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Raphael Castelo Branco da Silva 1. I. O declínio das ferrovias e a construção do rodoviarismo:

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Academic year: 2021

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A POLÍTICA DE TRANSPORTES DO BRASIL NA DITADURA CIVIL-MILITAR: DA ERRADICAÇÃO DE FERROVIAS “ANTI-ECONÔMICAS” À

COLABORAÇÃO DO EMPRESARIADO AO SISTEMA REPRESSIVO.

Raphael Castelo Branco da Silva1 I. O declínio das ferrovias e a construção do rodoviarismo:

A criação da Rede Ferroviária Federal é um momento que deve ser destacado. Ocorreu a unificação administrativa de diversas empresas, sendo um grande número, empresas privadas deficitárias, que passaram a ser controladas pelo Estado. Essa absorção de uma massa falida e não-rentável resultou em uma transferência das dívidas do setor privado para o setor público, e, nas palavras se Carlos Lessa, significou a “transferência para sociedade do ônus de subsidiar os usuários” (LESSA, 1983:101-103).

Essa situação foi paradoxal, pois ao mesmo tempo as ferrovias estavam, com exceção de São Paulo, em uma administração unificada, isso também permitiu que o Executivo controlasse a própria existência das ferrovias. Os militares, ao controlarem a RFFSA, desenvolveram uma política de erradicação. Como afirma Dilma Andrade:

Os critérios para tal política eram duvidosos e questionáveis: as estatísticas eram deficientes e a avaliação da potencialidade das regiões era parcial e imediatista. As diversas comissões de desativação eram formados por tecnocratas ligados tanto a ferrovia como a rodovia, sendo os sindicatos e setores da população, em geral, desconsiderados (PAULA, 2006: 210.)

A acumulação interna teve como uma das bases o consumo de bens duráveis. Se durante o período imperial, a “modernidade” foi a ferrovia, na república, a nova “modernidade” é o automóvel. O carro de passeio, privado, passa cada vez mais a ganhar espaço em detrimento da ferrovia, que é um transporte de massas (LIMONCIC, 1997).

O golpe civil-militar de 64 está intimamente ligado à expansão da indústria automobilística no Brasil, pois é nesse momento que as empresas multinacionais se consolidam no mercado, focando na classe média e na construção de caminhões. Entre uma das medidas do Plano de Ação Econômica de Governo foi a substituição de ferrovias consideradas antieconômicas e sua respectiva transformação em estradas de

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2 rodagem. Isso acabaria confirmando uma opção rodoviarista que vinha se articulando desde a década de 30.

Junto a expansão da infraestrutura rodoviária, também expandiu-se a indústria automobilística, principalmente com a oferta de crédito para compra de carros para a classe média. Concomitante a isso, iniciou-se uma política de erradicação de ferrovias. Grandes extensões como a E. F. Bahia-Minas, a E. F. Leopoldina, e algumas linhas com trechos urbanos como a E. F. Rio d’Ouro e a Linha Auxiliar da E.F. Central do Brasil. Estações foram derrubadas e seus leitos, em alguns casos, sequer tiveram trechos pavimentados, sendo completamente abandonados. A população dessas áreas passou então a ser obrigada a utilizar os serviços de ônibus para poder se locomover, mesmo em curtas distâncias. Concomitante a isso, construiu-se uma ideia de que a ferrovia era ineficiente.

A erradicação de ferrovias enfim levaria o “progresso” representado pelo automóvel, substituindo as “atrasadas” locomotivas. A erradicação das ferrovias deficitárias acabou, como consequência imediata, gerando lucros exorbitantes para a indústria automobilística, que teria novos mercados para penetrar sua atuação. Carros, ônibus, caminhões, tratores, entre outros artigos, substituíram o trem na paisagem, seja no interior, como na cidade.

Quais atores se beneficiaram com essas políticas? Ao pensarmos o Estado de forma ampliada, podemos observar as relações de força contidas em seu interior. O Estado não é controlado absolutamente pela burguesia, e não pode ser entendido nem como Estado-Coisa nem como Estado-Objeto. As forças políticas lutam por uma hegemonia na condução de um projeto de direção, e essa disputa se dá na cultura. Conforme afirma Sônia Mendonça:

Pensar o Estado gramscianamente é sempre pensá-lo a partir de um duplo registro: o das formas dominantes na produção (classes e frações) que se constituem e se consolidam por intermédio de organizações da sociedade civil, ao mesmo tempo em que, junto a cada aparelho ou órgão do Estado restrito, estão sempre presentes projetos e intelectuais vinculados às agência(s) da sociedade civil. Uma delas, por certo, deterá a hegemonia junto a certo organismo estatal, conquanto outras igualmente lá far-se-ão presentes, em permanente disputa. (MENDONÇA: 2014, 38)

Na questão abordada no presente artigo, a indústria automobilística foi a principal beneficiada por essa política, pois passaram a ter um mercado fantástico de

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3 venda de automóveis dos mais variados tipos, além das empreiteiras, que passaram a ter altos lucros com a construção de estradas. E quais atores foram prejudicados? A população como um todo, que já tinha um acesso restrito a bons meios de transportes, e que passou, cada vez mais, a ser refém do meio rodoviário. Uma parte da população teve condição de comprar ou financiar um automóvel, mas a grande maioria passou a depender cada vez mais dos sistemas de ônibus, e a economia do país, cada vez mais, passou a estar dependente da distribuição de mercadorias através do caminhão.

Essa situação foi mais dramática no interior, pois em muitos casos, a ferrovia foi desativada, mas os leitos simplesmente foram abandonados, não recebendo asfalto. Nas cidades, diversas ferrovias, inclusive as com características de transporte de subúrbio, como a E. F. Leopoldina, a Divisão Auxiliar da E. F. Central do Brasil, que englobava as linhas Japeri Auxiliar e Rio d’Ouro, também foram desativadas com argumentação de baixa demanda e de serem deficitárias. O espaço de ação dessas ferrovias foi sendo progressivamente ocupado por empresas de ônibus, que passaram a conectar essas localidades ao centro do Rio de Janeiro.

II. A Volkswagen do Brasil e a ditadura civil-militar:

Para as indústrias automobilísticas, foram dirigidos diversos privilégios, que não foram exclusividade da ditadura. Desde a década de 1950, a indústria automobilística já era estimulada no país. Wolfgang Sauer, que presidiu a Volkswagen do Brasil entre 1973 e 1993, proferiu uma frase elucidativa: “O capital é um bichinho assustado. Ele vai para onde se sente mais bem protegido”. A Volkswagen do Brasil foi uma das empresas mais beneficiadas pelo governo JK, e posteriormente, pelos governos da ditadura (SILVA: 2019, 7).

Mesmo com uma alta taxa de crescimento, a Volkswagen do Brasil, a partir de 1963, mostrou-se preocupada com a queda do crescimento brasileiro. De acordo com Marcelo Silva, o argumento da empresa era a crescente “instabilidade”, devido a uma série de greves e movimentos reivindicatórios. Para o autor, a empresa tinha a concepção de que a estabilidade almejada pela mesma só seria alcançada por meio de uma legislação prejudicial ao trabalhador, e com a montagem de um sistema repressivo em relação aos movimentos reivindicatórios. Somente com esse clima de tranquilidade

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4 que seria possível para a empresa voltar a sentir a “confiança” necessária para realizar novos investimentos. (SILVA: 2019, 8).

Uma das bandeiras nacionalista histórica foi a questão da lei remessas de lucros, e em 1962, João Goulart assina a lei que limitava essas remessas, criando assim um imbróglio com as multinacionais instaladas aqui. Esse problema com o capital estrangeiro foi resolvido com a nova política de remessas de lucros, promulgada pela ditadura. A Volkswagen do Brasil aumentou seu capital em uma média de 100% ao ano e um intervalo de sete anos. Em 1965, ela possuía 66,96 milhões de cruzeiros, e em 1971 atinge o patamar de 657,48 milhões de cruzeiros no final de 1971. Em 8 de julho de 1970, a Volkswagen comemorou a marca de 1 milhão de carros fabricados no país. É bem significativo que, nesse período, a indústria automobilística correspondesse a uma participação superior a 4% do PIB (SILVA: 2019, 12).

No entanto, em sua grande maioria, o empresariado estava afinado com as políticas econômicas do governo. Não somente estavam em concordância e se beneficiavam como, em muitos aspectos, colaboraram com o aparato autoritário do regime. Jorge Melo recorda dois empresários que ficaram famosos por motivos distintos: Sebastião Camargo Correia, dono de uma das maiores construtoras do Brasil, e Henning Albert Boilesen, presidente do grupo Ultragaz, e morto em 1971. Ambos colaboraram ativamente com a Operação Bandeirante, que recolhia dinheiro de empresários para financiar o combate a grupos de esquerda no país.

De acordo com Alessandra Costa e Marcelo Silva, os militares viam o empresariado como um aliado importante na manutenção financeira do aparato repressivo. Era oferecido não somente o financiamento, mas também o suporte ideológico, principalmente na imprensa, com reportagens favoráveis ao governo. Os autores também identificam que o Estado, aliado ao empresariado, deveriam trabalhar em conformidade para impedir a subversão política, e assim, legitimar a defesa da segurança do projeto ditatorial de desenvolvimento nacional. (COSTA: 2018, 22-25).

Recentemente, com os trabalhos investigativos da Comissão Nacional da Verdade, vieram à tona diversos casos de colaboração de empresas com o a ditadura, e em particular, com as práticas de tortura. A Volkswagen do Brasil estava entre umas

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5 delas. Um dos torturados nas dependências da fábrica foi Lúcio Bellentani, que era militante do PCB e fazia trabalho de base na fábrica. Em um dos seus relatos, ele afirma que a fábrica possuía um clima de vigilância constante para impedir a atividade política, além da constante pressão por aumento de produtividade, além de dar detalhes de como foi torturado:

Eram 23h30 exatamente. Eu estava trabalhando quando fui surpreendido com um cano de uma metralhadora nas minhas costas. Me algemaram com as mãos para trás e me levaram para o departamento pessoal da empresa. Ali mesmo começaram as torturas. Comecei a ser espancado dentro da empresa, dentro do departamento pessoal da Volkswagen. Por policiais do DOPS [Departamento de Ordem Política e Social] e na frente do chefe da segurança e dos outros seguranças da fábrica" 2

Recentemente, a Volkswagen fez um relatório onde admitia que ocorreram laços entre a empresa e o regime ditatorial.3 Contudo, para o pesquisador Sebastião Neto, que coordenou o grupo que realizou repressão a trabalhadores, o resultado foi “decepcionante”, e que o texto era “contraditório”, pois “diz que os funcionários agiam de forma autônoma, mas ao mesmo tempo havia conhecimento tácito da direção”.4

De acordo com reportagem do jornal alemão Deutsche Welle, a Volkswagen tinha conhecimento, da Alemanha, das atividades que aconteciam nas fábricas no Brasil, e isso foi constatado pela Comissão Nacional da Verdade, que identificou que alguns galpões em São Bernardo do Campo foram cedidos aos militares para serem transformados em centros de tortura, além da doação de duzentos veículos para órgãos de repressão. 5

Para Marcelo Silva, a relação entre a Volkswagen do Brasil e o governo brasileiro pode ser caracterizada como uma “simbiose”, que na biologia significa a

2 Jornal El País, edição de 18 de dezembro de 2017.

Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/16/politica/1513381848_318409.html Acesso em 13/08/2019.

3 KOPPER, Christopher. A VW do Brasil durante a Ditadura Militar brasileira, 1964-1985: Uma

abordagem histórica.

Disponível em: http://www.vwbr.com.br/ImprensaVW/file.axd?file=/2017/12/Relatorio.pdf

Acesso em 13/08

4 Jornal El País, edição de 18 de dezembro de 2017.

Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/15/politica/1513361742_096853.html. Acesso em 13/08/2019.

5Jornal Deutsche Welle, edição de 24 de julho de 2017.

Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/como-a-volks-cooperou-com-a-ditadura-brasileira/a-39811612

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6 associação de dois ou mais seres de espécies diferentes que compartilhavam vantagens e se comportam como um só organismo. Ao passo que o governo brasileiro investia pesado nas rodovias como um sistema de integração nacional, a empresa tinha a possibilidade de aumentar seus lucros com maiores mercados. Em contrapartida, oferecia apoio ao regime, destacando os “avanços” do mesmo. (SILVA: 2019, 15). III. Conclusões:

As ferrovias não foram simplesmente desativadas. Elas foram erradicadas. Isso significa não apenas interromper a circulação dos trens. Significa arrancar trilhos, demolir estações, erradicar qualquer vestígio da existência do trem. Uma política foi arquitetada pelo Estado para atender o capital multinacional da indústria automobilística.

Procurou-se demonstrar nesse artigo como ocorreu a articulação entre uma política de erradicação de ferrovias e a consolidação do modelo rodoviarista no Brasil, e como se deu a colaboração de uma empresa automobilística em particular, a Volkswagen, com o sistema repressivo. Essa empresa não apenas se beneficiou de políticas favoráveis para expansão e acumulação de capitais, mas como trabalhou ativamente na repressão a trabalhadores, permitindo que, em suas dependências, se utilizassem métodos de tortura, criando listas de trabalhadores considerados “subversivos”, entre outros métodos, ao mesmo tempo em que afinava seu discurso com a propaganda oficial de integração do território nacional por meio do automóvel, além da retórica de “milagre econômico”.

As recentes revelações da Comissão Nacional da Verdade demonstram que a montagem do sistema repressivo no Brasil não foi obra exclusiva dos militares. A participação de civis, e civis específicos, que eram empresários, foi fundamental. A colaboração em dinheiro e recursos materiais por parte do empresariado paulista à centros de tortura, tendo Boilesen como um caso explícito, pois o mesmo participava das sessões de tortura, que incluíam métodos importados com os recursos adquiridos através desses financiamentos, e o uso de instalações fabris, revelam que são necessários cada vez mais pesquisas que desnudem a relação entre o empresariado e a ditadura no Brasil.

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7 Nos últimos anos, surgiu uma agenda de pesquisa que passou a dar mais atenção ao tema, exatamente pelo fato de que essas empresas, em sua grande maioria, sobreviveram ao regime, e nos impactam no dia-a-dia. A Volkswagen é uma empresa com participação significativa no mercado nacional de automóveis, enquanto a Ultragaz é uma empresa que é líder no setor de abastecimento de gás de cozinha. Essas, e muitas outras empresas, ou se beneficiaram das políticas econômicas do regime, ou atuaram diretamente na repressão, fazendo parte, portando, do aparelho repressivo em si do regime.

Um dos grandes obstáculos no entendimento das relações entre empresariado e ditadura no Brasil é o acesso às fontes. Por serem empresas privadas, há maiores dificuldades de consulta a arquivos e dados como um todo. Diversos setores e frações do empresariado precisam ser mais bem estudados, inclusive o próprio setor automobilístico, no qual os estudos ainda possuem diversas lacunas, principalmente referentes à atuação da Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores, fundada em 1956 e que foi uma das principais beneficiadas pelas políticas de transportes com ênfase no modelo rodoviário, mas que ainda não teve suas relações com a ditadura militar esclarecidas de forma satisfatória.

IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Artigos:

COSTA, Alessandra; SILVA, Marcelo. Empresas, violação dos direitos humanos e ditadura civil-militar brasileira: a perspectiva da Comissão Nacional da Verdade.

Organ. Soc. [online]. 2018, vol.25, n.84.

MENDONÇA, Sonia Regina de. O estado ampliado como ferramenta metodológica. In: Marx e o marxismo v.2,2.2, jan/jul 2014.

PAULA, Dilma Andrade de. Ferrovias e rodovias: o dualismo na política de transportes no Brasil. In: MENDONÇA, Sônia Regina de (Orgs). Estado e historiografia no Brasil. Niterói - RJ: EDUFF, 2006.

SILVA, Marcelo Almeida de Carvalho. A expansão da Volkswagen do Brasil baseada em políticas econômicas e alinhamento ideológico. In: LEMOS, Renato Luis do Couto Neto e; CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira; BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta (orgs).

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8 Dissertações e teses de doutorado:

LIMONCIC, Flávio. A civilização do automóvel: A instalação da indústria automobilística no Brasil e a via brasileira para uma improvável modernidade fordista (1956-1961). Dissertação (Mestrado em História). Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

Livros:

CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Estranhas catedrais: As empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar. (1964-1988). Niterói: EDUFF, 2014.

KOPPER, Christopher. A VW do Brasil durante a Ditadura Militar brasileira, 1964-1985: Uma abordagem histórica.

LESSA, Carlos. 15 anos de política econômica. São Paulo: Brasiliense, 1983. Jornais:

Jornal Deutsche Welle, edição de 24 de julho de 2017. Jornal El País, edição de 18 de dezembro de 2017.

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