• Nenhum resultado encontrado

ESQUEMAS EXPRESSÕES ENCONTRADAS NO CORPUS DO PORTUGUÊS

5.2 MULTI, MUITO E MUI: UM CASO DE HETEROSSEMIA?

Quando Basilio (1987) exemplifica com “mente” um caso de fronteira entre composição e derivação, remete, sem usar o conceito, à gramaticalização de um substantivo (léxico) a um sufixo (morfologia). Lichtenberk (1991) oferece um tratamento para esses “mente” que a língua tem: não são dois (homonímia) porque a origem é uma só, não é um (polissemia) porque a mesma forma não pode ser palavra e afixo.

Diante de casos como esse, adotando a concepção clássica de gramaticalização, o autor propõe uma revisão do conceito de heterossemia:

I will adopt – and adapt – Persson’s 1988 term ‘heterosemy’ to refer to cases (within a single language) where two or more meanings of functions that are historically related, in the sense of deriving from the same ultimate source, are borne by reflexes of the common source element that belong in different morphosyntactic categories. (LICHTENBERK, 1991, p. 476)

Tal conceito tem sido objeto da reflexão de diferentes autores comprometidos com a Linguística Cognitiva. Velozo e Bernardo (2014) abordam a relação entre “mas” e “mais” no português com base em Lichtenberk (1991) e no modelo da Linguística Cognitiva intitulado por Traugott e Trousdale (2013) como Gramática das Construções Cognitiva, associado a

Lakoff (1987), autor levado em consideração por Lichtenberk (1991) em sua reflexão sobre a polissemia.

As autoras retomam de Castilho (2010) a relação diacrônica entre “mais” e “mas” como evoluções de “magis”17. Ressalte-se que nem Castilho (2010) nem Velozo e Bernardo (2014) adotam a concepção de gramaticalização presente em Lichtenberk (1991), que Castilho (2010) aborda a filiação de “mais” e “mas” a “magis” com base na Teoria Multissistêmica e que Velozo e Bernardo (2014) abordam o mesmo fenômeno com base na Gramática das Construções Cognitiva.

O convívio entre “muito”, “mui” e “multi” na língua portuguesa atesta o que afirmam Langacker (2009) e Castilho (2010). A ressalva fundamental é que, conforme vimos no capítulo 2, “multi” não resulta da gramaticalização de “muito” nem “mui” da gramatizalização de “muito”. Daí o cuidado de Lichtenberk que associar a heterossemia à gramaticalização como fenômeno vernáculo (“within a single language”).

O fato de que o conceito de heterossemia tem sido recebido sem a concepção de gramaticalização que Lichtenberk (1991) adota leva alguns autores a discutir que conceito de gramaticalização é compatível com a Linguística Cognitiva (cf. Langacker, 2009, cap. 3; Soares da Silva, 2012). Nesta dissertação, estamos dissociando heterossemia e gramaticalização, com vistas a formular uma descrição de fatos apresentados até aqui.

Para tanto, é necessário incluir no alcance da heterossemia o que Maurer Jr. (1951, 1959) e Cardoso e Cunha (1978) chamam de herança. Afinal, a mudança linguística, nos termos previstos por Langacker (2009) e Castilho (2010), pode resultar na formação de outra(s) língua(s), como se deu na evolução do latim nas línguas neolatinas. Reunidos o herdado e o vernáculo, a restrição a “dentro da mesma língua” deixa de capturar um dos resultados possíveis da mudança.

Nestes termos, passam a poder ser relacionadas pela heterossemia todas as formas que a tradição lexicológica chama de divergentes (v. capítulo 2). Do mesmo modo, quando Maurer Jr. (1959) informa que, em latim, há o adjetivo “multus” e o advérbio “multum”, entendemos que (i) a relação entre o adjetivo no neutro (multum) e o advérbio (multum) também é de heterossemia; e que (ii) essa relação foi herdada pelo português como padrão de predicação, como em “ele é bonito” e “ele fala bonito”, “ele é rápido” e “ele chegou rápido”.

17 O fenômeno já interessava à Semântica Argumentativa, conforme explicado por Castilho (2010). Vogt (1983

[2015]) lembra que “(...) no próprio latim já existe um certo número de exemplos do emprego de magis como conjunção adversativa” (p. 104).

A partir dessa evidência de que a predicação em português herdou a heterossemia que organiza a predicação em latim, esta dissertação defende que:

(i) “multi” ser a evolução do adjetivo explica por que veio a ser o elemento fixo na construção [multi + X], em que “multi” tem uma coisa por escopo tanto quando X é um substantivo quanto quando X é um adjetivo;

(ii) a relação entre “multi” e “muito” também pode ser tratada como de heterossemia, em que “muito” predica na sintaxe e “multi” predica no léxico, guardadas as diferenças quanto à especificidade/esquematicidade que apontamos na seção anterior;

(iii) a construção [multi + X] invoca a descrição como composição por causa do padrão adjetivo-substantivo (“livre-arbítrio”, “belas-artes”) mas o predicador em questão não é um adjetivo esporádico a instanciar a construção [A-S], e sim o elemento fixo da construção [multi + X];

(iv) “multus” esteve disponível para instanciar o X (elemento variável) de uma construção do latim ([X + udo]), disponível como molde, herdado pelo português como esquema ([X + idão]).

Com isso, articulamos dispositivos analíticos fornecidos pela Gramática Cognitiva e um conceito fornecido pela Linguística Funcional mediante a dissociação entre heterossemia e gramaticalização, na medida em que estendemos o conceito de heterossemia à esfera da herança, sem ignorar a evolução que se situa na esfera vernácula. Afinal, esta proposta preserva que a evolução de “multus” a “muito” e “multi” é hereditária, enquanto a evolução de “muito” a “mui” é vernácula. A heterossemia é a relação que há entre “multi”, “muito” e “mui”, de um lado, e entre o “muito” pronome (não por acaso um pronome adjetivo) e o “muito” advérbio, por outro.

6 CONCLUSÃO

Esta dissertação parte da indagação quanto à presença de palavras com “multi” nos currículos oficiais do ensino de língua portuguesa no estado de São Paulo. O foco no item faz parte da formação acadêmica tradicional e explica por que “multi” é classificado como prefixo no projeto inicial.

Na fase de revisão da literatura, reunida no capítulo 2, constatamos que diferentes autores também consideram “multi” como prefixo e, consequentemente, o associam à composição, enquanto outros o consideram como radical e, consequentemente, o associam à derivação. O compromisso com a Linguística Cognitiva, teoria que implementa, em todos os seus modelos, uma abordagem construcional, deslocou a atenção da forma e das categorias formais para os processos cognitivos de domínio geral. A adoção da Gramática Cognitiva, por sua vez, levou a considerar quatro processos (associação, automatização, esquematização e categorização) que organizam a experiência e, consequentemente, a conceptualização.

A adoção do modelo incluiu dois expedientes previstos mas não implementados pelo modelo. O primeiro foi o de perguntar pela história do elemento fixo de uma construção como [multi + X], o que nos remeteu à Linguística Histórica. O segundo foi o de, preservando o interesse do modelo na generalização máxima, que explica que o objeto seja o significado construcional, levantar dados do uso real, o que nos remeteu à Linguística de Corpus. O que cinge essas duas articulações teóricas é que os dados levantados não são apenas sincrônicos, e a pesquisa sobre o uso em diacronia esbarra nas dificuldades metodológicas reconhecidas pela Linguística.

A análise que formulamos revela a identificação dos elementos que compõem o significado de qualquer construção segundo a Gramática Cognitiva (especificidade, foco, proeminência e perspectiva) verificados na construção [multi + X], ressalvado que o próprio modelo reconhece que a morfologia nunca esteve no centro de sua atenção. Daí termos feito considerações acerca das relações entre morfologia e sintaxe e léxico e gramática, de modo a não invocar as dicotomias contra as quais a Linguística Cognitiva se insurge nem associar à Linguística Cognitiva a qualquer abordagem que anuncie como construcional. A análise também acompanha um movimento de recepção do conceito de heterossemia pela Linguística Cognitiva, propondo a dissociação entre gramaticalização e heterossemia, de um lado, e a reunião do herdado com o vernáculo, por outro.

Muitas questões ficam em aberto. A identificação das palavras “multidão” no século XIII e “multiplicar” no século XIV deve ser considerada como evidência de quais estão entre as que

atuam na depreensão da construção [multi + X]. Que outras atuaram no português como língua em formação? Que outras atuam em cada variedade do português? Que outras atuam em cada falante de cada variedade do português?

A permanência de “multidão” e “multiplicar” no português brasileiro nos leva à hipótese de que tais palavras (com analisabilidade e composicionalidade reduzidas pela condição de herdadas) estão entre as que atuam na esquematização em cada falante que adquire esta variedade, não que apenas elas o façam. Análises por século, a partir de diferentes fontes, poderiam ampliar o alcance da hipótese. Nesta dissertação, entendemos ter demonstrado o uso criativo por meio de dados contemporâneos – sejam eles mais presentes na escrita, em geral, ou num gênero textual, em particular, sejam eles mais presente na fala – assim como cuidamos de distinguir entre a pertinência dos dados à hipótese do uso criativo e a especificidade de tais dados ante a generalidade do significado construcional, aqui tomado por objeto.

Documentos relacionados