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Humberto Mauro, Octávio Gabus Mendes e Mário Peixoto em torno de Ganga Bruta 1

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Academic year: 2021

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

Humberto Mauro, Octávio Gabus Mendes e Mário Peixoto em

torno de Ganga Bruta

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Sheila Schvarzman

Introdução

Embora tenha se consagrado como um dos grandes clássicos do cinema mudo brasileiro, Ganga Bruta (1933) teve sua realização tumultuada por 3 anos de trabalho e adiamentos, terminou por se beneficiar do contato do diretor Humberto Mauro com Octávio Gabus Mendes, autor do roteiro e diretor de Mulher (1931) realizado na Cinédia, o primeiro estúdio brasileiro com pretensões técnicas e industriais, onde aliás Ganga Bruta também foi filmado.

O sensualismo, a precisão e a agilidade nos cortes e a ironia no tratamento dos personagens de Mulher influenciam o diretor mineiro, assim como alguns enquadramentos de Limite de Mário Peixoto, filme também realizado com o apoio de Adhemar Gonzaga, proprietário da Cinédia. Neste texto, gostaríamos de aprofundar a análise dos pontos de contato entre Mauro e os outros diretores, e o papel de Adhemar Gonzaga e da Cinédia nesse período fugaz (1930-1933), marcado pela transição do mudo ao sonoro no país, bem como de realizações marcantes do cinema brasileiro.

O período que vai de 1929 a 1933 certamente pode ser caracterizado como de amadurecimento do cinema mudo brasileiro, ainda que, cronologicamente, se pudesse ver nessas datas atraso em relação ao cinema americano e europeu2onde o som já se impunha.

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Este texto é parte da pesquisa de pós-doutoramento sobre Octávio Gabus Mendes financiada pela FAPESP

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Realização de filmes significativos, preocupação crítica e reflexiva e o surgimento de um estúdio em bases industriais contribuem decididamente para esse quadro.

Esse é o momento em que, passando das pregações à realização, Adhemar Gonzaga e o grupo de jornalistas ligados à revista Cinearte realiza Barro Humano; é também quando o cinema mudo, em seus ensaios de transformação ao sonoro, é motivo de reflexão do grupo do Chaplin Clube na revista O Fã, e é também o instante do surgimento da Cinédia, de onde saem Limite, de Mário Peixoto, em 1930 (cenas de interiores), Mulher, de Octávio Gabus Mendes, em 1932 e Ganga Bruta, de Humberto Mauro, em 1933.

Limite e Ganga Bruta encerram um período central do cinema brasileiro. São marcos

de um amadurecimento e balizas do fim do ciclo mudo. Esses filmes restaram como paradigmas e linhas mestras de realização do cinema brasileiro. Limite apontaria para o ápice do cinema mudo “de arte”, enquanto Ganga Bruta solidifica o realismo de Mauro, que se encaminha para o sonoro. Em ambos é possível perceber realizações autônomas e inventivas, resultado da elaboração de formas cinematográficas mundiais e elementos próprios, e não apenas o mimetismo de estilos consagrados.

Menos do que apontar para as diferenças entre os dois filmes, lembrando de oposições de linhagens que o Cinema Novo cunhou, gostaríamos de pensá-los em seu momento de realização, em seus pontos de contato e influências mútuas, caracterizando desta forma o amadurecimento da forma muda e o papel fundamental de Adhemar Gonzaga, Cinearte e da Cinédia, assim como de O Fã, nesse processo.

Se apontamos a Cinédia e o incipiente movimento que busca pensar o cinema brasileiro no fim dos anos 1920 no Rio de Janeiro com Cinearte e o Fã como um elo fundamental entre os dois filmes, é necessário tirar do esquecimento Mulher, filme de Octávio Gabus Mendes realizado em 1931, que terá influência marcante sobre o filme de Mauro e que traz contribuições significativas nesse quadro de clássicos brasileiros, em que não foi devidamente avaliado.

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CINEARTE, FÃ E CINÉDIA

Já são bem conhecidas as preocupações e influências da revista Cinearte e de Adhemar Gonzaga e o seu grupo na configuração imaginária e concreta de um cinema brasileiro nos anos 19203. Tentando dar consistência a esse ideário veiculado pela revista, o grupo realiza entre 1928 e 1929 o filme Barro Humano, onde procurou colocar em prática suas idéias sobre a centralidade do roteiro, ou do “cérebro” na realização de um filme, o papel destacado do subentendimento e da montagem, a preocupação com um enredo que mesclasse

sex,gags and charm4 e, consequentemente, uma imagem ´fotogênica´ e aparada do Brasil, tomada de preferência em seus aspectos urbanos e modernos, além de influenciada de maneira profunda pelo cinema norte-americanos. Para tanto, a melhoria das condições técnicas seria determinante para dar conta da imagem moderna a que aspiravam. Acreditavam que o uso correto da técnica permitiria extirpar dos filmes brasileiros sua aparência provinciana5, resultado, sobretudo, das dificuldades de iluminação já de há muito equacionadas pelos estúdios da Europa e dos Estados Unidos. Desta forma, seria possível tirar os filmes brasileiros das varandas e exteriores onde eram demasiadamente filmados6.

Descrevendo seu filme para Humberto Mauro, Adhemar Gonzaga gabava-se das tomadas em interiores, possível então pela introdução do arco voltáico:

“Ontem, domingo, trabalhei o dia inteiro com o Carlos (Carlos Moreno) e como interior agora é sopa7, fiz cenas dele só passeando por uma bruta sala! Barro já tem 15 interiores fora os de E.[Eva] Schnorer.(...). Vou tirar no Cassino de Copacabana com gente a beça e sem “mats”! Ultimamente tem

3

Gomes, Paulo Emílio Salles - Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, São Paulo, Perspectiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. Xavier, Ismail – Sétima Arte: um culto moderno, São Paulo, Perspectiva, 1978 Schvarzman, Sheila- Humberto Mauro e as Imagens do Brasil, doutoramento, IFCH/Unicamp, mimeo,2000, Bernardet, Jean Claude e Galvão, Maria R.- Cinema- Repercussões em caixa de eco ideológica, São Paulo, Embrafilme/Brasiliense, 1983 , Jean-Claude /Maria Rita, Fernão Ramos

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Adhemar Gonzaga sintetiza nessas palavras o essencial do que deveria conter um bom filme, depois de sua viagem à Hollywood em 1929. Conforme Correspondência Adhemar Gonzaga, Arquivo Cinédia, 1929

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Salles Gomes, Paulo. –“O Cinema Visto de Cinearte” IN Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. op. cit.p.295

6

idem

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aparecido tipos admiráveis e o interesse de Cinema Brasileiro tem aumentado na sociedade”8

As filmagens muito longas de Barro Humano, que levaram quase dois anos – pois filmavam apenas nos finais de semana –, foram assistidas com muito interesse pelo mineiro Humberto Mauro e pelo paulista Octávio Gabus Mendes, que vieram à Capital Federal especialmente para esse fim. O jovem Mário Peixoto, de volta de sua viagem à Europa, conhece Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, e segue também filmagens do famoso grupo.

Barro Humano tratava do romance entre jovens da Capital Federal, enquadrados

segundo a fotogenia proposta por Cinearte e incluía pela primeira vez no cinema brasileiro o papel de uma moça que, por pobre, tinha que trabalhar9. Apresentado no Rio de Janeiro, o filme é bem recebido pelo público e pela crítica. Entusiasmados, os jovens que gravitavam em torno da revista Cinearte vêem reforçadas na prática suas convicções. Com isso, em 1930 Adhemar Gonzaga cria finalmente a Cinédia, um estúdio onde procurou dar forma ao projeto de cinema brasileiro de moldes industriais e de boa qualidade técnica10. Humberto Mauro é contratado e dirige Lábios sem Beijos, enquanto Octávio Gabus Mendes, crítico, roteirista e diretor em São Paulo, prepara Mulher. Nesse mesmo ano, são rodadas no estúdio as cenas de interior de Limite. Edgar Brazil, fotógrafo de Mauro desde Brasa Dormida, de 1927, é o responsável pela fotografia.

Ainda que com grandes problemas financeiros, projetos que não se viabilizam, equipamentos que não chegam, pode-se perceber como, a partir do ideário de Cinearte, a Cinédia torna-se o centro prático de exercício, de troca, de experimentação de limites dessa utopia em torno da criação de um cinema para o Brasil. Mauro, terminado seu próprio filme, foi o diretor de fotografia do ousado Mulher, experiência que se pode ver refletida nas mudanças significativas de tratamento que aparecem em Ganga Bruta. A passagem de Edgar Brazil por Limite também não é sem consequências para o filme de Mauro.

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Correspondência Adhemar Gonzaga, Arquivo Cinédia, Agosto de 1928

9

Aquino, Carlos e Gonzaga, Alice – Gonzaga por ele mesmo, Rio de Janeiro, Record, 1989. p. 131

10

Foi ali, onde pela primeira vez se usou no Brasil um fotômetro. Ver Noronha, Jurandir – Depoimento gravado ao Museu da Imagem e do Som, .Acervo fonográfico, Rio de Janeiro

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Ao mesmo tempo, é importante lembrar que, ao lado de Cinearte, que pensava um cinema para o Brasil, surge em agosto de 1928 a revista O Fã, do grupo do Chaplin Clube onde se reuniam Plínio Sussekind da Rocha, Octávio de Faria e outros intelectuais. Nesse primeiro cineclube brasileiro eram vistos filmes alemães expressionistas, de King Vidor e obras de F.W. Murnau, como o marcante Aurora, que influencia o cinema mundial, mas sobretudo o americano. Em suas avaliações e reflexão o grupo privilegiava a montagem e o filme mudo como expressão da arte cinematográfica. Segundo Rubens Machado11, sem desdenhar da influência americana, o grupo que se junta em 1928 está preocupado com a pureza do cinema e o fim do cinema silencioso, a verdadeira arte. Eles não podem ser colocados numa oposição que os colocaria do lado da vanguarda, mas na dicotomia entre o filme americano comercial e o filme considerado de arte, tomando partido do filme de arte. Com essas preocupações em mente, têm papel fundamental na elaboração e desenvolvimento de Limite de Mário Peixoto.

Em meio a estas duas influencias, a de Cinearte e a de O Fã, pode-se situar Octávio Gabus Mendes, crítico paulista de Cinearte, que, embora rezasse inteiramente pela cartilha de Gonzaga, partilhava também das aspirações artísticas de O Fã. Assim, ao lado da importância central que têm em Mulher a montagem e o subentendimento, há nele também um viés de crítica social e moral inédito, que parece influenciar Mauro em Ganga

Desta forma, a partir de 1930, com a Cinédia, forma-se um incipiente centro de produção, onde essas idéias diversas sobre o cinema, poderão encontrar formas concretas de expressão. Com dificuldades, atrasos e frustrações, Adhemar Gonzaga, Pedro Lima, Humberto Mauro, Octávio Gabus Mendes, Edgar Brasil e Mário Peixoto podem conversar e ver trabalhos distintos em desenvolvimento.

Desse período restarão matrizes de um cinema onde o que conta é a forma, o gesto e a experimentação visual, como se vê em Limite, e, no caminho oposto, o esplendor do realismo

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Machado, Rubens – Verbete Limite, IN Ramos, Fernão (org)-Enciclopédia do Cinema Brasileiro, Senac, 2000

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do mudo avizinhando o sonoro em Ganga Bruta

Cinema Meio e Cinema Fim

Essas orientações sobre o cinema, com resultados distintos em cada um dos filmes, nos faz pensar na diferenciação proposta por Eric Rohmer entre o cinema meio e o cinema fim: “Distingo dois cinemas, o cinema que se toma como objeto e como fim e outro que toma o mundo como objeto e é um meio”12 –

Cinema como fim e cinema como meio. Uma arte encerrada em si mesmo e uma arte que contempla o mundo: – distinções que se aplicam perfeitamente a Limite e Ganga Bruta

Cinema como fim – é o cinema que contempla a si mesmo, onde os seres filmados só têm existência no interior do filme e do cinema em geral. Nesse tipo de filme, pessoas e situações têm importância menor, na medida em que definem em primeiro lugar uma concepção de cinema. Godard, Resnais, Antonioni ou Bresson seriam bons exemplos. Neles, o que interessa é a maneira de mostrar as coisas, mais do que mostrar certas coisas. Portanto, para eles, como para Júlio Bressane e Mário Peixoto, o cinema é um fim e não um meio

Por outro lado, como lembra Rohmer: “tenho a sensação de que é muito difícil representar a realidade tal qual é, ela é sempre mais bonita do que no meu filme. Ao mesmo tempo, somente o cinema pode dar a visão dessa realidade tal qual é: o olho não consegue”.

Este é o cinema como meio – existe para nos fazer conhecer, revelar os seres. É um cinema que não se coloca em primeiro lugar, mas que propõe situações, personagens.

Nele, o que interessa é menos o cinema e mais aquilo que é mostrado. A forma como se mostrará está indissoluvelmente ligada à vontade de mostrar uma coisa, uma situação ou um personagem. Neste caso, não é o cinema que é poético, mas a coisa mostrada que é .

Humberto Mauro toma o cinema como meio. Octávio Gabus Mendes pode também ser filiado a essa linha, particularmente por seu gosto forte pelo realismo, pelo grotesco e pelo sublime que se pode ver em Mulher, e muito influenciado por Stroheim, gosto que os dois diretores brasileiros partilham.

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Gostaríamos agora de examinar mais de perto, em Ganga Bruta e Mulher o trânsito de influências, de temas, de enfoques formais que marcaram e enriqueceram esse período breve mas altamente significativo do cinema brasileiro

Mulher, Limite e Ganga Bruta

Em 1931, Mauro participou de Mulher de Octávio Gabus Mendes, como diretor de fotografia, No mesmo ano também foram rodadas na Cinédia as cenas de interior de Limite de Mário Peixoto, e pelo uso inédito de alguns enquadramentos, acreditamos que Mauro não ficou indiferente à filmagem, da qual participou Edgar Brazil, um dos câmeras de Ganga

Bruta.13

Apesar da escassez de informações sobre Mulher, sabemos que Gabus Mendes havia se encantado com Brasa Dormida em São Paulo, vindo a se juntar ao grupo de Cinearte, como seu representante paulista. Mauro também é receptivo ao crítico que, assim como o diretor mineiro, instala-se no Rio de Janeiro em 1930 para trabalhar na Cinédia.

Mulher

Mulher começou a ser filmado em janeiro de 1931 a partir de uma idéia que

Adhemar Gonzaga data de 1929, quando estava em Hollywood. Depois de realizar Barro

Humano, ele tinha expectativa de produzir um filme parcialmente falado sobre as aventuras

de dois brasileiros que se encontravam em Hollywood durante um casamento, mas diversos fatores frustraram a empreitada.

O argumento final do filme, realizado em 1931, mudo, foi escrito por Gonzaga e

13

“Um detalhe importante que notamos numa Filmagem de Ganga Bruta da Cinédia e que vem provar o que é o moderno Cinema Brasileiro – vimos , nada menos de quatro câmeras utilizadas para a tomada de uma sequencia passada em interiores! É a primeira vez que vemos isso, no nosso Cinema. Antigamente o operador tinha que andar com a máquina às costas, toda a vez que se tomava uma nova colocação. Hoje já se procede como nos Studios de Hollywood. Há a camera para os Close-ups; uma outra já assestada para os

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Gabus Mendes. Conta a história de Carmen (Carmen Violeta), uma jovem pobre que vive com a mãe (Gina Cavalieri) e o padrasto (HumbertoMauro). Bonita, atrai os olhares dos homens da vizinhança, sofre o assédio do padrasto, e é seduzida por um malandro, e por isso é expulsa de casa e passa a viver sozinha numa pensão. Na procura de um trabalho, há sempre um olhar mal intencionado do empregador. Sem dinheiro, fora da pensão, desmaia de fome na rua e é socorrida por Oswaldo (Carlos Eugênio), rapaz rico que a deixa aos cuidados de Flávio (Celso Montenegro), homem ressentido pelo abandono de Lígia (Ruth Gentil), a ex-noiva, que estava se casando com Arthur (Luís Soroa). Nasce entre Flávio e Carmem a cumplicidade do abandono e depois o amor. As diferenças sociais vão dificultar o romance no meio abastado, marcado pelos preconceitos. Mas, apesar das dificuldades, o afeto verdadeiro garante o final feliz.

A primeira parte do filme, no subúrbio pobre, é marcado pela sensualidade, o erotismo e o preconceito. A construção sintética e rápida, baseada em planos curtos e cortes precisos, caracteriza de maneira expressiva a situação de pobreza, a exploração feminina e o machismo. Cenas como a da sala da casa humilde descomposta depois dos avanços do padrasto, ou fusões que misturam as pernas da moça com os olhares desejosos dos vizinhos, fazendo com que os olhos dos homens fiquem por debaixo da saia da moça, inéditas no cinema brasileiro, dão ao filme um caráter ousado tanto na construção fílmica, como no seu significado. Se Limite, de Mário Peixoto assimilava o ensaismo visual da vanguarda européia, Gabus Mendes fazia do corte e da montagem, um elemento de escrita e comentário, com agilidade, precisão e uma ironia impecáveis compondo imagens e metáforas da sensualidade feminina e de lubricidade masculina.

No meio burguês onde Carmen vai se instalar, nasce entre ela e Flávio a cumplicidade e, da troca das experiências de abandono, uma relação amorosa. Quando o amor emerge, o registro da sensualidade de Carmen transfigura-se em afeto. O erotismo característico do subúrbio desaparece e passa a habitar os ambientes ricos, na figura do dr. Arthur, o marido de Lígia, um sedutor contumaz que trai a esposa com as clientes. O romance entre Carmen e Flávio, que não se consuma em casamento, terá impedimentos: a moça não é bem vista nos ambientes frequentados pelo amante rico e culto. Carmem convencida por uma carta anônima, e pelos conselhos de Oswaldo de que a união com o talentoso rapaz impediria a sua

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felicidade, abandona-o, para não prejudicá-lo. Mas Flávio a ama de fato, e eles terminam juntos.

Na composição dessa história, a oscilação entre modernidade/rusticidade, característica dos filmes de Mauro, é substituída pelos pólos riqueza/pobreza, subúrbio/ cidade, tendo como elo comum a hipocrisia persistente nos dois ambientes. Portanto, o que

Mulher introduz de significativo, e novo para Mauro é o viés social, a caracterização de

riqueza e pobreza, sem entretanto opo-los de forma maniqueísta . Ao degenerado padrasto de Carmem, no subúrbio, se contrapõe o finório mas leviano Dr. Artur no ambiente burguês. Além disso, o acento erótico é claro e sem subterfúgios.

Mulher trata com bastante realismo, da falsa moralidade de homens e mulheres, ricos

e pobres, cultos e incultos, e das dificuldades de inserção social da mulher fadada à relação amorosa e à família, ou à exclusão. Essa Dama das Camélias moderna, tem no filme, ao contrário do romance, uma nova chance, que a convenção do happy end cinematográfico lhe concede.

Gabus Mendes expõe as noções estabelecidas e contraditórias de civilidade, modernidade, educação, e retrata com sensibilidade as dificuldades do universo feminino, a sua exclusão social derivada e acrescida pelos preconceitos morais. A moralidade corrente é criticada de alto a baixo. Mas apesar do viés crítico em relação à própria mentalidade da sociedade e seus fundamento sociais e morais, persiste na caracterização de Carmem o tratamento como heroína solitária, vítima dessa conjugação de fatores.

O uso criativo dos elementos cinematográficos como a montagem, os enquadramentos, as elipses carregam o filme de um erotismo inédito e metafórico, que critica o maniqueísmo de universos que se distinguiriam pela suposta civilidade e educação

Pode-se ver portanto que a participação em Mulher influiu na composição de Ganga Bruta, seja do ponto de vista estritamente formal: a linguagem metafórica, as elipses, que

marcam com tanta riqueza o começo de Ganga Bruta, assim como a presença do erotismo e a composição mais complexa dos seus personagens.

GANGA BRUTA

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do rico engenheiro Marcos (Durval Bellini), que mata a esposa (Lu Marival) em

plena noite de núpcias, ao descobrir-se traído. Absolvido pela justiça, Marcos

refugia-se no interior, onde espera esquecer sua tragédia, ocupando-se da

construção de gigantesca usina. Lá conhece Sônia (Déa Selva), jovem criada

pela mãe de Décio (Andréa Duarte) , de quem é noiva. Entre ingênua e

sedutora, Sônia namora Décio, mas procura atrair o torturado Marcos, que não

lhe é indiferente, embora evite a moça comprometida. Provocado por seus

ardis, o engenheiro acaba por seduzí-la. Ameaçado de vingança por Décio,

Marcos provoca acidentalmente sua morte numa cachoeira. Procurando no

campo a paz perdida na cidade, o drama e as culpas do engenheiro crescem

ainda mais com a morte da mãe de Décio. A redenção chega pelo casamento

com Sônia.

Terceiro filme realizado na Cinédia, Ganga Bruta começou a ser feito em 1931 mas foi retardado pela idéia de Gonzaga de fazer o filme na Amazônia, falta de dinheiro, de filme virgem, sem contar a participação do ator principal, Durval Bellini, nas Olimpíadas de 1932. Esse atraso implicou transformar o filme em “quase sonoro” pois além da música tem alguns ruídos e falas mescladas a legendas. Sente-se portanto, na própria direção, a necessidade de passar para o novo registro. Era preciso introduzir falas para atualizar o filme em relação àquilo que o espectador já via nas salas.

O filme se organiza de maneira bem mais complexa do que os anteriores, e denota um amadurecimento estilístico de Mauro. Basta observar o caráter sintético da exposição: casamento, assassinato, julgamento, absolvição e deslocamento para o interior ocupam não mais de 6 minutos. De imediato, o espectador é projetado no interior do drama de Marcos.

Tudo é extremamente elíptico. Há um casamento sem casamento, uma festa sem festa, o que torna o início muito sintético, ao contrário do cinema clássico da época, onde o início é necessariamente expositivo, o que pode significar também uma falha, uma aresta que o filme deixa na sua compreensão, ainda que esse resultado tenha sido tomado como uma qualidade

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação por Glauber Rocha ou Paulo Emílio

O filme começa e termina com cenas de casamento, o que caracteriza um percurso circular: o início e o final da história são quase idênticos, embora o que importe seja o percurso que leva do primeiro ao segundo matrimônio – que pode ser resumido como o calvário de Marcos (assassinato da mulher, julgamento, libertação, exílio no interior, o segundo – e involuntário – crime), ou como caminho de sua remissão.

Por outro lado, se Marcos é pecador, apesar de suas tentativas de andar pelo caminho certo, Sônia,a moça tida como pura e ingênua, em que o ideal de feminilidade confunde-se com o recato, faz desse atributos os próprios elementos da sedução. Ela é portanto pecadora também. Todos os signos, papéis sociais e morais estão subvertidos. A mulher não é apenas pura, o engenheiro não é apenas civilizado, o campo não é lugar de retorno e muito menos de paz, mas de conflito como na cidade. Não há certeza alguma, valor seguro, imagem unívoca. Mauro desfaz o homem unívoco, a mulher pura, o caráter de civilidade que o estudo e mesmo um meio privilegiado, como aquele em que nascera e vivia o engenheiro, poderiam garantir.

A caracterização violenta do engenheiro e de elementos naturais parece tornar tudo força da natureza. E é nesse sentido que o progresso e a usina, sua portadora, não se opõem às imagens da natureza nas quais estão inseridos. Ao contrário, sua estrutura gigantesca, seus tubos e silos, parecem brotar do próprio solo, como os personagens, também nada etéreos. Mas a usina, o elevador, o carro, o trem, a velocidade não são um mal, ou elementos que se opõem ao mundo natural. São sua extensão progressiva, componentes que o homem deve gerir, como a si próprio em suas pulsões. Portanto não há bem nem mal, mas a capacidade de compreendê-los, dominando o seu potencial. Esse é o trajeto de Marcos em direção à sua salvação.

Como fizera Gabus Mendes em Mulher, Mauro expõe a dupla vigência dos valores de uma sociedade que se quer forjar harmônica, civilizada, cordial, mas que o filme mostra carregada de primitivismo, conservadora e preconceituosa.

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problemáticas constitutivas e perenes, já que a construção do mundo urbano brasileiro ocorreu como extensão, e não por oposição ao mundo rural. A modernidade não é o que se apregoa. Mauro faz de seu personagem principal um engenheiro – uma figura portadora de um conhecimento e uma formação, um homem ao mesmo tempo violento, brutal e remoído por culpas. Nesse brasileiro reside a cordialidade e a truculência, a cultura mas também a arcaica noção de honra.

O diretor documenta os conflitos entre tradição e mudança, a cordialidade e a truculência, o sublime e a boçalidade, desenhando personagens não mais contraditórios, mas bem mais complexos e conflituados do que os que criara até então, influenciado agora também pelo contato com Octávio Gabus Mendes, embora, mesmo em relação à composição dos personagens, Ganga Bruta vá mais longe, eliminando a heroína e o vilão, ainda vigentes em Mulher. O tratamento do enredo vai do realismo ao naturalismo, sobretudo na abordagem da figura do engenheiro e de sua natureza arrebatada, governada em grande medida pelos instintos, assim como da protagonista, moça à primeira vista pura, mas presa ela também da paixão. Suponho que seja esse naturalismo no tratamento dos afetos e comportamentos, assim como a montagem metafórica que viu em Mulher que leva Mauro a utilizar Freud como explicação e caução para a sua encenação, quando o filme veio a público e foi criticado justamente por enfocar esses aspectos.14

O mundo é pura aparência, e como no cinema, pode ser enganador ou revelador. Basta olhar. A questão é toda essa. De que forma se olha o que está em torno? Marcos envolvido em sua própria ficção, não percebe o que está diante dos seus olhos. Sônia é sedutora todo o tempo. Produz os gestos, mas não pode aceitá-los, já que a consequência, a sedução, não pode ser admitida ou perdoada, ao contrário do assassinato pela honra, no caso do homem. O mundo está diante dos nosso olhos, da mesma forma que produzimos sinais todo o tempo, mas seu significado nos foge. O cinema capta essas dualidades, a distância entre o que se deseja, o que se mostra e o que é possível ver.

14

Em sua entrevista gravada no MIS em 1966, Mauro fala de péssima recepção da crítica ao filme “em parte porque falei de Freud, e o Pongetti me escrachou, me chamou de Freud de Cascadura. Eu conversando com o Sadoul num francês medonho de ginásio percebi que ele pensava que aquilo era um elogio!” .Acervo fonográfico, MIS, Rio de Janeiro, 1966

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