• Nenhum resultado encontrado

Sodoma, Gomorra e a aldeia global

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Sodoma, Gomorra e a aldeia global"

Copied!
6
0
0

Texto

(1)

1

Sodoma, Gomorra e a “aldeia global”

Diz o texto bíblico1 Gn 18, 20-21: «O clamor de Sodoma e Gomorra é

imenso, e o seu pecado agrava-se extremamente. / Vou descer a fim de ver se, na realidade, a conduta deles corresponde ao brado que chegou até mim.»

Vamos, por breve tempo, supor que não é de Deus que se trata, mas de um qualquer governante, humano ou não, todavia digno do nome, isto é, de um governante que, de facto, governe, quer dizer, ainda, de um governante que cuide exclusivamente do bem-comum. É que, se não o fizer, não é propriamente um governante, mas outra coisa qualquer, que pode variar desde o mais esperto tirano até ao mais néscio idiota que casualmente ocupe tal posto.

Tal bom governante ouviu o clamor que se levantava de duas cidades, por causa do mal que nelas se praticava. É no termo «mal» que temos de atentar. É que não se trata de «comportamentos» ou de algo igualmente superficial, mas da realidade ontológica dos actos praticados, quaisquer fossem. Estes actos suscitam clamor porque atentam contra o bem-comum. Ou não suscitariam clamor, antes júbilo. Mas não é júbilo que suscitam, é mesmo clamor. Este clamor manifesta que algo ameaça o que é o bem-comum, como já vimos. Mas que quer isto dizer?

O bem-comum é a possibilidade universal de todos poderem atingir o seu melhor possível, algo que é irredutivelmente próprio de cada ser humano, em sinfonial acordo com todos os outros, universalmente.

Ora, se alguém atenta contra o bem-comum, atenta contra a possibilidade própria do ser de alguém. Mas, estando o bem de todos a

(2)

2

todos ligado, atentar contra o bem de alguém é atentar contra o bem de todos, perceba-se isto ou não.

Assim, o que chegou aos ouvidos do sábio governante foi um atentado contra o bem universal possível naquelas duas cidades. Tal significa que há naquelas cidades quem precisamente não queira a possibilidade das cidades. O mesmo é dizer que alguém não quer que tais cidades tenham futuro. É a possível vida ou possível morte das cidades que está em causa, não uma questão moral ou de valores.

No clamor de Sodoma e Gomorra, é o princípio ontológico de possibilidade das cidades que se manifesta como posto em causa. É como se as próprias cidades, em prosopopeia – mas as cidades são a prosopopeia por composição das pessoas singulares que as constituem –, gritassem o perigo de vida em que se encontram.

O sábio governante, que não é pessoa de proceder sem saber bem sobre que procede, desce às cidades para saber directamente o que se passa. E o que se passa é que muitos dos seus habitantes põem em causa o bem-comum, isto é, não querem que as cidades possam continuar.

Poder-se-á dizer: mas eles não querem mesmo matar as cidades, procedem sem saber que o que fazem põe em risco a continuidade das cidades. Tal é possível, mas é objectivamente irrelevante, pois isso que constitui o bem-comum das cidades ou a sua negação, não é algo do âmbito da subjectividade dos agentes, mas da objectividade dos actos: se todos agirem objectivamente de modo a que, no próximo acto de todos, as cidades sejam destruídas, estas são mesmo destruídas, independentemente de qualquer subjectividade.

(3)

3

O que o sábio governante constata é que as cidades estão em processo de auto-destruição. É o que o texto manifesta, longamente, marcando um desvelo para com o bem das cidades, ao reportar uma dialéctica política entre Abraão e Deus acerca da relação entre o acto de salvar as cidades – por parte de Deus, pois é deste o selo que assinalará o que é o destino delas – e a presença nelas de pessoas que não atentam contra o bem-comum, pessoas «justas (18, 22-32). Primeiro, o número cinquenta recebe a anuência salvífica de Deus; depois, o número quarenta e cinco; depois, o número quarenta; depois, o trinta; depois, o vinte; finalmente o dez. Deus aceita salvar as cidades se nelas for possível encontrar dez «justos».

A progressão é significativa: se houver um mínimo de justos, as cidades não serão eliminadas. Mas este mínimo resume-se a Lot e a sua família, que recebem ordem para sair da cidade. Ficam, assim, as cidades sem pessoa alguma justa.

Em 19, 24, Deus aniquila as cidades, fazendo chover sobre elas «enxofre e fogo».

É demasiado fácil tomar o texto à letra: Deus destruiu Sodoma e Gomorra. Na verdade, já nelas nada havia a destruir. Sodoma e Gomorra destruíram-se a si próprias. Ao anular o bem-comum, anularam a sua possibilidade. O símbolo do selo divino significa a inevitabilidade trágica do que que tal impossibilidade auto-infligida é: através de seus actos, os cidadãos destas cidades aniquilaram-nas como cidades. E os seres humanos não podem viver senão em cidade – não confundir com «urbes» em sentido moderno –, pois a cidade é o lugar em que, em colaboração, em entre-ajuda, podem, cada um deles e todos num mesmo acto, ser propriamente humanos e o melhor possível no seio desta mesma possibilidade de humanidade.

(4)

4

O que sucede em Sodoma e Gomorra é a aniquilação da cidade como tal possibilidade. O enxofre e o fogo são a marca do trágico, do incontornável.

Mas, e a misericórdia de Deus?

Como é que se pode ser misericordioso, sem violência, sem que o objecto possível de misericórdia queira ser tal objecto? E toda a violência impede qualquer forma de misericórdia. É o que significa a progressão “regressiva” no número de salváveis propostos por Abraão: haverá quem queira ser salvo, quem queira ser objecto de misericórdia? Não, então, a recompensa coincide com tal recusa. E não é possível outra, sem violência, precisamente o que está em causa em Sodoma e Gomorra.

Ninguém pode ser salvo contra a sua vontade.

Hodiernamente, há mesmo quem não queira misericórdia. Quem jogue a sua ontologia apenas no tabuleiro do puro poder. Não se trata, sequer, de uma forma de ateísmo radical, mas de uma nova forma teológica de radical auto-latria. Ora, é a auto-latria da afirmação do poder pessoal contra o bem-comum que ergue o clamor que chegou ao sábio governante. Sodoma e Gomorra não são vulgar “pecado”, mas a recusa principial da misericórdia. Para tal não há senão a trágica solução da aniquilação.

O próprio Deus encontra, aqui, um limite ao seu poder, pois, se usa de violência no exercício de uma – assim – falsa misericórdia, situa-se ao nível das próprias cidades, algo de impensável.

Ora, Sodoma e Gomorra são velhos mitos judaico-cristãos. Não interessam.

Não propriamente. O clamor que hodiernamente se levanta a partir da injustiça que se espraia avassaladoramente pelo mundo, a uma velocidade

(5)

5

nunca vista e proporcional a uma nova condição ontológica de movimento, é semelhante ao das defuntas cidades. E, aqui, não há mito, há uma concretíssima realidade bem prosaica.

Esta nova condição ontológica de movimento recebe o nome de «aldeia global». Hoje, é a «aldeia global» que clama, qual Sodoma e Gomorra, por justiça.

Será como humanidade global que a «aldeia global» construirá o seu futuro ou realizará a anulação dessa possibilidade, aniquilando-se.

Quando se pergunta, néscia e cobardemente, «onde estava Deus», por exemplo, em Auschwitz, esquece-se que Deus não é uma entidade mágica ou algo como um escravo da humanidade. Esquece-se que Deus estava em Auschwitz em cada acto de bondade que aí se realizou. Deus estava nos bravos que se recusaram a morrer como bichos às mãos da besta nazi no Gueto de Varsóvia, dos que se organizaram e fugiram do pior dos campos de extermínio, que foi Treblinka; estava nas decisões de um Schindler ou de um Sousa Mendes.

Deus esteve onde esteve o acto de coragem que fez triunfar o bem, ainda que efemeramente.

Onde tais actos não existiram, aí não estava Deus, mas não estava Deus, porque não estava o ser humano, apenas bestas opressoras e pessoas por aquelas bestializadas, mortas para a humanidade em vida (leiam-se os relatos de Primo-Levi, por exemplo).

Sodoma, Gomorra, Treblinka, a «aldeia global»: se esta última com tais realidades de exercício da humana maldade se quiser identificar, também se auto-aniquilará, impedindo sequer a misericórdia de Deus, infinita, mas incapaz de forçar.

(6)

6

Nunca como hoje se esteve tão próximo da situação de Sodoma e de Gomorra. Os sinais abundam, os actos adensam-se. Haverá um ponto de não-retorno para a humanidade. Haverá mesmo. Convém parar antes.

Novembro de 2016 Américo Pereira

Referências

Documentos relacionados

O processo de gerenciamento da capacidade foi desenhado para assegurar que a capacidade da infraestrutura de TI esteja alinhada com as necessidades do negócio. O

Basta lembrar que algumas das democracias ocidentais mais sólidas não têm voto direto para escolher quem vai comandar o país.. Nos EUA o presidente é eleito por um colégio

Quando alguém entra em contato com as revelações da Verdade Absoluta, sejam trazidas por Krishna, Buda, Jesus, Paulo, ou por quaisquer outros profetas ou mensageiros,

O diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Edvaldo Santana, disse ontem que o atual cenário de turbulências no setor elétrico “está caminhando para

Há amplo espaço para preocupação quanto às dificuldades para aprovação de reformas necessárias à contenção do déficit público, peça crucial para o sucesso

- Se somente o município figura como devedor no título executivo judicial, não pode o ex-prefeito, que não participou do processo de conhecimento, ser parte na execução, não

S em qualquer sombra de dúvida, quando nosso Senhor Jesus Cristo nos ensina na oração do Pai Nosso a dizer que o nome de Deus deve ser santificado na Terra, do mesmo

Podemos considerar a tutela de indígenas uma parte fundamental do “DNA” de uma política estatal pensada para, legal e institucionalmente, subjugar os povos indígenas