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ESQUEMAS EXPRESSÕES ENCONTRADAS NO CORPUS DO PORTUGUÊS

5.1 O SIGNIFICADO CONSTRUCIONAL (CONSTRUAL)

No capítulo 3, vimos que “construal” é um conceito presente desde a formulação da Gramática Cognitiva (Langacker, 1987, 1991). O compromisso desta dissertação com esse modelo da Linguística Cognitiva nos levou a formular o objetivo de descrever o construal imposto pela construção [multi + X] no português brasileiro (v. cap. 1).

Na seção 3.1 (v. figura 10), apresentamos o construal tal como concebido na versão atual do modelo (Langacker, 2008, 2009): desdobrado em especificidade, foco, proeminência e perspectiva. Por isso, a partir daqui, dedicamos uma seção a cada um desses componentes, ressalvado que atuam simultaneamente e que a ordem da apresentação de cada um nada tem a ver com hierarquização ou ordem da atuação.

5.1.1 ESPECIFICIDADE (OU GRANULARIDADE OU RESOLUÇÃO)

No capítulo 3, vimos que a relação entre esquematicidade e especificidade determina a relação entre a gramática e o léxico como consequência de a conceptualização, em todos os domínios da experiência, poder refletir níveis variados de generalidade e especificidade. O conceito com que Langacker (1991, 2008) aborda a capacidade cognitiva de discernir entre um tipo e uma instância é grounding.

O grounding pode ser nominal (nominal grounding), como o exercido por meio de determinantes num sintagma nominal, ou oracional (clausal grounding), como o exercido por categorias gramaticais (modo, tempo, número, pessoa). O conceito foi elaborado para explicar a referência fugidia ao longo de um diálogo, que seria organizado por um espaço mental discursivo (current discourse space – CDS).

Nesses termos, a relação entre língua e discurso também deixa de ser dicotômica e passa a ser tão integrada quanto a relação entre gramática e léxico. Na língua, a coisa “objeto” é mais esquemática que a coisa “garrafa”, assim como, no discurso, o enunciado “estou segurando um objeto” é mais esquemático que o enunciado “estou segurando uma garrafa”, por sua vez, mais esquemático que o enunciado “estou segurando uma garrafa de água mineral”, por sua vez, mais esquemático que o enunciado “estou segurando a garrafa de água mineral”, em que o terreno (ground) da referência é o CDS.

A ampliação dessas considerações para o terreno da teoria dos espaços mentais extrapolaria os limites desta dissertação e não contribuiria para seus objetivos. Basta-nos explicar que o grounding. é a manifestação estrutural da relação

esquematicidade/especificidade que vimos acompanhando desde a esquematização como um processo cognitivo de domínio geral para a Gramática Cognitiva, razão pela qual o significado construcional, objeto deste capítulo, é esquemático por definição.

Isso posto, a relação entre morfologia e sintaxe, caracterizada, no capítulo 3, pela diferença quanto ao número de palavras que resultam da instanciação de um esquema, pode ser mais claramente definida pela possibilidade de a sintaxe ser esquemática – como com os nominais nus13, em que “gostar de homem” é mais esquemático que “gostar de homens” pela ausência de grounding oracional, enquanto “ter palavra” é mais esquemático que “ter a palavra” pela ausência de grounding nominal – ou específica – como com a potencialmente infinita adjunção de adjetivos a um sintagma nominal. A morfologia, por sua vez, pode apenas ser esquemática, na medida em que até a composição, que vimos, no capítulo 3, estar entre a morfologia e a sintaxe e, no capítulo 2, ser contrastada com a derivação, exige a completa ausência de grounding.

Langacker (2008, p. 266) exemplifica o grounding na sintaxe com as seguintes expressões:

(i) Jennifer loves her cat. (ii) Jennifer is a cat-lover.

O autor entende que, em (i), o grounding oracional manifesto por “-s” como marca número-pessoal e o grounding nominal manifesto por “her” produzem especificidade, pois se trata apenas de Jennifer e de amar apenas seu gato. Com isso “Jennifer” e “gato” são instâncias.

O autor também entende que, em (ii), a incorporação de “cat” a um composto corresponde à conversão de instância em tipo de coisa, assim como a incorporação de “loves” ao mesmo composto corresponde à conversão de instância em tipo de relação. Logo, o composto “cat-

lover” não se aplica à especificidade de amar um gato, e sim à generalidade de amar gatos.

Em outras palavras, a morfologia não produz uma palavra que corresponda à especificidade de amar um gato, produz somente uma palavra que corresponda à generalidade de amar gatos. Então, [multi + X] é uma construção que se situa na morfologia não somente porque se instancia em uma palavra, mas sobretudo porque o X que a instancia não pode estar aterrado.

13 Objeto da tese de doutorado de Jorge Luiz Ferreira Lisboa Júnior no Programa de Pós-graduação em Letras

5.1.2 FOCO

No capítulo 3, vimos que o foco se desdobra em figura/fundo, composição e escopo. Trata- se da seleção, constitutiva da conceptualização, do que focalizar (figura) e subfocalizar (fundo) do escopo.

A relação entre figura e fundo sofre a interferência de o S ser mais ou menos analisável e mais ou menos composicional. Recuperemos, do capítulo 3, o cotejo entre “multitela” e “multiletramento”. Lá pretendemos fazer ver que o subesquema [multi + S] pode ser instanciado por um S com ou sem complexidade estrutural e que os S com complexidade estrutural são expressões que resultam da instanciação de outras construções, como [X + mento]. Aqui pretendemos associar tal fato com a relação entre figura e fundo como constitutiva do foco, por sua vez, constitutivo do construal.

Exemplos de expressões em que S não tem complexidade estrutural são “multitela”, “multicabide”, “multimercado”, “multiponto” e “multiplataforma”. O que elas revelam é um substantivo concreto, consequentemente contável, que, para Langacker (1987), corresponde à conceptualização de um episódio.

A concretude permite à coisa destacada ser uma zona de ativação cognitiva, que, na Gramática Cognitiva, deflagra a metonímia. Sendo assim, “tela”, “cabide”, “mercado”, “ponto” e “plataforma” são as partes ativadas (figura) de um todo subfocalizado (fundo).

Exemplos de expressões em que S tem complexidade estrutural são “multiculturalismo”, “multimodalidade”, “multivacinação”, “multidisciplinaridade” e “multipolaridade”. O que elas revelam é um substantivo abstrato, consequentemente não contável, que, para Langacker (1987), corresponde à conceptualização de uma região.

A abstração permite à coisa destacada herdar a relação destacada pelo verbo (relação temporal) ou pelo adjetivo (relação atemporal) que instanciou a construção em questão. Sendo assim, “culturalismo”, “modalidade”, “vacinação”, “disciplinaridade” e “polaridade” são expressões que resultam das construções [X + ismo]14, [X + idade] e [X + ção], em que as duas primeiras foram instanciadas por “cultural”, “modal”, “disciplinar” e “ polar” (adjetivos, concebidos como palavras que destacam relação estática) e a terceira foi instanciada por “vacinar” (um verbo, concebido como palavra que destacam uma relação dinâmica).

14 Pode-se pensar nesta construção como instanciada por “cultural” para a formação de “culturalismo” ou como

instanciada por “multicultural” para a formação de “multiculturalismo”. Na segunda hipótese, não cabe a análise de “multiculturalismo” como instanciação da construção [multi + X] por um S complexo.

Aqui, precisamos retornar à distinção entre coisa e relação (v. 3.1) para estabelecer uma distinção não prevista pela Gramática Cognitiva, concernente aos graus de analisabilidade e composicionalidade. Trata-se da formação de substantivos a partir de verbos ou de adjetivos, que confere aos substantivos a condição especial de destacar uma coisa a partir do destaque de uma relação. O modelo contempla a distinção entre “tela” e “letramento” quanto à analisabilidade e à composicionalidade (v. 3.1) mas iguala todos os substantivos quanto ao destaque de coisa, como vimos. Acreditamos a distinção repercute na relação entre figura e fundo: por haver uma relação por trás da coisa, a coisa conceptualizada a partir de uma relação estática (formação de substantivos a partir de adjetivos) e a coisa conceptualizada a partir de uma relação dinâmica (formação de substantivos a partir de verbos) focalizam a relação (figura) e subfocaliza os atores que estabelecem a relação (fundo).

Em razão da distinção entre coisas destacadas por substantivos sem complexidade estrutural (“tela”, “tarefa”) e coisas destacadas por substantivos com complexidade estrutural (“letramento”, “modalidade”), a instanciação da construção [multi + S] por um S complexo traz consigo a composição do foco. Graças a ele, passa a haver múltiplos níveis de analisabilidade e composicionalidade, o que remete a um perfil sociolinguístico caracterizado por mais escolaridade.

Assim, expressões que resultam da instanciação da construção [multi + X] por um S simples e concreto são menos analisáveis e menos composicionais que expressões que resultam da instanciação da construção [multi + X] por um S complexo e abstrato (fenômeno contemplado pelo modelo), o que se reflete no foco pela relação entre parte como figura e todo como fundo no primeiro caso e relação (estática ou dinâmica) como figura e os envolvidos na relação como fundo (fenômeno não abordado pelo modelo). Com isso, preserva-se a distinção entre uma expressão como “multimodalidade”15 – que destaca uma coisa por ser um substantivo mas focaliza uma relação por ser a instanciação da construção [multi + X] por um S complexo (“modalidade”) cuja analisabilidade e composicionalidade se devem ao fato de ser formado a partir de um adjetivo (“modal”) –; uma expressão como “multimodal” – que destaca uma relação por ser um adjetivo mas focaliza outra relação por ser a instanciação da construção [multi + X] por outro adjetivo (“modal”); e uma expressão

15 Assim como “multiculturalismo”, a expressão “multimodalidade” pode ser analisada, não como instanciação

da construção [multi + X] pelo substantivo complexo “modalidade”, mas como instanciação da construção [X + idade] pelo adjetivo complexo “multimodal”.

como “multitela” – que destaca uma coisa por ser um substantivo mas focaliza uma parte por ser a instanciação da construção [multi + X] por um S simples (“tela”).16

Para concluirmos a análise do componente foco, passemos a considerar o escopo. Conforme antecipamos no capítulo 3, o escopo da construção [multi + X] é sempre uma coisa, seja o subesquema [multi + S], seja o subesquema [multi + A].

O esboço dessa tese partiu dos dados (v. quadro 1), entre os quais, por exemplo, “multilateral” equivale a “muitos lados”, e não a “muito lateral”. A tese se consolidou com a informação, reconhecida pela tradição lexicológica, de que, em latim, havia o adjetivo “multus” e o advérbio “multum” e com a informação de que “multi” é a evolução de “multus”, e não de “multum”. Logo, a interpretação quantificadora de todas as expressões que resultam da instanciação da construção [multi + X] guarda relação direta com a predicação por um adjetivo (uma relação) a um substantivo (uma coisa), e não com a predicação por um advérbio (uma relação) sobre um adjetivo (outra relação). Daí estar afastada a interpretação intensificadora até das expressões que resultam da instanciação do subesquema [multi + A].

Por fim, a tese de que o escopo é sempre uma coisa encontra respaldo nas abordagens centradas no item apresentadas no capítulo 2. Lembremos a posição de Sandmann (1996) sobre a formação das palavras “multidisciplinar” e “multiusuário” (v. seção 2.3):

Como os adjetivos disciplinar e usuário dificilmente são empregados com o significado ‘relativo a uma disciplina científica ou escolar’ e ‘útil’, respectivamente, surge a pergunta se, no caso, não se trata de formações parassintéticas. Suposição semelhante gostaria de fazer a propósito das formações acima multiconfessional; multipartidário e multifamiliar. Essa questão não nos deve, porém, ocupar aqui por mais tempo. De qualquer maneira parece que o campo de aplicação do modelo de formação de palavras de derivação parassintética é bem mais amplo que se supunha até aqui. (p. 23)

Basilio (1987) já havia proposto uma concepção semântica da parassíntese, capaz de descrever palavras como “desdentado”. Apesar de existir “dentado”, critério usado pela tradição para distinguir entre a prefixação e a parassíntese, trata-se de adjetivo não humano, como em correia dentada, sem a possibilidade de interpretação verbal (provida de dentes), o que indica não haver prefixação a “dentado” para a formação de “desdentado”, e sim parassíntese a partir de “dente”.

16 Cf. Basilio (1987) quanto à complexidade estrutural por camadas de base e afixo com base no lexicalismo

A posição de Basilio (1987) e a de Sandmann (1996) em favor de uma descrição por meio da derivação parassintética se prestam a uma revisão com base na Gramática Cognitiva. Ambas nos parecem sensíveis ao escopo do processo morfológico, que são substantivos (“dente”, “uso”, “disciplina”, “confissão”, “partido” e “família”), ou seja, palavras que destacam uma coisa. O que esses autores pretendiam por meio de processos entendidos como morfológicos porque incidentes sobre formas corresponde ao que pretendemos por meio de processos entendidos como semânticos porque incidentes sobre unidades simbólicas a serviço da conceptualização.

Ressalte-se que o escopo ser sempre coisa não impede que o destaque (componente da proeminência) seja de coisa ou relação. Expressões que resultam da instanciação do subesquema [multi + S] destacam coisa, expressões que resultam da instanciação do subesquema [multi + A] destacam relação. Esse é um fato relativo ao destaque, que permite distinguir entre “multiculturalismo” como substantivo e “multilateral” como adjetivo. Outro fato concerne ao foco, que se manifesta por meio do escopo sempre sobre uma coisa, seja em “multiculturalismo”, seja em “multilateral”.

5.1.3 PROEMINÊNCIA (OU SALIÊNCIA)

A proeminência também é um fenômeno inerente à conceptualização. As expressões podem ter a mesma base conceptual mas alinhar trajetor e marco de diferentes maneiras. É mais convencional dizer que o copo está em cima da mesa que dizer que a mesa está embaixo do copo porque atribuir a copo a condição de trajetor em relação com a mesa na condição de marco parece refletir que o copo é menor que a mesa e que a manipulação do copo é mais condizente com o conhecimento do mundo que a manipulação da mesa. No entanto, se, em vez de uma festa, em que se procure um copo para colocar uma bebida, a situação for de uma mudança, em que se pergunte pela mesa a carregar ao caminhão, então dizer, com ou sem ironia, que a mesa é aquela que está embaixo do copo pode fazer sentido, especialmente se o copo não for o que deve ser carregado no momento.

Como reconhecido por Langacker (2019), a morfologia nunca foi o foco da Gramática Cognitiva. Então, é natural que comecemos a falar de proeminência por meio de enunciados, e não de palavras. Da mesma forma que a relação entre especificidade e generalidade serve para distinguir entre morfologia e sintaxe quanto à possibilidade ou impossibilidade de grounding, o alinhamento entre trajetor e marco pode ser estendida à morfologia em sintonia com a assimetria A/D.

No capítulo 3, vimos que o elemento fixo de uma construção é dependente enquanto o elemento variável é autônomo. Aqui podemos conciliar a autonomia na estrutura morfológica com a condição de trajetor, assim como a dependência com a condição de marco.

Novamente, precisamos restringir a análise ao subesquema [multi + S] porque substantivos destacam coisas e são coisas que podem ser trajetores ou marcos. Portanto, uma coisa, concreta ou abstrata, que se torna disponível a ser o X da construção [multi + X] atua como trajetor pela sua autonomia em face de “multi”, que atua como marco e, por isso mesmo, é o elemento fixo da construção.

5.1.4 PERSPECTIVA

A perspectiva é condição para a conceptualização. “Though it is a mental phenomenon, conceptualization is grounded in physical reality: it consists in activity of the brain, which functions as an integral part of the body, which functions as an integral part of the world” (Langacker, 2008, p. 4). Portanto, o realismo experiencial que a Linguística Cognitiva tem por fundamento começa na perspectiva assumida pelo falante.

Na Gramática Cognitiva, perspectiva é um conceito que remete à possibilidade de a mesma experiência ser conceptualizada mais objetiva ou mais subjetivamente. “In the default arrangement, the vantage point is the actual location of the speaker and hearer. The same objective situation can be observed and described from any number of different vantage points, resulting in different construals which may have overt consequences” (Langacker, 2008, p. 75).

É a perspectiva do falante e/ou do ouvinte que determina o ground para a referência ao longo de uma conversa. Isso apenas confirma o entrelaçamento dos componentes do

construal, que estamos isolando para fins de exposição acadêmica, ressaltando que atuam

conjuntamente sem hierarquia. A perspectiva, no entanto, é o pré-requisito mais básico para o falante, que é localizado espacialmente, situar a referência no evento de fala, sem que a teoria perca de vista o caráter distribuído da conceptualização numa comunidade linguística.

Meaning is not localized but distributed, aspects of it inhering in the speech community, in the pragmatic circumstances of the speech event, and in the surrounding world. In particular, it is not inside a single speaker’s head. The static, insular view ascribed to cognitive semantics is deemed incapable of handling the dynamic, intersubjective, context-dependent nature of meaning construction in actual discourse. (LANGACKER, 2008, p. 28)

No âmbito morfológico, a alternância de perspectivas se revela no contraste entre construções. No capítulo 2, vimos que Sandmann (1996) fala do convívio entre “multi” e “pluri” como prefixos sinônimos. Nesta dissertação, caberia falar da construção [multi + X] e da construção [pluri + X] como não sinônimas exatamente porque cada uma está a serviço da conceptualização de perspectivas diferentes. O que a cognição vê como multiplicidade é diferente do que vê em pluralidade, o que torna “multipartidário” e “pluripartidário” (exemplos do autor) distintos nas circunstâncias pragmáticas do evento de fala, como nos alerta Langacker (2008) acima. A própria existência das duas construções evidencia a não sinonímia para a Linguística Cognitiva.

Nestes termos, a perspectiva a partir da qual muitos letramos (multiletramento), muitos partidos (multipartidário), muitas coisas (multicoisas), muitas tarefas (multitarefa) etc. quantifica as coisas que cada X significa para a conceptualização de uma nova coisa ou de uma relação. O muito ou pouco não está no mundo como ele é (v. “God’s eye” em Lakoff, 1987), e sim na perspectiva assumida para a conceptualização.

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