• Nenhum resultado encontrado

“Multiletramento”, “multimodalidade”, “multitela”, “multitv”: a construção [multi + X] no português brasileiro segundo a gramática cognitiva

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "“Multiletramento”, “multimodalidade”, “multitela”, “multitv”: a construção [multi + X] no português brasileiro segundo a gramática cognitiva"

Copied!
99
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

ADRIANA CARVALHO DA SILVA

“Multiletramento”, “multimodalidade”, “multitela”, “multitv”:

a construção [multi + X] no português brasileiro segundo a gramática cognitiva

GUARULHOS – SP 2019

(2)

a construção [multi + X] no português brasileiro segundo a gramática cognitiva

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de São Paulo para obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Estudos Linguísticos. Linha de pesquisa: Linguagem e Cognição. Orientador: Prof. Dr. Janderson Lemos de Souza

Data da defesa: 13/12/2019

Prof. Dr. Janderson Lemos de Souza Universidade Federal de São Paulo

Profa. Dra. Marcia Veirano Pinto Universidade Federal de São Paulo

Profa. Dra. Verena Kewitz Universidade de São Paulo

(3)

“Multiletramento”,”multimodalidade”, “multitela”, “multitv”: a construção [multi + X] no português brasileiro segundo a gramática cognitiva / Adriana Carvalho da Silva. Guarulhos, 2019.

97 f.

(Mestrado) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2019.

Orientação: Prof. Dr. Janderson Lemos de Souza.

1. Linguística Cognitiva. 2. Gramática Cognitiva. 3. História da Língua Portuguesa. I. Prof. Dr. Janderson Lemos de Souza. II.

“Multiletramento”,”multimodalidade”, “multitela”, “multitv”: a construção [multi + X] no português brasileiro segundo a gramática cognitiva.

(4)

Aos meus pais, José e Zizete, que, apesar de pouco estudo, souberam ensinar às filhas o valor da educação. Obrigada por todo o esforço.

À minha família, especialmente irmãs e sobrinhos, pela compreensão durante o período do Mestrado.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Janderson Lemos de Souza, pela paciência e orientação no trabalho e por me apresentar o universo da Linguística Cognitiva.

À Profa. Dra. Marcia Veirano Pinto pelas aulas de Linguística de Corpus, as quais foram essenciais para a elaboração desta dissertação e à Profa. Dra. Verena Kewitz pela valorosas contribuições no exame de qualificação.

Aos amigos da UNIFESP que tive o prazer de conhecer na jornada do Mestrado. Muito obrigada por dividirem comigo as angústias e alegrias durante esse tempo, especialmente à Julia e Beatriz, pela força nos momentos mais difíceis.

Obrigada a todos os amigos e familiares que torceram pelo meu sucesso. Aos colegas e amigos queridos da SME, agradeço pela compreensão, paciência e colaboração nesses dois últimos anos. Minha eterna gratidão ao Felipe, grande incentivador para o meu ingresso no mestrado e para realização desta conquista. Um amigo para a vida toda.

(5)

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais

alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava.

(6)

Esta dissertação tem como objeto a construção [multi + X] no português brasileiro segundo a gramática cognitiva. A motivação inicial para o trabalho veio de palavras que ocorrem nos currículos de Língua Portuguesa da rede municipal de ensino de São Paulo, como “multiletramento” e “multimodalidade”. Depois, de palavras que ocorrem no uso cotidiano da língua, como “multitela” e “multitv”. Por isso, nossa investigação logo se deslocou do uso restrito a um gênero textual para o uso mais geral no português brasileiro.

A teoria adotada é a Linguística Cognitiva, que propõe o conceito de conceptualização como fenômeno em que o falante real produz significado a partir de uma perspectiva. Dentre seus modelos, a Gramática Cognitiva foi adotada pela autointitulação, desde a origem, como modelo baseado no uso e pelo interesse, inscrito em seu nome, na gramática das línguas naturais como produto da cognição humana.

Nossas hipóteses são que (i) falantes do português brasileiro fazem uso criativo da construção [multi + X] e que (ii) a evolução do latim ao português, portanto anterior à formação do português brasileiro, promoveu a herança de palavras a partir das quais a construção foi depreendida. A partir dessas hipóteses, o objetivo geral desta dissertação é demonstrar o uso criativo da construção no português brasileiro, enquanto os objetivos específicos são descrever o construal imposto pela construção e caracterizar a relação entre “multi”, “muito” e “mui” como um caso de heterossemia na evolução do latim ao português.

Como fonte de dados, utilizamos o Corpus do Português, disponível em https://corpus.byu.edu/.

(7)

This dissertation addresses [multi + X] construction in Brazilian Portuguese according to Cognitive Grammar. The initial motivation to develop it comes from words used in the syllabuses of Portuguese for the public education in the city of São Paulo, such as “multiletramento” and “multimodalidade”. Later, from words in the ordinary use of the language, such as “multitela” and “multitv”. Therefore, our investigation quickly changed the focus from the usage in a specific text genre to the wider usage in Brazilian Portuguese.

The theoretical framework adopted is Cognitive Linguistics, which takes conceptualization for the construction of meanings by real speakers from a perspective. One of the models of the theory is Cognitive Grammar, adopted for its self-titling as a usage-based model from the start and for the interest, manifested in its name, in the grammar of natural languages as a product of human cognition.

Our hypotheses are that (i) speakers of Brazilian Portuguese make creative use of [multi + X] construction, and (ii) the evolution from Latin to Portuguese, therefore long before the formation of Brazilian Portuguese, promoted the heritage of words out of which the construction was extracted. Based on these hypotheses, our general aim is to demonstrate the creative use of the construction in Brazilian Portuguese, whereas our specific aims are to descrive the construal imposed by the construction and characterize the relationship among “multi”, “muito” and “mui” as a case of heterosemy in the evolution from Latin to Portuguese.

Corpus do Português, available at https://corpus.byu.edu/, is our source of data.

(8)

1 INTRODUÇÃO 10

2 REVISÃO DA LITERATURA 16

2.1 A TRADIÇÃO LEXICOLÓGICA 16

2.2 A TRADIÇÃO LEXICOGRÁFICA 23

2.3 FORMAÇÃO DE PALAVRAS A PARTIR DO ITEM 24

2.4 FORMAÇÃO DE PALAVRAS A PARTIR DA CONSTRUÇÃO 27

3 LINGUÍSTICA COGNITIVA E GRAMÁTICA COGNITIVA 34

3.1 CLASSES DE PALAVRAS E DESTAQUE 41

4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 51

4.1 O CORPUS 51

4.2 PALAVRAS COM “MULTI” VS A CONSTRUÇÃO [MULTI + X] 53

4.3 AS FORMAS “MUITO” E “MUI” NOS REGISTROS DO CORPUS 72

5 ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO [MULTI + X] 81

5.1 O SIGNIFICADO CONSTRUCIONAL (CONSTRUAL) 84

5.1.1 ESPECIFICIDADE (OU GRANULARIDADE OU RESOLUÇÃO) 84

5.1.2 FOCO 86

5.1.3 PROEMINÊNCIA (OU SALIÊNCIA) 89

5.1.4 PERSPECTIVA 90

5.2 MULTI, MUITO E MUI: UM CASO DE HETEROSSEMIA? 91

6 CONCLUSÃO 94

(9)

Figura 1: Propaganda NET ... 10

Figura 2: “Multitv” ... 11

Figura 3: O novo universo “multitelas” e o consumidor “multiplataforma” ... 11

Figura 4: "Multitela" - Coluna Ilustrada ... 11

Figura 5: “Multidia” e “Multinoite” - Benegrip ... 12

Figura 6: “Multiprofissional” - e-mail processo seletivo Unifesp ... 12

Figura 7: “Multigrip” ... 12

Figura 8: "Multicoisas" – loja ... 13

Figura 9: "Multipropriedade" - Fasano private residences ... 13

Figura 10: Rede construcional em diacronia ... 39

Figura 11: Síntese do construal ... 40

Figura 12: Tela inicial do Corpus do Português ... 52

Figura 13: Página inicial de busca no subcorpus gênero/histórico... 53

Figura 14: Página de resultado da busca por multi* no subcorpus gênero/histórico ... 55

Figura 15: Linha de concordância relativa ao século XIII ... 57

Figura 16: Contexto linha de concordância referente registro do século XIII ... 59

Figura 17: Linhas de concordância relativas ao século XIV ... 61

Figura 18: Registros “gênero oral” no Brasil ... 63

Figura 19: Resultado da busca por chart - Brasil ... 65

Figura 20: Resultado parcial da busca por lemma e list - Brasil ... 66

Figura 21: Tela de busca inicial –subcorpus web/dialetos ... 69

Figura 22: Resultado de busca no subcorpus web/dialetos ... 70

Figura 23: Resultado da busca por “muito” ... 73

Figura 24: Resultados parciais da forma “muito” - século XIII ... 75

Figura 25: Resultado da busca por “mui” por chart - Brasil e Portugal ... 77

Figura 26: Resultados parciais de “mui” - século XIII ... 79

(10)

1 INTRODUÇÃO

Em 2017, após 17 anos trabalhando como professora de Língua Portuguesa (LP) no Ensino Fundamental II (do 5º ao 9º ano) da Rede Municipal de Ensino de São Paulo (RME-SP), fui convidada a fazer parte da equipe técnica da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME-SP) para colaborar na elaboração do novo currículo de LP para as escolas municipais de São Paulo, alinhado à Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Ao final do ano de 2017, a SME lançou o “Currículo da Cidade: Ensino Fundamental: Língua Portuguesa”.

Do novo documento curricular, algumas palavras me inquietavam há algum tempo, por estarem presentes em textos acadêmicos da área de LP e também em documentos curriculares anteriores da RME-SP. Algumas dessas palavras eram “multiletramento” e “multimodalidade”, presentes no título desta dissertação.

Foi nesse contexto que surgiu meu interesse em pesquisar a forma “multi” em currículos de LP da cidade de São Paulo. No projeto submetido à seleção para o Programa de Pós-graduação em Letras da UNIFESP, denominei “multi” como um prefixo. Durante a revisão da literatura, compreendi que boa parte da discussão sobre o “multi” diz respeito exatamente ao seu status como prefixo ou radical e, consequentemente, à sua atuação na derivação ou na composição.

No entanto, comecei a notar que havia novas palavras com “multi” em circulação em diferentes esferas sociais, como demonstram as figuras a seguir, e não só na esfera educacional, própria dos documentos curriculares, os quais têm como autor e leitor um falante mais letrado.

Figura 1: Propaganda NET

(11)

Figura 2: “Multitv”

Disponível em: http://www.multitvcidades.com.br/. Acesso em: 2/12/2018.

Figura 3: O novo universo “multitelas” e o consumidor “multiplataforma”

Disponível em: https://www.thinkwithgoogle.com/intl/pt-br/tendencias-de-consumo/comportamento-consumidor-multiplataforma/. Acesso em: 2/10/2019.

Figura 4: "Multitela" - Coluna Ilustrada

Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/07/1905496-coluna-multitela-com-dicas-de-web-e-tv-e-ampliada-a-partir-deste-domingo.shtml? Acesso em: 2/10/2019.

(12)

Figura 5: “Multidia” e “Multinoite” - Benegrip

Disponível em: https://www.benegrip.com.br/benegrip-dia-e-noite.php. Acesso em: 2/10/2019.

Figura 6: “Multiprofissional” - e-mail processo seletivo Unifesp

De: informativo@unifesp.br

Data: 31 de outubro de 2019 12:57:18 BRT

Para: todos-l@listas.unifesp.br

Assunto: Processo seletivo da Residência Multiprofissional e em Área Profissional de

Saúde da Unifesp

Processo seletivo da Residência Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde da Unifesp

Seção: Comunicados / Imprensa UNIFESP/HU.

Enviada por: PAULA GARCIA

Data: 31/10/2019 às 13:57h

Estão abertas, até as 18h do dia 26/11/2019, as inscrições para o processo seletivo dos programas da Residência Multiprofissional em Saúde e em Área Profissional de Saúde da Unifesp, credenciados pela Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde (CNRMS) do MEC, para o ano de 2020.

Fonte: Informativo Unifesp/2019

Figura 7: “Multigrip”

Disponível em: https://www.callfarma.com.br/produto/9229multigripcom20capsulasmultilab. Acesso em: 3/10/2019.

(13)

Figura 8: "Multicoisas" – loja

Disponível em: https://jtv.com.br/2018/12/11/multicoisas-valinhos/. Acesso em: 3/10/2019.

Figura 9: "Multipropriedade" - Fasano private residences

Disponível em:

http://www.fasanocidadejardim.com.br/?utm_source=google&utm_medium=cpc&utm_campaign=fasanoprivate &utm_term=fasano&utm_content=texto. Acesso em: 3/10/2019.

Dessa forma, um nova inquietação surgia na professora: o que estava motivando os falantes do português a criar palavras com “multi”? Com isso, a minha motivação para pesquisar esse fenômeno linguístico deslocou-se de um gênero textual (currículo) para a gramática e os usos que os falantes (letrados ou não) fazem da língua e, por essa razão, a presença das palavras “multitela” e “multitv” no título desta dissertação.

Por sua vez, a filiação desta pesquisa à Linguística Cognitiva (LC) levaria à reformulação da indagação sobre “multi”, a começar por identificar o item “multi” como elemento fixo de uma construção e por investigar o significado que a construção produz (seu construal), sem confundi-lo com o significado que cada palavra produz, sob pena de perder-se de vista a generalização que a Gramática Cognitiva propicia. Com isso, afasta-se a preocupação com o item e sua classificação, e torna-se prioritários os processos cognitivos de domínio geral co m que a Gramática Cognitiva aborda uma construção como unidade de análise.

Discernindo entre o tempo da aquisição da língua pelo falante (considerado pelo modelo) e o tempo em que constitui a história da língua portuguesa (considerado pelos estudos sobre a

(14)

forma “multi”) e a partir de nossa inquietação sobre por que “multi” é o elemento fixo da construção [multi + X], os objetivos desta dissertação são:

i. demonstrar o uso criativo do esquema pelo falante do português brasileiro;

ii. descrever o construal imposto pela construção [multi + X] no português brasileiro; iii. caracterizar a relação entre “multi”, “muito” e “mui” como um caso de heterossemia em

português.

Nossas hipóteses, por sua vez, formuladas nos termos do modelo, são que (i) as palavras mais antigas na língua dispararam o processo cognitivo de esquematização; (ii) o uso criativo da construção [multi + X] exige que X seja um nome, o que, nos termos da Gramática Cognitiva, é consequência de destacar uma coisa como parte do construal imposto pela construção; e (iii) “multi”, “muito” e “mui” se distribuem na língua a partir da mesma motivação semântica, que é a de predicar.

Apesar de se intitular um modelo baseado no uso, a Gramática Cognitiva apresenta análises apenas de dados de introspecção. Não se encontra na obra de Ronald Langacker, formulador do modelo, nem dados recolhidos do uso nem orientações sobre como registrar o uso. Por isso, a adoção do modelo em sua dicção epistemológica impõe o desafio metodológico de eleger um corpus, o que aproxima a Linguística Cognitiva e a Linguística de Corpus. Nesta dissertação, optamos pelo Corpus do Português para o levantamento de dados por permitir a busca até o século XIII.

A Gramática Cognitiva convida a identificar as construções que constituem a gramática de uma língua natural numa faixa sincrônica. Ao expor o entendimento segundo o qual a morfologia se caracteriza por construções que se instanciam em uma palavra – como [N +

less] em inglês – enquanto a sintaxe se caracteriza por construções que se instanciam em mais

de uma palavra – como [N1 + less N2] em inglês –, Langacker (2008, p. 24) não pergunta por que “less” é o elemento fixo na construção associada à morfologia. No entanto, não impede de perguntar, sob pena de recair num dos pontos que ataca: “(…) the sharp distinction drawn between the synchronic study of language structure and the diachronic study of how it changes and evolves (…)” (p. 13). Ao perguntar por que “multi” é o elemento fixo da construção [multi + X], esta dissertação promove outra articulação, agora entre a Linguística Cognitiva e a Linguística Histórica.

Com isso, esta dissertação é formada por cinco capítulos além desta apresentação. O segundo capítulo é dedicado à revisão da literatura, iniciando-se por autores que se ocupam da

(15)

evolução do latim ao português. O terceiro capítulo é dedicado à teoria que orienta este trabalho, a Linguística Cognitiva, e ao modelo adotado, a Gramática Cognitiva. O quarto capítulo apresenta os procedimentos metodológicos e o corpus utilizado nesta dissertação. O quinto capítulo, a análise da construção [multi + X] nos termos do modelo e a relação entre “multi”, “muito” e “mui” na história da língua portuguesa. Por fim, encerramos esta dissertação com a apresentação de nossas conclusões e com as referência bibliográficas que a sustentam.

(16)

2 REVISÃO DA LITERATURA

Os autores reunidos nesta revisão da literatura se ocupam da evolução do latim ao português (Cardoso e Cunha, 1978; Cunha, 1982; Góis, 1945; Lausberg, 1963; Maurer Jr., 1959; Williams, 1994); da tradição lexicográfica (Kastovsky, 2009); da formação de palavras a partir do item (Basilio, 1987; Câmara Jr., 1989; Cunha, 2007; Sandmann, 1996); ou da formação de palavras a partir da construção (Bauer, 2005; Booij, 2005). A seguir, apresentaremos a posição de cada um, tendo em vista refinar nossas hipóteses e objetivos.

2.1 A TRADIÇÃO LEXICOLÓGICA

Entende-se por lexicologia o estudo do léxico, considerado como equivalente a vocabulário, pela tradição gramatical. O olhar da tradição lexicológica é retroativo, incide sobre as palavras como produtos cuja origem pode ser identificada e cuja formação pode ser datada mediante procedimentos filológicos. Vejamos o que os autores reunidos nesta seção têm a dizer sobre “multi” e que questões levam em conta.

Góis (1945) apresenta“multi” como raiz e como prefixo e aponta a relação com “muito” e “mui”:

MULT2, numeroso. Cf. o lat. Mult-us, a, um. Em: a) mult-i-dão; b) o prefixo multi: multiforme, multicor. Variante – MUIT (com a vocalização do l e

consequente nasalização do u em virtude da contaminação do m) em muit-o e sua forma abreviada mui. (p. 198)

O fato de ser um dicionário de raízes e cognatos parece contradizer que “multi” possa ser um prefixo. Lembremos, no entanto, “[...] a antiga norma das nossas gramáticas de separar o estudo dos prefixos do dos sufixos, considerando aqueles ‘elementos de composição’, ao contrário de alguns autores modernos, que falam em ‘derivação sufixal e prefixal’ em português” (Câmara Jr., 1989, p. 102). Portanto, ser uma raiz, como em “multidão”, é compatível com ser um prefixo, como em “multiforme”.

A respeito da “nasalização do u em virtude da contaminação do m”, indicada por Góis

(1945), Williams (1994) esclarece:

B. O m inicial por vezes nasalisava a vogal seguinte: matrem > mãe; mĕam > mĩa > minha; mĭhī > mi > mim; multum > muito [mũjntu]. Êsse fenômeno é muito comum no português dialetal e popular [...] (p. 73).

(17)

Para o autor, o fenômeno se soma à influência do grupo interno:

5. ǫ tônico do lat. vulg. + lt > ut: ausculto > ascuito > escuto; mũltum > muito; uŭltŭrem > abuitre > abutre.

A. O estágio intermediário ui foi preservado em muito pela influência da forma apocopada mui. (WILLIAMS, 1994, p. 51)

Observa-se, desta maneira, que ambos os autores apontam “mui” como forma apocopada de “muito”, que, assim como “multi”, é a evolução do adjetivo latino “multus, a, um”.

Assim como Góis (1945), Lausberg (1963) trata da evolução fonológica, remetendo à vocalização do l para u em línguas românicas e observando que o u proveniente de l antes de consoante combinou-se com a vogal posterior para formar um ditongo:

[...] Depois de u, em espanhol e português, o l (antes de t) palataliza-se (dissimila-se): multu, auscultat, vulture por muito, escuita (> escuta), abuitre (> abutre) [...] (LAUSBERG, 1963, p. 200).

De volta à relação entre a forma “multi” e a composição, Cunha (1982) registra:

multi- elem. comp., do lat. multi-, de multus ‘muito, numeroso, abundante’, que se documenta em alguns compostos formados no próprio latim (como multicolor) e em muitos outros, introduzidos, a partir do séc. XIX, na linguagem científica internacional. (p. 538)

O autor passa, então, a registrar “os derivados e compostos eruditos formados nas línguas modernas de cultura”, o que remete ao compromisso da tradição lexicológica com o caráter atestado das formas, à distinção entre derivação e composição e à formação do léxico do português a partir do latim e de outras línguas.

As palavras que constam no verbete1 acima são: “multiangular” (1858), “multiaxífero” (1858), “multicapsular” (1858), “multicaudo” (1899), “multicelular” (1873), “multiedro” (século XX), “multífloro” (do francês “multiflore”, 1858), “multifoliado” (1899), “multífuro” (século XVIII), “multilateral” (do inglês “multilateral”, século XX), “multilátero” (do latim tardio “multilaterus”, 1844), “multilobado” (do latim científico “multilobātus”, 1858), “multilustroso” (1881), “multimilenário” (século XX), “multimilionário” (século XX), “multinacional” (século XX), “multinérveo” (1899), “multíparo” (do inglês “multiparous”, por sua vez, do latim científico “multiparus”, 1873), “multipétalo” (1873), “multipontuado”

1 As informações que constam nos parênteses (data, período e origem) são indicadas por Cunha (1982) nos

(18)

(1873), “multisciente” (1899), “multíscio” (1899) “multissecular” (grafado um “s”, 1873), “multiungulado” (1881), “multivalve” (do latim científico “multivalvis”, 1858) e “multivalvular” (1899). Como se vê, o latim vulgar e o latim usado pela ciência são equiparados a línguas modernas na condição de estranhas ao português.

As palavras a que o autor reserva verbetes próprios são: “multicaule” (do latim “multicaulis”, 1858), “multicolor” (do francês “multicolore”, por sua vez, do latim “multicolōris,-e”, na forma “multicor” (popular), século XVIII), “multidão” (do latim “mŭltitŭdo, -ĭnis”), “multifário” (do latim “multifārius”, 1881), “multifido” (do latim “multifĭdus”, 1873), “multiforme” (do latim “multiformis, -e”), “multígeno” (do latim “multigĕnus”, 1890). “multíloquo” (do latim “multilŏquus”, 1881), “multimâmio” (do latim “multimammĭus”, 1899), “multímodo” (do latim “multimŏdus”, (século XVIII), “multipartido” (do latim “multipartītus”, 1858), “multípede” (do latim “multĭpēs, -pĕdis”, 1873), “multiplicar” (do latim “multiplĭcāre”, na forma “multipricar”, século XIV), “multíssono” (do latim “multisŏnus”, na forma “multisono”, 1881), “multívago” (do latim “multivăgus”, 1881) e “multívolo” (do latim “multivŏlus”, 1881).

Passemos a autores que permitirão entender melhor a separação operada por Cunha (1982) e discernir entre a condição de “multi” e “muito”, de um lado, e a de “mui”, de outro, conforme Góis (1945) e Williams (1994).

Cardoso e Cunha (1978) distinguem entre três esferas de constituição do léxico: a hereditária (que remete à evolução do latim ao português), a de empréstimos (que remete ao contato entre o português e outras línguas) e a de formação interna ou vernácula. Ao longo desta dissertação, empregaremos essa distinção sem acompanhar a concepção de léxico, em particular, ou de língua, em geral.

Na esfera hereditária, formas convergentes “acabam por confluir, no curso evolutivo de uma língua, para a mesma forma, para um vocábulo idêntico” (p. 158), como “são” (<

sanctus), “são” (< sanus) e “são” (< sunt). Nesses termos, a homonímia é consequência da

convergência hereditária. Por sua vez, “há divergência hereditária quando duas ou mais formas correspondentes a uma base etimológica comum divergem em face de indicidências que de algum modo perturbaram a evolução linguística normal” (p. 160).

Para os autores, a divergência pode ocorrer nas três esferas de constituição do léxico (a hereditária, a de empréstimos e a de formação interna ou vernácula) e levar a diferentes tipos de formas, que classificam como divergentes fonético-históricas, divergentes de vestígios casuais, divergentes de flexão genérica e divergentes de origem latina.

(19)

Na esfera da herança, as divergências fonético-históricas levam um “mesmo vocábulo originário a se bifurcar ou até multiplicar-se em formas divergentes”, como:

[...] arbitriu > alvitre e alvedrio; articulu > artigo e artelho; capitale > cabedal e caudal; clavicula > cravelha e chavelha; cubitu > coto e côvado; defensa > defesa e devesa; despoliare > despojar, desbulhar e debulhar; implere > emprir (arc.) e encher; fenuculu > fiolho (arc.) e funcho; fluxu > froixo e choco; legitimu > lídimo e lindo; macula > mágoa, malha, mancha, mangra; masticare > mascar e mastigar; spasmu > pasmo e espasmo; populare > pobrar (arc.) e povoar; pulletru > poldro e potro; regula > régua, regra e relha; signu > sino e senho; teneru > terno e tenro; vinculo > vinco e brinco. (p. 160)

É como formas divergentes fonético-históricas que pretendemos caracterizar “multi” e “muito” em relação a “multus”. Para tanto, usaremos o conceito de heterossemia (Lichtenberk, 1991) em referência aos casos mencionados acima e ao que consiste no objeto desta dissertação.

Já na esfera de empréstimos:

Diz-se que há divergência de empréstimo quando a uma forma hereditária se junta outra de empréstimo, quer tomada ao próprio latim, quer tomada a alguma das línguas românicas, desde que as respectivas bases etimológicas sejam comuns. (CARDOSO E CUNHA, 1978, p.163)

Tal é a relação entre “delir” (evolução do latim “delēre”) e “deletar” (empréstimo do inglês “delete”, por sua vez emprestado do latim “delēre”) e entre evoluções naturais e reconstituições eruditas:

Nas palavras de origem latina, costuma-se distinguir as formas populares, que continuam, através da evolução fonética, um vocábulo hereditário, das formas eruditas, que são tomadas pelos escritores, sob forma de empréstimo, ao latim dos livros. (p. 163)

Quando o empréstimo não é feito do latim, a divergência fonético-histórica pode envolver mais de uma língua neolatina, como em:

aptitudine > aptidão e atitude (através do francês attitude); cappa > capa e chapa (através do francês chape); capu > cabo e chefe (através do francês chef); opera > obra e ópera (através do italiano opera); etc. (p. 164)

(20)

Quando o empréstimo é feito do latim e de línguas neolatinas, a divergência resulta no que os autores chamam de polimorfia vocabular: “planu > chão, porão (popular), plano (erudita),

lhano (através do espanhol llano) e piano (através do italiano piano)” (p. 165).

Por fim, Cardoso e Cunha (1978) tratam da divergência na esfera de formação interna ou vernácula, esfera em que situam o convívio entre as formas “multi”e “pluri”:

De uma mesma origem – latina, por exemplo – podem provir prefixos de idêntico ou semelhante conteúdo nocional: ante- e pre-; multi- e pluri-; re- e retro-; etc. No processo de formação de palavras, a língua acolhe-os indiferentemente, resultando daí formas divergentes de prefixação: anteceder e preceder, antepor e prepor, multissecular e plurissecular, reagir e retroagir, transmontano e ultramontano, etc. Não é raro a forma latina do prefixo concorrer com a adaptação vernácula do mesmo elemento mórfico [...] (p. 165)

Em nota, os autores esclarecem que incluíram no caso da prefixação os radicais latinos e gregos que “funcionam como primeiro elemento nos compostos” (p. 166), o que remete à posição de Câmara Jr. (1989) quanto à prefixação fazer parte da composição.

Assim como a distinção entre o herdado, o vernáculo e o empréstimo, a distinção entre popular em referência à evolução e erudito em referência à inserção já se encontrava em Maurer. Jr. (1951), que acrescenta a categoria semieruditos:

A invasão contínua de numerosos vocábulos latinos no romance levou à distinção comum entre termos populares (os que entraram para o romance em época antiquíssima ou pertenciam ao patromônio primitivo, sofrendo tôdas as transformações fonéticas regulares) e.g., port. malha, chão, artelho, etc.; termos semieruditos (os que entraram para o romance no período preliterário ou nos primórdios da época literária, sofrendo ainda certas transformações menores que os anteriores): port. crérigo (arc.), virgem, régoa, mágoa, cabedal, bispo, vigiar, arcaico ínsoa, angeo, etc.; termos eruditos (aqueles que não sofreram transformação fonética, a não ser ligeira vernacularização), assim mácula, óculos, artículo, plano, capital. (p. 61-62)

Ao tratar da formação de palavras, o autor não inclui “multi” nem na prefixação nem na composição, o que indica que não considera a prefixação como parte da composição. Considera como padrões de composição a formação de “substantivos compostos por justaposição de determinante + determinado” (p. 140) e de “adjetivos compostos formados de adjetivo + substantivo” (p. 145), nos quais caberiam palavras com “multi”, mas não menciona nem uma sequer.

(21)

No latim clássico predomina a anteposição. Delbrück cita uma estatística de alguns adjetivos feita por Albrecht nas cartas de Cícero, segundo a qual, nelas, magnus precede o substantivo 424 vezes e o segue apenas 57. Nas mesmas tantus vem anteposto 119 vezes e posposto 9. Multus antepõe-se 80 vezes e pospõe-se 11, omnis está anteposto 380 vezes e posposto 98, etc. (MAURER Jr., 1951, p. 174)

A ausência de considerações sobre “multi” é compensada por essa observação sobre a predominância da anteposição do adjetivo “multus” na medida em que a formação de palavras com “multi” só se dá com “multi” em posição inicial. Trata-se de evidência que retomaremos quando abordarmos a relação entre morfologia e sintaxe nos termos da Gramática Cognitiva.

Também sem tratar diretamente de “multi”, Maurer Jr. (1959) traz a informação de que, além do adjetivo “multus, -a, -um”, havia, em latim, o advérbio “multum”:

Para substituir o antigo superlativo absoluto recorreu-se a advérbios de intensidade, particularmente a multum, já frequente em Plauto (mas não em Terêncio, o que concorda com o caráter mais popular da construção). Na época clássica se encontra até em Cícero, onde é raro, e em Horácio, que tem construções populares freqüentes; assim “multum celer atque fidelis” (Sat., II, 3, 147). Na România multum é geral, se bem que a Dácia empregue geralmente o advérbio forte (foarte bun), também encontrado no albanês e no francês. Exemplos: port. muito grande, fr. ant. molt grant, it. molto grande, etc. [...] Multum é mais antigo e geral, mas ao lado dêle se empregaria forte e mesmo bene, além de outros advérbios. (p. 104)

Com isso, o autor nos permite esclarecer que a construção [multi + X], objeto desta dissertação, remete ao adjetivo, e não ao advérbio.

Ao tratar do adjetivo, Maurer Jr. (1959) ajuda a entender por que, para Bomfim (1988), em “andou muito” e “comeu pouco”, exemplos da autora, “[...] não há incidência de muito e

pouco sobre o verbo, mas sobre o resultado ou a consequência do processo verbal” (p. 8).

Logo, “[...] não existem intensificadores nem advérbios de nenhuma natureza, mas pronomes indefinidos” (p. 8). Vejamos:

Multus, multa, multum (port. muito, esp. mucho, it. molto, rum. mult,

etc.). Exemplo de uso do neutro temos, e.g., em português: êle sabe

muito. (MAURER Jr., 1959, p. 116)

Portanto, seja em “andou muito”, seja em “ele sabe muito”, o “muito” que ocorre é o que evoluiu do adjetivo “multus, -a, -um”, no neutro (multum), e não do advérbio (multum).

Os autores reunidos nesta seção são unânimes quanto à origem de “multi” ser o adjetivo latino “multus, -a, -um”. Góis (1945) e Lausberg (1963) tecem considerações fonológicas que

(22)

fogem ao escopo desta dissertação. Góis (1945), Cunha (1982) e Cardoso e Cunha (1978) convergem quanto à participação de “multi” na composição e quanto à distinção entre formas populares e eruditas, lembrando que entendem por popular toda forma que entrou no português por evolução (naturalmente) e por erudita toda forma que entrou no português por inserção (artificialmente). Por sua vez, Maurer Jr. (1951, 1959), apesar de não tratar de “multi”, nos permite (i) explicar a anteposição de “multi” na formação de palavras em português como continuação da tendência à anteposição dos adjetivos, em geral, e do adjetivo “multus”, em particular, em latim; e (ii) dissociar o “multi” de que tratamos nesta dissertação do advérbio “multum”, o que exclui de nosso horizonte a interpretação intensificadora de “multi” e restringe nossa análise à interpretação predicadora de “multi”.

As contribuições específicas de Cardoso e Cunha (1978) permitem (i) distinguir entre a condição de “multi” e “muito” como formas divergentes na esfera hereditária e a da evolução de “muito” a “mui” como formas divergentes na esfera vernácula; e (ii) entender a separação entre verbetes por Cunha (1982): as palavras que o autor inclui no verbete “multi” são as que Cardoso e Cunha (1978) classificariam como vernáculas ou empréstimos (mesmo que a língua-fonte seja o próprio latim, em se tratando de palavras que não acompanharam a evolução do latim ao português, mas foram reconstituídas a partir do século XIX para uso escrito em gêneros textuais científicos), já as palavras a que o autor reserva verbete próprio são as que Cardoso e Cunha (1978) classificariam como hereditárias porque, apesar de exibirem uma versão erudita (cf. “multicolor”), constituem a formação do português por evolução natural (cf. “multicor”).

Esta primeira seção de revisão da literatura permite refinar nossas hipóteses: (i) as palavras a partir das quais terá sido depreendido o esquema [multi + X] por falantes do português são as hereditárias, como “multidão”, “multicor” e “multiplicar”; (ii) o uso criativo do esquema pelo falante do português brasileiro (sem embargo a que também seja pelo falante do português europeu) se evidencia por meio de palavras vernáculas, como “multicelular” e “multimilionário”, ou de empréstimos, como “multilateral” e “multifloro”; e (iii) há que distinguir entre o tempo de aquisição da língua (resultado dos processos cognitivos previstos pela Gramática Cognitiva no indivíduo) e o tempo de formação e mudança da língua (produto da atuação cumulativa dos mesmos processos na comunidade de falantes de cada variedade).

(23)

2.2 A TRADIÇÃO LEXICOGRÁFICA

Como contraparte da tradição lexicológica que se ocupa da modalidade escrita, a tradição lexicográfica é de menor interesse a esta dissertação, que se filia aos estudos da gramática. No entanto, consideramos relevante contemplar um autor que tem a atenção voltada não somente à tradição lexicográfica (do inglês), como também a contribuições de teorias linguísticas, refletindo questões de que cuida a tradição lexicológica, como a distinção entre herança e empréstimo e a distinção entre derivação e composição.

Kastovsky (2009) relata que 70% das palavras do vocabulário inglês são formadas por empréstimos. Com base no Oxford English Dictionary (OED) e no New English Dictionary (NED), o autor discute a distinção, empregada nesses dicionários, entre formas combinatórias (combining forms), que podem ser iniciais ou finais, prefixos e sufixos.

The basic problem with these definitions is that the linguistic status of these elements was never really made clear in the NED, nor were there any criteria by means of which they could be distinguished from other types of lexical element such as words, roots, stems or affixes. But then neither were these elements really well-defined within a morphological theory at the time, which was only developed much later than the origin of the OED, and even today terminology still varies considerably in this respect. (p. 3)

O autor reconhece que o conceito de “forma combinatória” abriga formas de diferentes origens, entre as quais “multi”:

Thus he [Marchand, 1969] criticises the OED for treating elements such as a-, semi- (= original prefixes), hyper-, intra-, para- (= original particles) and astro-, electro-, hepato-, multi-, omni- (= original stems) as different categories, as affixes and combining forms, although from a Modern English point of view they should have the same status, foreign bound forms without independent existence in English. But then his practical solution is just as inconsistent. Thus he regards as prefixes only such particles as are prefixed to “full English words”. And he excludes elements such as astro-, electro-, galato-, hepato-, oscheo-, etc. from treatment in his book because they are of a “purely dictionary interest” — a very questionable argument in view of their important role in scientific terminology, which could not do without them. But then he includes among his prefixes elements such as poly-, multi-, auto-multi-, crypto-multi-, neo-multi-, originally a mixed bag of prefixesmulti-, stems and particles subsumed under the label of “combining forms” in the OED, which in view of his own statements is far from consistent. (p. 4)

Kastovsky (2009) propõe o abandono da noção de combining form e uma categorização das formas que participam da formação de palavras:

(24)

I have tried to show that the notion of “combining form” introduced by the OED is not necessary. The categories of “word”, “stem”, “affix”, “affixoid”, “clipping” and “blending” necessary in word-formation for independent reasons are sufficient to deal with the formations in question. Moreover, it can be argued that compounding, affixation, clipping and blending should be regarded as prototypical patterns arranged on a scale of progressively less independent constituents ranging from word via stem, affixoids, affix, curtailed word/stem to splinters as constituents of blends, and finally acronyms (letter combinations), i.e.

(12) compounding (word) > stem compounding (stem) > affixoids > affixation proper (word-/stem-based) > clipping compounds (clipping of words/stems) > blending > splinters > acronyms. (p. 12)

Como se vê, fazem parte da proposta não somente as categorias de formas (palavra, radical e afixo) e as categorias de processos (composição, afixação) herdadas da tradição gramatical, como também categorias de formas (afixoide e splinter) e categorias de processos (truncamento, mescla e siglagem) formuladas por diferentes teorias linguísticas. Outra novidade em relação aos autores que representam a tradição lexicológica (seção 2.1) é a adoção do modelo radial de categorização, numa escala de formas das mais livres às mais presas.

A principal convergência com a tradição lexicológica é a classificação de “multi” como um radical. A teoria proposta por Cardoso e Cunha (1978) permite conciliar a condição de “multi” como empréstimo ao inglês e herança ao português.

2.3 FORMAÇÃO DE PALAVRAS A PARTIR DO ITEM

Os autores reunidos nesta seção compartilham o interesse pelos processos de formação de palavras herdados da tradição: derivação ou composição. Os diferentes compromissos teóricos, no entanto, levam a posições diferentes quanto a tais processos.

Comecemos por Câmara Jr. (1989), antecipado incidentalmente à seção 2.1 para esclarecer por que Góis (1945) classifica “multi” como radical e prefixo. Para o autor:

Os prefixos aí são de natureza lexical; como variantes de preposições sob o aspecto de formas presas, se associam com um semantema principal, como pre- no port. prever (...), introduzindo no conjunto uma idéia subsidiária, que cria para o semantema uma significação nova. É por isso que devemos considerar perfeitamente legítima a antiga norma das nossas gramáticas de separar o estudo dos prefixos do dos sufixos, considerando aqueles ‘elementos de composição’, ao contrário de alguns autores modernos, que falam em ‘derivação sufixal e prefixal’ em português. (CÂMARA JR. 1989, p. 102)

(25)

Como se vê, a derivação se restringe à sufixação enquanto a prefixação integra a composição. Portanto, o estruturalismo (teoria que adota o princípio da sincronia) absorveu da tradição lexicológica (de natureza diacrônica) a concepção de que mesmo um prefixo como “pre” (sem preposição correspondente no português, com preposição correspondente, “prae”, somente no latim, cf. Kewitz et al, 2018) forma palavras por composição.

Mantendo o foco nos processos de formação de palavras e observando o princípio da sincronia, Basilio (1987) entende que:

[...] o processo de derivação obedece às necessidades de expressão de categorias nocionais, com contraparte sintática ou não, mas de caráter fixo e, via de regra, de teor geral. Já o processo de composição obedece à necessidade de expressão de combinações particulares. (p. 28)

Para a autora, a generalidade da derivação é causa da participação de elementos fixos (base + afixo) enquanto a especificidade da composição é causa da participação de elementos esporádicos (base + base). O teor de produtividade da derivação é “diretamente relacionado com o teor da generalidade de sua função”. Já na composição, “estruturas sintáticas são utilizadas para fins lexicais”.

Por exemplo, em compostos do tipo substantivo + substantivo, o primeiro substantivo funciona como núcleo da construção e o segundo como modificador ou especificador: sofá-cama, peixe-espada, couve-flor; em composições de substantivo + adjetivo, o núcleo é o substantivo e o modificador e o adjetivo, independente da ordem de ocorrência: obra-prima, livre-arbítrio, caixa-alta, belas-artes. Ainda, em composições verbo + substantivo, o substantivo tem função análoga à de objeto direto do verbo: guarda-roupa, mata-mosquito, porta-bandeira. (p. 30)

Estabelecida a distinção entre derivação (por prefixação, sufixação ou parassíntese) e composição como processos lexicais, a autora reconhece que a recorrência de uma base lhe confere comportamento de afixo, e seus exemplos são exatamente de bases na primeira posição:

Pelo que vimos até agora, a combinação de elementos na formação de uma palavra composta é imprevisível, na medida em que depende das necessidades especifícas de cada caso, além da alternativa metafórica. Entretanto, temos pelo menos um tipo de composição em português que parece apresentar uma função constante. Veja os dados abaixo:

(1) a. guarda-chuva, guarda-roupa, guarda-vestidos b. guarda-livros, guarda-costas

(26)

(2) a. porta-aviões, porta-copos, porta-luvas b. porta-estandarte, porta-bandeira (3) pára-lama, pára-quedas, pára-raios

(4) mata-mosquitos, saca-rolhas, salva-vidas, pega-ladrão, mata-borrão (p. 33) A autora estende a recorrência a bases que ocorrem na segunda posição e ilustra com o caso de “mente”, que retomaremos na próxima seção. O conjunto de exemplos leva a pensar na entrada de “multi” no português como radical e a recorrência em palavras herdadas como evidência do uso criativo no latim, mantido no português, o que explica a dupla categorização: radical pela origem ser um adjetivo do latim, prefixo pela recorrência na formação de palavras no português.

Assim como Basilio (1987), Sandamnn (1996) inclui a prefixação na derivação. O foco na produtividade leva a considerar a recorrência:

Prefixos são morfemas derivacionais, isto é, não ocorrem livremente e são usados para formações em série, enquanto um composto tem origem na concatenação de dois morfemas livres: prefixação: anti-semítico (anti- não ocorre livremente e se presta para formações em série, a saber, une-se com frequência a palavras portuguesas, não sendo por isso mais sentido como um elemento estrangeiro): composição: mesa-redonda (mesa e redondo podem ocorrer livremente dentro da frase). (SANDMANN, 1996, p. 13)

Em relação à “formação em série” e a “elementos estrangeiros”, o autor esclarece que:

À categoria “formação em série” pertencem também formações que se originaram do fato de um elemento constituinte estrangeiro (por exemplo o alemão/inglês land/land, português -lândia, ou auto- e multi-, oriundos, respectivamente, do grego e do latim) se unir facilmente a palavras portuguesas, isto é, ele não é mais sentido como um elemento estrangeiro: autoproclamar-se, multilingue, brizolândia. (SANDMANN, 1996, p.10)

Como se vê, o autor diverge da tradição lexicológica quanto à classificação de “multi” (para ele, empréstimo; para a tradição, herança) e ao processo de que participa (para ele, derivação; para a tradição, composição). Em outra passagem, o autor converge com a tradição lexicológica quanto à classificação de “multi” como prefixo e ao convívio com “pluri”:

multi-

Esse prefixo significa “muito, diverso” e se une a adjetivos e substantivos: multidisciplinar (programa multidisciplinar); multiconfessional; multipartidário (o Aurélio traz pluripartidário, sinônimo de multipartidário); multifamiliar (construções multifamiliares);

(27)

multiusuário2 (computador multiusuário); multivisão. (SANDMANN, 1996, p. 23)

Por sua vez, Cunha (2007) classifica “multi” como pseudoprefixo ou prefixoide, ao lado de “pluri”, e oferece como exemplos “multifacetado”, “multinacional”, “pluripartidarsimo” e “plurisseriado”. Segundo o autor, esses elementos se caracterizam por terem certa independência, apresentarem “uma significação mais ou menos delimitada e presente à consciência dos falantes” (p. 114) e produtividade menor que a dos prefixos propriamente ditos.

Com isso, temos, na tradição gramatical brasileira, o emprego de uma categoria de formas que vimos em Kastovsky (2009): afixoide. Cunha (2007) esclarece que o critério semântico permite distinguir entre prefixoides e radicais eruditos, na medida em que prefixoides “[...] ingressam noutras formações com sentido diverso do etimológico” (p. 114).

Na seção 2.2, vimos que Kastovsky (2009) rejeita a categoria forma combinatória e adota a categoria afixoide. Na seção 2.4, veremos que Booij (2005) rejeita a categoria afixoide como parte de uma abordagem construcional à formação de palavras. Isso reflete, primeiro, a substituição do modelo clássico pelo modelo radial de categorização na classificação de formas e, depois, a substituição da agenda de classificação de formas pela agenda de identificação e descrição de construções gramaticais.

2.4 FORMAÇÃO DE PALAVRAS A PARTIR DA CONSTRUÇÃO

Nesta seção, apresentaremos duas abordagens construcionais de orientação gerativa: Bauer (2005) e Booij (2005). Elas preservam do lexicalismo gerativo, representado por Basilio (1987) na seção 2.3, a modularidade e, consequentemente, a autonomia forte da sintaxe. No próximo capítulo, o cotejo com a abordagem construcional proposta pela Gramática Cognitiva permitirá caracterizá-la pela rejeição à noção de regra (cf. Bybee, 2010; Traugott e Trousdale, 2013) e à modularidade, comum a todos os modelos da Linguística Cognitiva, e pelo compromisso com a autonomia fraca da sintaxe, específico do modelo (cf. Langacker, 2008).

2 Nota do autor: “Como os adjetivos disciplinar e usuário dificilmente são empregados com o significado

‘relativo a uma disciplina científica ou escolar’ e ‘útil’, respectivamente, surge a pergunta se, no caso, não se trata de formações parassintéticas. Suposição semelhante gostaria de fazer a propósito das formações acima

multiconfessional; multipartidário e multifamiliar. Essa questão não nos deve, porém, ocupar aqui por mais

tempo. De qualquer maneira parece que o campo de aplicação do modelo de formação de palavras de derivação parassintética é bem mais amplo que se supunha até aqui [...]” (p. 23).

(28)

O que as abordagens construcionais têm em comum, a despeito da teoria a que se filiam, é o objetivo de produzir economia descritiva e explicativa, propiciado pelo menor número de construções que o de itens. Não se trata, portanto, de negar a existência de itens, e sim de filiar itens a construções, considerar que as construções gozam de realidade psicológica como unidades da gramática e abandonar a agenda de classificação dos itens.

Os autores reunidos nesta seção entendem que a abordagem construcional pode contribuir para a distinção entre derivação e composição.

Segundo Bauer (2005), a fronteira entre composição e derivação não é clara nem rígida:

The borderline between derivation and compounding is permeable in both directions: things which were once compounds can be seen as affixed forms, and things which were once affixes can take on a new life as words (although change in this direction is much rarer than change in the other direction). (p. 97)

Esta primeira observação da autora nos permite retomar o caso de “mente”, mencionado incidentalmente por Basilio (1987), como apontamos na seção 2.3, e tratado pela Linguística Funcional como caso de gramaticalização3, processo que, como veremos adiante, é levado em consideração por Booij (2005) também. O caso de “mente” é de mudança de palavra a sufixo, ressalvado o comportamento distinto do de um sufixo original (cf. Basilio, 1998), o que, na Linguística Funcional, é atribuído a um princípio de domínio específico, o princípio da persistência (cf. Givón, 1995).

O resultado é o convívio entre o substantivo “mente” e o sufixo “mente”. O fato de que “muito” é livre como o substantivo “mente” e de “multi” é preso como o sufixo “mente” não deve, no entanto, invocar o processo de gramaticalização, visto que “multi” não é “muito” gramaticalizado, “multi” e “muito” são evoluções de “multus”.

O ponto aqui é que “mente” como palavra atuaria na composição enquanto “mente” como sufixo atuaria na derivação, o que leva Bauer (2005) a considerar permeável a fronteira entre os dois processos.

3 “A gramaticalização é tradicionalmente entendida como o processo mediante o qual uma unidade lexical

adquire uma função gramatical ou uma unidade gramatical adquire uma função ainda mais gramatical. É uma mudança linguística gradual, tipicamente unidireccional, que não se define como um tipo de mudança gramatical, ao contrário do que o termo introduzido há um século por Meillet (1912: 131) sugere, mas envolve a correlação de diversas mudanças linguísticas, nomeadamente morfossintácticas, semânticas, pragmáticas e fonológicas” (SOARES DA SILVA, 2012, p. 25).

(29)

The histories of many of the familiar and well-studied European languages give us a number of cases of compounds at one period of history becoming derivatives at a later period. This is a standard scenario in grammaticalisation. (BAUER, 2005, p. 98)

A autora considera que a mudança de uma forma da derivação para a composição é mais rara:

Examples which move from derivation to compound are much rarer and less homogeneous in type. In some cases, any change seems to be the incidental result of some other change in the language. Given that scholars of grammaticalisation often hypothesise that changes in this direction are impossible, even suggestive examples are important. (BAUER, 2005, p. 101)

O truncamento contribui para tal mudança, como em “(hyper < hyperactive; mini <

mini-car, mini-skirt; photo < photograph; tele < television)” e, poderíamos acrescentar, “micro <

microcomputador”, “foto < fotografia”, entre outros em que o primeiro elemento da composição passa a ocorrer sozinho com o significado do todo.

A autora emprega a categoria splinter em referência a formas que resultam de reanálise, como o clássico caso de “burger”, “[...] originally a reanalysis from hamburger which shows up in beefburger and cheeseburger” (p. 105). Portanto, um fragmento de palavra pode vir a comportar-se como formativo ou como palavra, dificultando a preservação da fronteira entre derivação e composição.

Booij (2005), por sua vez, parte da posição assumida por Anderson (1992), segundo a qual a composição dá a regras gramaticais acesso à estrutura das palavras por ser um processo do módulo sintaxe enquanto a derivação não dá acesso a regras gramaticais à estrutura das palavras por ser um processo do módulo morfologia. Tal posição é semelhante porém distinta daquela de Basilio (1987), na medida em que a autora, apesar de reconhecer a utilização de “estruturas sintáticas para fins lexicais”, concebe a derivação e a composição como processos do léxico, considerado tão regular quanto a gramática.

O contraste entre posições lexicalistas dentro da Linguística Gerativa vai matizando a posição de Booij (2005) na direção de uma abordagem construcional em que tanto a derivação quanto a composição dão a regras gramaticais acesso à estrutura das palavras e a categoria afixoide se revela inconsistente. O desenvolvimento de sua reflexão permite o resgate de pontos apresentados nesta dissertação.

Por exemplo, ele afirma que, em francês, morfemas (categoria sem lugar tanto na posição de Anderson, 1992, quanto na de Basilio, 1987) ocorrem tanto como preposição quanto na primeira posição em palavras compostas:

(30)

The demarcation of prefixation and compounding is a notoriously difficult task in the morphological analysis of Romance languages. In French, for instance, some morphemes appear both as preposition, and as the first part of complex words. (BOOIJ, 2005, p. 112)

Na seção 2.3, vimos que Câmara Jr. (1989) parte exatamente desse fato para não distinguir entre prefixação e composição, e sim considerar a prefixação constitutiva da composição.

Outro ponto é o reconhecimento da gramaticalização como um fator que contribui para a inexistência de fronteira nítida entre a derivação e a composição, na medida em que dados de diferentes línguas, como a francesa, a inglesa, a holandesa e, poderíamos acrescentar, a portuguesa apresentam casos de mudança de status morfológico ao longo do tempo.

No entanto, Booij (2005) se afasta, mais que Bauer (2005) e menos que a Gramática Cognitiva, da agenda de classificação de formas ao propor esquemas de formação de palavras, os quais são abstraídos de expressões em uso pelos falantes, expressam generalizações sobre conjuntos de palavras existentes e também podem ser usados para criar novas palavras:

Language users acquire knowledge of these abstract morphological schemas on the basis of their knowledge of a set of words that instantiate this pattern. Once they have come across a sufficient number of words of a certain type, they can infer an abstract scheme, and will be able to extend that class of words. As Tomasello (2000: 238) points out, the endpoint of language acquisition is to be defined “in terms of linguistic constructions of varying degrees of complexity, abstraction, and systematicity”. This also applies to the level of morphological constructions. (BOOIJ, 2005, p. 124)

Com isso, o autor adota o método indutivo que caracteriza os modelos baseados no uso, remete a Goldberg (1995) e Kay (1997), autores de diferentes modelos da Linguística Cognitiva (a Gramática das Construções Cognitiva e a Gramática das Construções de Berkeley, respectivamente, cf. Traugott e Trousdale, 2013), mas conclui que “[...] compounding and affixal derivation can not be assigned to different modules of the grammar” (p. 129), o que pressupõe a modularidade, conforme observamos no início desta seção.

The structural similarity between compounding and affixal derivation can be expressed by means of word formation schemas that express generalizations about sets of existing words, and can also be used to make new words. For instance, Dutch has right-headed compounds, suffixed nouns, and prefixed nouns. These three morphological patterns can be represented as follows: (16) a. compounding: [[x]X[y]Y]Y

b. suffixation: [[x]Xy]Y

(31)

The variables x and y stand for phonological strings and the variables X and Y for lexical categories. (p. 122)

Ressalvado o ecumenismo teórico, aquilo que da proposta de Booij (2005) é compatível com a Gramática Cognitiva se restringe ao caráter indutivo da aquisição da língua e aos graus de especificação dos esquemas. O compromisso com a modularidade, no entanto, faz com que cada grau de abstração corresponda a um nó sintático. Portanto, é preciso ter cautela na identificação de semelhanças, dada a completa incompatibilidade epistemológica entre a abordagem construcional aqui apresentada e a que resulta da Gramática Cognitiva. As semelhanças sequer são notacionais, uma vez que, para Booij (2005), a notação tem status de formalização enquanto, para Langacker (2008), tem status de heurística, como consequência direta da autonomia forte da sintaxe para o primeiro e da autonomia fraca da sintaxe para o segundo.

Como parte desta identificação cautelosa de semelhanças, o caráter indutivo da aquisição da língua não remete a um processo cognitivo em Booij (2005). Já em Langacker (2008, 2009), a depreensão de esquemas a partir de palavras reais se dá por meio de um processo de domínio geral, chamado esquematização. Dado o compromisso com a modularidade, na proposta de Booij (2005), há somente processos de domínio específico: unification e

conflation (análogos a fusão, merge, e movimento, move, no âmbito lexical).

Por sua vez, os diferentes graus de abstração permitem refinar a descrição do objeto desta dissertação.

The basic idea of constructional schemas is that they represent generalizations about sets of complex words with varying degrees of abstraction. The complex words themselves are specified individually in the lexicon to the extent that they are established, conventionalized lexemes. The relation between the abstract scheme and the individual instantiations of that scheme can be represented as a tree with the constructional schema as the dominating node. Individual words form the lowest nodes of the trees, and inherit the properties of the nodes by which they are dominated. (BOOIJ, 2005, p. 123)

Para o autor, o grau intermediário de abstração caracteriza um constructional idiom. Ao retomar o comportamento de “door” no holandês, que se comporta como preposição e prefixo, como “contra” e “entre” em português, o autor conclui que a adoção de sua abordagem construcional prescinde de classificar “door” como prefixo uma vez estipulada o

(32)

In other words, the traditional classification of this use of door as a prefix means that this word has a specific meaning when used as part of complex verbs. However, we do not have to consider door a prefix. It can keep its status of being the first constituent of a compound [...] (BOOIJ, 2005, p. 127) Como se vê, o autor parte do esquema da composição [[x]X [y]Y]Y para o constructional

idiom [[door]P [x]V]V, o que pressupõe, na direção inversa, que o falante adquiriu o esquema da composição à medida que foi adquirindo palavras com “door”. Por isso, “door” mantém a categoria lexical “P” (preposição) no construction idiom. Assim, a abordagem proposta desincumbe o analista de categorizar “door” como prefixo mas pressupõe que se trata de composição, o que remete à posição de Câmara Jr. (1989) de considerar a prefixação como parte da composição.

Quanto ao nosso objeto, no entanto, o fato de que “multi” não ocorre fora de palavras e, portanto, não se filia a uma categoria lexical impõe que o esquema a estipular seja o da prefixação: [x [y]Y]Y. Consequentemente, haveria dois construction idioms: [multi [y]S]S para palavras como “multiletramento” e “multitv”, e [multi [y]A]A para palavras como “multinacional” e “multimilionário”. Com isso, nosso objeto se restringiria ao primeiro.

Os autores reunidos nesta seção nos permitem dar um passo na direção do quadro teórico adotado nesta dissertação, que se afasta da agenda de classificação de formas ou de processos de domínio específico. A proposta de Bauer (2005) segue a linha de Kastovsky (2009) quanto à adoção da categorização radial: ela para os processos derivação e composição, ele para as formas que participam desses e de outros processos.

A proposta de Booij (2005) mantém a categorização clássica, adotada pela Linguística Gerativa, mas avança no abandono da classificação de formas ao prever que, nos casos em que a forma ocorre como preposição e como prefixo, a filiação à categoria lexical seja mantida e, consequentemente, o esquema abstraído das palavras em que tais formas ocorram seja o da composição. A proposta remete à de Câmara Jr (1989) mas é distinta, na medida que, para Booij (2005), há composição com preposição na primeira posição e, para Câmara Jr. (1989), há composição com prefixo exatamente porque prefixo é a versão presa da forma dependente preposição.

Portanto, a proposta de Booij (2005) se afasta da de classificação de formas mas não prevê qual esquema é depreendido de palavras em que o elemento inicial tem comportamento

(33)

fonológico de palavra (cf. Schwindt, 2001)4 mas não corresponde a uma categoria lexical. Ao explorarmos o esquema da prefixação, por eliminação, recaímos no debate sobre “multi” ser radical ou prefixo, o que impede o total abandono da classificação da formas.

No próximo capítulo, pretendemos demonstrar que a Gramática Cognitiva captura os graus de abstração sem recair na classificação nem de formas nem de processos formais. Na notação proposta pelo modelo, o esquema seria [multi + X] e os possíveis subesquemas seriam [multi + S(ubstantivo)] e [multi + A(djetivo)].

4 Schwindt (2001) oferece um tratamento dos prefixos do português brasileiro com base na Teoria da

Otimalidade, ramificação lexicalista e não modular da Linguística Gerativa. Portanto, a menção ao autor não o aproxima a Booij (2005), que oferece um tratamento construcional e modular da formação de palavras, igualmente filiado à Linguística Gerativa. Schwindt (2001) não inclui “multi” entre os prefixos composicionais (com acento) apesar da possibilidade de ocorrer isoladamente.

(34)

3 LINGUÍSTICA COGNITIVA E GRAMÁTICA COGNITIVA

A Gramática Cognitiva é um dos modelos da Linguística Cognitiva. O contraste entre fundamentos da teoria e especificidades do modelo será feito sempre que relevante para os objetivos desta dissertação.

Diferentemente da Linguística Gerativa, que abriga modelos lexicalistas e não lexicalistas, modelos centrados no item e modelos centrados na construção, modelos modulares e modelos não modulares, todos os modelos das Linguística Cognitiva são lexicalistas, centrados na contrução e não modulares. Na Gramática Cognitiva, a discussão sobre a não modularidade assume feições próprias: rejeição à autonomia forte da sintaxe e adoção da autonomia fraca da sintaxe, com a consequente rejeição à formalização (toda a notação é considerada heurística).

A partir do fundamento segundo o qual “Grammar is meaningful” (Langacker, 2008, cap. 1), o modelo nasce voltado para habilidades cognitivas (Langacker, 1987) e passa a enfatizar processos de domínio geral (Langacker, 2008, 2009): associação, automatização, categorização e esquematização. A associação fomenta o processamento como fenômeno psicolinguístico, a automatização promove rotinização e confere a uma forma status de unidade, a categorização permite interpretar uma experiência nova com base em experiências anteriores (reconhecer diferentes formas como instanciações da mesma construção), e a esquematização permite identificar recorrências entre diferentes experiências (abstrair esquemas a partir de formas).

Where does lexicon stop and grammar begin? The point, of course, is that there is no particular place. But this is not to say that no distinction can be drawn. The key parameter is specificity. To the extent that symbolic assemblies are specific, they would tend to be regarded as lexical, both traditionally and in CG. To the extent that they are schematic, they would generally be considered grammatical. Thus lexicon can be characterized as residing in fairly specific symbolic assemblies, and grammar in more schematic ones. (LANGACKER, 2008, p. 22)

A especificidade como parâmetro para a distinção, sem dicotomia, entre léxico e gramática tem como consequências diretas nesta dissertação, que se ocupa de uma construção que resulta em itens lexicais:

i. Na direção do específico ao esquemático, a centralidade da esquematização na depreensão, durante o processo de aquisição da língua, da construção [multi + X] a partir das palavras que, no capítulo 2, vimos a tradição lexicológica classificar como

Referências

Documentos relacionados

DA DESPESA - As despesas decorrentes deste Termo Aditivo correrão a conta da seguinte programação orçamentária: R$ 1.760,00 (mil setecentos e sessenta reais) Órgão: 16 –

Durante o período pós-operatório foram registrados os valores da escala numérica de 11 pontos para avaliar a dor, a escala de sedac ¸ão de Ramsay, a escala de avaliac ¸ão

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Entre as atividades, parte dos alunos é também conduzida a concertos entoados pela Orquestra Sinfônica de Santo André e OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São

Figura 8 – Isocurvas com valores da Iluminância média para o período da manhã na fachada sudoeste, a primeira para a simulação com brise horizontal e a segunda sem brise

Como registrado no capítulo sobre Relacionamento com a mídia, a CGCOM deve elaborar um Guia de Fontes, tornando disponíveis para os jornalistas e os interessados em

Presidente--- Para Deliberação:Aprovado por maioria com a abstenção do Vereador António Moreira.--- Remeter à Assembleia Municipal para apreciação e votação.--- Ponto 4