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ligada às Igrejas, aos formadores de opinião pú-blica da elite e à ação dos meios de comunicação. Tudo isso, além da miséria da maioria que os obriga a zelar pela própria sobrevivência mais do que exercitar autonomia de seus corpos e de-sejos. Haveria que investigar isso melhor; levan-to outra hipótese, apesar da força e da freqüên-cia com tem sido esgrimida a potênfreqüên-cia controla-dora do biopoder.
Julgo haver uma relação estreita entre a gêne-se de sistemas de informação em saúde no Brasil e dois outros fatores. O mais relevante, me pare-ce, foi a lógica de remunerar o ato médico e as práticas em saúde com base em procedimentos: consulta médica, cirurgia, exames, internação, etc. Muito da lógica dos bancos de dados do SUS ainda guarda influência dessa racionalidade. O mercado remunera por ato, por procedimento, assim todo ato ou procedimento deverá ser re-gistrado e arquivado para eventual auditoria: Inamps... Essa cultura foi um pouco modificada pela introdução de algumas recomendações mais amplas de alguns programas de saúde pública: saúde da família, hipertensão arterial, etc.
O outro fator influente na gênese do núcleo de informação e de informática foi a própria Saú-de Pública tradicional, entre nós rebatizada e res-suscitada com o inequívoco nome de “Vigilância em Saúde: vigilância sanitária e epidemiológica”. Pois bem, parte da tradição de nosso modo de acumular e de registrar informações decorre dessa tradição: doenças de notificação compulsória, dados cartoriais sobre produção e consumo de produtos e sobre organização do espaço urba-no. Saúde Pública e sua ligação umbilical à busca de legitimação social e política do Estado brasi-leiro. Além disso, a Saúde Pública no Brasil tem se constituído muito em função de apoiar a cons-trução de uma base sustentável para o cresci-mento econômico e organização capitalista da produção.
A gênese da área de informação e informáti-ca, suspeito, foi constituindo-se segundo houve necessidade de sistematizar esse tipo de dados – procedimentos a serem pagos e informação para a vigilância.
Por último, o terceiro comentário: um assunto que não é central na estrutura do ensaio em dis-cussão, mas que julgo conveniente insistir sobre o tema. Não acredito na possibilidade de consti-tuir-se uma “ciência da saúde” por contraposi-ção a uma “ciência da doença”. O objeto de co-nhecimento e de intervenção de todo o campo da saúde – inclusive o da Saúde Coletiva ou da Pro-moção à Saúde – inevitavelmente, guarda
refe-rência ao risco, à vulnerabilidade, à doença e à morte. Do que necessitamos não é de fugir desse elemento concreto, mas de redefinir o sentido e sign ificado desses con ceitos, particularm en te quando reconhecemos que estão encarnados em sujeitos – indivíduos e coletividades. Penso que saúde é o objetivo do conhecimento e do traba-lho em saúde, sua finalidade. Nosso campo, por-tanto, está condenado a lidar com processo de co-produção de saúde/doença/risco e vulnerabi-lidade. Não há como fugir dessa fragilidade da vida, não é conveniente inventar-se linhas de fuga para este outro paradoxo.
Bem, me desculpem qualquer coisa... Foi um prazer, uma oportunidade para aprender de ma-neira estimulante e lúdica, ler e pensar e comentar o trabalho de vocês. Parabéns e obrigado.
Caleidoscópio info-interdisciplinar: discurso no entremeio
Info-interdisciplinary kaleidoscope: midfield discourse
Evelyn Goyannes Dill Orrico 4
O artigo para debate objetiva compreender a gê-nese dos limites atuais das práticas de Informa-ção e Informática em Saúde, partindo do pres-suposto de que essa práxis informacional não dá conta da complexidade dos processos que en-volvem o trinômio saúde-doença-cuidado.
As autoras atribuem à limitação dessas prá-ticas a dificuldade que o Estado brasileiro tem em ampliar sua capacidade de resposta para a resolução dos problem as em saúde porque o processo que envolve Informação e Informática em Saúde integra questionamentos mais amplos sobre os modos de produção de conhecimento na contemporaneidade do que os que foram até o momento considerados. A novidade que apre-sentam repousa na proposta de atribuir papel relevante à crise de paradigmas, propondo esta-belecer o que denominam intercampo de infor-mação e informática em saúde.
4 Departamento de Processos Técnico-Documentais,
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Essa proposta pressupõe a implantação de uma política de informação e informática em saúde que se paute em uma organização em rede, composta por três tipos de elementos: espaços de ensino e pesquisa; espaços governamentais e de administração em saúde; e espaços de con-quista e exercício da cidadania. Além disso, essa política, controlada socialmente, teria como fi-nalidade contribuir para estabelecer um proces-so democrático emancipador do homem brasi-leiro que provocaria uma gestão qualificada do Sistema Único de Saúde, de fato comprometido com a melhoria da saúde da população.
A proposta é oportuna e propõe interlocu-ção entre três campos distintos, o que me sugere, a título de abrir o debate, introduzir a análise sobre dois conceitos que possam fomentar a dis-cussão: rede e discurso.
Rede e discurso
Etimologicamente1 falando, rede significa um
tipo de entrelaçamento de fios com o qual as mu-lheres na Renascença prendiam os cabelos, ou usavam sob a camisa, à guisa de soutiens. Esse significado expandiu-se, o que em Semântica sig-nifica que o termo ampliou seu quadro de signi-ficado para designar os fios têxteis de uma lha. Ampliou-se ainda mais para designar a ma-neira como se fixam troncos no solo e se tran-çam os fios entre eles de modo a estabelecer uma resistência para barragens.
Continuando essa expansão de significado, no século XIX, o conceito de rede passou a repre-sentar o entroncamento de canais com água, com o intuito de abastecer a cidade de Paris, e daí generalizou-se para uma concepção cada vez mais abstrata, até chegar a se constituir como um pen-samento da tecnologia francesa.
Esse conceito ajudou a compreender e a visu-alizar várias áreas do conhecimento, expandin-do o significaexpandin-do para um campo ainda mais abs-trato do que o anterior e passou a designar uma forma de gerenciamento de governos.
O conceito de rede implica um espaço repre-sentacional no qual há uma pluralidade de pon-tos que se ligam por uma pluralidade de ramifi-cações sem que, por definição, nenhum ponto seja privilegiado em relação a outro. Cada um de seus entroncamentos abre possibilidades de cri-ar outras ligações e assim sucessivamente.
Essa configuração de troncos — ou nós — nos quais passam fios — ou elos — que os ligam a outros troncos, assim sucessivamente repre-sentando a imagem de uma rede de
comunica-ção, viabiliza representação ideal para uma reali-dade que se pretende não hierárquica. O proble-ma, a nosso ver, reside exatamente aí.
O que percebemos em nossas análises junto a grupos de pesquisa estruturados em rede é que essa é uma configuração idealizada, mas na prá-tica alguns nós atuam como pólos de concentra-ção de força, implicando uma organizaconcentra-ção hie-rárquica mesmo que não explicitamente deter-minada. No caso em tela, como os três nós en-volveriam a) espaços de ensino e pesquisa; b) espaços governamentais e de administração em saúde; e c) espaços de conquista e exercício da cidadania, que, por si só, já estão submetidos a correlações de forças diferentes, pode-se supor que a organização hierárquica ocorreria de modo ainda mais evidente.
Um segundo conceito a ser aqui discutido é o de discurso que, por via de conseqüência, encon-tra-se no cerne, não só dessa, mas de todas as organizações.
Segundo Possenti2, a análise da palavra
dis-curso no campo das ciências humanas deman-daria levar em conta aspectos históricos, antro-pológicos sociológicos, além dos cognitivos, to-dos eles entrelaçato-dos com a língua. Esse autor aponta ainda que a produção discursiva ocorre-ria em situações, por ele denominadas de “con-cretas”, conferindo uma garantia de realidade a essa produção. Fazemos a correlação entre a pro-posta de intercampo de informação e informática em saúde com o que diz Possenti porque estamos refletindo sobre um a situação de inform ação para resolução de problemas concretos de am-plo segmento da sociedade.
A prevista interlocução entre três cam pos distintos nos remete à proposta de Foucault3 a
respeito dos mecanismos de interdição do dis-curso que, em última instância, regulam a sua própria produção, por limitarem o que deve ser dito e por quem durante os processos de pro-dução discursiva.
Considerando a organização em rede, e con-siderando ainda nossa contemporânea configu-ração de produção de saberes, quais seriam, en-tão efetivamente, os nós da rede com suficiente legitimação para implantar os fundamentos de construção de políticas públicas?
Como, então, sair desse ciclo aparentemente vicioso?
As contribuições de Bakhtin
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cos e epistem ológicos que estão presentes na construção histórica das redes de inform ação em saúde, que por sua vez se constituem pela informação científica e tecnológica em saúde, pela inform ação e inform ática em sistem as e serviços de saúde e pelas informações sociopo-líticas e econ ôm icas, e por isso am pliam , ao mesmo tempo em que conformam, um espec-tro amplo de discussão.
Chamou-me particularmente a atenção o tre-cho em que as autoras comentam sobre a infor-mação vir sendo tratada de modo desvinculado do contexto histórico, político-social-econômi-co. Desse modo, a ‘informação em saúde’ res-tringir-se-ia ao âmbito da tecnicidade, apresen-tada como ‘despolitizada’ e ‘neutra’. Outra infor-mação que também despertou a atenção foi a seguinte: quando as variáveis socioeconômicas estão previstas na coleta de dados, elas são as que apresentam maiores problemas de qualida-de, certamente por não serem adequadamente trabalhadas, ou levadas em conta.
Essas afirmações me fizeram recorrer a Mi-khail Bakhtin, autor russo, do início do século XX, mas que hoje tem tido sua formulação forte-mente considerada em virtude da atualidade de suas observações e discussões teóricas. Ele pode nos ajudar a clarear a discussão, em virtude de propor um modelo de compreensão da lingua-gem que pressupõe sua inserção em contexto sócio-historicamente situado.
Se estamos tratando de um trinômio que en-volve a ação de informar, é preciso considerar o discurso sócio-historicamente contextualizado. A proposta de Bakhtin4 é anterior à de Foucault,
mas as duas dialogam entre si. No entanto, o que me faz considerar Bakhtin o interlocutor preferencial, ao invés de Foucault, é perceber que, por viver em período histórico-político particu-larmente revolucionário, a Rússia do início do século XX, ele propôs que, para dizer algo novo, a forma de dizer também haveria de ser nova.
É essa orientação que o aproxima da pro-posta pro-posta em debate: estamos em uma nova configuração de produção do conhecimento, é preciso que a forma discursiva dessa produção seja igualmente diferente e nova.
Informação-formação
Não é de hoje que conhecemos as distorções históricas dos aspectos de saúde brasileiros e as tentativas em trazer à cena aquele que é o mais diretamente atingido, a sociedade. Nessas tenta-tivas, colocam -se em jogo várias “realidades”,
advindas das diversas comunidades discursivas que entram no jogo comunicacional. No texto em debate, a força é colocada na inform ação voltada para os organismos gestores e, nesse caso, a informação pode ser admitida, então, como informação voltada para a gestão.
O que se pode apresentar como contribuição para o debate é a utilização de informação como
formação, aqui entendida como meio de
com-preensão não só da realidade, mas das perspecti-vas de solução. Deixemos claro que estamos pen-sando em formação voltada para os atingidos pela gestão da saúde, ou seja, a sociedade, visto que ela está no bojo das discussões sobre saúde, a partir da proposta introduzida pelo SUS.
A partir do ingresso e da possibilidade real de interferência de novos agentes nas decisões sobre as políticas públicas de saúde, os discursos pro-duzidos pelos distintos agentes sofrem distintas formas de interdição.
Discussão
As autoras apontam com muita propriedade que um ponto de partida é a reconstrução do momento em que acontece a diferenciação entre a saúde entendida como dimensão fundamental da vida humana e saúde entendida como setor especializado e institucionalizado do conhecimen-to. Isso reforça a proposta que pretendemos aqui agregar, qual seja a da correlação entre a cons-trução de modelos significativos que estejam só-cio-historicamente contextualizados.
Desse modo, à afirmação de que o regime de informação que estabelece os modos preferenci-ais de definição, preservação, transmissão e uso das informações em saúde teria, como resultan-te, uma dupla orientação epistemológica e políti-ca, gostaríamos de observar um outro aspecto.
Acreditamos, ao contrário, que esse regime é fruto, ele mesmo, de novas configurações episte-mológicas ainda hegemônicas no campo da saú-de e que impesaú-dem a asaú-dequada re-inserção nos novos paradigmas epistemológicos.
Considerações intermediárias
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signos e práticas curativas, o sistema de infor-mação mostra-se como fruto do modelo antigo, mas ainda hegemônico. Em tempos de novas e mais efetivas práticas de produção de saberes, e sobretudo em meio à atual configuração epistê-mica, a construção do significado compartilha-do entre os agentes envolvicompartilha-dos no processo in-formacional é condição sine qua non para o su-cesso. Assim, um sistema que descarte a inserção dos imbróglios discursivos socialmente contex-tualizados tenderá a não atender as expectativas. Nesse sentido, reforço a com preensão de que conhecer o universo discursivo dos agentes en-volvidos é o passo fundamental nesse processo informacional.
Esse universo discursivo deve ser reforçado pelas informações em saúde dirigidas de modo adequado para a sociedade civil. Só re-constru-indo o discurso estabelecido nas zonas de poder é que a sociedade civil organizada poderá — de fato — exercer o seu papel.
Concordamos, portanto, que deve haver uma reformulação da matriz cognitiva da informa-ção em saúde a partir do reconhecimento dos modos de construção, diferenciação e interação entre as inform ações científico-tecnológicas e propomos que ela deva perpassar a reformula-ção discursiva dos três segmentos sociais direta-mente envolvidos.
Cumprimentando as autoras pela oportuni-dade do diálogo, agradeço de público honrada-mente o convite.
Referências
Guillerme A. Réseau: genèse d’un mot. Les Cahiers de M édiologie, n. 3: “Anciennes nation s, Nouveaux réseau x”. [acessado 2001 Abr 26]. Disp on ível em : http://www.m ediologie.org/collection /03_n ation s/ vallet-gu illerm e.pdf
Possen ti S. Teoria do discurso: um caso de m últplas r uptur as. In: Mussalim F, Ben tes AC, organ i-zadoras. Introdução à lingüística: fundam entos epis-tem ológicos (volum e 3). São Paulo: Cortez; 2004. Foucault M. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 2a ed. São Paulo: Loyola; 1996.
Bakhtin M. Marxismo e filosofia da linguagem. 9a ed.
São Paulo: H ucitec; 2002. 1.
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Informação, saúde, transdisciplinaridade e a construção de uma epistemologia social
Information, health, transdisciplinarity and the construction of a social epistemology
Regina Maria Marteleto 5
Introdução
Os estudos em informação e comunicação na área de saúde, em que pesem críticas neles incorpora-das sobre a perspectiva difusionista e linear emis-sor-receptor que prevalece nos modelos constru-ídos para a orientação das políticas e ações de saúde, ainda se pautam muitas vezes por uma lógica de oferta informacional. Pode-se inferir que existem duas motivações principais para que se mantenha a visão da provisão de informações no setor de saúde e na sociedade em geral.
Em primeiro lugar, as novas tecnologias ele-trônicas e digitais aumentam as possibilidades de organização, tratamento, recuperação e uso dos conhecimentos, o que acarreta uma abun-dância informacional que parece favorecer a vi-são unilateral dos processos de comunicação/in-formação. A segunda motivação dessa prevalên-cia estaria relacionada à visão do que seja ciênprevalên-cia presente no imaginário científico e social. De fato, e apesar da expansão e importância do conheci-mento científico para diferentes esferas e atores sociais nos dias de hoje, ainda se faz presente no campo científico e nas políticas de ciência e tec-nologia uma visão positivista e elitista da ciência e das possibilidades de apropriação dos seus pro-dutos e informações pela sociedade.
Nesse escopo, o artigo de Ilara Moares e Maria Nélida Gómez, “Informação e Informáti-ca em Saúde: Informáti-caleidoscópio contemporâneo da saúde”, partindo do pressuposto da form ação de um intercampo de informação e informática em saúde na contemporaneidade, composto por processos sócio-políticos e epistemológicos, pre-tende estudar as possibilidades de uma ação in-formacional no campo da saúde, capaz de am-pliar as respostas do Estado na m elhoria das condições de vida da população brasileira.
5 Programa de Pós-Graduação em Ciência da