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Entre mídias e médiuns : o grupo transcomunicação instrumental da Casa do Jardim, em Porto Alegre

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

Gabrielle Bazacas Cabral

ENTRE MÍDIAS E MÉDIUNS: O grupo transcomunicação instrumental da Casa do Jardim, em Porto Alegre

PORTO ALEGRE 2020

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Gabrielle Bazacas Cabral

ENTRE MÍDIAS E MÉDIUNS: O grupo transcomunicação instrumental da Casa do Jardim, em Porto Alegre

Dissertação de Mestrado em Antropologia Social apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Orientador: Prof. Dr. Ari Pedro Oro

PORTO ALEGRE 2020

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

REITOR

Rui Vicente Oppermann

VICE-REITORA Jane Fraga Tutikian

DIRETORA DO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS Claudia Wasserman

VICE-DIRETOR DO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS Hélio Ricardo do Couto Alves

COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

Arlei Sander Damo

CHEFE DA BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANIDADES Maycke Young de Lima

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Gabrielle Bazacas Cabral

ENTRE MÍDIAS E MÉDIUNS: O grupo transcomunicação instrumental da Casa do Jardim, em Porto Alegre

Dissertação de Mestrado em Antropologia Social apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Porto Alegre, 28 de agosto de 2020 Resultado: Aprovado

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Ari Pedro Oro (orientador)

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Prof. Dr. Emerson Alessandro Giumbelli

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Prof. Dra. Luciana Fernandes Marques

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Prof. Dr. João Frederico Rickli

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AGRADECIMENTOS

O trabalho que você tem em mãos foi composto em grande parte durante a pandemia de coronavírus, de modo que já sou muito agradecida pelo fato de ele ter sido finalizado. Sem minha família e amigos isso não teria sido possível! Agradeço principalmente aos meus pais e irmã pela paciência e suporte. Dani, minha irmã, foi responsável por doses diárias de carinho e cafeína, trazendo sempre uma xícara de café enquanto eu escrevia.

Agradeço também aos professores que me acompanharam desde a educação básica. Em tempos como estes, ser professor é um ato de resistência. Agradeço aos professores do ensino básico pelo seu papel em minha formação como leitora. Ao meu orientador, Ari Oro, pela confiança e por acreditar na minha pesquisa. Aos professores que fazem parte da banca avaliadora deste trabalho. Aos demais professores do PPGAS, especialmente a Jean Segata. A Gustavo Chiesa e Luz Brito pelos comentários de incentivo e por proporcionarem espaços tão ricos de troca durante os eventos em que nos encontramos.

Aos meus amigos (que também são professores) Jorge Scola e Bruna Barcelos. Ao Jorge, agradeço imensamente pelos comentários sobre este trabalho, por nossas conversas que vão além de antropologia e por tornar o PPGAS um lugar mais agradável. Bruna, agradeço muito por você fazer parte da minha vida. À querida Mariana Picolotto pelas longas conversas por telefone e pelas palavras de incentivo. À minha amiga e teacher, Maria Gabriela Seibel, agradeço especialmente pela ajuda com o abstract deste trabalho. Agradeço também a Monique Medeiros por me receber em São Paulo e por nossas conversas sobre marxismo,

filmes de terror e redes sociais.

Agradeço imensamente a acolhida do grupo TCI da Casa do Jardim. Angela Nicolaidis, Jussara Correia e Paulo Schamann, agradeço imensamente pelo aprendizado proporcionado. Agradeço também às transcomunicadoras que fizeram parte da pesquisa, especialmente Suely Pinheiro, Simone Santos, Diucleia Tartaia e Sonia Rinaldi. Agradeço a equipe da Folha Espírita e a Federação Espírita do Rio Grande do Sul, especialmente a Antônio Nascimento e Angela Oyarzábal.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código 001

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E é morrendo que se vive Para a vida eterna (Oração de São Francisco de Assis)

When I'm not there In spirit I'll be there (Depeche Mode – Shake the Disease)

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RESUMO

O presente trabalho acompanha a formação de um grupo de estudos em transcomunicação instrumental na Entidade Espírita Assistencial Casa do Jardim, na cidade de Porto Alegre, RS. A transcomunicação instrumental propõe a comunicação com espíritos a partir de mediadores tecnológicos, como rádios, gravadores, televisores e celulares. Os praticantes buscam contatar entes queridos falecidos, assim como fornecer uma validação técnica ao contato com os mortos. A Casa do Jardim foi fundada em 1987 após o rompimento de seu fundador, Dr. José Lacerda de Azevedo, com a Federação Espírita do Rio Grande do Sul (FERGS) por divergências a respeito da Apometria, prática terapêutica formulada por Dr. Lacerda e praticada no Hospital Espírita de Porto Alegre (HEPA). A introdução de novas formas de mediação com o mundo espiritual, como a Apometria e a TCI, promove polêmica no meio espírita a respeito de sua validade, chegando a ser desestimulada pela ortodoxia espírita representada pelas federações. Conforme Birgit Meyer, as mídias – entendidas em um sentido amplo que vão das “coisas” ao corpo humano – possuem um papel fundamental na produção de uma sensação de presença do extraordinário, objetivo último da religião para essa autora. Certas configurações autorizadas de mídias são compartilhadas dentro de determinadas comunidades religiosas, sendo responsáveis por orientar os sentidos dos fiéis e funcionando também como performances que tornam presentes o que mediam. Assim, a introdução de novas mídias e práticas de mediação ocasiona tensões e confrontos. Por meio de uma abordagem etnográfica, o presente trabalho tem como objetivo compreender as tensões causadas pela introdução de novas formas de acessar o mundo espiritual, a partir do grupo TCI da Casa do Jardim. Assim, pretende-se compreender a transcomunicação instrumental no contexto da Casa do Jardim e, também, a inserção da TCI e da Apometria no movimento espírita brasileiro em diferentes momentos.

Palavras-chave: Transcomunicação instrumental. Apometria. Espiritismo. Abordagem material da religião.

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ABSTRACT

This work accompanies the development of a group of studies in instrumental transcommunication (ITC) at Casa do Jardim, in the city of Porto Alegre, RS. Instrumental transcommunication proposes communication with spirits through technological mediators, such as radios, recorders, televisions, and cell phones. Practitioners seek to contact deceased loved ones, as well as provide technical validation to contact with the dead. Casa do Jardim was founded in 1987 after its founder, Dr. José Lacerda de Azevedo, split with Federação Espírita do Rio Grande do Sul (FERGS) due to differences regarding Apometry, a therapeutic practice formulated by Dr. Lacerda and practiced at Hospital Espírita de Porto Alegre (HEPA). The introduction of new forms of mediation with the spiritual world – such as Apometry and ITC, arouses controversy in the spiritist community concerning its validity to the extent of being discouraged by the spiritist orthodoxy represented by the federations. According to Birgit Meyer, media - understood in a broad sense that ranges from "things" to the human body - have a fundamental role in producing a sense of presence of the extraordinary, which is the ultimate goal of religion for the author. Certain authorized media configurations are shared within certain religious communities, where they are responsible for guiding the senses of the faithful and also work as performances that bring into presence that which they mediate. As follows, the introduction of new media and mediation practices cause tensions and conflicts. Through an ethnographic approach, this work with the ITC group of Casa do Jardim, aims to understand the tensions caused by the introduction of new ways to access the spiritual world. Thus, this study intends to comprehend the instrumental transcommunication in the context of Casa do Jardim and also the insertion of ITC and Apometry in the Brazilian spiritist movement at different points in time.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Primeira chamada do “Clube de Transcomunicadores” 37

Figura 2 – O castelo de Júlio Verne 43

Figura 3 – Pausa na TCI 45

Figura 4 – Palestra de Suely Raimundo na Casa do Jardim 55

Figura 5 – Sala de transcomunicação instrumental de Suely 70

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Artigos de Hernani Guimarães Andrade para a Folha Espírita (déc. 1980) 30 Quadro 2 – Edições da Folha Espírita que tratam sobre transcomunicação (1990 e 1991) 36 Quadro 3 – Principais grupos no Facebook conforme número de membros 49

Quadro 4 – As diferentes concepções do ser humano 93

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LISTA DE SIGLAS

CJ Casa do Jardim

FE Folha Espírita

FEB Federação Espírita do Brasil

FERGS Federação Espírita do Rio Grande do Sul HEPA Hospital Espírita de Porto Alegre

TCI Transcomunicação Instrumental

RITI/INIT Rede Internacional de Transcomunicação Instrumental/Internacional Network for Instrumental Transcommunication

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 13

1 TRANSCOMUNICAÇÃO INSTRUMENTAL NO BRASIL ONTEM E HOJE ... 19

1.1 A TRANSCOMUNICAÇÃO INSTRUMENTAL NO BRASIL ONTEM ... 19

1.1.1Primeiros registros no Brasil ... 21

1.1.2 “Telefone para o Além” ... 24

1.1.3A era da Folha Espírita (1970-1990) ... 29

1.1.4 Anos 1990 e a participação de Sonia Rinaldi ... 34

1.1.5 O emergir das críticas ... 42

1.2 A TRANSCOMUNICAÇÃO INSTRUMENTAL NO BRASIL HOJE ... 48

2 UM GRUPO ESPÍRITA DE TRANSCOMUNICAÇÃO INSTRUMENTAL ... 51

2.1 OS ESTUDOS NA CASA DO JARDIM ... 51

2.2 A TRANSCOMUNICAÇÃO NA CASA DO JARDIM ... 57

2.2.1 “Como sempre no início das transcomunicações… demora muito para agilizar” .. 66

2.2.2O grupo da Casa do Jardim pede contato ... 76

3 CASA DO JARDIM: EM BUSCA DE UM ESPIRITISMO CIENTÍFICO ... 84

3.1 PARA ALÉM DA “HISTÓRIA OFICIAL” ... 88

3.1.1 “Fatos que se repetem levam a leis” ... 92

3.1.2A Apometria na prática: aportes etnográficos ... 96

3.1.3 A saída do HEPA e tensões com a FERGS ... 102

4 APOMETRIA E TRANSCOMUNICAÇÃO INSTRUMENTAL: CONHECIMENTOS EM REDE ... 108

4.1 MAPEANDO CONTROVÉRSIAS, TECENDO REDES ... 109

4.2 RELIGIÃO COMO MÍDIA: POR UMA ABORDAGEM MATERIAL ... 116

4.3 DA APOMETRIA A TRANSCOMUNICAÇÃO: A QUESTÃO DO MEIO E AS FORMAS SENSORIAIS ... 123

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 130

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INTRODUÇÃO

Primeiramente, esclareço o que significa “transcomunicação instrumental”. O termo refere-se a episódios em que objetos tecnológicos de uso cotidiano, principalmente eletrônicos voltados às telecomunicações, comportam-se como receptores de mensagens cuja origem é desconhecida. Em outras palavras, gravadores de voz, rádios, televisores, telefones e smartphones, câmeras filmadoras e fotográficas, computadores, entre outros, passam a ter comportamentos atípicos, em que são observados sons ou imagens que não deveriam lá estar. Os transcomunicadores são pessoas que procuram deliberadamente esse tipo de contato, crendo estarem recebendo mensagens de entidades extracorpóreas ou extraterrestres.

A nomenclatura teve origem na década de 1980, a partir das observações do físico alemão Dr. Ernst Senkowski. O Dr. Ernst Senkowski ficou interessado nos fenômenos de gravações de vozes misteriosas que aconteciam na Europa em meados da década de 1970 e decidiu investigá-las cientificamente. Convencido de que se tratava de anomalias eletromagnéticas causadas por consciências extracorpóreas, propôs a nova nomenclatura para diferenciar essas ocorrências dos fenômenos mediúnicos, adicionando o prefixo “trans”, que significa “para além”, “através”. O termo pode também ser entendido como uma aglutinação de “transcendente” e “comunicação” (NUNES, 1990, SCHÄFER, 1997, LOCHER e HARSCH, 1997).

Dessa forma, o termo criado por Senkowski designa o uso desses aparelhos eletrônicos comuns no dia-a-dia, como gravador, rádio, televisão, câmeras filmadoras e fotográficas, telefones, entre outros, na tentativa de contatar consciências extracorpóreas. Acredita-se que esses aparelhos, principalmente quando usados em conjunto, oferecem energia que os comunicantes seriam capazes de modular – ou “plasmar”, como dizem os transcomunicadores –, formando vozes e imagens.

Existem diversas formas de captação, desde as mais simples, como ligar um gravador de voz e fazer perguntas ou fotografar pedaços de papel laminado, até as mais complexas que envolvem aparelhos e softwares desenvolvidos para esse fim. Em geral, os praticantes fazem gravações de áudio ou imagem tendo como base a geração de ruído ou estática de outro aparelho. Um rádio é sintonizado fora de estação e o ruído é captado por um gravador, enquanto o operador pede o contato a entidades que possam ajudá-lo a concretizar a comunicação. De forma semelhante, o praticante pode direcionar uma câmera filmadora para a tela de uma televisão. As gravações geradas por essas técnicas são transferidas para o computador e passam por um longo processo de análise em programas de edição de áudio e

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vídeo, sendo examinadas minuto a minuto, ou quadro a quadro, a procura de possíveis provas materiais destes contatos.

No Brasil, o fenômeno parece manter relações estreitas com o espiritismo kardecista. O Espiritismo pode ser compreendido enquanto um sistema tríplice que concatena filosofia, ciência e religião, cujo alicerce encontra-se na afirmação de que os seres humanos sobrevivem à morte do corpo físico. Tal certeza é reafirmada por meio do testemunho dos Espíritos dos mortos que se comunicam por meio de médiuns, isto é, pessoas que possuem certa sensibilidade que os permite perceber o mundo Além. É neste sentido que Marion Aubrée e François Laplantine concebem o Espiritismo enquanto “teoria da comunicação generalizada” (2009, p. 61). A transcomunicação instrumental, enquanto forma de acesso ao mundo dos espíritos, é constantemente englobada pela doutrina de Allan Kardec, recebendo explicações à luz da hipótese espírita, qual seja: acredita-se que os espíritos dos mortos são capazes de modular a energia dos vivos para se comunicar a partir de instrumentos tecnológicos.

O presente trabalho acompanha um pequeno grupo de espíritas interessados em realizar estudos e experimentos práticos em transcomunicação instrumental. O grupo ao qual me refiro surgiu na Entidade Espírita Assistencial Casa do Jardim, localizada na Rua Beck, 129, bairro Menino Deus, em Porto Alegre/RS. Enquanto estudantes e trabalhadores da Casa do Jardim, os participantes do grupo já haviam tido contato com a TCI por meio dos seminários temáticos realizados pelo Curso de Educação Espiritual e Mediúnica oferecido pela entidade. Assim, começaram a se mobilizar para construir um grupo de pesquisa sobre o tema que pudesse atuar dentro do centro espírita.

A Casa do Jardim foi fundada pelo médico espírita Dr. José Lacerda de Azevedo, primeiramente como um grupo de atendimento dentro do Hospital Espírita de Porto Alegre (HEPA). Dr. Lacerda foi responsável pelo desenvolvimento da Apometria, uma técnica de desdobramento com propósito terapêutico que tinha como objetivo projetar astralmente o paciente para o tratamento em hospitais do mundo astral. A Federação Espírita do Rio Grande do Sul (FERGS), que administrava o HEPA, no entanto, não concordou com as atividades que o grupo de Lacerda desempenhava, considerando a Apometria como uma prática antidoutrinária. Assim, Dr. Lacerda e seu grupo foram convidados a se retirar das dependências do HEPA.

Com o objetivo de causar impacto positivo na saúde dos pacientes, a Apometria prescreve o desdobramento de corpos espirituais e o seu envio para o tratamento no mundo astral. Assim é possível identificar doenças que se encontram não só no corpo físico dos consulentes, mas também em seus corpos sutis. O tratamento apométrico ainda permite que se

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localizem espíritos obsessores que causam mal aos encarnados, colocando-os em contato com o grupo de atendimento que os encaminha para o tratamento adequado. Segundo seus praticantes, o procedimento de desdobramento se produz a partir da manipulação de energia efetuada pelo grupo de médiuns curadores e por equipes de desencarnados que os auxiliam. Tal manipulação de energia também permite a construção de campos de proteção que bloqueiam a ação nefasta de entidades trevosas.

Por seu histórico de rompimento com a FERGS, a Casa do Jardim incentiva o estudo e a prática de atividades que estão para além das recomendações da Federação, como reiki, homeopatia, constelação familiar, cromoterapia, entre outros. Os vários grupos de atendimento espiritual que compõem a Casa do Jardim circulam entre combinações destas práticas com a Apometria. A inserção de um grupo de transcomunicação instrumental, no entanto, foi recebida com desinteresse e até mesmo com desconfiança pelos demais membros da Casa do Jardim.

Aliando-se a uma perspectiva teórica que busca atentar para uma abordagem material da religião, em que estão em jogo configurações autorizadas de mídias em um contexto religioso que orientam o envolvimento dos sentidos dos fiéis, o presente trabalho tem como objetivo compreender as tensões causadas pela introdução de novas formas de acessar o mundo espiritual, a partir do grupo TCI da Casa do Jardim. Assim, pretende-se compreender não só a transcomunicação instrumental no contexto da Casa do Jardim, mas também a inserção da TCI e da Apometria no movimento espírita brasileiro em diferentes momentos.

Dessa forma, o foco deste trabalho não é o espiritismo “convencional” praticado pelos centros espíritas federados, mas as controvérsias causadas pela introdução de novas mídias que prescrevem novos modos de comunicação com o mundo transcendente. Em outras palavras, o espiritismo é aqui entendido como uma forma estabilizada de contato com o mundo espiritual, ou seja, enquanto detentor das formas legitimadas de comunicar-se com os espíritos. A partir do trabalho de campo no grupo TCI da Casa do Jardim, nosso foco são duas formas inovadoras de contato – a Apometria e a transcomunicação instrumental –, por vezes causadoras de tensão entre os adeptos de um espiritismo mais “convencional”.

A perspectiva teórica adotada por esta pesquisa, e discutida no quarto capítulo deste trabalho, entende a vida social enquanto um processo em que atores heterogêneos emaranham-se em redes de relações. Assim, sigo os ensinamentos de Bruno Latour (2012) em sua proposta de mapear as controvérsias que tornam o social cognoscível. Tornar os não-humanos – isto é, animais, objetos e demais materialidades cuja participação nas relações

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sociais não pode ser ignorada – presentes nas descrições é outro intento deste trabalho. Dessa forma, aposto em uma abordagem que leva em consideração as materialidades presentes nas práticas religiosas. Entendo, com Birgit Meyer, que a religião necessita materializar sua relação com o transcendente para gerar a sensação de extraordinário vivenciada pelos fiéis através dos sentidos. Dessa forma, a religião funciona como uma mídia (STOLOW, 2005) por um processo dialético de produção da realidade social (ZITO, 2008a) – ou em outras palavras, por meio de um processo de mediação.

Em relação à perspectiva teórica, é importante ressaltar ainda que tive a oportunidade de conversar pessoalmente com Birgit Meyer, em maio de 2019, durante a sua visita a Porto Alegre, e expor minhas ideias a respeito do meu campo. Na época considerava que a importância de seus estudos para meu campo residia principalmente na presença dos objetos e em como estes eram capazes de materializar o sagrado por meio de relações de mediação. A antropóloga, no entanto, me chamou atenção para as relações de poder que atravessam as mídias dentro do campo religioso, isto é, para as disputas em torno das formas sensoriais e os modos autorizados de experienciar o religioso. Ela me apontou o fato de que apenas alguns kardecistas estavam interessados em novas práticas, enquanto outros, não. Esta conversa acabou por delinear o objeto de minha pesquisa, passando a observar as controvérsias e tensões que acompanham a inserção de novos mecanismos de mediação que produzem nos fiéis uma sensação de presença do extraordinário. Dessa forma, entendo que a transcomunicação instrumental, assim como a Apometria, tornam-se locais privilegiados para pensarmos as relações de mediação e os sentidos no campo religioso e as disputas sobre eles.

A presente pesquisa foi realizada tendo como horizonte metodológico as ideias de Tim Ingold (2015, 2016, 2019) sobre antropologia enquanto um estudo com as pessoas. Em outras palavras, entendo que a antropologia se faz em relação dialógica, participativa e de aprendizado, que nos permite perceber outras possibilidades de ser no mundo. Outra questão metodológica que destaco consiste no uso, nesta pesquisa, de materiais de acervo documental. Sem pretensões historiográficas, a utilização de documentos por este trabalho procurou estabelecer uma relação dialógica e de aprendizado por meio de uma vivência de pesquisa distinta da pesquisa realizada em campo. Procurou-se, assim, construir uma descrição etnográfica a partir deste contexto de natureza e temporalidade distinta encontrada nos acervos, constituindo, assim, um trabalho de campo etnográfico a partir da experiência com documentos (CUNHA, 2004).

Minha inserção em campo se deu a partir da continuidade de uma pesquisa anterior. Meu primeiro contato com a transcomunicação instrumental ocorreu em 2015, quando

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comecei a pesquisa para o trabalho de conclusão do curso de Ciências Sociais, defendido em 2017. Na ocasião, a pesquisa voltou-se às práticas da transcomunicadora Suely Pinheiro, a qual, no seu esforço em lidar com o luto pela morte do filho, tangenciava práticas religiosas tradicionais que poderiam fornecer contato semelhante com o mundo espiritual. Isso porque Suely não se conformava com as respostas fornecidas pelas religiões, preferindo a “alternativa de contato” fornecida pela transcomunicação. Dessa forma, o trabalho de conclusão apresentado à época não abordou a questão do espiritismo, o que foi apontado pela banca examinadora de então.

Em julho de 2018, Suely convidou-me para assistir sua palestra na Casa do Jardim. Havia lá grande interesse na criação de um núcleo de pesquisas em transcomunicação instrumental. Assim, entrei em contato com os interessados na criação do grupo e fui convidada a participar de suas reuniões, no intuito de que eu pudesse auxiliá-los nesta nova empreitada. É preciso salientar que o fato de eu não ser espírita foi, no começo, um empecilho para minha participação. Posteriormente, e por indicação de Suely, o grupo me aceitou enquanto uma especialista em transcomunicação instrumental – posição que me foi atribuída, creio eu, por um mal entendido. Considero, porém, que o grupo TCI mais me ensinou sobre a espiritualidade do que eu os ensinei sobre transcomunicação.

O grupo iniciou suas atividades no final de setembro de 2018. Acompanhei as reuniões mensais que ocorreram de setembro a dezembro daquele ano, voltadas para o estudo de literatura especializada sobre transcomunicação instrumental e sua análise à luz do espiritismo. Os encontros, coordenados pela médica e homeopata Angela Nicolaidis1, tinham o formato de seminário de leituras e atraiam poucos interessados, sendo em média cinco pessoas por encontro. As atividades práticas inicialmente planejadas para iniciarem em março de 2019 esbarraram em uma série de dificuldades técnicas e de logística. Sanados todos os empecilhos, o grupo iniciou as experiências práticas de transcomunicação instrumental em 20 de agosto de 2019, que acompanhei semanalmente até 24 de setembro. No total, participei de 14 encontros do grupo TCI da Casa do Jardim, entre 2018 e 2019.

Além da participação nas atividades da Casa do Jardim, o trabalho de campo se estendeu para a Federação Espírita do Rio Grande do Sul (FERGS), onde realizei entrevista com o vice-presidente da Área Doutrinária, Antônio Nascimento, e realizei buscas no acervo da Área de Pesquisa e Documentação, com auxílio da bibliotecária Ângela Oyarzábal. A busca de informações sobre a transcomunicação instrumental no Brasil me levou à cidade de

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São Paulo, em visita ao acervo do jornal Folha Espírita – periódico que manteve os espíritas informados sobre a TCI de 1974 até meados dos anos 2000. Também foram feitas entrevistas com Sonia Rinaldi, do IPATI, e com Simone Santos, do grupo TCI Seattle, entre outras conversas informais com praticantes da transcomunicação instrumental.

Apesar de parecer um conjunto pequeno de participantes, ao desdobrar o mundo destes atores, expandimos uma rede de relações que vai além dos limites do grupo, multiplicando o número de atores e objetos presentes (LATOUR, 2012). Em outras palavras, a partir do trabalho de campo no grupo TCI da Casa do Jardim, busco também compreender a trajetória da transcomunicação instrumental no Brasil, bem como a trajetória da Casa do Jardim e sua fundação intimamente relacionada com o desenvolvimento da Apometria. Dessa forma, o grupo TCI da Casa do Jardim foi o fio condutor para o desenvolvimento deste trabalho, conectando o tema da transcomunicação instrumental ao tema da Apometria. Por esse motivo, o segundo capítulo que trata especificamente do grupo TCI encontra-se no centro deste trabalho, fazendo uma ponte entre os dois assuntos. Deste modo, a presente pesquisa organiza-se em três momentos e seus entrelaçamentos, representados pelos capítulos deste trabalho. No primeiro capítulo, destacamos o passado recente da transcomunicação instrumental no Brasil, sua relação com o movimento espírita e as controvérsias resultantes deste encontro, através de publicações nacionais a respeito do tema. A própria trajetória da transcomunicação instrumental só pôde ser recuperada neste trabalho através de mídias, desta vez constituídas por livros e demais publicações. Aliás, o que ficou evidente através da pesquisa documental e etnográfica é que, para além do forte apelo das tecnologias para a prática da transcomunicação instrumental, há uma forte ligação da TCI com as mídias impressa e eletrônica, fundamentais para a divulgação e circulação da prática.

Na sequência, no segundo capítulo, dá-se espaço à descrição etnográfica do grupo TCI Casa do Jardim. Além dos fatos comuns que se seguem aos estudos e práticas dos transcomunicadores, os participantes do grupo da Casa do Jardim tiveram que lidar com situações inerentes à prática da TCI dentro de um centro espírita, como a resistência dos seus pares em relação à transcomunicação instrumental, considerada uma prática acessória e até perigosa. O segundo capítulo abrange apenas os aportes etnográficos a respeito do grupo TCI, de forma que mais informações sobre a Casa do Jardim e sobre a Apometria serão abordadas em profundidade pelo capítulo seguinte. Assim, no terceiro capítulo, busco compreender o histórico da Casa do Jardim e os fundamentos da Apometria por meio de um estudo bibliográfico. Por fim, a abordagem teórica e analítica é tema do quarto capítulo deste trabalho.

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1 TRANSCOMUNICAÇÃO INSTRUMENTAL NO BRASIL ONTEM E HOJE

A tentativa de construir uma história da TCI esbarra com a falta de dados pormenorizados sobre o assunto, de forma que é difícil apontar quando e pelas mãos de quem de fato iniciaram-se as comunicações com entes espirituais através de aparelhos eletrônicos. Há, na verdade, disputas a respeito da origem das ocorrências e o simples recontar dessas narrativas pode fazer com que elas se alterem com o tempo. Régis Ladous (2003) entende que há uma tentativa de distanciar essas figuras fundadoras da imagem de médiuns ou espiritualistas, estabelecendo-os como meros usuários de aparelhos técnicos. “Estas palavras estão bem ao estilo EVP2: substitua crenças por evidências”, diz o autor (LADOUS, 2003, p. 603. Tradução minha).

A imagem quase bucólica da tentativa de gravar pássaros que resulta em uma gravação de vozes que não deveriam estar lá é reconhecida por muitos transcomunicadores como um mito de origem. Trata-se do “pai da transcomunicação”, o artista sueco Friedrich Jürgenson, que em 12 de junho de 1959, em férias em sua casa de campo, nas proximidades de Estocolmo, preparou seu gravador de rolo magnético para gravar o canto de um tentilhão de faia, pássaro comum na região. A gravação, porém, revelou a voz de um homem falando a frase em norueguês “vozes de pássaros noturnos”, acompanhado de estridentes ruídos. O episódio causou forte impressão em Jürgenson que passou a dedicar-se integralmente ao mistério das vozes em fita magnética (JUERGENSON, 1972).

O presente capítulo, porém, não tem por intenção uma tentativa historiográfica, algo já foi feito exaustivamente por diversos autores da transcomunicação instrumental O objetivo deste capítulo é trazer à tona a trajetória da transcomunicação instrumental no Brasil por meio da análise de publicações nacionais dedicadas ao assunto.

1.1 A TRANSCOMUNICAÇÃO INSTRUMENTAL NO BRASIL ONTEM

Hernani Guimarães Andrade, engenheiro e pesquisador espírita, foi um dos maiores incentivadores da transcomunicação instrumental no Brasil. Uma de suas contribuições foi ampliar o conceito de “transcomunicação” de Ernst Senkowski para englobar também os fenômenos mediúnicos. Com a intenção de tornar o termo mais preciso e atualizá-lo à

2 EVP: sigla em inglês para Electronic Voice Phenomenon, ou fenômeno de voz eletrônico, é uma das formas de

nomear a ocorrência de mensagens em gravadores de voz cuja origem é desconhecida. Falaremos sobre isso mais adiante.

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realidade nacional, desmembrou a nomenclatura em transcomunicação mediúnica (TCM) e transcomunicação instrumental (TCI). O autor explica:

A comunicação com as inteligências desencarnadas, por meio de instrumentos electrônicos, é uma forma de Transcomunicação (TC). Evidentemente, há inúmeras outras espécies de TCs. As comunicações obtidas através dos médiuns psicofônicos, psicógrafos, de voz direta etc., também constituem um importante grupo das TCs; mas precisamente das Transcomunicações Mediúnicas (TCMs). Mas, por quê introduzir novos vocábulos, se os velhos e consagrados médium, mediúnico, comunicação, psicofonia, psicografia etc., já funcionam tão bem? A razão dessa aparente sofisticação está na necessidade de criar-se uma nomenclatura adequada ao desenvolvimento tecnológico da comunicação com os seres inteligentes dos Planos Extrafísicos e evitar a excessiva ampliação semântica de algumas palavras. No final, a nova nomenclatura redunda em ordem e simplificação, dando maior precisão aos vocábulos. (GOLDSTEIN, 1992, p. 75)

Escrevendo na década de 1990, Andrade percebe que, apesar das abundantes comunicações por TCMs, o Brasil está ainda “atrasado” em relação aos países da Europa e da América do Norte em se tratando de transcomunicação instrumental. O autor suspeita que tal “atraso” dos brasileiros em relação às comunicações eletrônicas se daria pela presença de médiuns que já desempenhavam a função de abrir as portas para o Além.

Atualmente, a TCI tem chamado a atenção dos cientistas, particularmente na Europa e nos Estados Unidos, onde ela vem ocorrendo com maior frequência e, aparentemente, com maior facilidade. Daí a sua grande difusão nos países setentrionais. Não temos uma explicação cabal para o fato. Entretanto, supomos, salvo melhor juízo, que, naqueles países, devido ao elevado nível cultural e tecnológico, os seus habitantes atingiram a necessária massa crítica para alcançar o aludido tipo de comunicação, principalmente por iniciativa dos próprios desencarnados, conforme tem ocorrido. No hemisfério sul, principalmente no Brasil, a abundância de bons médiuns talvez tenha contribuído para os desencarnados não se interessam tanto pela TCI. Pelas informações que temos recebido, a TCI parece demandar, também, alguma habilidade técnica por parte dos Espíritos e a montagem de “emissoras” situadas no Plano Extrafísico. (GOLDSTEIN, 1992, p. 75-76)

Ao tentar equiparar transcomunicação e comunicação mediúnica, a fala de Andrade aponta para o fato de que a transcomunicação instrumental no Brasil parece manter relações estreitas com o movimento espírita kardecista. De fato, a transcomunicação instrumental constantemente é explicada por meio de uma “hipótese espírita”, em que se acredita que espíritos dos mortos são os responsáveis pelas mensagens recebidas a partir dos instrumentos tecnológicos.

Como já comentamos anteriormente, existe uma dificuldade em reunir dados documentais que sustentem os fatos a respeito da transcomunicação instrumental. No Brasil não é diferente. Para tornar possível tal pretensão, utilizaremos fontes bibliográficas, principalmente livros especializados no assunto e artigos de revistas e periódicos, espíritas ou

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não. Também foram considerados relatos colhidos durantes entrevistas e conversas com espíritas e transcomunicadores.

1.1.1 Primeiros registros no Brasil

De certo tempo a esta parte, tem-se escripto que ao Brasil compete propagar sómente a parte moral ou religiosa do Espiritismo. Não me parece que essa opinião tenha real fundamento. Em todos os paizes ha pessoas de invejaveis corações, que se satisfazem com a leitura do Evangelho, mas ha outras a quem essa leitura faria adormecer, si observassem o movimento sem contacto de uma mesa ou de uma cadeira, sentiriam despertar nellas o desejo de estudar e comprehender a parte moral e então, evoluiriam, progrediriam. Assim, pelo facto de algumas pessoas, já convictas, não necessitarem mais dos phenomenos, não se segue que se deva desprezar o estudo phenomenal. (...) Para que, pois, a interpretação espirita do Evangelho tenha feral acceitação e seja considerada verdadeira é necessario que os phenomenos espiritas a todo instanti a corroborem. Enquanto, pois, os espiritas brazileiros não incluirem nos seus programas a parte phenomenal, o Espiritismo no Brasil ficará estacionario. (SANTERRE, 1915, p. 418-419)3

Conforme alguns autores brasileiros notaram, existem registros interessantes de tentativas de comunicar-se com consciências para além do nosso plano já por volta do início do século XX (GOLDSTEIN, 1992; RINALDI, 1996; ANDRADE, 1997; TEIXEIRA, 2000). De forma anedótica, comenta-se que o padre e inventor gaúcho Roberto Landell de Moura (1861-1928) andava pelas ruas de Porto Alegre falando com uma espécie de caixinha. Conforme seu coroinha, o padre levava a caixinha em sua batina, chegando a interromper missas para responder ao seu chamado. (ANDRADE, 2008; BONILHA FILHO, 2010). Embora não haja evidência alguma de que a caixinha do padre inventor transmitiu comunicações de outro mundo, Landell de Moura é considerado pelos transcomunicadores como parte da história da TCI no Brasil, sendo seu nome constantemente evocado para os transcontatos que se estabelecem até hoje. Diz-se ainda que Landell de Moura é um dos “desencarnados” que coordenam estações emissoras no Além, sendo responsável pelas comunicações em língua portuguesa. Considera-se, assim, Landell de Moura o patrono brasileiro para as comunicações do Além.

Outros casos de brasileiros que são tidos como pioneiros das comunicações com o Além através de instrumentos, no entanto, sem apresentar evidências de que seus

3 Como veremos, “Santerre” e “Oscar D’Argonnel” são pseudônimos de Carlos G. Ramos. Optei por manter a

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equipamentos tenham de fato existido, são comentados por Mario Celso Ramiro de Andrade (2008):

Em 1909, Augusto de Oliveira Cambraia, português radicado no Rio de Janeiro, inventor do tecido que leva seu nome, solicitou junto ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro o registro para a patente do seu “Telégrapho Vocativo Cambraia”, um “inusitado sistema de comunicação à distância” descrito como um aparelho que “destina-se à transmissão de correspondência universal, sendo feito com espíritos iluminados. Serve para obter da falange de espíritos a correspondência para o engrandecimento moral e espiritual do planeta Terra”. Não existem, porém, registros sobre a construção e funcionamento do invento. Por volta de 1930, Cornélio Pires (1884-1958) “orientado pelos espíritos” iniciou a construção de seu “dispositivo de comunicação espírita” e, na mesma época, Próspero Lapagesse, chegou a publicar na Revista Internacional do Espiritismo (1933) um esquema de um aparelho eletrônico que, segundo ele, teria a capacidade de contato com os espíritos e ainda, “teria a vantagem de substituir o médium, pois ele nunca se cansaria [de fazê-lo]”. Onde houvesse corrente elétrica, o “aparelho mediúnico elétrico”, proporcionaria “as comunicações com nossos queridos falecidos, desafiando qualquer exame”. Ao que se sabe a genial invenção, avaliada em quatro mil contos de réis, nunca chegou a ser construída. (ANDRADE, 2008, p. 102-103)

Um caso digno de nota, porém, é o de Oscar D’Argonnel e seu pequeno livro “Vozes do Além pelo Telefone”, publicado em 1925. Oscar D’Argonnel era o pseudônimo de Carlos Gardoni Ramos, residente no Rio de Janeiro, servidor público, oficial do extinto Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas. D’Argonnel, que antes era conhecido pelo pseudônimo Santerre, era articulista contumaz de O Reformador, escrevendo, desde 1910, a respeito dos chamados “fatos espíritas” na coluna “Fenomenologia” (D’ARGONNEL, 1910)4.

De acordo com os artigos que publicou no jornal O Reformador, D’Argonnel interessava-se, sobretudo, pelas manifestações de fenômenos e no fornecimento de “provas” dessas ocorrências. Entendia que o estudo dos fenômenos era fundamental para embasar as práticas espíritas, que não podiam ficar atreladas somente à parte moral e religiosa. Em sua visão, era preciso que os fenômenos estivessem presentes para corroborar a interpretação espírita do Evangelho e para que o espiritismo pudesse atrair maior interesse. Caso contrário, entendia que o espiritismo brasileiro ficaria estacionário.

Dessa forma, desde pelo menos 1906, D’Argonnel estava ligado a sessões de “espiritismo experimental”, onde presenciou fenômenos de tiptologia, psicografia, psicofonia, materializações, aportes, e até mesmo capturou um registro fotográfico de um espírito (a fotografia infelizmente não foi publicada). Em janeiro de 1916, iniciaram-se os trabalhos do Grupo de Espiritismo Experimental, ao qual Oscar D’Argonnel fazia parte (D’ARGONNEL,

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1916). Relatos das sessões foram publicados em O Reformador e assinados pelos experimentadores que integravam o grupo, como forma de firmar testemunho das alegações. A respeito das primeiras comunicações do Grupo de Espiritismo Experimental, D'Argonnel publicou em 1920 o livro “Não há Morte”, ao qual não tive acesso, que continha esclarecimentos fornecidos pelo guia do grupo, o espírito Barreto, a respeito da vida após a morte.

Não tardou muito para que o Grupo de Espiritismo Experimental obtivesse contatos por meio do telefone, de forma espontânea e por iniciativa dos espíritos. Pelo que se tem registro, trata-se do primeiro caso deste tipo no mundo.

Conta Oscar D’Argonnel em “Vozes do Além pelo Telefone” que recebeu um telefonema em que os interlocutores identificavam-se como espíritos que se comunicavam com o Grupo de Espiritismo Experimental. Num primeiro momento D’Argonnel desconfiou, mas algo na ligação atraiu sua atenção para o insólito do ocorrido: os estranhos ruídos estáticos que acompanharam a comunicação. Guardou a informação para si até a próxima sessão do grupo, quando perguntou a respeito do telefonema e obteve resposta afirmativa por meio da tiptologia. “Como puderam conseguir isso?”, perguntou D’Argonnel e a resposta foi “Experimentamos e deu certo” (D’ARGONNEL, 1925, p. 1).

A situação perdurou durante anos, com D’Argonnel recebendo ligações dos ditos espíritos que afirmavam utilizar a “força” de médiuns e a corrente elétrica dos aparelhos. Segundo os espíritos, as ligações, que se iniciavam e terminavam em meio a ruídos e chiados, podiam ser acionadas diretamente das caixas de distribuição ou a partir de qualquer aparelho em que a ligação pudesse ser solicitada à telefonista.

D’Argonnel e seu grupo, por sua vez, insistiam em conseguir uma “prova absoluta” a partir desta forma de contato que embasassem a crença na sobrevivência da alma. Desta forma, combinavam com os espíritos sinais e códigos e também solicitavam informações sobre os presentes nas sessões de forma a “provar” a veracidade das ocorrências. Nem sempre, porém, os espíritos estavam dispostos a serem testados, dando respostas evasivas ou afirmando não terem autorização superior para tal.

De acordo com o cronista Frei Solanus (pseudônimo de Gustavo Macedo, presidente à época da Cruzada Espiritualista) em artigo publicado em O Reformador, de 16 de março de 1920, o assunto atraiu atenção de tal forma na época que uma crônica a respeito das experiências telefônicas com o Além de D’Argonnel foi lida por um padre em seu púlpito na igreja de São João Batista da Lagoa, no Rio de Janeiro. Além disso, realizaram-se duas conferências na Federação Espírita que buscavam responder às críticas do clérigo e que

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atraíram cerca de duas mil pessoas (SOLANUS, 1920). Apesar deste grande público à época, o fenômeno parece ter ficado restrito ao Grupo de Espiritismo Experimental de Oscar D’Argonnel.

1.1.2 “Telefone para o Além”

Como um pé do Espiritismo enfiado na porta da Ciência, a TCI não é nem tão moderna nem tão Espírita quanto aos seus praticantes. O professor Jüergenson (1903-1987) era católico, condecorado pessoalmente pelo Papa, mas teve a feliz/infeliz oportunidade de, ao gravar os trinados dos pássaros escandinavos, registrar junto as vozes de um desencarnado. Sacrebleu! Anátema! Fogueira! Danação eterna! Vírus do Demônio! Que fazer? Gravar por cima desta fita tão teimosamente anti-científica? O resultado foi um livro publicado nos anos 70, com o título Telefone Para o Além, que desencadeou a pesquisa brasileira nesta América recém-descoberta. (OLIVEIRA; STILPEN, 1997, s/p5)

Em 1972, a editora Civilização Brasileira publicou a edição brasileira de “Sprechfunk mit Verstorbenen” (original em alemão de 1967, “Radiotelefonia com os mortos”). Curiosamente, o título escolhido em língua portuguesa foi “Telefone para o Além”, apesar de a técnica usada por Friedrich Jürgenson não envolver telefones, mas gravadores e rádios. Talvez os editores quisessem passar a ideia de que essa nova forma de comunicação com o Além fosse algo tão instantâneo quanto atender um telefone. Só nos resta conjecturar.

Em agosto de 1963, a revista O Reformador da FEB deu nota ao achado de Jürgenson ao reproduzir uma reportagem de 13 de maio daquele ano do jornal O Globo. O pequeno artigo informa a respeito das gravações por meio de receptor de rádio e da possibilidade de comunicação com os mortos trazida por essa técnica. Em nota, os editores do Reformador atentam para o fato de que experiências semelhantes tinham sido realizadas no Brasil, resultando no livro de Oscar D’Argonnel “Vozes do Além pelo Telefone” de 1925, que comentamos na seção anterior (TÉCNICO... ,1963).

O livro de Friedrich Jürgenson traz um relato de sua “descoberta” de que os gravadores poderiam captar vozes dos mortos. Segundo o autor, o fenômeno começou em 12 de junho de 1959 com o episódio da gravação de vozes de pássaros. Primeiramente Jürgenson não compreendeu o que se passava e atribuiu o ocorrido à interferência de uma rádio norueguesa. Preferiu deixar de lado. Um mês depois, usava seu gravador novamente quando

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captou a seguinte mensagem: “Friedrich, você está sendo observado”. A insistência do fenômeno, assim, o compeliu a retornar às investigações.

Inicialmente Jürgenson não atribuiu a origem das vozes aos falecidos, chegando a pensar no fenômeno dos discos voadores ou OVNIs (objetos voadores não identificados). A confusão logo foi apontada pelos falantes, que não só o corrigiram como trataram o mal entendido com humor. Jürgenson posteriormente recebeu mais e mais evidências de que as vozes partiam dos mortos, ouvindo vozes de amigos e familiares que já haviam falecido.

Com o tempo, o autor foi instruído pelas vozes a ligar, junto ao gravador, o rádio e sintonizá-lo em uma frequência que não captasse nenhuma estação, deixando emitir apenas ruído. Uma entidade chamada Lena se comunicava com Jürgenson, prestando assistência às comunicações, lhe informando, por exemplo, quando ele sintonizava a frequência certa.

Outra característica das mensagens recebidas por Jürgenson era a chamada língua poliglota. Isto é, as frases captadas apresentavam palavras em diversas línguas em uma gramática bastante incomum, de forma que não poderiam ser explicadas como captações normais, provenientes de radioemissoras. A edição brasileira do livro preservou tal característica, deixando as frases na peculiar língua poliglota, seguidas da tradução para o português.

No início de junho de 1963, Jürgenson divulgou na imprensa suas pesquisas sobre as vozes em fita magnética. Depois de já ter mobilizado a imprensa local, realizou, no dia 14 de junho, uma conferência voltada à imprensa internacional. Em 1964, publicou em sueco o livro “Rösterna från Rymden” (vozes do espaço, em tradução literal) que causou menor impacto devido sua delimitação linguística. A tradução alemã de seu livro, “Sprechfunk mit Verstorbenen”, foi publicada em 1967, espalhando o fenômeno de Jürgenson para mais leitores.

Muitos transcomunicadores acreditam que Friedrich Jürgenson era “a pessoa certa na hora certa” para a apreensão dos fenômenos de comunicação instrumental com os mortos, pois entendem que ele era um homem dotado de profunda sensibilidade artística, tendo sido cantor e artista plástico, e por ter vivido em diversos países, fugido de guerras, podia falar cinco idiomas e compreender outros três. Assim, tinha a percepção adequada para captar a sutileza do som das vozes, assim como o bizarro idioma poliglota que os falantes utilizavam.

A intenção aqui, porém, não é alardear a obra de Friedrich Jürgenson ou o seu pioneirismo. Busca-se, na verdade, mostrar a repercussão que a publicação de uma tradução em português causou, pois foi a partir do lançamento dessa obra que as vozes do Além se disseminaram em território nacional.

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Muitos foram os que começaram suas tentativas de contato, fazendo funcionar seus gravadores e aparelhos de rádio em busca de vozes do Além. Nas linhas abaixo falaremos a respeito de publicações que repercutiram as vozes de Jürgenson, assim como de alguns dos leitores que se aventuraram com as misteriosas vozes em fita magnética.

A revista Planeta, em seu número 18, de fevereiro de 1974, foi um dos primeiros veículos a noticiar a fala dos mortos por meios eletrônicos. O artigo “Os mortos falam”, escrito por Elsie Dubugras, comenta a descoberta feita ao acaso de que aparelhos eletrônicos podiam captar as vozes “do outro lado” e que os mortos podiam falar sem o auxílio de médiuns (DUBUGRAS, 1974).

Além de recontar o episódio do canto dos pássaros, em que Friedrich Jürgenson fez sua descoberta das vozes, o artigo de Elsie Dubugras dedica-se em grande parte a apresentar as captações do psicólogo letão Dr. Konstantin Raudive, cujo livro jamais foi traduzido para o português.

Apesar de Raudive não ter sido publicado em português, foi publicado no Brasil o livro “Os espíritos comunicam-se por gravadores” de Peter Bander (1981) que relata o contexto de publicação do livro de Konstantin Raudive em língua inglesa e as experiências do autor com o fenômeno de voz eletrônica durante o processo de tradução e publicação da edição inglesa. O editor Colin Smythe recebeu o original de Raudive durante a Feira do Livro de Frankfurt e primeiramente tratou seu conteúdo com desconfiança. Intrigado com os depoimentos de pesquisadores, “pessoas sérias”, que constam no anexo do livro, resolveu fazer experiências de gravações enquanto decidia se iria publicar o livro ou não. Ao ouvir uma voz em alemão na fita recém gravada, Smythe levou a gravação para seu sócio Peter Bander que reconheceu a voz como sendo de sua mãe. Dessa forma, decidiram publicar o livro de Konstantin Raudive em língua inglesa, o qual recebeu o título de “Breakthrough”, termo que pode ser traduzido como “importante descoberta”, “avanço”. O livro de Peter Bander foi traduzido para o português pela editora Edicel, tendo a primeira tiragem em 1974.

O artigo publicado na revista Planeta (DUBUGRAS, 1974a) comenta ainda as recomendações dadas pelas vozes para os experimentadores e os assistentes das experiências, como concentração e luzes atenuadas, assim como comenta a respeito das falas que se assemelham a vozes humanas, mantendo senso de humor e expressão de sentimentos, apesar da peculiaridade de sua gramática e do ritmo da fala.

A jornalista e editora especial da revista Planeta, Elsie Dubugras foi também responsável pelas primeiras notas a respeito do tema a serem publicadas pela Folha Espírita, no ano de 1974. O primeiro artigo, “Experiências eletrônicas nas comunicações com

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espíritos”, publicado na edição de agosto de 1974, inicia retomando as experiências de Friedrich Jürgenson para informar ao leitor da Folha Espírita a respeito dessa nova forma de comunicar-se com os espíritos, trazendo também fatos recentemente divulgados pelo autor sueco. Segundo o artigo, Friedrich Jürgenson revelava seu fascínio pela vida após a morte e que se sentia compelido a fazer experiências com o gravador mesmo antes do clássico episódio da gravação de vozes de pássaros.

Konstantin Raudive também é citado pelo artigo pelo interesse na pesquisa que se seguiu a leitura do livro de Jürgenson, bem como sua posterior publicação em inglês, em 1971, sob o título de “Breakthrough”. A publicação do livro fez com que as vozes se espalhassem por toda a Europa e América do Norte.

Novamente, a jornalista ocupa-se em explicar em linguagem simples e didática a necessidade de treinar os ouvidos para a escuta das vozes, pois elas atendem a uma lógica própria que difere da voz humana habitual. Segundo Elsie Dubugras (DUBUGRAS, 1974b), há de se atentar ao fato de que as vozes falam rápido, são poliglotas e possuem uma gramática própria, rica em neologismos e que suprimem artigos, pronomes e até mesmo adjetivos. Apesar da aparente estranheza, os falantes conservam características humanas e afirmam viver suas vidas como nós, porém em outro plano de existência.

No segundo artigo, publicado na Folha Espírita em outubro de 1974, sob o título “Vozes: matéria revolucionária em escola inglesa”, a autora comenta um projeto pioneiro de estudo das vozes em uma escola na Inglaterra. O estudo, focado na estranha gramática das vozes, tornou-se disciplina escolar e foi ministrado para um único aluno (DUBUGRAS, 1974c).

Outro artigo pioneiro de Elsie Dubugras (ao qual não tive acesso) foi publicado em junho de 1972 pela Revista Internacional de Espiritismo. Segundo Goldstein (1992), o artigo aborda em profundidade a obra de Konstantin Raudive.

Uma leitora confessa de Friedrich Jürgenson foi a poetisa Hilda Hilst. Considerada uma pioneira no Brasil em pesquisa de vozes em fitas magnéticas, Hilda foi entrevistada por Luis Pellegrine e Elsie Dubugras da revista Planeta para a edição de nº 58, publicada em julho de 1977.

Em seu sítio em Campinas, interior de São Paulo, Hilda contou que o livro de Friedrich Jürgenson foi o grande motivador de seu interesse no fenômeno de vozes, já que a questão da morte enquanto um “mergulho no vazio” sempre lhe causara certa aflição. Assim, por volta de 1972, decidiu testar as experiências de gravação por conta própria.

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Com um gravador pequeno, começou as experiências deixando o aparelho ligado e ficando nas proximidades. A poetisa relatou que por muito tempo não obteve resposta nenhuma. Certo dia, porém, enquanto conversava com uma amiga cética, gravou uma voz. Tomada pelo entusiasmo, as tentativas passaram a ser diárias. Em outra ocasião, conversando com um amigo com problemas renais, ouviu pelo gravador uma voz masculina que dizia “que dia lindo!”, o que emocionou a ambos.

Seguindo os conselhos de Friedrich Jürgenson, Hilda passou a utilizar também o rádio, sintonizado entre estações, com instrumento de captação. No começo, recebia vozes abafadas em meio ao ruído, muito difíceis de serem compreendidas. Sobre a evolução das vozes e de sua habilidade de escuta, Hilda comenta:

Aos poucos começaram a aparecer as vozes que Raudive classifica como de tipo C. São vozes que se sobrepõem, e que são muito difíceis de serem entendidas. Às vezes uma frase se destaca, você entende o pedaço de uma frase, mas quase nunca a coisa vai até o fim. As vozes de tipo C são distantes. Parecem vir detrás de paredes grossas. Nessa fase, o investigador fica muito excitado. No afã de entender o que dizem essas vozes, seu ouvido vai ficando treinado. Comigo aconteceu assim. No meio do emaranhado de vozes, passei a entender frases e expressões. Muitas vezes ouvia: Hilda. Mentalmente passei a pedir que as vozes aparecessem mais altas e nítidas e nesse ponto tinha vontade de mostrar as vozes a outras pessoas, e não conservá-las só para mim. Para isso necessitava de coisas mais claras. (DUBUGRAS; PELLEGRINI, 1977, p. 59)

Na passagem acima, a poetisa confirma os problemas que todos os pesquisadores parecem enfrentar no início de suas pesquisas: a dificuldade em ouvir e compreender as vozes, seguida por um momento de aumento da capacidade de auscultação. Na medida em que vai se aventurando cada vez mais nos experimentos, o pesquisador passa a receber vozes com maior frequência e melhor qualidade. Hilda também relatou a banalidade do conteúdo das mensagens, coisa que chegava a irritá-la. Outro detalhe que é relatado por muitos pesquisadores é a dificuldade de se estabelecerem diálogos, pois na maioria das vezes o experimentador só ouve as respostas depois, ao ouvir a gravação. Sobre a aparente falta de objetividade das vozes, Hilda apresenta uma interessante interpretação: são como as pitonisas da antiguidade. “As ideias que transmitem não têm, aparentemente, sentido objetivo. Mas, quanto mais as ouço, quanto mais desenvolvo a pesquisa, percebo que conseguem me transmitir recados” (DUBUGRAS; PELLEGRINI, 1977, p. 60).

Em relação à recepção de seu trabalho de investigação, Hilda afirma que em geral as pessoas recebiam com entusiasmo, mas sem deixar o ceticismo de lado. Porém, os meios intelectuais da época recebiam as experiências da poetisa de forma bastante negativa. Conta ela que ao apresentar algumas fitas em casa de amigos onde se reuniam personalidades da

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ciência e das artes, os presentes não puderam compreender as fitas e se irritaram, lançando impropérios contra a poetisa. Em sua opinião, tais reações hostis poderiam ser explicadas pelo receio de que esse conhecimento sobre a sobrevivência da alma pudesse abalar o status quo vigente.

Por último, gostaria de destacar o posicionamento de Hilda em relação à interpretação da experiência por meio de alguma prática místico-religiosa. Seu posicionamento assemelha-se ao de Friedrich Jürgenson, que também propunha um afastamento de narrativas religiosas, acreditando numa abordagem que não procurava conceituar o fenômeno a priori. Copio abaixo a resposta de Hilda Hilst:

Absolutamente não [ligo as vozes a alguma experiência místico-religiosa]. Não pertenço a nenhuma sociedade esotérica, não sou espírita, não professo nenhuma religião ortodoxa. Interesso-me por todas as correntes espiritualistas, mas não me ligo a nenhuma delas. A maioria das pessoas que pertencem a tais organizações me parecem quase sempre dogmáticas, esquematizadas, e querem logo explicar as gravações de forma conveniente às próprias crenças. Acho que esse tipo de abordagem só traz confusão à pesquisa. (Idem, p. 59)

1.1.3 A era da Folha Espírita (1970-1990)

Ainda na década de 1970 inicia-se a publicação dos artigos de Hernani Guimarães Andrade na Folha Espírita, principalmente sob os pseudônimos Karl W. Goldstein e Lawrence Blacksmith. Engenheiro civil de formação, Andrade dedicou-se intensamente à pesquisa de fenômenos ditos paranormais, estudando, por exemplo, casos de reencarnação e de poltergeist no interior de São Paulo. Através do seu Instituto Brasileiro de Pesquisas Psicobiofísicas (IBPP), Andrade pôde exercer o lado científico e experimental da doutrina espírita.

Seu primeiro artigo a respeito das misteriosas vozes em fita magnética foi publicado na página cinco da edição nº 29 da Folha Espírita, em agosto de 1976. O artigo intitulado “Radioemissoras do Além?” ecoa muitas das informações trazidas anteriormente por Elsie Dubugras a respeito da descoberta de Friedrich Jürgenson e dos experimentos de Konstantin Raudive, assim como informações a respeito do livro de Peter Bander. Traz como novidade especulações a respeito da origem das vozes, que para o autor são de origem paranormal, e possíveis explicações sobre seu funcionamento, que se daria através da existência de estações transmissoras e receptoras situadas no Além. O artigo é concluído com a esperança de que os

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mortos se comuniquem também por meio de imagens na TV, algo que estaria em vias de se concretizar (GOLDSTEIN, 1976).

Mais de um ano após o artigo assinado por Karl Goldstein, o assunto volta a figurar na Folha Espírita. Trata-se de artigo escrito por Mário B. Tamassia a respeito de telefonemas dos mortos, publicado na edição nº 43, de outubro de 1977, intitulado “Os mortos telefonam aos vivos”. Nesta reportagem, o articulista comenta a respeito de Oscar D’Argonnel, cujo livro havia sido recentemente recuperado do acervo de uma família espírita (TAMASSIA, 1977).

A década de 1980 foi pouco movimentada em termos de publicação de livros sobre o assunto. Mesmo na Folha Espírita, os artigos publicados somam somente oito, sendo sete deles assinados por diferentes pseudônimos de Hernani Guimarães Andrade; destes, apenas um não foi reproduzido pela coletânea de 1992.

Entre os artigos, há uma reportagem de capa abordando o Spiricom, aparato eletrônico de comunicação espiritual desenvolvido pelo engenheiro americano George Meek, então diretor da Metascience Foundation, fundação responsável por financiar pesquisas sobre a sobrevivência da alma após a morte. A reportagem, publicada na edição de nº 98, de maio de 1982, informa ter sido produzida exclusivamente para a Folha Espírita por um correspondente em Washington que participou da coletiva de imprensa organizada pela Metascience Foundation, em 06 de abril de 1981, tendo em vista apresentar o Spiricom para a mídia (SPIRICOM, 1982).

Os demais artigos produzidos no período por Hernani Guimarães Andrade para a Folha Espírita (ver Quadro1) dedicam-se, em grande parte, a responder dúvidas sobre o que se sabia sobre a origem das vozes em fita magnética, além de apresentar os novos achados e acontecimentos que ocorriam no Brasil e principalmente no exterior. O autor deixa claro que é da opinião de que as vozes partem de pessoas falecidas, considerando outras hipóteses como reducionistas, como a hipótese de que o operador produz as vozes em seu inconsciente, gravando-as por meio de psicocinese.

Quadro 1– Artigos de Hernani Guimarães Andrade para a Folha Espírita (déc. 1980)

Edição Título Pseudônimo

nº 91 Novembro/1981

As mensagens do mundo dos espíritos* Karl Goldstein nº 141

Dezembro/1985

Comunicação espírita eletrônica* Karl Goldstein nº 147

Junho/1986

Vozes dos espíritos na TV europeia* Lawrence Blacksmith nº 155

Fevereiro/1987

Espíritos assombram computadores eletrônicos* Lawrence Blacksmith

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nº 162 Setembro/1987

Vidicom, uma realidade* Karl Goldstein nº 176

Novembro/1988

Comunicação espírita eletrônica: grandes avanços* Lawrence Blacksmith nº 188

Novembro/1989

Transcomunicação: o congresso de Basileia, Suíça, de 9-12 de novembro de 1989

Karl Goldstein * Publicados em GOLDSTEIN (1992)

Fonte: a autora (2020)

Em “As mensagens do mundo dos espíritos” (GOLDSTEIN, 1981), o autor recupera os casos de Friedrich Jürgenson e de Konstantin Raudive, complementando sua reportagem ao reproduzir na íntegra, com os devidos créditos, o artigo de Elsie Dubugras (DUBUGRAS, 1974a) para a revista Planeta nº 18. Já o artigo “Comunicação espírita eletrônica”, de dezembro de 1985, aborda o aparelho Spiricom de George Meek de uma maneira mais aprofundada do que no artigo de 1982 (GOLDSTEIN, 1985). As demais reportagens dedicam-se aos experimentos do engenheiro alemão Hans Otto König e suas demonstrações em estações de rádio e TV; o início das captações de imagens pela tela da televisão; a introdução de mensagens por meio de computadores; e, por fim, o autor comenta exaustivamente a respeito do grande sucesso das comunicações obtidas pelo grupo de Luxemburgo, do casal Maggy e Jules Harsch-Fischbach (na época conhecidos como Mr. e Mrs. H-F), que obtinham tanto transcontatos por áudio como por imagem, através de combinações de equipamentos, como rádios, gravadores, televisores, computador e até mesmo fax e secretária eletrônica (BLACKSMITH, 1986, 1987; GOLDSTEIN, 1987)

Em “Comunicação espírita electrônica: grandes avanços!”, publicado originalmente em novembro de 1988, o autor dedica-se a comentar relatório produzido e publicado em um newsletter pela Metascience Foundation, ao mesmo tempo em que traduz trechos de material inédito ao público brasileiro. A fundação americana do inventor do Spiricom, George Meek, documenta neste relatório a intensa atividade de grupos de pesquisa em transcomunicação instrumental espalhados pelas diversas localidades da Europa (BLACKSMITH, 1988).

Além dos acontecimentos da época, o autor procurou ainda introduzir outros casos pouco conhecidos de equipamentos de tempos passados que não lograram êxito, como as supostas tentativas do inventor americano Thomas Alva Edison em construir um equipamento para comunicação espiritual.

O último artigo produzido na década dedica-se a repercutir o 7º Congresso Internacional sobre o Estudo das Zonas Fronteiriças da Ciência, realizado na cidade de Basileia, na Suíça, em novembro de 1989. O principal tema acolhido pelo encontro foi “Transcomunicação, diálogo com o desconhecido”. O mesmo assunto foi abordado

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novamente mais tarde, na edição da Folha Espírita de fevereiro de 1990, com poucas alterações no seu texto (GOLDSTEIN, 1989).

É importante ainda ressaltar a importância atribuída pelo autor ao congresso como um marco na história do espiritualismo. O autor aponta principalmente para o fato de tal encontro ter sido realizado na Europa, pois em sua opinião os assuntos da espiritualidade não seriam tratados tão à vontade naquele continente.

Para aqueles que, há mais de três quartos de século, vêm acompanhando a marcha do movimento espiritualista no mundo, o Congresso de Basileia sobre Transcomunicação tem uma significação sui generis. Se ele tivesse sido realizado aqui no Brasil, onde o Espiritismo, além de outros excelentes médiuns, conta com um prodígio da transcomunicação mediúnica, o nosso querido Chico Xavier, teria sido muito natural. Mas, um congresso sobre Transcomunicação na Europa, com a participação de uma verdadeira elite intelectual, é algo de extraordinário. Não se trata de um país em que o intercâmbio com o Plano Espiritual seja visto com naturalidade; ou em que espíritas, umbandistas ou seitas budistas contem milhares de adeptos. (GOLDSTEIN, 1992, p. 81)

Apesar de não ter participado do conclave, o autor utiliza-se de informações trazidas por brasileiros que lá estiveram como ouvintes. Trata-se de Ney Prieto Peres, Clovis Nunes e Wilson Picler, considerados espíritas influentes na área científica de então.

Sobre os estudos posteriores e achados em transcomunicação de Ney Prieto Peres e de Wilson Picler pouco restou. Depois disso, pelo que se sabe, nenhum dos dois produziu trabalhos expressivos ou dignos de nota nesse assunto. Ney P. Peres é autor do livro “Manual Prático do Espírita” (1984), enquanto Wilson Picler, fundador do grupo educacional Uninter, foi deputado federal pelo PDT (2009-2010) e é atualmente filiado ao PSL, tendo apoiado a candidatura do atual presidente do Brasil.

Em relação a Clóvis Nunes, seu percurso na transcomunicação instrumental foi um tanto mais relevante. Nunes é conhecido principalmente por um transcontato ocorrido em novembro de 2002, durante o XI Congresso Espírita da Bahia, em que captou a voz do espírito de Astrogildo Eleutério da Silva, conhecido no meio espírita baiano quando em vida6. Mas, Nunes também ficou conhecido na transcomunicação por ter publicado, em 1990, o livro intitulado “Transcomunicação: comunicações tecnológicas com o mundo dos mortos”, prefaciado por Hernani Guimarães Andrade. A primeira edição do livro em questão é uma verdadeira colcha de retalhos, com muito de seu conteúdo sendo cópia de outros materiais. Ao menos a edição que possuo, é repleta de erros de diagramação, de digitação, bem como de outros erros, como por exemplo: o autor muitas vezes confunde os nomes de

Referências

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