e ocorre sempre que o agente não estiver em condições de agir
voluntária, livremente e com autodeterminação.
53 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Civil: circunstâncias naturalmente,
legalmente e convencionalmente escusativas do dever de indenizar o dano. Maio de 1998. Disponível em:
〈http://www.flaviotartuce.adv.br/secoes/artigosc/Giselda_excludentes.doc〉. Acesso em 10 mai. 2008
O artigo 18055 do Código Civil regula a inimputabilidade. Erik
Frederico Gramstrup observa que com a entrada em vigor do referido
dispositivo legal tornou-se mais correto dizer que a inimputabilidade é uma
circunstância que tempera ou limita, mas não exclui o dever de indenizar. 56
Sob a vigência do Código Civil de 1916, os seus artigo 154 e
incisos e artigo 155 e incisos combinados com os artigos 156 e 1521
determinavam que as excludentes de imputabilidade eram a menoridade e a
alienação mental grave57. Assim, o exercício do pátrio poder implicava em
responsabilização dos pais ou responsáveis pelo ressarcimento do dano
resultante de ato ilícito, em decorrência do direito e dever de vigiar
constantemente seus filhos, enquanto incapazes de se conduzirem por si
mesmos.
Com a vigência do Código Civil de 2002, houve uma alteração da
legislação58. Neste ponto, o presente trabalho opta pela doutrina de Erik
55 Art. 180. O menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar
a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior.
56 GRAMSTRUP, Erik Frederico. op cit.p. 138.
57 Art. 154. As obrigações contraídas por menores, entre 16 (dezesseis) e 21 (vinte e um) anos, são
anuláveis (arts. 6o e 84), quando resultem de atos por eles praticados:
I - sem autorização de seus legítimos representantes (art. 84); II - sem assistência do curador, que neles houvesse de intervir.
Art.155. O menor, entre 16 (dezesseis) e 21 (vinte e um) anos, não pode, para se eximir de uma obrigação, invocar a sua idade, se dolosamente a ocultou, inquirido pela outra parte, ou se, no ato de se obrigar, espontaneamente se declarou maior.
Art. 156. O menor, entre 16 (dezesseis) e 21 (vinte e um) anos, equipara-se ao maior quanto às obrigações resultantes de atos ilícitos, em que for culpado.
Art. 1.521. São também responsáveis pela reparação civil:
I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob seu poder e em sua companhia;
II - o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições;
58 Art. 182. Anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam,
e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente.
Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal.
Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:
Frederico Gramstrup, que entende que os amentais e menores responderão
desde que não fiquem desprovidos de meios para subsistir dignamente,
quando seus pais, tutores e curadores não puderem fazê-lo, pois estes
respondem por fato de terceiro independentemente de culpa. 59
1.5.2. Excludentes de Causalidade.
Ao distinguir a responsabilidade objetiva da responsabilidade
subjetiva, foi dito que a primeira é baseada no risco e a segunda é baseada na
culpa, mas ambas devem cumprir três pressupostos para a sua configuração:
conduta, dano e nexo de causalidade.
Porém, em algumas circunstâncias verificar-se-á que não foram
cumpridos os três pressupostos necessários para a obrigação de reparar o
dano. Assim, apesar de ocorrer o dano e ser identificado o agente, não será
imposta a obrigação de indenizar por ausência de nexo causal. Por isso, as
circunstâncias excludentes de causalidade atuam sobre o nexo causal,
tornando o agente não responsável pelo dano.
As excludentes de causalidade são: a culpa exclusiva da vítima, a
culpa concorrente da vítima e do agente, a culpa de terceiro; ou, ainda, o caso
fortuito e de força maior.
A culpa exclusiva da vítima ocorre sempre por fato ou ato
exclusivo da vítima do dano, afastando a responsabilidade do agente,
exatamente porque elimina a causalidade entre a sua atuação e o evento
danoso. Sua conseqüência é a vítima arcar com todos os prejuízos advindos,
porque é exclusivamente culpada pela emergência deles.
A culpa concorrente da vítima e do agente configura-se quando
há a culpa da vítima, mas este fato não se apresenta, como antes, no sentido
de excluir a responsabilidade do agente. Na verdade ocorre a sua atenuação,
porque o próprio agente também age com culpa, operando o que se conhece e
denomina de concorrência de culpas.
Sobre concorrência de culpas, Maria Helena Diniz, esclarece:
Se lesado e lesante concorreram com uma parcela de culpa, produzindo um mesmo prejuízo, porém, por atos independentes, cada um responderá pelo dano na proporção em que concorreu para o evento danoso. Não desaparece, portanto, o liame de causalidade; haverá tão-somente uma atenuação da responsabilidade, hipótese em que a indenização é, em regra, devida por metade ou diminuída proporcionalmente. Haverá uma bipartição dos prejuízos (...). 60
José de Aguiar Dias61 ensina que a culpa de terceiro só será
configurada quando efetivamente não contar com a participação culposa do
devedor, afastando, completamente, o nexo de causalidade entre sua ação e o
dano advindo. Assim, este dano deverá se ligar apenas ao fato de terceiro, fato
este que deverá ocorrer sem a provocação do ofensor (pois, senão, haveria
concorrência de culpas), apresentando-se, enfim, como fato exclusivamente
causador do dano.
Estão excluídas do conceito de terceiro aquelas pessoas por
quem o agente responde como os filhos, tutelados, curatelados, prepostos,
empregados, etc.
Não se pode desprezar a possibilidade de não identificação do
terceiro culpado, situação tratada por José de Aguiar Dias:
(...) o fato de terceiro há de poder ser atribuído a alguém, o que não quer dizer que se imponha, necessariamente, a sua identificação. Sem dúvida, o fato de poder identificar o terceiro contribui para a melhor caracterização do fato que se lhe atribui. Mas isso não é condição essencial para tal configuração, como sucede, por exemplo, no dano produzido por terceiro que fugiu e não foi encontrado, tendo sido visto, entretanto, a praticar o ato de que resultou o prejuízo. Se o dano não pode ser atribuído a alguém, nesse sentido de que se deva a ação humana, estranha aos sujeitos da relação vítima-responsável, não há fato de terceiro, mas caso fortuito (...)62
Com relação ao caso fortuito e força maior, previstos pelo Código
Civil Brasileiro63, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka ensina que há
uma polêmica doutrinária no que diz respeito a serem, ou não, as expressões
sinônimas.
Assim, há doutrinadores, como Álvaro Villaça Azevedo e Caio
Mário da Silva Pereira, que entendem a força maior como circunstância
geradora do dano, mas originada do fato de outrem, enquanto que outros
entendem o caso fortuito como circunstância geradora do dano, mas
proveniente apenas da natureza, sem que se apresente sequer a mais remota
intervenção humana64.
O presente trabalho filia-se ao entendimento da citada
62 Ibidem, p. 681.
63 Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se
expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
doutrinadora, entende que as expressões não são sinônimas. Porém, que em
sentido oposto, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka considerando a
força maior como circunstância geradora de dano, absolutamente
independente da vontade humana (quer na sua origem, quer quanto a
inevitabilidade de sua ocorrência), derivada exclusivamente, de um fato da
natureza, normalmente catastrófico. Já o caso fortuito, é circunstância geradora
de dano, mas derivada, originalmente, de um fato humano, embora não se
possa aquilatar ou identificar o agente responsável, prejudicando a aferição do
nexo de causalidade, mas conformando-se como circunstância danosa, cujos
efeitos não se pôde evitar ou impedir.
Neste sentido de idéias, preconiza Washington de Barros
Monteiro, que considera65 como de força maior os fenômenos relacionados às
causas naturais, como terremoto, inundação, seca, geada, chuva de granizo,
vulcão, tufão, incêndios não provocados e, como caso fortuito, o que resulte de
fato alheio, embora não determinável ou identificável, mas inevitável enquanto
evento danoso, como a greve, o motim, a guerra.
Maria Helena Diniz ensina que o requisito objetivo da
inevitabilidade e o requisito subjetivo da total ausência de culpa na produção do
acontecimento são fundamentais para que o caso fortuito e força maior sejam
considerados circunstâncias excludentes de responsabilidade66. No mesmo
sentido, discorre Caio Mário da Silva Pereira67. Vejamos:
Não é qualquer acontecimento, por mais grave e ponderável, bastante para liberar o devedor, porém aquele que impossibilita o
65 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1978, v. 4, p. 332. 66 DINIZ, Maria Helena, op. cit., p. 80-81.
67 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1996, v. II, p.